Chamada Dossiê - Cidades e narrativas - v. 9/1, n. 24 – 2024 - Prorrogada submissão até 15/11/2023

2023-06-06

Entre as redes educativas que formamos e nas quais nos formamos estão aquelas referentes aos locais onde moramos e existimos – redes das ‘práticasteorias’ de vivências nas cidades, nos campos e à beira das estradas (ALVES, 2019, p.131). Esses ‘espaçostempos’ se relacionam substantivamente entre si, por intensos movimentos realizados de uns aos outros, trazendo sempre narrativas de si e permitindo a tessitura de quem somos e porque o somos, em movimentos que, possibilitando manter e recriar a vida, relacionam horizontes diversos que são narrados, permanentemente, articulados com as diferentes experiências que temos com tantos diversos outros seres humanos, nas trajetórias realizadas em comum, de solidariedades e de antagonismos.

Lembramos que essas múltiplas, complexas e persistentes relações nos têm trazido “miseráveis, desempregados famintos, desesperados, homens e mulheres sem eira nem
beira, [que] testemunham a ruína do que lhes foi prometido. Para uns são apenas
vítimas de uma guerra desumana, seres vulneráveis passíveis de compaixão.” Mas que podem ser “afirmados como contadores de histórias perigosas” (In BAPTISTA, 2022, p 17). Para isso, precisamos entender como Gagnebin (1994, p. 54), inspirada nas análises de Walter Benjamin sobre a alegoria, [...] (que) às ruínas
(..) (podemos propor outra) conotação política: “A história não é, pois, simplesmente o lugar de uma decadência inexorável [...] ao meditar sobre as ruínas de uma arquitetura passada, o pensador alegórico não se limita a evocar uma perda; constitui, por essa mesma meditação, outra figura de sentido [...], [...] (pois) o sentido nasce tanto da plenitude e da eternidade como, também, do luto e da história, mesmo
se, através deles, estamos em busca de um outro tempo” (BAPTISTA, 2022, p. 17) e de outros espaços.

Essas narrativas, em suas tantas diferenças e complexidades, trazem, permanentemente, a potência criativa e astuta (DETIENNE; VERNANT, 2008) das nossas humanidades e se chama “métis” – “força tática, força guerreira criada para encontrar saídas, resolver questões diante do mundo, reafirmando crenças.  Os mitos são arquétipos criados para fazer emergir nossas potências. Eles povoam as mentes e se manifestam de maneiras diferentes, de acordo com cada cultura e suas crenças. A Métis que habita a mitologia grega é uma deusa, esposa de Zeus, que a devora por conta de sua inteligência e por gerar a filha que tomará seu trono. Ao ser engolida por Zeus, Métis, assim como sua inteligência e astúcia, são incorporadas a ele. Métis é uma guerreira, forja ferramentas  e  cria  estratégias  de  guerra  para  se  defender” (MENDONÇA; SANTOS; TOJA; MORAIS, 2020: p. 1625). Homens e mulheres fazem uso dela para narrar suas histórias nas cidades, onde nascem ou onde chegam depois de diferentes andanças através de grandes e diferentes ‘espaçostempos’. As narrativas de si ultrapassam a expressão de uma individualidade, de um eu imaculado, de uma delimitação identitária. São histórias criadas ou tecidas artesanalmente no uso de inúmeros fios, linhas, restos, detritos de coisas e de afetos contrastantes; artesanato a recusar a sufocante narração que limita-se aos rastros do eu, da arrogância do Sujeito apartado dos apelos e forças do mundo. O contar sobre si sugere o mostrar uma arte do fazer, sempre inconclusa, de montagens de fragmentos de outras histórias que após o ato do contar o narrador não se reconhecerá na autoria. Arte intranquila, imprevisível e improvisada, pois nas cidades dos homens a paz das imaculadas universalidades das ideias é abalada em sua pretensa estabilidade, assim como o inferno de um destino mítico a decretar o nada a fazer. O si mesmo apresenta-se na intensidade de uma diferença confeccionada nos embates, o díspar sujo, impuro, inacabado, disponível para uso quando o ar nos falta na asfixia do desejo e da revolta.

Com isso, podemos afirmar que “o passado respira abaixo das ondas. O respirar contido
na imagem de Walter Benjamin a indicar a inconclusividade do que passou,
apropriada pelos perigos do agora: “articular historicamente o passado não
significa conhecê-lo como de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN,
1994, p. 224; In BAPTISTA, 2022, p. 23).

Com a proposta deste dossiê queremos trazer as experiências vividas nas “cidades, no campo e à beira das estradas” (e por que não, em locais considerados inóspitos?) como criadora de encontros com paisagens e seres humanos – solidários ou agressivos; articuladores ou controladores dos mesmos – coabitando nas possibilidades que criam de narrativas de si múltiplas, complexas e diferenciadas, entendendo que as ações humanas incorporam dimensões éticas, estéticas, políticas e poéticas.

 

Referências

ALVES, Nilda. As redes das ‘práticasteorias’ de vivencias nas cidades, no campo e à beira das estradas. In AVES, Nilda. Práticas pedagógicas em imagens e narrativas – memórias de processos didáticos e curriculares para pensaras escolas hoje. São Paulo: Cortez, 2019. p. 131- 133.

BAPTISTA, Luis Antonio dos Santos. Fragmentos de um horizonte em ruína: divagações sobre histórias dos restos. In: SILVA, Rodrigo Lages e MIRANDA, Aline Britto (orgs). Horizontes coletivos: experiência urbana e construção do comum. Curitiba: CRV, 2022. p. 17-28.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DETIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre. Métis: as astúcias da inteligência. Tradução Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

GAGNEBIN, J. M. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.
MENDONÇA, Rosa Helena; SANTOS, Joana Ribeiro dos; TOJA, Noale; MORAIS, Maria. ‘Cineconversas’ e fabulações curriculantes: o uso de filmes e a potência das conversas como metodologia de pesquisa em Educação. Revista e-Curriculum. São Paulo: Programa de Pós-graduação em Educação Currículo –PUC/SP, v.18, n.4, p.1109-1130, out./dez. 2020.

 

Coordenação:

Luis Antonio dos Santos Baptista (UFF)

Nilda Alves (UERJ)

Noale Toja (UERJ)

 

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