e-ISSN 2177-5060
ISSN 2447-9373
Educação para Jovens e Adultos
em Privação de Liberdade
Salvador, v.6 n.1, p.1-219, jan./abr. 2021.
© PLURAIS Revista Multidisciplinar
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Educação para Jovens e Adultos
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Bases Indexadoras:
Publicação quadrimestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Gestão e Tecnologias aplicadas à Educação
e da Universidade do Estado da Bahia.
Os artigos assinados reetem o ponto de vista dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o dos Editores
e do Conselho Editorial da revista.
Projeto gráco: Equipe Plurais Revista Multidisciplinar
Diagramação e Editoração: Gilvania Clemente Viana e Márcea Andrade Sales
Capa: Angela Garcia Rosa
Fomento Institucional: Edital PAEP PÓS / UNEB
Sumário
DOSSIÊ TEMÁTICO
A EDUCAÇÃO EM PRISÕES: A DIMENSÃO POLÍTICA DA SUA GARANTIA
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
9
EDUCAÇÃO DIGITAL PARA ADULTOS EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
José António Moreira
20
PESQUISA DECOLONIAL E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: REFLEXÕES
EPISTEMOLÓGICAS E METODOLÓGICAS
Edla Cristina Rodrigues Caldas e Elenice Maria Cammarosano Onofre
34
OS MODELOS DE OFERTA DA EDUCAÇÃO EM PRISÕES NO BRASIL E A
CONSTRUÇÃO DO SEU PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO
Roberto da Silva e Marineila Aparecida Marques
49
LA COMPLEJIDAD DE LA EDUCACIÓN DE ADULTOS EN LAS CÁRCELES DE
CHILE, BRASIL Y ARGENTINA
Violeta Acuña – Collado, Roberto Catelli Jr. e Francisco Scarfó
68
ESTUDOS E ENSAIOS
VOZES DO CÁRCERE: A PRÁTICA LITERÁRIA E A REDUÇÃO DE PENA PELA
LEITURA NA PERSPECTIVA DE PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
92
PROFESSOR EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: UM FAZER DOCENTE
EM CONSTRUÇÃO
Odair Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
116
POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA E UMA DIDÁTICA FUNDAMENTAL COM
PESSOAS EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
Jilvania Lima dos Santos Bazzo e Rui Dias Florêncio
137
POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES DO ESTADO DA BAHIA: CONSTITUIÇÃO
DE UM NOVO PLANO ESTADUAL
Maria das Graças Reis Barreto e Newdith Mendonça Dias
155
ADOLESCENTES E JOVENS EM CONFLITO COM A LEI: A PERCEPÇÃO DE
“PUNIÇÃO” NO REGIME SOCIOEDUCATIVO DE INTERNAÇÃO
Solimar Santana Oliveira e Guilherme Resende Oliveira
171
O CICLO DE POLÍTICAS EM CONTEXTOS DA EDUCAÇÃO EM PRISÃO
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
189
DIÁLOGOS SOBRE A SOCIOEDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Kátia Aparecida da Silva Nunes Miranda e Clóris Violeta Alves Lopes
208
Summary
THEMATIC DOSSIER
PRISON EDUCATION: THE POLITICAL DIMENSION OF ITS GUARANTE
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
9
DIGITAL EDUCATION FOR ADULTS IN DEPRIVATION OF FREEDOM
José António Moreira
20
DECOLONIAL RESEARCH AND DEPRIVATION OF LIBERTY: EPISTEMOLOGICAL
AND METHODOLOGICAL REFLECTIONS
Edla Cristina Rodrigues Caldas e Elenice Maria Cammarosano Onofre
34
THE SUPPLY MODELS OF PRISON EDUCATION IN BRAZIL AND THE
CONSTRUCTION OF ITS POLITICAL PEDAGOGICAL PROJECT
Roberto da Silva e Marineila Aparecida Marques
49
THE COMPLEXITY OF EDUCATION THE ADULT IN THE PRISIONS OF CHILE,
BRAZIL AND ARGENTINA
Violeta Acuña – Collado, Roberto Catelli Jr. e Francisco Scarfó
68
STUDIES / ESSAY
VOICES FROM PRISON: LITERARY PRACTICE AND REDUCED SENTENCE FOR
READING FROM THE PERSPECTIVE OF PEOPLE DEPRIVED OF THEIR LIBERTY
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
92
TEACHER IN SPACES OF DEPRIVATION OF FREEDOM: A TEACHER DOING
UNDER CONSTRUCTION
Odair Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
116
FOR A LIBERATING EDUCATION AND A FUNDAMENTAL DIDACTIC WITH PEOPLE
IN DEPRIVATION OF LIBERTY
Jilvania Lima dos Santos Bazzo e Rui Dias Florêncio
137
EDUCATION POLICIES IN PRISONS OF THE STATE OF BAHIA: THE
CONSTITUTION OF A NEW STATE PLAN
Maria das Graças Reis Barreto e Newdith Mendonça Dias
155
ADOLESCENTS AND YOUNG PEOPLE IN CONFLICT WITH THE LAW: THE
PERCEPTION OF “PUNISHMENT” IN THE SOCIO-EDUCATIONAL REGIME OF
HOSPITALIZATION
Solimar Santana Oliveira e Guilherme Resende Oliveira
171
THE CYCLE OF POLICIES IN CONTEXTS OF EDUCATION IN PRISON
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
189
DIALOGUES ABOUT SOCIO-EDUCATION IN PANDEMIC TIMES
Kátia Aparecida da Silva Nunes Miranda e Clóris Violeta Alves Lopes
208
Resumen
DOSSIÊ TEMÁTICO
EDUCACIÓN EN LAS CÁRCELES: LA DIMENSIÓN POLÍTICA DE SU GARANTÍA
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
9
EDUCACIÓN DIGITAL PARA ADULTOS EN PRIVACIÓN DE LIBERDAD
José António Moreira
20
INVESTIGACIÓN DECOLONIAL Y PRIVACIÓN DE LIBERTAD: REFLEXIONES
EPISTEMOLÓGICAS Y METODOLÓGICAS
Edla Cristina Rodrigues Caldas e Elenice Maria Cammarosano Onofre
34
LOS MODELOS DE OFERTA DE EDUCACIÓN PENITENCIARIA EN BRASIL Y LA
CONSTRUCCIÓN DE SU PROYECTO POLÍTICO PEDAGÓGICO
Roberto da Silva e Marineila Aparecida Marques
49
LA COMPLEJIDAD DE LA EDUCACIÓN DE ADULTOS EN LAS CÁRCELES DE
CHILE, BRASIL Y ARGENTINA
Violeta Acuña – Collado, Roberto Catelli Jr. e Francisco Scarfó
68
ESTUDIOS / ENSAYOS
VOCES DESDE LA CÁRCEL: PRÁCTICA LITERARIA Y REDUCCIÓN DE PENAS
PARA LA LECTURA DESDE LA PERSPECTIVA DE LAS PERSONAS PRIVADAS DE
LIBERTADY
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
92
MAESTRO EN ESPACIOS DE PRIVACIÓN DE LIBERTAD: UN MAESTRO HACIENDO
EN CONSTRUCCIÓN SILVA FERREIRA
Odair Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
116
POR UNA EDUCACIÓN LIBERADORA Y UNA DIDÁCTICA FUNDAMENTAL CON
PERSONAS EN PRIVACIÓN DE LIBERTAD
Jilvania Lima dos Santos Bazzo e Rui Dias Florêncio
137
POLÍTICAS EDUCATIVAS EN LAS CÁRCELES DEL ESTADO DE BAHÍA: LA
CONSTITUCIÓN DE UN NUEVO PLAN ESTATAL
Maria das Graças Reis Barreto e Newdith Mendonça Dias
155
ADOLESCENTES Y JÓVENES EN CONFLICTO CON LA LEY: LA PERCEPCIÓN DEL
“CASTIGO” EN EL RÉGIMEN SOCIOEDUCATIVO DE HOSPITALIZACIÓN
Solimar Santana Oliveira e Guilherme Resende Oliveira
171
EL CICLO DE POLÍTICAS EN CONTEXTOS DE EDUCACIÓN EN PRISIÓN
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
189
DIÁLOGOS SOBRE SOCIO EDUCACIÓN EN TIEMPOS DE PANDEMIA
Kátia Aparecida da Silva Nunes Miranda e Clóris Violeta Alves Lopes
208
Dossiê Temático
A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 09-19, jan./abr. 2021 |
9
DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11680
A EDUCAÇÃO EM PRISÕES: A DIMENSÃO
POLÍTICA DA SUA GARANTIA
Maria Alba Guedes Machado Mello
1
Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-3036-0678
Katia Maria de Aguiar Barbosa
2
Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-2292-5667
RESUMO:
Os direitos políticos e sociais em uma sociedade democrática, dentre eles o da Educação, são consagra-
dos mediante políticas públicas expressas em normativas legais e programáticas, e efetivados por insti-
tuições e agentes públicos; no caso da Educação em Prisões, a Educação, a Segurança e a Justiça. Para a
sua garantia é necessário entender os âmbitos de luta política que vão do processo de formulação ao da
efetivação dessas políticas, portanto, a natureza do Estado e da própria Democracia. O presente Editorial
busca apontar estes elementos e a necessária aceitação dos conitos de interesses como mecanismos de
conquistas dos avanços democráticos para a Educação das pessoas em situação de privação e restrição
de liberdade, assim como tratá-los como situações pedagógicas no sentido de dar à educação seu lugar
de desenvolvimento humano e direito subjetivo dos cidadãos.
Palavras-chave: Educação em Prisões. Políticas Públicas. Estratégias Políticas e Pedagógicas.
ABSTRACT:
PRISON EDUCATION: THE POLITICAL DIMENSION OF ITS GUARANTE
Political and social rights in a democratic society, among them that of Education, are enshrined through
public policies expressed in legal and programmatic norms, and enforced by public institutions and
agents; in the case of Education in Prisons, Education, Security and Justice. To ensure this, it is neces-
sary to understand the spheres of political struggle that go from the formulation process to the imple-
mentation of these policies, therefore, the nature of the State and of Democracy itself. This Editorial
seeks to point out these elements and the necessary acceptance of conicts of interest as mechanisms
for the achievement of democratic advances for the education of people in situations of deprivation and
restriction of freedom, as well as treating them as pedagogical situations in the sense of giving education
its place of human development and the subjective right of citizens.
Keywords: Education in Prisons. Public policy. Political and Pedagogical Strategies.
1 Doutora em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Professora Titular (UNEB).
E-mail: mmello@uneb.br
2 Doutoranda em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Professora Adjunto (UNEB).
E-mail: kbarbosa@uneb.br
RESUMEN:
EDUCACIÓN EN LAS CÁRCELES: LA DIMENSIÓN POLÍTICA DE SU
GARANTÍA
Los derechos políticos y sociales en una sociedad democrática, incluida la Educación, están consagrados
a través de políticas públicas expresadas en normas legales y programáticas, y aplicadas por institucio-
nes y agentes públicos; en el caso de Educación Penitenciaria, Educación, Seguridad y Justicia. Para su
garantía, es necesario comprender los ámbitos de la lucha política que van desde el proceso de formula-
ción hasta la implementación de estas políticas, por lo tanto, la naturaleza del Estado y de la Democracia
misma. Esta Editorial busca señalar estos elementos y la necesaria aceptación de los conictos de interés
como mecanismos para la consecución de avances democráticos para la educación de personas en si-
tuaciones de privación y restricción de libertad, así como tratarlos como situaciones pedagógicas en el
sentido de dando a la educación su lugar de desarrollo humano y el derecho subjetivo de los ciudadanos.
Palabras clave: Educación Penitenciaria. Polícas públicas. Estrategias polícas y pedagógicas.
Introdução
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Fernando Pessoa
Na discussão sobre processos educativos para as pessoas em situação de restrição ou
privação de liberdade, a dimensão política é prioritária para fundamentar proposições e reexões.
A noção da Educação como direito subjetivo para todo cidadão, inclusive os privados de liber-
dade, corroborada com os princípios da Justiça Restaurativa elaboraram uma nova perspectiva
para a Educação nas prisões, a da ressocialização (compreendida, aqui, como desenvolvimento
humano), rompendo, assim, com sua antiga função de modelar, acomodar ou domesticar a so-
ciedade carcerária — no sentido foucaultiano — para torná-la dócil, submetida ao controle e
propósitos do Estado. Foi na esteira do processo de democratização da sociedade brasileira, a
partir da década de 1980, que se inaugurou esse outro sentido, essa nova compreensão política
para a denição e prática da Educação nas prisões: um direito subjetivo e uma possibilidade de
reverter, ou restaurar, nas pessoas privadas de liberdade, a sua humanidade, a sua capacidade de
conviver socialmente dentro das regras democráticas da sociedade que se quer construir.
