A ARTE DE BENZER : A BUSCA DA CURA POR MEIO DA FÉ NO RITUAL SINCRÉTICO DO BENZIMENTO
Palabras clave:
Sincretismo Religioso, Benzedorres, Cultura PopularResumen
INTRODUÇÃO: A fé na prática do benzimento fez esse ritual resistir ao etnocentrismo, tempo e avanço da medicina moderna, evidenciando a sua importância na formação identitária das sociedades em que estão inseridas. Consoante a isso, Miranda (2015), evidencia que a ausência de políticas públicas direcionadas à saúde das comunidades rurais gerou a veneração da função social exercida pelos/as benzedores/as por parte do campesinato. Desta maneira, as rezadeiras se dedicam a cuidar dos membros da classe trabalhadora, suas mazelas físicas e espirituais. Diante dos pressupostos apresentados, qual a relevância dos benzedores/as para a saúde da população subalternizada? Em face do exposto, torna-se necessário apontar que este ato parte de uma ação divina que se utiliza do/a benzedor/a como mediador/a do seu poder de cura. Muitas vezes o/a ser transcendental que rege o/a rezador/a é regado pelo sincretismo cristalizado na sociedade brasileira. Na perspectiva teórica de Ferretti (1998), o sincretismo constitui-se pela união de crenças advindas da resistência das religiões oprimidas pela hegemonia portuguesa. Com tudo, o presente estudo é fruto de pesquisas suscitadas pelo Educação Patrimonial e Artística (EPA) projetos estruturantes da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, que busca desenvolver a produção de um álbum fotográfico de algum dos patrimônios materiais ou imateriais do município onde fica situada a instituição de ensino dos discentes. Em consonância com esse projeto o Colégio Estadual Ernesto Carneiro Ribeiro (CEECR) instiga os sujeitos aprendentes a realizarem pesquisas de campo para entender o fato estudado com incentivos à iniciação científica, assim, introduzindo os educandos no universo da pesquisa. OBJETIVO: Refletir sobre a importância das práticas do benzimento para a cura de doenças físicas e espirituais no município de Saúde-BA, bem como compreender a relevância da pesquisa no ensino médio para o letramento científico-acadêmico dos autores. METODOLOGIA: Para tanto, recorreu-se à abordagem qualitativa para desenvolver uma compreensão partindo das instâncias simbólicas do fenômeno estudado (CHIZZOTTI, 2003). Ademais, para a construção desse trabalho foi utilizado um estudo de caso (ANDRÉ, 2005) onde se debruçou sobre a atual conjuntura da função social dos/as benzedores/as da cidade de Saúde, situada no semiárido baiano. Nesse sentido, os instrumentos de coleta de dados usados neste trabalho foram o diário de bordo (PÁDUA, 2016), a observação (LÜDKE; ANDRÉ, 1986) e as entrevistas semiestruturadas (FACHIN, 2013). Partindo dessas finalidades, durante esse processo de pesquisa foram catalogados/as 61 benzedores/as que assistiam a cidade de Saúde em 2018, mas neste estudo foram escolhidos os depoimentos de apenas quatro rezadores/as para serem analisados. Nesse cenário, tupinambá tem 80 anos, reside na sede do município e se autodenomina católico; boiadeiro possui 86 anos de idade, mora no povoado de Paiaiá e não tem religião definida; oxum é mãe de santo, tem 56 anos, vive na comunidade campesina de Canoa e é adepta da umbanda; iemanjá tem o título de mãe de santo, tem 76 anos de idade, reside na sede do município e tem o candomblé como sua religião. Consoante a isso, os colaboradores dessa pesquisa foram quatro celebrantes do benzimento em diferentes localidades do município. Dito isso, nesse recorte analisa-se fragmentos das entrevistas de quatro benzedores/as que serão mencionados nesse texto com o nome do seu/sua guia. Usaremos os depoimentos e citações em itálico para diferenciar-se das demais partes do texto. RESULTADOS: Mesmo com a fundação de um Hospital Regional Nelson Carneiro na década de 1960 (ALMEIDA, 1998), a população continua buscando os/as benzedores/as com o intuito de sanar suas doenças. Diante desse pressuposto, revela-se que a fé no ato de benzer está inserida na consciência coletiva da população saudense (MOURA, 2019). Na perspectiva do senso comum, os/as benzedores/as sobrepõem-se aos médicos pois além do corpo, curam também as doenças da alma. Dito isto, é mister que a população total correspondia a 12,971 habitantes (IBGE, 2021). Nesse ensejo, 57% dos/as rezadores/as residem em comunidades campesinas e 43% na sede do município. Em consonância a isso, Miranda (2015, p.1750) salienta que “nessas comunidades encontramos homens e mulheres que – além de serem trabalhadores rurais, pois vivem da roça, plantando produtos para sua sobrevivência e o que sobra vendem nas feiras da região – também exercem a função de rezadores”. Destarte, os/as benzedores/as são pessoas simples que oferecem gratuitamente o cuidado através de orações. Contudo, é possível perceber nitidamente a relação dos/as rezadores/as com a fé e a religiosidade, como destaca seu Boiadeiro (2018), “minha mãe era índia, pai pegou ela no licurizeiro na serra da Mirangaba e abaixo de Deus ela me ensinou a benze do jeito que o pai dela benzia”. Ademais, é notória influência da cultura indígena e africana que vem resistindo ao silenciamento por meio dessa prática. Na perspectiva teórica de Oliveira (1983), os/as benzedores/as encaram um chamamento para o dom, esse que por sua vez, é um dom divino construído pela hereditariedade, por outras palavras, o processo primário em que os/as benzedores/as compreendem que possui o dom de benzer. Além disso, estes agentes recebem esse dom de mediadores da cura através algum de Deus, das forças da natureza, de um encantado ou um orixá embora sejam entidades tão distintas tenham um desejo comum de cuidar da saúde de seus filhos. Durante a entrevista, Tupinambá (2018), narrou: "antigamente a gente não aprendia que nem vocês na escola estudando, se o camarada quisesse aprender alguma coisa era olhando o outro fazer, e desse mesmo jeito era para aprender benzer”. Sob o mesmo ponto de vista, essa essência de uma sociedade detentora de uma sortida herança cultural que pelo dinamismo e criadora constante de valores éticos enriquecem suas práticas no patrimônio cultural da região. Os/as benzedores/as também passaram a dar nomes às doenças mais recorrentes conceituando-as como quebranto, mufina ou olhado, provenientes de “quando o sangue não se dá com o outro fere a alma, aí a pessoa fica com preguiça, sem querer comer” (TUPINAMBÁ, 2018); vento caído que ocorre quando “quando uma criança toma algum susto” (TUPINAMBÁ, 2018); “espinhela caída que é o que chamamos hoje de dor nas costas” (OXUM, 2018). Além disso, os moradores também desenvolvem tratamento de casos incompreensíveis para a medicina tradicional, como relatou Iemanjá (2018), “o benzimento já conseguiu curar câncer, paralisia, cegueira e até pessoas desenganadas”. Destacam que a fé nos ramos e banhos utilizados nas rezas nutre a esperança dos sertanejos que não tem recursos objetivos para tratamentos médicos. Outrossim, durante o levantamento, buscamos identificar as religiões dos/as benzedores/as. Com isso, constatou-se que 57% se autodenominam católicos, 6% adeptos do Candomblé, 27% de Umbanda, 6%, os que não definiram suas religiões, e da religião evangélica com 4%. Apesar disso, 98,99% afirmam ter suas práticas norteadas por pelos encantados ou elementos da natureza, deste modo explicitam-se a vivacidade das religiões indígenas nesse ato. Acerca disso, Paz (2009), aponta que uma das principais marcas da opressão europeia é a negação da identidade indígena, mesmo que esteja nítida no sistema de ações das comunidades que foram invadidas com requinte de crueldade. Conforme a narrativa de Boiadeiro (2018), apresentada anteriormente, a prática do benzimento é uma herança cultural dos povos payaya que se utilizaram deste ato como resistência indígena. Em virtude disso, categoriza-se os benzimentos como um ritual sincrético. Nesse processo, são utilizadas diversas representações simbólicas presentes no culto ao sol, sendo este que determina o período que se pode benzer, nos três ramos há uma analogia com as três pessoas da trindade cristã e as orações silenciosas