O duplo. Um tal Julio duplicado
DOI:
https://doi.org/10.35499/tl.v10i2.2567Palavras-chave:
Estudos CulturaisResumo
Em quase toda a obra de Julio Cortázar percebe-se a construção de uma particularidade presente: o duplo. Paris x Buenos Aires, o rio de La Platax o rio Sena, as pontes, um lado e outro das margens dos rios e do oceano que separam lugares de vivência do próprio autor e que se tornam as chamadas dos orillas, que terminam por construir um caleidoscópio, um movimentado jogo proposto pelo ficcionista em sua obra e para o qual o leitor é convidado a participar. Apreciaremos que o tópico do duplo alude à épocas antiquíssimas, sendo apenas tradução do problema da ameaça de morte do eu. O duplo adota diversas formas e manifestações: espelhos, reflexos, sombras de diversos planos inaugurando imagens deformadas, aparecendo e fazendo alusão aos caleidoscópios de Narciso. A maior parte dos estudos realizados na Europa do século XX sobre o duplo privilegia o ângulo psicológico, a começar pela interpretação psicanalítica de Otto Rank ao relacionar os diferentes aspectos do duplo na literatura com o estudo da personalidade dos autores. Otto Rank sustenta que o medo da morte nos inspira para inventar a ideia de um duplo: essa obscura réplica de nós mesmos que, segundo se diz, sobrevive num mundo fantasmagórico, ou outro mundo. Na visão de Rank, duplicar a imagem do eu é trabalho de uma negação narcisista da ideia de extinção pessoal. Otto Rank, psiquiatra, analisou os traços psicanalíticos dos autores na sua pesquisa baseada na literatura, salientando as características das personalidades dos escritores em questão. Rank desenvolve a ideia da literatura como tradução e reflexo da personalidade dos narradores e a ilustra a partir de exemplos das vidas dos autores e das análises de trechos significativos das narrativas. O fato de Rank salientar a aparição ou desdobramento do eu como figura e motor de criação narrativa, torna-se evocativo de várias das características do narrador cortazariano. Na abordagem da problemática do duplo em Cortázar, o tema do desdobramento ilustra-se a partir de uma lembrança - vivência de alucinação (e desdobramento) de Cortázar. O duplo, que se revela nos textos é, portanto, resultado da vivência do autor, que transita entre as duas margens literais e metafóricas. Em Julio Cortázar a escrita é catarse, exorcismo, pulsão, massa narrativa em constante pugna: contra e para outro. O duplo é figura central de nossas reflexões, seja como elemento provocador de impotência –rankiana-, seja como causante de insegurança diante à castração –freudiana- (percebida pelo ser e o texto), todas estas temáticas estando extremamente presentes nos estudos literários, mas também nas abordagens psicanalíticas tanto rankianas, freudianas, quanto lacanianas: análises psico-literárias sempre numa tentativa de descrição da formação do ser, e que para a nossa análise se tornam bases para a compreensão da construção textual, da passagem/construção para a narrativa traduzida. Trata-se portanto, de uma analogia ‛ser-texto’ singular que nos leva a pensar no ato tradutório como uma figura especular, como um narciso que se desenha, segundo Cortázar, ‛em tiras de palavras’, como una ponte de linguagem: de um ser para um outro, de uma margem para a outra, de um narrador para o seu leitor, de um narrador para o narrado, de um texto de partida (o original) para o seu texto duplo, o texto traduzido. Analogia ‛ser-texto’ que nos abrirá as portas para esse jogo da amarelinha onde a primeira pedra será jogada desde o texto de partida para vivenciar a tensão criativa, esse coágulo cortazariano, essa angústia na passagem, essa mimese, essa identificação e repulsa diante do outro -o duplo- na procura e tentativa de atingir o Céu: o texto traduzido.
Palavras-chave: Duplo; Texto; Tradução
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