A trajetória das políticas públicas demonstra ganhos signicativos no avanço da conquista
de direitos quando tomarmos como parâmetro as três últimas décadas em que se viu surgir um
movimento sistemático de discussões, propiciadas pelos embates entre os movimentos sociais,
A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 09-19, jan./abr. 2021 |
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organismos internacionais e por agentes estatais — às vezes caminhando em lados opostos —
acentuados nos anos iniciais deste século XXI. O marco legal que estabelece os pilares da po-
lítica pública de educação em prisões concentra-se nas Resoluções CNPCP n. 3/2009 e CNE n.
2/2010 que estabelecem as Diretrizes Nacionais. Na década seguinte, entre 2011 e 2014, foram
realizados outros quatro Seminários Nacionais com a nalidade de propor encaminhamentos
para a formulação da política nacional de educação para o sistema prisional
3
.
No âmbito do governo federal, por meio do Departamento Penitenciário (DEPEN), em
articulação com a extinta Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e In-
clusão (Secadi/MEC), foram iniciadas amplas discussões sobre a política pública de educação
voltada para os sujeitos em situação de restrição e privação de liberdade, que deram início ao
projeto Educando para a Liberdade. Esse projeto contou com apoio da UNESCO e foi funda-
mental para ampliação e consolidação do debate sobre a oferta de educação no sistema prisional
brasileiro. Desse movimento destacamos a realização dos Seminários Nacionais pela Educação
nas Prisões, que aconteceram nos anos de 2006 e 2007, cujos debates resultaram em encaminha-
mentos para subsidiar a formulação de um plano estratégico de educação para as prisões, pelos
Ministérios da Justiça e da Educação.
Há que se enfatizar a relevância desse período no qual outras normativas foram aprova-
das no sentido de consolidar a política, como a Lei 12.433/2011, que prevê a remição da pena
por estudo atribuindo, de certo modo, valor para a educação ao colocá-la no mesmo patamar do
trabalho. A educação como direito já é um tema sensível se tomarmos por referência o número
de pessoas que não acessam a escola no Brasil, como um todo, constatando que o país ainda
não implementou a universalização da educação básica para o conjunto da população brasileira.
No sistema prisional, dados do INFOPEN (2019) informam que apenas 16,54% da população
carcerária está envolvida em alguma atividade educativa, não necessariamente em escola regular.
As unidades escolares inseridas ou vinculadas ao ambientes prisionais caminham ao
lado de todo o aparato da execução penal, compondo o conjunto dos elementos que operam a
execução da pena. Neste sentido, os agentes envolvidos (agentes penitenciários, professores,
assistentes, gestores etc.) realizam atividades que, a priori, comportam em si os aspectos penais e
educacionais, simultaneamente. Traduz, desta forma, um nível de complexidade na forma como
o Estado se impõe nos estabelecimentos penais: através do seu braço repressor, nas práticas da
segurança pública, e através do seu papel ressocializador, por meio de um processo educativo.
Ao instituir o Plano Estratégico de Educação no âmbito prisional, o governo federal, através do
3 Para saber mais, ver JULIÃO, Elionaldo Fernandes (Org.). Políticas de Educação nas Prisões da Amé-
rica do Sul: questões, perspectivas e desaos. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2018.
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 09-19, jan./abr. 2021
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Decreto Presidencial n. 7.626/2011, prevê que os Estados estabeleçam seus próprios planos, o
que signica aproximar a política de seus agentes locais, inclusive no sentido de avaliar e refor-
mular, conforme suas especicidades. Mas, em que medida os Estados assumem a garantia do
direito a educação para todos os sujeitos presos?
Enquanto modalidade de ensino denida para o contexto de privação de liberdade, a Edu-
cação de Jovens e Adultos - EJA no referido processo educativo, como proposta de emancipação
humana, ainda carece de discussão. Cabe reetir, por exemplo, a forma como a escolarização
está posta para os sujeitos em situação de privação de liberdade, nesse contexto interpenetrado
pelas normas da segurança pública e da educação como direito. É essa modalidade que dá conta
das itinerâncias relativas aos sujeitos em situação de privação de liberdade? A prisão que afasta
o sujeito de uma parcela da sociedade, que o impede de conviver socialmente, representa, entre
outros aspectos, o contrário de uma educação emancipadora, cuja nalidade é libertar os sujeitos,
criando as condições possíveis para sua reorganização social.
Precisamos questionar em que medida os avanços apontados neste campo, particularmente
os marcos legais, denem a educação para as pessoas em situação de privação de liberdade como
um direito a ser assegurado, já que no cotidiano dos ambientes em que se dá a execução penal, a
educação ainda é muitas vezes percebida como um benefício. O Plano Estratégico de Educação
no âmbito prisional, como possibilidade de estruturação pelos Estados ao mesmo tempo em que
trouxe para perto o campo da tomada de decisões, também permitiu uma pulverização das prá-
ticas, de modo que o previsto na legislação como direito dos sujeitos em privação de liberdade
demore ainda mais de ser efetivado.
Por isso, é recorrente, na maioria dos debates sobre educação nas prisões, a ênfase na
defasagem entre o direito à educação para as pessoas privadas de liberdade, estabelecido nas
normativas legais, e a sua garantia por meio da execução da política pública. Há uma constante
desvalorização e/ou desqualicação das políticas públicas, que apontam sua inecácia, demons-
trada pelo distanciamento entre a “teoria” e a prática, ou seja, o que está escrito e o que se
na realidade do sistema prisional. A distância entre a norma e a sua consecução conduz à crítica
da norma como se, epistemologicamente, o princípio só pudesse ser validado pela sua ecácia,
desprezando seus valores em si, suas possiblidades, a armação de princípios do que lhe é ine-
rente. Há um senso comum de que se “a lei não pega” de nada vale para a transformação social,
torna-se mera utopia ou mesmo enganação.
Particularmente entre os envolvidos (atores inseridos no sistema prisional, estudiosos
e pesquisadores, etc.) e dedicados à garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade, tal
A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 09-19, jan./abr. 2021 |
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defasagem tem conduzido à desesperança, ao cansaço, a um sentimento de caminhar contra a
corrente, à exaustão a que toda resistência vigorosa um dia chega; quiçá este caminho seja re-
sultante da expectativa de que uma vez consagrado na lei, o direito estará garantido... uma inge-
nuidade (no sentido freiriano do termo). Assim, nos enredamos em um círculo vicioso que tem
guiado os debates: ou arma-se que as normativas legais nada valem porque não são aplicadas,
ou elas são entendidas como superpoderosas cuja a simples existência é capaz de transformação
social. O que precisamos salientar é a visão maniqueísta entre o direito e sua garantia, no caso,
a formulação e efetivação das políticas públicas para a Educação nas prisões.
Inicialmente gostaríamos de armar que é necessário compreender que as conquistas
legais devem ser avaliadas e/ou estudadas sobretudo pelos seus méritos, em detrimento da sua
efetividade. Em outras palavras, é necessário entender que a formulação das normativas é um
campo de luta política em que interesses diversos estão em conito, o que é próprio das socieda-
des democráticas. Melhor ainda: quando uma normativa legal consagra direitos, isso revela uma
vitória política das forças democráticas e é assim que precisamos considerá-las. É uma vitória
e um passo na direção da transformação social que fortalece a luta política democrática de uma
maneira geral e para garantia de direitos, de modo especíco. Formular uma normativa num am-
biente democrático, geralmente signica um processo coletivo, com interlocutores privilegiados
4
e, sempre, diversidade de interesses que podem estar concentrados no campo democrático, mas
que não prescrevem aqueles não democráticos e mesmo elitistas.
Após a gestão democrática dos espaços públicos estabelecida pela CF 1988 e pela LDB
1996 para a Educação, ampliou-se de modo inusitado, na história do nosso país, a compreensão
do funcionamento do Estado e suas funções públicas, pelo menos no que diz respeito à partici-
pação. Se quiséssemos ironizar ou satirizar, poderíamos armar que, aí, nalmente proclamou-se
a República, no Brasil, se entendermos como fundamento político da República, a cidadania.
Tomando como exemplo o setor da Educação, vemos que toda escola precisou entender e exe-
cutar um orçamento público, decidir sobre o destino de parte dos seus recursos no âmbito de
um conselho escolar, formular projetos políticos pedagógicos etc. Mesmo que pesem os defeitos
e distorções dessa prática, não se pode negar que foi criado e consolidado um espaço político
para o exercício democrático da cidadania. Isso nos diz que, pelo menos na área da Educação, a
maioria dos seus atores conheceu e conhece o que é uma processo participativo para formulação
de uma política pública.
4 Nos sentido que Habermas dá no seu escrito HABERMAS, J. Soberania popular como procedimento. In.
Novos Estudos Cebrap. São Paulo, 26: 100-113, Março,1990.
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 09-19, jan./abr. 2021
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Portanto, podemos assegurar que é possível o entendimento de que a formulação de uma
política pública e sua materialização em uma normativa legal é um campo de luta política em que
interesses diversos se conitam e que seus resultados (a norma estabelecida) reetem consensos
e dissensos. Mais ainda, acreditamos o quanto é signicativo esse processo de formulação e
conquistas tanto para seus atores quanto os beneciados, por isso rearmamos que os méritos
das normativas legais devem ser valorizadas e entendidas como um momento da luta política
que materializa conquistas, independente da sua efetividade.
Entretanto, não podemos desconhecer que as conquistas legais se esvaziam quando não
têm efetividade. Contudo, é preciso compreender por que a norma sempre está (e assim deve
ser) distante da prática. A norma, a lei, é um instrumento de organização e intervenção que visa
a transformação, o que signica dizer que o seu objeto, propriamente dito, é o futuro (imediato,
próximo ou distante); no seu processo de formulação, o que se busca é corrigir, ampliar, mudar
situações do presente, garantindo um futuro melhor. Se uma lei, norma ou regra operacional
simplesmente ratica o que está dado, não tem sentido de ser; ela precisa apontar horizontes,
marcar novas fronteiras. Ela é também um instrumento que assegura a luta pelas melhorias, for-
talece os embates e conitos pelos direitos, e dá peso a reivindicações e ao processo decisório
no fazer, na ação cotidiana pela concretização dos direitos assegurados na lei.
Portanto, o mérito da norma não pode ser avaliado pela sua efetividade, ao contrário,
efetivá-la coloca-se como um outro campo de luta política necessária e imprescindível na socie-
dade democrática. Por isso podemos armar que a crítica às normativas devem ter como foco
seu mérito em detrimento da completa efetividade. Enm, não cabe a crítica de que “na prática
a teoria é outra”; é preciso elevar a conscientização política (no sentido freiriano do termo) ao
entendimento dos vários âmbitos de conquistas de direitos, suas respectivas complementarie-
dades, suas interdependências, suas mútuas necessidades. E, em última instância, aprofundar o
conhecimento sobre a própria natureza do Estado e da Democracia.
A educação em prisões talvez seja o espaço no qual essa defasagem (lei versus execução)
seja mais gritante e até mais desoladora, porque aí atuam, contraditoriamente, a Educação e a
Segurança Pública. As tentativas de inovações educacionais, a persistência dos educadores para
efetivação das garantias legais, além das próprias resistências engendradas pelas tradicionais
visões educacionais, contam com o bloqueio da dura percepção de que a segurança está em pri-
meiro lugar. As proposições e intervenções educativas esbarram quase sempre na hegemônica
visão punitiva do encarceramento e, por isso, acreditamos, não podem ser pensadas sem levar
em conta essa realidade.
A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 09-19, jan./abr. 2021 |
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Entendemos que muitas pessoas que hoje se encontram em situação de privação de liber-
dade, já estavam antes invisibilizados, excluídos socialmente, passando a serem vistos quando
agrados no delito sob uma ótica discriminatória, o que apenas os transporta para um outro grupo
não menos invisibilizado pela sociedade que produz vários e diferentes tipos de “Outros”. Arroyo
(2012, p. 49) nos diz que “essa produção dos outros como inexistentes os torna irrelevantes ou
incompreensíveis, excluídos de forma radical porque permanecem exteriores à própria forma de
aceite da inclusão como sendo outro”. Assim, por serem irrelevantes, o que justicaria pensar
soluções revestidas de gastos e investimentos públicos? “Quando se pensam os outros como
marginais, excluídos, desiguais, inconscientes se reconhece sua existência, é possível a copre-
sença do Nós e do Outro” (idem). Neste caso, ainda que de forma invisibilizada, o Outro está
presente e a ele são destinadas as políticas que podem funcionar, ou não. Silva et. all. (2020)
faz uma importante consideração neste sentido, quando inclui como questão fundamental “a
qualidade da formação de quem faz a mediação entre os objetivos da Educação e os objetivos
da pena e da prisão” (2020, p. 299).