são instruídas por alguma entidade. Além disso, os benzedores adeptos das religiões afro-brasileiras aumentam-se os símbolos onde são agregadas as imprensagens de veneração, vestes brancas, guias, coroas que representam o senhorio do orixá que o instrui e o sino para chamar as entidades. CONCLUSÃO: Conclui-se preliminarmente, que este ritual combate doenças do corpo e da alma, e dentre as mais recorrentes temos as que são denominadas de “olhado” e “vento caído”. Normalmente, estes benzedores adquiriram esse costume dos seus antepassados e um chamativo transcendente para conduzir este cerimonial ao qual dedicam-se com plena gratuidade. O certo é que os/as benzedores/as se dedicam a cuidar dos membros da classe trabalhadora de suas mazelas físicas e espirituais oportunizando àqueles que mais necessitam de cuidados curativos. Mesmo com a instalação do antigo Hospital Regional Nelson Carneiro no município de Saúde, essas práticas tornaram-se uma alternativa para as comunidades rurais e urbanas, visto que não se tinham acesso à medicina e se encontravam ou se encontram ainda distantes dos atendimentos hospitalares. Desse modo, fortalecendo habilidades desses agentes, no qual respeitam os médicos, porém, além de curar o corpo físico, curam também as doenças da alma, logo, fortalece a construção identitária desse povo, como ato centenário de vínculos ancestrais, com o divino, com a natureza e no cuidado com o outro. A prova mais evidente dessa identificação está nas recordações dessa comunidade, pois boa parte dela lembra-se que sofreu de “olhado, quebranto, mufina, doença do vento, ou até mesmo espinhela caída”. E foram curados por esses senhores e senhoras piedosos/as que livram dos males físicos, espirituais e psíquicos sem pedir nada em troca, entretanto sentimos que no fundo dessas almas há um elo especial com Deus. Em suma, é mister destacar que esse processo de pesquisa foi suscitando o desenvolvimento da curiosidade epistêmica (FREIRE, 2013) nos autores que na época eram estudantes da rede pública de ensino. Nesse ensejo, as entrevistas realizadas possibilitaram o convívio com a diversidade cultural e religiosa, que visa gerar um melhor cultivo desses recintos, tal como o registro dessa memória social. Enfim, este trabalho exerceu a função de iniciar cientificamente os discentes para o ingresso na universidade.
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Citas
ALMEIDA, Violeta Odete de. Saúde integral: história de um povo feliz. Arembepe: Gráfica, 1998. 198 p.
ANDRÉ, Marli. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Líber Livro, 2005.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 45ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. 143 p.
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LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 1ª ed. São Paulo: EPU, 1986.
MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Rezas, folhas e cura: Os benzedores e as benzedeiras das comunidades quilombolas de Coqueiros, Palmeiras e Santa Cruz – Mirangaba-BA. Anais eletrônicos: VII Encontro Estadual de História: Diálogos da História. 30 de setembro a 03 de outubro de 2014. Cachoeira, BA: UFRB, 2015. (ISBN: 978-85-61346-99-7).
MOURA, Joselito. Com dois te botaram com três eu te curo: as representações de cura na prática das benzedeiras de Paiaiás no município de Saúde/Bahia (1950 - 2018). 2019. 47 f. TCC (Graduação) - Curso de Licenciatura em História, Departamento de Ciências Humanas - Campus IV, Universidade do Estado da Bahia, Jacobina-Ba, 2019.
OLIVEIRA, Elda Rizzo de. Doença, cura e benzedura: um estudo sobre o ofício da benzedeira em Campinas. Campinas: s.n., 1983.
PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Metodologia da Pesquisa: abordagem teórico-prática. 18. ed. Campinas-SP: Papirus, 2016.
PAZ, Maria Gloria da. História e Educação de Mulheres Remanescentes Indígenas de Missão do Sahy. 2009. 213 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGED, Centro de Ciências Sociais Aplicada – CCSA, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2009.