As reexões e estudo sobre o tema tomam como base as condições de encarceramento
e mesmo as especicidades da estrutura e funcionamento do sistema prisional; e muito se tem
avançado nesse campo de pesquisa. Porém, não incluem devidamente como um dado da reali-
dade este falso antagonismo entre segurança e educação, pensada predominantemente como um
elemento de garantia da escolaridade para as pessoas privadas de liberdade e todas as decorrên-
cias necessária para sustentação desse direito subjetivo da cidadania. A Educação, em verdade,
pode mais: pode tornar-se o elemento articulador, capaz de enfrentar e organizar antagonismos
e/ou conitos, se os entendermos como elementos inerentes da luta política na macro e micro
realidade, particularmente da garantia do direito à educação.
E aqui não subjaz uma visão salvacionista ou um otimismo pedagógico referente à Edu-
cação como instituição social. Armamos, apenas que, se a Educação adotar conitos e anta-
gonismos como situações pedagógicas para educar os atores presentes na sociedade carcerária,
será capaz de ultrapassar os limites da escolarização e intervir mais sistemicamente no processo
educativo dos sujeitos e suas relações sociais, ainda que dentro do sistema prisional. Não há
novidade, nisso, basta que retomemos Paulo Freire no seu princípio educativo fundamental:
educar para liberdade é conscientizar.
Talvez a forma como encaramos o conito seja o nó górdio da nossa práxis como edu-
cadores. No nosso cotidiano, o conito é visto como um obstáculo a ser vencido, que nos causa
indisposição e uma sensação de que ele nos atrapalha, além de despertar o desejo de que desapa-
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
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reça; isso revela uma idealização de que devemos viver e trabalhar de forma harmônica, buscar
uma uniformidade (ah... como almejamos ter sempre estudantes “no mesmo nível” em sala de
aula!), estarmos sempre conciliados. Em geral, gostamos muito de diversidades de opiniões,
mas não de conitos; mais precisamente, pensamos que opiniões diferentes nos enriquecem e
que conitos (normalmente tensos) nos impede de agirmos produtivamente.
Todavia, como nos ensina Claude Lefort (2011), a natureza da democracia é a sua incons-
tância e indenição; seu o sintoma da vitalidade está justamente nas divergências e na manifes-
tação dos conitos, mesmo porque é esse o mecanismo de ampliação de direitos e transformação
social. Para além da conservação e garantia de direitos, o ambiente democrático permite a criação
de novos direitos, justamente através de conitos. É assim que se fez na história. A declaração
dos direitos humanos possibilitou o seu desdobramento e ampliação em novos direitos como o
das mulheres, das crianças, dos decientes etc. A conservação, a harmonia, a uniformidade são,
na verdade, ideias autoritárias que só contribuem para uma falsa estabilidade, uma negação da
transformação.
Logo, alimentar a democracia signica aceitar o conito como mecanismo de mudança
e transformação. Sem isso, a democracia está ameaçada pois as desigualdades sociais, a exclu-
são política e social inerente à sociedade democrática liberal só podem ser superadas mediante
conitos. O desaparecimento do conito aponta perigosamente para o estabelecimento do
autoritarismo, ao tempo em que a luta por direitos gera uma constante ampliação de direitos ou
também retrocessos. Qual o amálgama que a garantia dos direitos para as pessoas privadas de
liberdade poderia ter que não a Educação? Que outro saber poderia tratar conitos como situa-
ções pedagógicas capazes de educar politicamente? Que outra instituição social estaria melhor
capacitada para tal função?
A Educação no Brasil é constitucionalmente um direito subjetivo de cidadãos e cidadãos,
portanto, um dever do Estado. Essa conquista, estabelecida na CF 1988, é resultante de uma luta
política de educadores desde a década de 1930, marcada mais precisamente pelo Manifesto dos
Pioneiros de 1932. Então, para sermos efetivos atores da Educação, armando-a como função
pública, como dever do Estado, não podemos prescindir da compreensão sobre as características
desse Estado se quisermos levar à consecução as suas políticas públicas. Vale ressaltar que é
facilmente perceptível tanto no Estado como na sociedade brasileiras a prevalência de relações
autoritárias, cujas raízes remontam aos tempos coloniais: relações clientelistas de mando e obe-
diência, na qual o público e o privado tornam-se indistintos; o prestígio social ou o tráco de
inuência substituindo o critério dos direitos civis para o acesso aos bens sociais; personalização
A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
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do mando político; uso da coisa pública para interesses privados ou particulares; negociações
políticas com base em concessão de privilégios pessoais ou de grupos; além dos desmandos e
impunidades são características das relações políticas que se mantêm presentes, em toda a nossa
história, e persistem nos tempos atuais.
Isso se revela tanto na relação entre Estado e sociedade civil, como entre as próprias
instâncias do poder federativo e ainda no interior de uma mesma unidade federativa, quando
na sua composição administrativa (secretarias e demais órgãos) a distribuição de cargos se faz
em nome de uma governabilidade com base em alianças políticas das mais diversas matizes. É
importante atentarmos para esta matriz autoritária e colonial do Estado brasileiro, pois isso nos
diz respeito, afeta diretamente a gestão da educação e tensiona ainda mais os conitos, parti-
cularmente aqueles entre a Educação e a Segurança Pública. Só para citar um único exemplo,
quantas vezes a escola teve que fazer rearranjos para cumprimento dos obrigatórios 200 dias
letivos dentro do calendário escolar porque as condições de segurança não permitiram o fun-
cionamento ‘normal’ das aulas?
O não reconhecimento ou a negação dos diretos humanos é tacitamente aceita nas esfe-
ras sociais quando se refere ao sujeito em situação de privação de liberdade, seja com relação à
educação, seja qualquer outro direito, ainda que a nalidade da pena de prisão inclui prover os
meios para que o sujeito a ela submetido estabeleça a estrutura necessária para a manutenção da
vida extramuros, sua convivência social e familiar, bem como sua qualicação prossional. A isso
chamamos de especicidade que necessita ser contemplada por quem faz educação em prisões:
ter condições de atuar na intersecção entre os objetivos da pena e os da educação, mesmo tendo
em conta que, no modelo punitivista amplamente praticado no Brasil, a pena tem perdido a sua
nalidade original de ressocialização do sujeito, passando a ser quase puramente uma estratégia
de punição, de imposição do poder do Estado sobre os sujeitos.
A educação, seja escolar ou não, gura aqui como uma parte da formação que seja capaz
de contribuir para a organização do pensamento autônomo, crítico e reexivo, para a observação
e compreensão dos problemas e desaos que lhes são postos. Desta forma, estando em situação
de privação de liberdade, educação para a emancipação deve ser um valor intrínseco. Em que
pese a importância de alguns dispositivos que alteram positivamente a formação dos apenados,
como a remição da pena pela leitura, entre outros dispositivos que possibilitam ao preso algum
rudimento de trabalho educativo, é necessário não perdermos de vista que o direito à educação
é o que deve ser garantido, por estar previsto desde a Lei de Execução Penal, de 1984.
Maria Alba Guedes Machado Mello e Katia Maria de Aguiar Barbosa
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Ao mesmo tempo, essa realidade deve nos alertar para a necessidade de traçarmos estraté-
gias capazes de garantir o lugar da Educação no sistema prisional no sentido de identicar
aliados, construir alianças, organizar coletivos, desenvolver ações pedagógicas (com atenção
nos conitos), enm construirmos um projeto político e pedagógico, que abrace a educação
para além da oferta escolaridade. Desta forma, é necessário pensar de modo estruturante o que
se pretende como possibilidade de trazer para o sistema prisional uma proposta educativa que
seja ampla, desencaixada de modelos preestabelecidos, exível, condizente com as diferenças,
exigências e variabilidades do sistema. Que seja capaz de atender determinadas demandas que
não são possíveis apenas através da Educação de Jovens e Adultos tal como ela se realiza atu-
almente nas prisões.
Tais mudanças devem passar pela (re)avaliação da política pública de educação para o
sistema prisional, tendo em conta que na política os diferentes atores, estatais ou não, podem
demandar na forma e no conteúdo, no sentido dos ajustes necessários para uma educação no
sistema prisional que seja capaz de reconhecer que a escola não é o único meio onde a educação
se realiza e, neste caso especíco, apesar do esforço dos professores que atuam em prisões, dos
gestores e demais sujeitos dos movimentos organizados, os resultados até o momento apresenta-
dos
5
autorizam repensar a questão. E isso não é uma utopia (ainda) haja vista que os mecanismos
de transformação da escola em espaço de articulação da vida real já estão dados. O colegiado
escolar pode e deve contar com a participação de outros atores exteriores à comunidade escolar,
a exemplo dos agentes penitenciários, no mínimo; o currículo pode e deve incluir as ações cultu-
rais (inclusive as religiosas tão presentes na vida das pessoas privadas de liberdade); a dinâmica
curricular pode e deve ser independente da seriação e conferir outros tempos de escolarização; o
trabalho (do qual se alega ‘roubar o tempo de escola) pode e deve constituir como uma prática
pedagógica de produção de conhecimento. Enm, são alguns exemplos para inspirar as propo-
sições da educação ofertada nas prisões a se transformar em um espaço de fazer político além
do pedagógico.
Paulo Freire considerava ingenuidade achar que as classes dominantes proporcionariam
uma escola que fosse capaz de formar consciência das classes dominadas. Adorno (1995), no
mesmo sentido, sugere que a educação não pode ser utilizada para instrumento de ajustamento
de condutas, mas uma formação política. Isso requer da escola que ela forme o sujeito numa
intersecção entre o mundo do trabalho e o mundo da vida, com tudo o que lhe cabe, tendo em
5 Sobre os dados do sistema penitenciário brasileiro, ver INFOPEN - Sistema de informações estatísticas
do sistema penitenciário brasileiro. http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informa-
coes-penitenciarias
A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
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vista a sua emancipação. O fazer político, óbvio, acontece através as relações de poder. Então,
vale lembrar o conceito que nos legou Norberto Bobbio: o poder é uma relação, uma díade
mando-obediência. Em palavras mais simples, se não há a obediência, o poder não se constitui,
não se efetiva. E, gostaríamos de lembrar, não há transgressão, mais impossível de obediência
irrestrita do que o ato de educar.
Referência
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. trad. Carmen Varriale et al.; coord. rev. geral
João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
HABERMAS, J. Soberania popular como procedimento. In. Novos Estudos Cebrap. São
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JULIÃO, Elionaldo Fernandes (Org.). Políticas de Educação nas Prisões da América do
Sul: questões, perspectivas e desaos. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2018.
LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. 3ªed revis-
ta e atualizada. Tradução Isabel Loureiro e Maria Leonor Loureiro. Apresentação Marilena
Chauí. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2011.
SILVA, Roberto; SOUZA NETO, João Clemente de; MOURA, Rogério. Pedagogia Social.
ed. Coleção Pedagogia Social. Vol. 1. Guarulhos - São Paulo: Expressão e Arte Editora, 2020.
Recebido em: 01 de março de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
José António Moreira
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11704
EDUCAÇÃO DIGITAL PARA ADULTOS
EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
José António Moreira
1
Universidade Aberta de Portugal
http://orcid.org/0000-0003-0147-0592
RESUMO:
Na atual sociedade do conhecimento e em rede, a educação, a capacitação tecnológica e as competên-
cias digitais são a chave para a plena integração do cidadão. Em Portugal, como na maioria dos países
europeus, educação é um direito constitucional a ser garantido para todas as populações e em diferentes
condições e espaços educativos, mesmo para os cidadãos que se encontram reclusos. A utilização de
meios digitais é prevista e encorajada pelas diretrizes internacionais e pelas leis portuguesas, no entanto,
a prática está longe de funcionar. Esta realidade evidencia a atualidade e pertinência deste texto e justi-
ca a necessidade de produzir conhecimento acerca dos desaos educacionais e das potencialidades da
Educação Digital enquanto estratégia para reduzir a discriminação, aumentar a justiça social, a inclusão
e a qualicação em prisões nesta era digital. Neste estudo, apresentam-se práticas, experiências, progra-
mas e projetos de Educação Digital em prisões por todo o mundo, com destaque para o trabalho desen-
volvido em Portugal pela Universidade Aberta (UAb) em parceria com a Direção Geral de Reinserção
e Serviços Prisionais (DGRSP), relativo à criação e desenvolvimento do Campus Virtual Educonline@
pris, que se assume como uma academia de educação, formação, empregabilidade e cidadania digital.
Pedagogicamente inspirado pelo modelo de aprendizagem da UAb, este Campus procura responder às
necessidades educativas especícas dos estudantes em situação de privação de liberdade, respeitando as
limitações legais inerentes à sua condição.
Palavras-chave: Educação digital. Prisões. Campus virtual.
ABSTRACT:
DIGITAL EDUCATION FOR ADULTS IN DEPRIVATION OF FREEDOM
In today’s knowledge society education, technological empowerment and digital skills are the key to
full citizen integration. In Portugal, as in most European countries, education is a constitutional right to
be guaranteed for all populations and in different educational conditions and spaces, even for inmates.
The use of digital media is provided for and encouraged by international guidelines and Portuguese law.
However, the practice is far from working with many limitations. This reality highlights the relevance
of the text we present and justies the need to produce knowledge about the educational challenges and
potential of Digital Education as a strategy to reduce discrimination, increase social justice, inclusion
and qualication in prisons in this digital age. In this study, digital education programs and projects are
presented in prisons around the world, highlighting the case of the work developed in Portugal by Uni-
versidade Aberta (UAb) in partnership with the General Directorate of Reinsertion and Prison Services
(DGRSP), regarding the creation and development of the Educonline@Pris Virtual Campus, which is
assumed as an academy of education, training, employability and digital citizenship. Pedagogically
inspired by the UAb learning model, this Campus seeks to respond to the specic educational needs of
students in situations of deprivation of liberty, respecting the legal limitations inherent to their condition.
Keywords: Digital education. Prisons. Inclusion. Virtual campus.
1 Doutor em Ciências da Educação (Universidade de Coimbra). Professor Associado do Departamento de
Educação e Ensino a Distância (Universidade Aberta de Portugal). Investigador no Centro de Estudos Interdisci-
plinares do Século XX - CEIS20 (Universidade de Coimbra). E-mail: jmoreira@uab.pt
Educação digital para adultos em privação de liberdade
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RESUMEN:
EDUCACIÓN DIGITAL PARA ADULTOS EN PRIVACIÓN DE LIBERTAD
En la sociedad actual del conocimiento y las redes, la educación, la formación tecnológica y las compe-
tencias digitales son la clave para la plena integración del ciudadano. En Portugal, como en la mayoría
de países europeos, la educación es un derecho constitucional que debe garantizarse para todas las po-
blaciones y en diferentes condiciones y espacios educativos, incluso para los ciudadanos que se encuen-
tran presos. El uso de medios digitales está previsto y fomentado por las directrices internacionales y las
leyes portuguesas, sin embargo, la práctica está lejos de funcionar. Esta realidad resalta la relevancia de
este texto y justica la necesidad de producir conocimiento sobre los desafíos educativos y el potencial
de la Educación Digital como estrategia para reducir la discriminación, incrementar la justicia social,
la inclusión y la calicación en las cárceles en esta era digital. En este estudio se presentan prácticas,
experiencias, programas y proyectos de Educación Digital en las cárceles de todo el mundo, destacando
el caso del trabajo desarrollado en Portugal por la Universidade Aberta (UAb) en colaboración con la
Dirección General de Reinserción y Servicios Penitenciarios (DGRSP), sobre la creación y desarrollo
del Campus Virtual Educonline @ pris, que se asume como una academia de educación, formación,
empleabilidad y ciudadanía digital. Pedagógicamente inspirado en el modelo de aprendizaje de la UAb,
este Campus busca dar respuesta a las necesidades educativas especícas de los estudiantes en situacio-
nes de privación de libertad, respetando las limitaciones legales inherentes a su condición.
Palabras-clave: Educación digital. Prisiones. Inclusión. Campus virtual.
Introdução
Num mundo cada vez mais globalizado, numa sociedade de conhecimento e em rede,
imersa numa realidade cada vez mais digital, existe o “risco de criar um fosso cada vez maior
entre os que têm acesso aos novos conhecimentos e os que deles são excluídos” (ESTRATÉGIA
DE LISBOA, 2000).
O acesso ao conhecimento, nomeadamente através da educação e da formação, como
agente de inclusão social está na lista de prioridades de diversos organismos internacionais e a
preocupação com grupos minoritários, como a população prisional é evidente. Como se sabe,
a reclusão implica a perda de alguns direitos, mas estes não se devem estender à educação, na
medida do possível, sobretudo, porque a educação e a formação, em contexto prisional, tendem
a assumir-se como um dispositivo promotor de reinserção social e de combate à reincidência.
Efetivamente, hoje, assume-se a educação como um direito universal que desempenha
um papel crucial no desenvolvimento humano, ajudando o indivíduo a construir a sua perso-
nalidade e o seu carácter. E mesmo em situação de reclusão, de acordo com as Recomendação
N.º R(89)12 do Conselho da Europa
2
referentes à educação em contexto prisional, os cidadãos/
reclusos possuem os mesmos direitos no acesso à educação.
2 Recomendação N.º R(89)12 sobre Educação nas Prisões, adotada pelo Comité de Ministros dos Estados
Membros do Conselho da Europa em 13 de Outubro de 1989 (429ª Reunião de Delegados dos Ministros).
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Na realidade, os adultos em situação de reclusão mantêm o direito de acesso à educação,
de qualidade e diversicada (Council of Europe Recommendation on Education in Prison, 2011),
sendo que esta deve ser adequada às exigências da “Sociedade de Informação”. A adoção de
modelos de formação em Educação a Distância (EaD) e eLearning que possibilitem o desenvol-
vimento de competências-chave de literacia, assim como a relação entre a formação que é dada
no interior das prisões e no sistema educacional do país, assumem-se como fundamentais para
alcançar esta educação de qualidade.
Com efeito, a modalidade de Educação a Distância e eLearning tem sido reconhecida,
desde o início do século, como uma modalidade que responde aos desaos que o mundo globa-
lizado coloca ao nível da aprendizagem ao longo da vida e do desenvolvimento de competências
tecnológicas e sociais (GARRISON; ANDERSON, 2003; HERRINGTON; REEVES, OLIVER,
2010; MOORE ET AL, 2011). Considerando, a importância crescente que as Tecnologias de Co-
municação Digitais (TCD) têm assumido na sociedade, os reclusos devem ter a oportunidade de
utilizar Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA), com propósitos formativos e educacionais,
obviamente, com restrições em termos de acesso à internet através de canais seguros (ADAMS;
PIKE, 2012).
No entanto, e apesar da relevância assumida pela Educação a Distância e eLearning,
na criação de ambientes de aprendizagem inclusivos e no desenvolvimento de competências
digitais, imprescindíveis para a inclusão digital e social, os estabelecimentos prisionais, dos
diferentes países europeus, de uma forma geral, têm oferecido acesso muito limitado às TDC e
aos AVA, sobretudo, justicado por questões de segurança, como referido por Munoz (2009) e
Hawley, Murphy e Souto-Otero, (2013), ou por falta de recursos, nanceiros, tecnológicos ou
digitais como destacado pelo estudo realizado em 2013 pelo Observatório Europeu das Prisões,
em que participaram a Letónia, a Polónia, a Espanha, o Reino Unido, Portugal, a Itália, a Grécia
e a França (MACULAN; RONCO; VIANELLO, 2013) e sublinhado, mais recentemente, por
Manjer, Eikeland e Asbjørnsen (2019) e Renbarger, Rivera e Sulak (2019).
Esta realidade evidencia a atualidade e pertinência deste artigo e justica a necessidade
de produzir conhecimento acerca dos desaos educacionais e das potencialidades da Educação
Digital enquanto estratégia para reduzir a discriminação, aumentar a justiça social, a inclusão e
a qualicação em prisões. Neste texto são apresentadas algumas práticas, experiências, progra-
mas e projetos de Educação Digital em prisões por todo o mundo, com especial destaque para o
trabalho desenvolvido em Portugal pela Universidade Aberta (UAb) em parceria com a Direção
Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), relativo à criação e desenvolvimento do
Educação digital para adultos em privação de liberdade
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Campus Virtual Educonline@pris, que se assume como uma academia de educação, formação,
empregabilidade e cidadania digital.
Programas de integração do digital em prisões
Mas apesar destas limitações e diculdades, e assumindo a necessidade de investir neste
domínio têm surgido, desde o início do Século XX, sobretudo, na Europa, projetos nanciados
por programas Europeus de Aprendizagem ao Longo da Vida, enquadrados em subprogramas,
tais como o Grundtvig e o Leonardo da Vinci, que procuram explorar o potencial das TDC e
dos AVA em contexto prisional, criando soluções personalizadas em função das questões de
segurança, de políticas e/ou legais, entre outras.
Em termos gerais, os resultados destes programas associados ao uso das TDC e de AVA,
revelou que é possível desenvolver sistemas de segurança e de gestão de aprendizagem adaptados
às distintas necessidades organizacionais e pedagógicas das diferentes prisões (MONTEIRO;
MOREIRA; LEITE, 2016).
Ainda no que diz respeito a projetos europeus em contextos prisionais, é de realçar que
alguns países, após a participação nesses programas, com duração limitada, encontraram as
suas próprias soluções, como por exemplo o projeto Elis, desenvolvido pela Alemanha e pela
Áustria, o projeto “Internet for Inmates”, desenvolvido pela Noruega e o projeto “Prison Edu-
cation Basic skills Blended Learning (Pebble)”, desenvolvido em parceria pela Itália, Roménia,
Grécia e Chipre.
Na Alemanha e na Áustria, a plataforma Elis foi desenvolvida em 2004 tendo por obje-
tivo garantir acesso imediato a conteúdos educacionais em contexto prisional. Sob o ponto de
vista técnico, foi utilizada uma plataforma open source -ILIAS-, adaptada para ir ao encontro
dos requisitos do eLearning em prisões, sendo que o acesso à rede era restrito a uma lista de
endereços autorizados, uma whitelist.
Na Noruega, a rede IFI – “Internet for Inmates” serve a totalidade das prisões. Este sistema
utiliza recursos oriundos da Internet, organizados em categorias, sendo que as pessoas reclusas
apenas têm acesso às categorias consideradas seguras (HAMMERSCHICK, 2010).
Por sua vez o projeto Pebble, que tinha como principal objetivo ajudar os reclusos a ad-
quirir competências chave de literacia, numeracia, competência digital e habilidades nanceiras,
envolveu o desenvolvimento de um sistema de blended learning, com integração de ambientes
virtuais e físicos de aprendizagem.
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De destacar, ainda, em Portugal, o projeto eLearning em estabelecimentos prisionais,
(E-PRIS), concebido e desenvolvido pelo Instituto Piaget, em parceria com a Direção Geral
de Reinserção e Serviços Prisionais e a Santa Casa de Misericórdia do Porto, que teve como
principal objetivo a criação de “modelos de intervenção integrada e estruturada, suscetível de
replicação/disseminação, com o recurso às tecnologias de informação e comunicação (TIC)
enquanto instrumento de inclusão digital e social” (MONTEIRO et al., 2018, p. 132). Partindo
das potencialidades do eLearning como dispositivo de diferenciação pedagógica promotor de
inclusão digital, a conceção do projeto permitiu que o E-PRIS articulasse as questões da for-
mação e aprendizagem ao longo da vida com a investigação e produção cientíca, associada ao
desenvolvimento de novos modelos pedagógicos.
De referir, ainda, outros programas mais recentes que têm promovido o uso das tec-
nologias digitais como forma de reabilitar os reclusos. Entre estes, destaque para o programa
PrisonCloud, criado em 2016 na prisão de Beveren, na Bélgica, que permite o acesso, com
restrições, a serviços online nas celas dos reclusos. O PrisonCloud assume-se como um serviço
digital seguro que permite aos reclusos aceder à TV, lmes de vídeo, a programas de eLearning
e a páginas da web, nomeadamente sobre cuidados de saúde, pesquisas de emprego e questões
legais. As autoridades prisionais da Bélgica têm sido alvo de várias críticas, mas, no entanto,
não deixam de defender a ideia de que “mudanças na sociedade, exigem mudanças na prisão.”
Por sua vez, em Agder, na Noruega, iniciou-se em 2020 um projeto que tem como prin-
cipal aumentar a qualidade do tratamento prisional, por via da inclusão da tecnologia. Nesta
“prisão digital”, tal como é denida pelos responsáveis do programa, o principal desao reside
no trabalho conjunto desenvolvido pelos diferentes atores prisionais: escola, saúde, agências de
trabalho, ocinas, bibliotecas etc. e na capacidade de assumir o digital como elemento catalisador
de todo um processo de empowerment da população reclusa, mormente através de uma aposta
efetiva em áreas como a educação e a reabilitação.
Também os Serviços Prisionais de Hong Kong se encontram a desenvolver um projeto
intitulado Smart Prison com o intuito de adequar o tratamento prisional à atual dinâmica de de-
senvolvimento das sociedades. As autoridades prisionais da antiga colónia inglesa, encontram-se
a analisar a possibilidade de providenciar aos reclusos um dispositivo digital (tablet) que lhes
permita comunicar com familiares e amigos no exterior da prisão, bem como com advogados
e funcionários durante as horas de lazer (o conteúdo será supervisionado antes de ser enviado),
nomeadamente através de correio eletrónico, sendo que tal recurso seria igualmente utilizado
Educação digital para adultos em privação de liberdade
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em programas de eLearning, garantindo o acesso a eBooks e promovendo condições favoráveis
de estudo
3
.
Em alguns Estados dos EUA, por seu turno, as autoridades prisionais permitem que os
reclusos tenham acesso a tablets, com livros e vídeos educativos. O envio de e-mails (segundo
uma lista pré-aprovada de contactos) e a possibilidade de fazerem chamadas telefónicas, adquirir
músicas e videojogos, de apresentar queixas, aceder a bibliotecas ou de participar em cursos de
capacitação prossional, são algumas das valências a que estes reclusos também têm acesso
4
.
Projetos de educação digital em rede para a educação superior
Para além dos projetos e programas atrás enunciados existem outros de maior dimensão,
quer na Europa, ou fora dela, associados à frequência de cursos de Ensino Superior que envolvem,
na sua maioria, as instituições universitárias de Educação a Distância nacionais. São os casos do
Virtual Campus do Reino Unido desenvolvido pela Open University, o Programa de Estudios
Universitarios en Centros Penitenciarios (PECP) da Universidad Nacional de Educación a
Distancia (UNED) de Espanha, o programa Making the Connection da University of Southern
Queensland na Austrália e o projeto da National Open University da Nigéria.
Relativamente ao Virtual Campus do Reino Unido (Inglaterra e País de Gales), do ponto
de vista tecnológico, a plataforma foi desenvolvida pela Open University, em articulação com
os parceiros do setor da justiça, com o objetivo de gerir as diferentes necessidades das pessoas
reclusas, que têm acesso seguro a recursos digitais e conteúdos especícos, numa “whitelist”
previamente denida (OPEN UNIVERSITY, 2019). Foi implementado na maioria das prisões
e tem como objetivo agilizar e modernizar o sistema educativo a nível do Ensino Superior
(TURLEY; WEBSTER, 2010). O Campus apresenta algumas limitações de navegação, porque
na realidade não foi projetado para simular uma experiência de navegação livre na Internet,
mas sim para uma navegação em ambiente controlado e seguro numa plataforma onde os estu-
dantes/reclusos acedem aos e-conteúdos. A Open University disponibiliza também um serviço
de aconselhamento prossional que presta apoio ao estudante/recluso, quer em situações de
transferência de estabelecimento ou em situações de m de cumprimento de pena. No que diz
respeito a apoios nanceiros, é de realçar que a frequência universitária de estudantes/reclusos
já foi apoiada por fundos públicos, no entanto, o governo, optou, recentemente, por não fazer
3 Em South China Morning Post, 17 de junho, 2019 (edição online) <https://www.scmp.com/news/hong-
-kong/law-and-crime/article/3014714/hongkong-prison-service-studying-scheme-give-all>.
4 Em Reuters, 18 de junho, 2018 (edição online) <https://www.reuters.com/article/us-usa-prisons-compu-
ters/in-u-s-prisons-tablets-open-window-tothe-outside-world-idUSKBN1K813D>.
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uma discriminação positiva, não privilegiando o cidadão recluso perante o cidadão em liberdade.
Rera-se, no entanto que o estudante/recluso com diculdades económicas e sem capacidade de
recorrer a empréstimos pode socorrer-se de organizações não-governamentais, como a Prisoners’
Education Trust (PET) (COATES, 2016).
Por sua vez, em Espanha o Ensino Superior nas prisões é assegurado em exclusivo pela
Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), através do Programa de Estudios
Universitarios en Centros Penitenciarios (PECP), cujo objetivo é aumentar o nível de formação
da população reclusa, possibilitando, através da Educação a Distância, a frequência do Ensino
Superior (UNED, 2019). Este programa está regulado por acordos assinados entre o Ministério
da Educação, Cultura e Desporto, o Ministério da Defesa, a Secretária Geral das Instituições
Penitenciárias (SGIP) do Ministério do Interior e a UNED.
Às prisões compete estabelecer a forma em como o PECP será desenvolvido no contexto
prisional (espaços de estudo, tempo e meios disponibilizados) e assegurar a informação geral e
a gestão administrativa do PECP através dos seus Gestores da Formação e Inserção Prossional
(GFIP).
A metodologia da UNED permite que os estudantes realizem de forma autónoma grande
parte do trabalho necessário à aprovação das unidades curriculares dos cursos, através do ma-
terial didático disponibilizado em suporte de papel (textos básicos e materiais de apoio). Para
além disso os estudantes/reclusos têm acesso, em várias prisões, à Plataforma aLF (Aprende,
coLabora, Forma) da UNED - “plataforma virtual educativa para el aprendizaje y el trabajo co-
laborativo en línea, que permite ofrecer y recibir formación através de cursos y comunidades
virtuales” (UNED, 2019, p. 16), que permite o acesso a material multimédia - acessível com o
apoio de assistentes da UNED.
Os estudantes/reclusos podem contactar com os docentes através de contacto telefónico
(de acordo com o regime de cada prisão) e/ou correio postal. A UNED organiza as provas de
avaliação presencial que são realizadas nas prisões designadas como prioritárias. Os estudantes/
reclusos que se encontrem noutras prisões podem solicitar antecipadamente a deslocação para
a realização das provas. A UNED assegura ainda a existência do seu material pedagógico nas
bibliotecas das prisões.
De forma a contornar as disparidades e diculdades económicas dos estudantes/reclusos
a frequência do PECP é gratuita (sempre e quando cumpram as condições do programa).
O processo de implementação do PECP e do acesso à Plataforma aLF é desenvolvido
conjuntamente pelos técnicos da UNED e das prisões e assenta nos seguintes pressupostos:
a) A navegação e as comunicações são controladas constantemente, de modo a que se
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possa controlar e supervisionar todo o tráfego de informação entre os estabelecimen-
tos prisionais e a UNED;
b) É assegurado que os estudantes/reclusos, através desta ligação, só conseguem aceder
aos espaços educativos digitais da UNED/Plataforma digital de aprendizagem;
c) O acesso dos estudantes à plataforma digital é condicionado. Têm acesso aos conteú-
dos programáticos, à avaliação contínua, às provas e aos exemplos apresentados pelo
docente. Não lhes é permitido o acesso às ferramentas comunicacionais da platafor-
ma (fóruns, mensagens privadas salas de chat, videoconferências online ou outros)
ou a ligações externas.
d) Os estudantes/reclusos não conseguem submeter trabalhos através da plataforma,
pois é considerada uma forma de comunicação. A entrega deve ser feita ao assisten-
te da UNED que está presencialmente no estabelecimento prisional ou através dos
meios tradicionais (VIEDMA-ROJAS, 2017).
No caso da Austrália é de destacar que os reclusos têm acesso ao Ensino Superior, sobretu-
do, através de um projeto, nanciado pelo governo australiano, intitulado Making the Connection,
que se encontra a ser desenvolvido com o apoio da University of Southern Queensland (USQ).
Para concretizar este projeto de educação digital foi instalada uma versão da plataforma
digital da USQ nos servidores das prisões participantes e distribuídos computadores portáteis
já com recursos e conteúdos dos cursos de graduação frequentados pelos estudantes/reclusos.
Estes conteúdos e recursos foram adaptados para consulta sem acesso à Internet, numa versão
USQ Ofine StudyDesk com computadores portáteis.
Para além deste projeto, é de destacar ainda na Austrália, o PLEIADES (Portable Learning
Environments for Incarcerated Distance Education Students), um projeto concebido para fornecer
aos estudantes reclusos acesso a tecnologias móveis e digitais seguras ofine e que tinha como
principal objetivo aumentar o acesso e a participação em cursos de Ensino Superior. Para esse
efeito foi desenvolvida uma versão ofine da Moodle para complementar a leitura dos recursos
digitais disponibilizados em eReaders (FARLEY; MURPHY; BEDFORD, 2014).
Na Nigéria os únicos reclusos que têm acesso a computadores são os estudantes/reclusos
que frequentam cursos de Ensino Superior na Universidade Nacional Aberta, no entanto, estes,
também, não têm autorização para aceder à Internet. A única exceção acontece durante a ápoca
de realização de exames, já que nesse período a Universidade Nacional Aberta da Nigéria cria
um acesso à rede digital através de uma Rede de Área Local (LAN) e de um servidor proxy da
universidade nas salas de exame, criadas para os estudantes/reclusos, localizadas no interior
dos pátios das prisões. Após a conclusão dos exames, que duram quase oito semanas, a rede e o
servidor proxy são retirados desses espaços.
José António Moreira
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Os recursos educativos são fornecidos pela universidade em versão impressa e digital,
sendo que muitos desses recursos estão disponíveis nos computadores e outros são entregues
em CD-Rom. Os estudantes/reclusos, normalmente, realizam os seus trabalhos em formato ma-
nuscrito e, depois disso, os Conselheiros de Estudantes Universitários recolhem esses trabalhos
e realizam o upload em nome dos estudantes para o portal da universidade Computer Marked
Assignment (CMA) onde são avaliados pelos professores. Depois dessa avaliação os resultados
são impressos e devolvidos aos respetivos estudantes.
O Campus virtual de educação, formação, cidadania e empregabili-
dade: Educonline@Pris
Também em Portugal, e no âmbito do protocolo assinado em abril de 2016 entre a
Universidade Aberta (UAb) e a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP)
onde se destacava a necessidade e o compromisso de criar e desenvolver um Campus Virtual,
concebido para a população reclusa, com acesso seguro, para o desenvolvimento de atividades
no domínio do ensino e formação em Educação a Distância e eLearning (Cláusula 2.ª - Coope-
ração), está a ser desenvolvido um projeto-piloto inovador, o Campus Digital Educonline@Pris,
(educonlinepris.uab.pt), que tem como principal objetivo promover a educação e a formação nos
estabelecimentos prisionais em Portugal em ambientes virtuais de aprendizagem.
E foi na sequência desse protocolo e do denido nessa Cláusula 2.ª que se começou a
desenhar e a desenvolver um projeto disruptivo que se está a materializar num Campus Virtual
-Educonline@Pris- (educonlinepris.uab.pt).
Depois de um primeiro ano de implementação, numa versão piloto, em quatro estabele-
cimentos prisionais do Norte do país, com resultados promissores face à utilização do Campus
Virtual (SILVA; MOREIRA; ALCOFORADO, 2019), a rede foi alargada no nal do ano de 2020,
para os cerca de vinte estabelecimentos prisionais com reclusos-estudantes a frequentar cursos de
Licenciatura e Mestrado da Universidade Aberta, tendo sido alocados a estes estabelecimentos
prisionais Laboratórios de Aprendizagem Móveis, com computadores portáteis e conectividade.
O Campus Virtual Educonline@pris possui um portal agregador, tendo por base quatro
plataformas, uma que dá acesso aos cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento da Univer-
sidade Aberta -eLearning UAb-; outra com cursos e ações de extensão universitária, -ON@Pris-,
desenvolvida, especicamente, para a população reclusa, com formações certicadas com o selo
da iniciativa governamental INCoDE (https://www.incode2030.gov.pt),, uma terceira plataforma
-Aula Aberta-, que permite ao estudante recluso aceder a recursos e conteúdos de diferentes áreas
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disciplinares disponíveis na Universidade Aberta; e uma quarta plataforma -Portal Académico
UAb- que integra um conjunto de serviços, permitindo a centralização da gestão de utilizadores
e respetivos pers, gestão das inscrições e de eventos ou alertas especícos.
Tal como o Campus da Open University e a Plataforma aLF da UNED, o Campus Vir-
tual Educonline@Pris apresenta algumas especicidades e limitações de navegação, porque
na realidade, também, não foi projetado para simular uma experiência de navegação livre na
Internet, mas sim para uma navegação em ambiente controlado e seguro. No entanto, e apesar
da navegação condicionada, a exibilidade e a inclusão do Modelo Pedagógico Virtual® da
Universidade Aberta (Pereira, et al., 2007; Mendes et al., 2018), dois dos seus princípios funda-
mentais, permite que estes estudantes, com um perl de utilizador diferenciado, sejam integrados
nas turmas regulares e não em “guetos” digitais.
Com efeito, o Modelo Pedagógico Virtual® da Universidade Aberta permite que os estu-
dantes/reclusos realizem de forma autónoma grande parte do trabalho necessário à aprovação das
unidades curriculares dos cursos em que estão inscritos, através dos recursos disponibilizados na
plataforma digital, já que a interação é, exclusivamente, centrada nos conteúdos, sendo que não
existe interação dos estudantes/reclusos com a restante comunidade virtual, nem com os professo-
res, nem com a turma onde está inserido. O perl do estudante/recluso apenas lhe permite aceder
aos espaços de comunicação e de interação da plataforma, mas não permite que comunique ou
interaja com os outros atores humanos da comunidade virtual. Apesar desta limitação ao estudante/
recluso é permitido o acesso aos conteúdos programáticos e recursos “fechados” na plataforma
e às diferentes modalidades de avaliação: contínua e nal, sendo que podem submeter as provas
eletrónicas (e-fólios) na plataforma digital e realizar as provas presenciais (p-fólios e exames)
no estabelecimento prisional com a supervisão de técnicos superiores designados para o efeito.
O sistema de acessibilidade ao Campus Virtual Educonline@Pris foi desenvolvido con-
juntamente pelos Serviços Informáticos da Universidade Aberta e da Direção Geral de Reinserção
e Serviços Prisionais, sendo que, como no caso da UNED, a navegação e as comunicações são
controladas constantemente, de modo a que se possa controlar e supervisionar todo o tráfego
de informação. Através desta monitorização conjunta entre as duas instituições e a empresa de
telecomunicações associada, é assegurado que os estudantes/reclusos só conseguem aceder aos
espaços educativos do Campus Virtual Educonline@Pris.
Aquando da sua criação a expectativa era que o Campus desse uma resposta efetiva às
necessidades dos estudantes da Universidade Aberta em situação de reclusão, incrementando
signicativamente a qualidade da educação digital nos estabelecimentos prisionais (até então
José António Moreira
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 20-33, jan./abr. 2021
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quase inexistente em Portugal). Em simultâneo, o Campus Virtual seria também uma forma
de responder aos desaos colocados pela nova sociedade digital e em rede, contribuindo para
assegurar o direito de todos os cidadãos à educação. E parece que esses objetivos estão a ser
alcançados, tendo em conta a leitura e análise dos resultados da implementação do projeto piloto
no ano de 2019 (SILVA; MOREIRA; ALCOFORADO, 2019).
Considerações nais
A experiência partilhada através dos resultados dos projetos apresentados e de estudos
acerca do eLearning em prisões, permitem perceber que a Educação a Distância e o eLearning
têm, ainda, um potencial imenso por explorar neste contexto. Lockitt (2011) referindo-se a este
potencial destaca, sobretudo, os aspetos relacionados com a Individualidade, por exemplo, a ní-
vel de estilos de aprendizagem individuais; das metas e objetivos individuais; da aprendizagem
independente; e da possibilidade de diferenciação pedagógica; com a Flexibilidade, em termos
de conteúdos de aprendizagem; de recursos multimédia de aprendizagem; da interatividade; da
autoavaliação; e de tecnologias móveis; e com a Continuidade, a nível de um curriculum online
(registo do historial de formação e das aprendizagens desenvolvidas pelos sujeitos); da conti-
nuidade da formação prisão/comunidade; e de um apoio “virtual” consistente.
Para além das potencialidades, no mesmo estudo Lockitt identicou uma série de limita-
ções relativamente ao recurso à Educação a Distância e ao eLearning nestes espaços de reclusão
que é necessário ultrapassar, como por exemplo, acesso muito limitado à tecnologia e sinal digital
e uso não efetivo dessa tecnologia; falta de sensibilização dos prossionais dos estabelecimen-
tos prisionais acerca do potencial das tecnologias; falta de materiais multimédia interativos de
qualidade; falta de apoio interativo contínuo, através de videoconferências; publicidade adversa
e má perceção da sociedade quanto ao uso da tecnologia (2011).
Todas estas limitações reforçam a necessidade da implementação da Educação Digital
em prisões, com um plano estratégico bem denido que considere as diversas variáveis refe-
ridas por Attwell (2006), nomeadamente, as variáveis individuais dos reclusos (características
pessoais, sociais e culturais, a história de aprendizagem/ experiência anterior, atitudes, motiva-
ções, a familiaridade com tecnologias, compromisso pessoal de aprendizagem,...); as variáveis
institucionais (ambiente de aprendizagem, contexto econômico e político, eLearning conança/
valor); as variáveis tecnológicas (hardware, software, acesso, segurança e soluções de suporte
técnico); bem como as variáveis pedagógicas (acessibilidade, recursos educacionais, métodos
Educação digital para adultos em privação de liberdade
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pedagógicos, autonomia, interatividade, exibilidade, organização curricular, monitoramento e
apoio tutorial).
Consideradas todas estas variáveis, modalidade de Educação a Distância, pode, efeti-
vamente, contribuir para a promoção da inclusão (social e digital), através do desenvolvimento
de uma educação digital em rede, entendida como o conhecimento, a atitude, a capacidade do
indivíduo de usar corretamente as tecnologias digitais e as redes, bem como a capacidade para
identicar, ter acesso, integrar, avaliar, analisar, resumir, criar e comunicar usando recursos
digitais.
Regressando aos pressupostos iniciais deste artigo, parece-nos evidente o potencial da
introdução da Educação Digital em contextos de reclusão. Acreditamos que este projeto consiga
dar resposta a alguns dos desaos que a sociedade digital e as tecnologias de comunicação digi-
tal colocam à Educação Digital especialmente em contextos de enorme vulnerabilidade social,
como é o caso do contexto prisional, contribuindo, ao mesmo tempo, para que seja garantido o
direito de acesso à educação que deve ter qualquer cidadão, no cumprimento do respeito pelos
direitos humanos dos indivíduos, privados ou não de liberdade.
A literatura também tem sido clara na demonstração de como a educação é fundamental
para responder às necessidades daqueles que se encontram no limiar da exclusão social, em risco
e vulnerabilidade. Este será um caminho para aumentar a justiça social e reduzir a discriminação
através da frequência de cursos de educação e formação.
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Recebido em: 20 de fevereiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Edla Cristina Rodrigues Caldas e Elenice Maria Cammarosano Onofre
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11705
PESQUISA DECOLONIAL E PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE: REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS
E METODOLÓGICAS
Edla Cristina Rodrigues Caldas
1
Universidade Federal do Amazonas
http://orcid.org/0000-0003-2770-9346
Elenice Maria Cammarosano Onofre
2
Universidade Federal de São Carlos
http://orcid.org/0000-0002-3623-4728
RESUMO:
O artigo analisa as contribuições dos conceitos de humanização e dialogicidade para a pesquisa em edu-
cação em espaços de privação de liberdade. Trata-se de resultado da pesquisa bibliográca realizada em
uma investigação de natureza qualitativa que pretende compreender as concepções de educação em um
Centro Socioeducativo de Internação Feminina. Está embasado em obras de Santos e Meneses (2009),
Quijano (2009), Maldonado-Torres (2009, 2016), Fiori (1987, 2001), Lèvinas (2005), Dussel (2003),
Freire (1987, 2015), Onofre (2009); Onofre, Fernandes e Godinho (2019), Onofre e Francisco (2016) e
foi organizado nas etapas de análise propostas por Bardin (2016): organização da análise, exploração do
material e o tratamento dos resultados. Evidencia o compromisso social e político do pesquisador atento
às relações ecológicas do fazer pesquisa na perspectiva da decolonialidade.
Palavras-chave: Privação de liberdade. Pesquisa em Educação. Epistemologia.
ABSTRACT:
DECOLONIAL RESEARCH AND DEPRIVATION OF LIBERTY:
EPISTEMOLOGICAL AND METHODOLOGICAL REFLECTIONS
The article analyzes the contributions of the concepts of humanization and dialogicity to research in
education in spaces of deprivation of liberty. This is the result of the bibliographic research carried out
in a qualitative investigation that aims to understand the conceptions of education in a Socio-educational
Center of Female Hospitalization. It is based on works by Santos and Meneses (2009), Quijano (2009),
Maldonado-Torres (2009, 2016), Fiori (1987, 2001), Lèvinas (2005), Dussel (2003), Freire (1987,
2015), Onofre (2009); Onofre, Fernandes and Godinho (2019), Onofre and Francisco (2016) and was
organized in the stages of analysis proposed by Bardin (2016): organization of the analysis, exploration
of the material and the treatment of the results. It highlights the social and political commitment of the
researcher attentive to the ecological relations of doing research from the perspective of decoloniality.
Keywords: Deprivation of liberty. Research in Education. Epistemology.
1 Doutoranda em Educação (UFSCar). Professora Assistente (UFAM). Integrante do Grupo de Pesquisa
Núcleo de Investigação e Práticas Educativas em educação nos espaços de restrição e privação de liberdade –
EduCárceres (UFSCar). E-mail: edlacristina@gmail.com
2 Doutora em Educação Escolar (UFSCar). Docente do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas
e do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSCar). Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Investigação
e Práticas Educativas em Educação nos espaços de restrição e privação de liberdade – EduCárceres (UFSCar).
E-mail: eleonofre@ufscar.br
Pesquisa decolonial e privação de liberdade: reexões epistemológicas e metodológicas
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 34-48, jan./abr. 2021 |
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RESUMEN:
INVESTIGACIÓN DECOLONIAL Y PRIVACIÓN DE LIBERTAD:
REFLEXIONES EPISTEMOLÓGICAS Y METODOLÓGICAS
El artículo analiza las contribuciones de los conceptos de humanización y diálogo a la investigación
en educación en espacios de privación de libertad. Este es el resultado de la investigación bibliográca
llevada a cabo en una investigación cualitativa que tiene como objetivo entender las concepciones de
la educación en un Centro Socioeducativo de Hospitalización Femenina. Se basa en obras de Santos y
Meneses (2009), Quijano (2009), Maldonado-Torres (2009, 2016), Fiori (1987, 2001), L’vinas (2005),
Dussel (2003), Freire (1987, 2015), Onofre (2009); Onofre, Fernandes y Godinho (2019), Onofre y
Francisco (2016) y se organizó en las etapas de análisis propuestas por Bardin (2016): organización
del análisis, exploración del material y tratamiento de los resultados. Destaca el compromiso social y
político del investigador atento a las relaciones ecológicas de la investigación desde la perspectiva de la
decolonialidad.
Palabra-claves: Privación de libertad. Investigación en Educación. Epistemología.
Introdução
O artigo se propõe analisar as contribuições dos conceitos de dialogicidade e educação
humanizadora para a pesquisa em educação de jovens e adultos em espaços de privação de
liberdade e como esses conceitos se relacionam com a construção das epistemologias do Sul e
com a luta contra a colonialidade das pesquisas em educação.
Os processos educativos que acontecem no afastamento social compulsório de privação de
liberdade, embasados na dialogicidade e na humanização, características da pesquisa de natureza
qualitativa devem ser estudados de maneira ecológica, considerando-se os diversos aspectos da
vida humana. É Minayo (1994, p. 22) que nos apoia ao explicar que a pesquisa qualitativa: “[...]
trabalha com o universo de signicados, motivos, crenças, valores, e atitudes, o que corresponde
a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis”.
Este artigo está situado em momento de construção da tese de doutorado que busca com-
preender as concepções de educação em um Centro Socioeducativo de Internação Feminina e
apresenta os resultados da pesquisa bibliográca realizada. Diferente da revisão de literatura,
a pesquisa bibliográca tem sido utilizada como procedimento para aproximação do objeto de
estudo a partir de fontes bibliográcas, bem como para apropriação de conceitos e categorias
que contribuem na etapa da pesquisa de campo (LIMA; MIOTO, 2007).
Para a análise dos dados dos estudos bibliográcos, utilizamos a análise de conteúdo, de
acordo com Bardin (1977, p. 27) que evidencia,
[...] é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de
um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, seria
Edla Cristina Rodrigues Caldas e Elenice Maria Cammarosano Onofre
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 34-48, jan./abr. 2021
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um único instrumento, mas marcado por urna grande disparidade de formas e
adaptíve1 a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações.
Seguimos as etapas de análise propostas pela autora: organização da análise – pré-análise,
a exploração do material, o tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação. O estudo
partiu das obras de: Santos e Meneses (2009), Quijano (2009), Maldonado-Torres (2009, 2016),
Fiori (1987, 2001), Lèvinas (2005), Dussel (2003), Freire (1987, 2015), Onofre (2009); Onofre,
Fernandes e Godinho (2019), Onofre e Francisco (2016).
Seguindo as etapas preconizadas pelo método, realizamos as leituras das obras e estabele-
cemos como categorias de pesquisa e análise: dialogicidade, educação, educação humanizadora
e colonialidade. No momento da análise buscamos interpretar as contribuições desses conceitos
para a pesquisa em educação na direção das epistemologias do Sul e suas possibilidades para a
temática da educação em espaços de privação de liberdade.
Quijano (2009), Dussel (2003) e Maldonado-Torres (2009) são autores latino-americanos
cujas produções situam-se no âmbito das epistemologias do Sul, um conjunto de produções
acadêmicas que pretendem o rompimento das divisões epistemológicas em que o conhecimento
cientíco moderno ocidental é superior e hegemônico. O rompimento que abre passagem para o
diálogo com outros saberes e conhecimentos considerados até então de menor valor, especialmente
dos povos originários dos continentes, das comunidades indígenas e dos povos do hemisfério Sul.
O texto está organizado em três momentos: no primeiro, apresentamos os conceitos de
educação, humanização e dialogicidade na concepção dos autores latino-americanos elencados.
No segundo momento, tecemos algumas reexões epistemológicas e metodológicas sobre a
pesquisa em educação para os espaços de privação de liberdade. Para nalizar, sem a intenção
de concluir, esboçamos algumas considerações, provocações e convite para o fazer pesquisa na
perspectiva da diferença.
Educação, dialogicidade e humanização: reexões conceituais
A educação é uma prática social que favorece a formação humana para uma coexistência
com outros seres. Compreendemos que a educação é um processo necessário ao desenvolvimen-
to humano, por essa razão, é direito de todos e todas. Educação também é um ato político na
medida em que precisa levar educandos e educadores a tomar posição diante da sociedade e a
partir dela agir. Trata-se, pois, da educação como prática de liberdade na luta pela construção de
uma sociedade democrática, se ela proporcionar o pensamento autêntico na formação do sujeito,
rmando-se no poder da dialogicidade (FREIRE, 1987, 2005).
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Nessa direção, os processos educativos estão imbuídos de intencionalidade. Portanto, é
necessário pontuar que educação está vinculada a um projeto de sociedade determinado. Cabe-
-nos defender a educação para a transformação da sociedade, de acordo com os interesses da
classe trabalhadora. Por essas razões, elencamos os aspectos com os quais a educação precisa
relacionar-se para ser dialógica e favorecer o processo de humanização.
A educação relaciona-se com a necessidade da formação humana para a alteridade. A
educação dialógica só pode ser concretizada se feita com o outro e não para o outro. Isto pressu-
põe foco nas relações educando-educador e educando-educando que se estabelecem no processo
educativo. Buscamos em Lèvinas (2005) a compreensão de que as nossas relações com o outro,
com os grupos e com o próprio Deus são coletivas. Isto só é possível porque nos reencontramos
no outro. É na alteridade que o pensamento consegue justicar a sua atividade, possibilitando o
encontro de subjetividades, o que nos leva a pensar nos processos educativos como processos
de intersubjetividade.
Sobre isso, Fiori (1991) arma o princípio de que o mundo não se compõe desta ou da-
quela subjetividade, mas da “intersubjetividade”. A consciência isolada nada faz ou produz, é
no encontro das consciências e no trabalho humano que se congura a consciência: “não há um
mundo meu e um mundo seu”, pois, se assim fosse ninguém poderia comunicar-se. A comuni-
cação só é possível porque há um mundo comum.
Dessa maneira, a educação relaciona-se com a constituição histórica de cada educando
para a comunicação de subjetividades na construção da intersubjetividade. Assim, o homem é
sujeito de sua história. O o condutor dos estudos de Fiori (1991) foi investigar o mundo em que
esse homem, que é e virá a ser, faz história. Podemos nos referir à educação como essa prática
social fundamental para a construção da história de cada ser e para o encontro de subjetividades.
Esse encontro ocorre se meu ser-no-mundo não for o medo de outrem. Sem o temor, vem
a proximidade do outro que gera signicado do rosto, da identidade do outro e que nos respon-
sabiliza por ele. Diante do rosto de outrem cabe-nos uma postura ética em nosso tempo. Diante
dessa concepção, a educação constitui-se como formação humana para a alteridade ligada ao
conceito de conscientização por meio da dialogicidade. Esta permite às pessoas ultrapassarem
as situações momentâneas fazer a práxis em um processo contínuo de conscientização e tal
processo só é possível em conjunto, por meio do diálogo.
Como nos explica Fiori (1987), diálogo é a historização no mundo entre as consciências
intersubjetivas. A consciência é parte do mundo concreto e vivido em que ele é problematizado
com profundidade da crítica. No campo da educação, o diálogo congura-se como a própria
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motivação para aprender e para ensinar tendo como aliada primordial a troca de saberes, a escuta
ativa e respeitosa entre educandos e educadores, entre educandos e educandos.
Desse modo, desfaz-se o currículo estandardizado e distante das realidades dos educandos
e dos educadores. A educação para a formação humana, dialógica, comprometida com a transfor-
mação da sociedade rompe com a cultura do silêncio e contesta as relações sociais estabelecidas
na educação bancária, como nos sinaliza Freire (1987).
A educação bancária ainda é bastante presente na maioria de nossas escolas. Por ela,
perpetua-se o projeto societário de manutenção do status quo e as relações de dominação em que
se busca introjetar nas classes populares o conformismo diante do mundo desigual. A educação
bancária é caracterizada por métodos autoritários em que o professor detém o saber e ao estudante
cabe ouvir e receber os conteúdos estabelecidos no currículo (FREIRE, 1987).
A construção de um projeto educacional diferente é possível quando a prática educativa
está pautada pela dialogicidade. Mas, o que é dialogicidade? Buscamos a resposta em Freire: “A
dialogicidade é uma exigência da natureza humana, de um lado; de outro, um reclamo da opção
democrática do educador” (FREIRE, 2015, p. 1555). Na visão freireana, é a dialogicidade que
permite a satisfação da curiosidade epistemológica do educando e do educador, uma vez que
ambos são sujeitos do conhecimento e vivem em uma busca “gnosiológica” constante.
A dialogicidade valoriza a curiosidade, a busca pelas verdades por meio da comunicação
entre as pessoas. Por essa razão, os conceitos de dialogicidade e humanização são importantes
para a pesquisa no campo da educação de jovens em espaços de privação de liberdade. O olhar
das pesquisas a partir desses conceitos potencializa a superação das práticas autoritárias já ex-
perimentadas (ou praticadas) pelas pessoas que ali estão, seja na escola, na comunidade em que
vivem ou na sociedade de maneira geral. A nalidade de um processo educativo perpassado pela
dialogicidade é a contribuição para a humanização, para a libertação da colonialidade.
A colonialidade é um conceito derivado do colonialismo. O colonialismo como processo
de dominação econômica e material das nações europeias sobre outros países dos demais conti-
nentes, especialmente dos da América Latina, criou um conjunto de elementos mais duradouros
que a colonização. Para Quijano, lósofo peruano (2010, p. 84), a colonialidade: “sustenta-se
na imposição de uma classicação racial/étnica da população do mundo como pedra angular
do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões materiais e
subjetivos, da existência social e quotidiana e da escala societal”.
Com a expansão do capitalismo pela América, este modo de produção econômico tornou-
-se mundial. Isso foi possível por ter o eurocentrismo, a colonialidade e a modernidade como
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eixos dessa constituição, congurando-se como padrão de poder. São estabelecidas, então,
relações intersubjetivas de dominação à serviço do modo de exploração capitalista, dentro de
uma mentalidade hegemônica eurocentrada. Dentro desse padrão, as formas de conhecimento
e de produção de conhecimento foram arroladas às necessidades das relações de dominação e
opressão (QUIJANO, 2010). São relações de poder mantidas nas esferas econômicas, sociais,
políticas e cientícas.
Nada colaborou mais para a manutenção das relações de dominação no âmbito das
sociedades capitalistas do que a criação do que Quijano (2010) chama de classicação social
por raça e gênero. Daí deriva a naturalização da exploração de pessoas enquadradas por suas
diferenças fenotípicas, como cor e sexo, a partir da ideia de que são inferiores e com menos
direitos do que outras.
A evolução das características do poder do capitalismo congurou novas “identidades
societais” e um universo de relações intersubjetivas “de dominação sob hegemonia eurocen-
trada”, chamada de modernidade. Esse universo intersubjetivo gerou “um modo de produzir
conhecimento que dava conta das necessidades cognitivas do capitalismo” (QUIJANO, 2010,
p. 85). Trata-se de uma única racionalidade válida como marca da modernidade e do domínio
do modelo cognitivo europeu, congurando-se também como domínio epistemológico.
É nesse contexto que situamos a educação e a pesquisa em educação de jovens em situação
de privação de liberdade. É preciso ter em conta dois aspectos: primeiro, a educação precisa ir
de encontro à educação bancária e aos processos que não fomentem a formação humana. Se-
gundo a pesquisa em educação e privação de liberdade deve comprometer-se socialmente com
o rompimento das barreiras da colonialidade e ser capaz de produzir diálogo com os sujeitos
colaboradores.
Reexões epistemológicas e metodológicas para a pesquisa em
educação para os espaços de privação de liberdade
Os conceitos apresentados na seção anterior contribuem para a construção de novos saberes
e fazeres de pesquisa em educação e em práticas sociais, especialmente no Brasil e nos demais
países latino-americanos. Cabe-nos um questionamento: como construir pesquisas perpassadas
pela dialogicidade voltados para a humanização e para a libertação da colonialidade?
Para os pesquisadores que se constroem em lugares de subalternidade, tal questionamento
é fundamental para a constituição no exercício do fazer pesquisa: o pesquisador estará em diá-
logo com a comunidade em que pretende se inserir ou levará apenas o conhecimento dominante
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àqueles que já são oprimidos e dominados pelo modo de produção capitalista? Para responder
a essa pergunta, é relevante optar por outra escolha epistemológica que origina comportamento
ético na utilização de metodologias comprometidas socialmente com os colaboradores e as
colaboradoras da pesquisa.
Na introdução da obra Epistemologias do Sul (2010), organizada pelos professores
Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses, os autores apresentam o conceito de
epistemologia como “toda noção ou ideia, reetida ou não, sobre as condições do que conta
como conhecimento válido” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 15). Tal conceito está assentado
no pressuposto de que as experiências sociais produzem conhecimento e, por consequência,
epistemologias.
A partir dessa premissa, os autores apresentam a seguinte questão: “Por que razão, nos
dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reexão epistemológica o
contexto cultural e político de produção e reprodução do conhecimento?” (SANTOS; MENESES,
2010, p. 16). A obra em questão busca responder essa pergunta, reunindo textos de autores com
perspectivas diversas e diferentes linhas de pesquisa, mas que estão alinhados a cinco ideias.
A primeira é que há uma epistemologia dominante que se pretende universal apoiada por
dois pilares: “a diferença cultural do mundo moderno cristão ocidental e a diferença política do
colonialismo e capitalismo” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 16). A segunda ideia diz respeito à
construção do “epistemicídio”, caracterizado pela inferiorização de outros conhecimentos e pela
subsunção deles à lógica das epistemologias dominantes. Contudo, não cabe aqui a compreensão
da ciência moderna como mal ou bem em si, uma vez que ela tem dinâmicas internas diversas.
A terceira ideia admite que houve e há apropriação do conhecimento cientíco por gru-
pos dominantes, institucionalizando-o e criando barreiras ao diálogo com os demais saberes
que existem para além do espectro epistemológico institucionalizado. Essa prática permitiu o
ocultamento das condições sociais e políticas sob as quais o conhecimento cientíco moderno
tem sido produzido.
A quarta ideia baseia-se no fato de que a crítica aos paradigmas dominantes no campo da
ciência foi possível por causa da “revolução da informação e da comunicação combinada com
a tendência do capitalismo à lei do valor” (Ibidem, p. 18). Ao tentar capitalizar a diversidade, o
capitalismo deu-lhe maior visibilidade e tornou a existência dela convincente para um público
maior.
A alternativa à epistemologia dominante congura-se como a quinta ideia. aqui o
princípio de que “o mundo é epistemologicamente diverso”. Deve-se reconhecer, então, essa
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pluralidade sem cair no relativismo nem na ausência de rigor, observando a “pluralidade interna
da ciência” e a “pluralidade externa da ciência” (SANTOS; MENESES, p. 18-19). Essa diver-
sidade epistemológica é chamada de epistemologias do Sul.
É válido ressaltar que a concepção de Sul é uma metáfora para o conjunto de países que
sofreram, historicamente, a dominação colonizadora dos países europeus ocidentais. São povos
e comunidades que foram subjugados a uma “relação extremamente desigual de saber-poder que
conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações colonizados”
(SANTOS; MENESES, 2010, p. 19). O colonialismo não foi apenas político, mas cultural e
epistêmico. Contra essa dominação e na tentativa de valorizar esses “outros saberes”, as episte-
mologias do Sul buscam construir-se em diálogo horizontal com esses conhecimentos.
A construção das epistemologias do Sul depende de postura ética diferente da ética capita-
lista. O lósofo argentino Dussel (2003) defende os princípios da “ética ecológica” a partir de um
movimento crítico, social e histórico em defesa da vida na Terra. Toda atitude de conhecimento
precisa ser uma defesa intransigente da vida, mais ainda daqueles que são vítimas da pobreza
resultante das desigualdades sociais e econômicas. Para nós, os princípios da “ética ecológica”
podem permear o fazer pesquisa para a humanização e para a desconstrução da colonialidade.
Segundo o lósofo (2003), o primeiro princípio é o de que existe articulação econômica
entre a miséria e a destruição da natureza que é ignorada pelos lósofos postulantes das éticas
formais. Cabe recuperar a “referência material” para a reconstrução da ética material em que a
pobreza seja um problema ético. Desse modo, poderemos proceder de maneira ética e superar
as contradições do capitalismo.
Para Dussel (2003), agir ética e honestamente faz parte da racionalidade humana e este é
um princípio universal. A saber: a conservação da vida na busca da “vida boa”. Essa concepção
de vida está atrelada à organização comunitária em que há “[...] reconhecimento ético-originário
intersubjetivo do Outro como outro, de onde se abre a possibilidade da comunicação e o exercício
da própria razão discursiva” (DUSSEL, 2003, p. 27). O reconhecimento do outro em defesa
da vida comunitária em contraposição ao individualismo e à negação das diversas vivências
identitárias.
Quando a vida boa se torna a negação de alguns grupos e comunidades legitima a opressão.
Surge, então o sistema como totalidade na acepção negativa do termo. Nessa totalidade ocorre
o sofrimento das corporeidades e a destruição ecológica. O processo crítico dessa concepção
de totalidade gera o “reconhecimento do Outro no rosto do in-feliz” (DUSSEL, 2003, p. 31). O
não reconhecimento o outro perpetua a fetichização da razão instrumental em que tecnologia é
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a destruição da vida. Na acepção de Dussel (2003), o desenvolvimento tecnológico jamais pode
estar associado à destruição da Terra e de seus habitantes. É possível a utilização da tecnologia
dentro da ética ecológica, que é a ética da preservação da vida.
O pensamento de Dussel (2003) contribui com nossos estudos referentes à temática de
jovens em privação de liberdade. Destacamos a necessidade de reconhecimento do Outro. Posso
estar em pesquisa com esses/essas jovens sem reconhecê-los/as como parte da mesma Terra que
eu? Esse reconhecimento nos leva a pensar no quão marginalizados/as são e de como a pesquisa
precisa estar comprometida com a defesa democrática da vida e não com a pesquisa acadêmica
estéril.
Maldonado-Torres parte das teorias de Dussel (1996) e Quijano (2010) acerca da mo-
dernidade para escrever sobre relação entre os conceitos de modernidade e colonialidade na
constituição da colonialidade do ser. O autor observa que tais conceitos são tratados, por diversos
autores, de maneira dissociada. Para ele, no entanto, “aqueles que adoptam o discurso da moder-
nidade tendem a adotar uma perspectiva que elimina a importância da localização geopolítica”
(MALDONADO-TORRES, 2010, p. 411). Esse discurso da modernidade como algo universal
seria a fuga do legado da colonização. Ao contrário disso, a tese que o autor apresenta atesta a
associação intrínseca entre modernidade e experiência colonial.
Essa tese esvazia a ideia do nascimento da modernidade ao nal do século XVIII. Essa
marca temporal do nascimento modernidade ignora “os padrões de mais longo prazo da domina-
ção e exploração colonial” (MALDONADO-TORRES, 2010, p. 412). Um prazo que se remete à
produção da modernidade, ainda no século XVI, na América Latina e outras áreas americanas. A
experiência da promessa de progresso para o chamado “Novo Mundo” veio atrelada à dizimação
de populações indígenas nas Américas, marca da experiência colonial associada à modernidade.
Nesse contexto, surgem as classicações dos povos, inclusive com o mapeamento geopolítico
empreendido pelas nações europeias. Para o autor, há que se reconhecer a importância das “rela-
ções espaciais” na fundação do mundo moderno (Ibidem, p. 415). Sobre o papel da espacialidade,
Maldonado-Torres evoca o conceito de colonialidade do poder, tratado por Quijano (2010)
3
. Tal
conceito mostra o papel da colonialidade como constituição do mundo moderno.
As relações entre modernidade e colonialidade e a constituição do mundo moderno,
inclusive a construção da geopolítica nas Américas desde o século XVI, são base do conceito
de “colonialidade do Ser”. Para o autor “[...] a relação entre poder e conhecimento conduziu ao
conceito do Ser” (MALDONADO-TORRES, 2010, p. 415). A relação entre modernidade e o ser
3 “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e especícos do padrão mundial do poder capitalista”
(QUIJANO, 2010, p. 84).
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aponta para “faceta colonial do Ser” sobre a qual muitos lósofos europeus não conseguiram se
debruçar. A ciência moderna tem empreendido esforços para preservar a lógica formal e justicar
a existência da modernidade baseada no ocultamento das reexões sobre racismo e sexismo,
elementos fundantes da relação de dominação/exploração entre o Ocidente e suas colônias.
Cabe destacar a colonialidade do Ser como o próprio desenvolvimento da história moderna
e da lógica da colonialidade, bem como do apagamento de diversas subjetividades. O conceito
de colonialidade pode permitir a teorização das “relações entre Ser, espaço e história”, trazendo
“a questão do ser-colonizado ou do condenado” (MALDONADO-TORRES, 2010).
Uma atitude anticolonialista é fundamental, segundo Maldonado-Torres (2016). Atitude
anticolonialista demanda, além de convicções teóricas, práticas metodológicas que buscam
transformar padrões do ser, do saber e do poder. A proposta é de romper com o modelo univer-
salista de fazer ciência e superar o racismo epistêmico. Além disso, há que assumir a existência
das diversidades epistemológicas. Para tanto, é necessário a crítica radical baseada na prática
dialógica radical. Radicalidade no sentido de ir até raiz dos problemas. Isto com o m de apren-
dermos com os outros que a modernidade tornou invisíveis.
Em nosso ponto de vista, as ideias acima contribuem para o estudo da temática da edu-
cação em espaços privação de liberdade. O conceito de colonialidade do Ser pode constituir-se
em categoria primordial para a análise da condição das pessoas privadas do direito de ir e vir.
Considerando-se os desaos propostos pelos autores, podemos elencar: o desao de romper com
as concepções e com as práticas colonialistas no processo de pesquisa; o desao de assumir a
postura ética da vida diante da construção de uma nova racionalidade voltada para preservação
ecológica da vida e o desao de realizar a crítica radical a partir do ponto de vista epistêmico
das invisibilidades construídas em nossa sociedade.
Pensar metodologias de pesquisa exige visitar os territórios abissais apagados pelas epis-
temologias do Norte (SANTOS, 2006), que, com sua arrogância preguiçosa (SANTOS, 2001),
traçam linhas e modelos xos. Esse deslocamento epistemológico no campo do fazer pesquisa
social exige prudência e coragem para realmente “fazer pesquisa descontaminada de simpatias
pessoais, acadêmicas e políticas” (SÜSSEKIND; PELLEGRINI, 2018, p. 145).
Nestas relações ecológicas faz-se necessária a escuta cuidadosa do outro e de sua pre-
sença no mundo, sua potencialidade de trazer a sua palavra nesse espaço de isolamento social. É
preciso que ele pense conosco. Como alerta Certeau (2007), as vozes dos praticantes da pesquisa
não podem se reduzir a ilustrações para o texto do pesquisador.
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Ao dialogar com Santos (2005), em busca da tessitura de outros modos de fazer pesquisa
estamos exercitando, por meio da troca de experiências com os colaboradores de pesquisa, uma
epistemologia das ausências, ou seja, um resgate do que está silenciado e marginalizado.
Na mesma direção, autores como Streck e Adams (2014), anunciam que a pesquisa em
educação enfrenta grandes desaos e destacam a necessidade da escuta das vozes do dissenso,
muitas vezes tidas como manifestos de revoltas que precisam ser silenciadas. Para esses autores,
cabe à pesquisa em educação “criar espaços para a articulação dessas vozes que se encontram
nas entranhas de nossas terras e de nossa gente” (STRECK; ADAMS, 2014, p. 13). A pesquisa
que escuta e dialoga com essas vozes tem condições de alargar e aprofundar conhecimentos que
contribuam para as suas realidades.
A criação de espaços para articulação das vozes silenciadas remete-nos a outro desao
que é o de potencializá-las para que falem e criem outros espaços de escuta. Conforme Garcia,
(2003) o investigador social pode contribuir com esse processo se estiver comprometido com a
mudança social. Pesquisamos para quê? Pesquisamos para quem? Com quem pesquisamos? A
busca pela resposta a tais perguntas pode levar a uma “ruptura epistemológica, em que ciência e
senso comum, separados na primeira ruptura epistemológica, se aproximem” (GARCIA, 2003,
p. 34). A construção de um paradigma cientíco não hegemônico e capaz de dialogar com os
saberes tradicionais e com um projeto de sociedade democrática só será possível com práticas
de pesquisa comprometidas com a emancipação de colaboradores e colaboradoras de pesquisa.
Nessa direção, abre-se uma contribuição importante para as pesquisas em educação junto
aos jovens em situação de privação de liberdade: a de estabelecer diálogo com os seus saberes
para buscar caminhos às suas demandas especícas.
Em geral, os jovens em privação de liberdade têm histórico de invisibilidade na família,
na comunidade e na escola. As necessidades especícas desse público são ignoradas pelo poder
público. Uma recente pesquisa sobre o perl de jovens que cumprem medidas de internação em
unidades socioeducativas do Rio de Janeiro evidenciou que a ausência de escolarização e explo-
ração no trabalho é a realidade desses jovens. O fracasso da escola na vida deles é uma constante
(MENDES, JULIÃO, 2018). 84,4% dos jovens em unidades Socioeducativas pertencem às fac-
ções criminosas que substituem a atuação do Estado nas favelas e comunidades em que moram.
Partimos da compreensão de que a condição de jovens em situação de privação de liber-
dade não está deslocada de suas histórias de exclusão e opressão em nossa sociedade desigual,
originadas por processos de exploração e colonialidade inerentes ao modo de produção capitalista.
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Os pesquisadores em educação de jovens em situação de privação de liberdade devem
estar atentos que esses colaboradores podem aprender a dizer a sua palavra. A condição juve-
nil força-nos a pensar no futuro, ao mesmo tempo que nos faz reetir sobre as suas histórias e
construírem outras histórias.
Nos trabalhos de Onofre (2009), as perspectivas metodológicas assinaladas vão ao en-
contro das práticas colaborativas e na certeza de que jovens tem muito a dizer e sabem dizer. Ao
dizerem suas palavras, eles podem se compreender como sujeitos de suas histórias.
Tomando nossos estudos por este ângulo metodológico, os procedimentos
adotados têm buscado se caracterizar por um fazer colaborativo de produção
de conhecimento e de busca de alternativas juntamente com os sujeitos ato-
res da educação escolar: os professores e os alunos. Na relação pesquisador
com pesquisado, cabe destacar a importância de ambos se perceberem como
sujeitos do processo de construção do conhecimento, mediante uma relação
de reciprocidade construída pela relação dialógica e pelo compartilhar de ex-
periências e conhecimentos (ONOFRE, 2009, p. 67).
Os pesquisadores do campo da educação e privação de liberdade têm realizado estudos
que nos sugerem caminhos metodológicos e epistemológicos na direção contrária à colonialidade
e à produção cientíca padronizada. O papel do pesquisador em educação (em geral, também
educador) deve ser o de compreender outras maneiras de ser e de saber. Onofre e Francisco
(2016, p. 274) analisam que cabe ao educador social,
(...) compreender as condições e experiências de vida, como também o exer-
cício de uma ação política para com os segmentos marginalizados pela socie-
dade, com o intuito de acompanhar com maior clareza suas representações e
visões de mundo.
Apresenta-se, assim, um desao para o pesquisador: a intersubjetividade no fazer pes-
quisa. Em outras palavras, ultrapassar os dualismos dos mundos dos de fora da privação e os de
dentro e construir uma comunicação possível entre pesquisadores e colaboradores da pesquisa.
Os jovens podem se ver como sujeitos desse mundo e de sua própria história. Por vezes, o direito
de serem vistos como agentes da própria história foi-lhes garantido apenas quando guraram
como infratores da lei.
Entre considerações, provocações e convite...
O estudo e a compreensão dos conceitos educação, formação humana e alteridade,
conscientização, dialogicidade, humanização, libertação e colonialidade se constituem em um
aporte teórico que nos leva ao compromisso social e político enquanto pesquisadores. Não é
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possível, ao nosso ver, a compreensão desses conceitos e permanecer em uma prática de pesquisa
descolada da realidade ou comprometida com manutenção das relações sociais de dominação
e opressão vigentes.
Certamente, o mundo é antes de mais nada um movimento constante e ser pesquisador é
buscar alternativas de aprender nesse movimento e abrir horizontes para que possamos vivenciar
a dúvida, o estranhamento.
Nessa perspectiva, neste artigo, buscamos problematizar que a lógica moderna do conhe-
cimento não é superior e mais cientíca e que a consciência da posição de onde se fala e a clareza
do que se está falando, constituem condições fundamentais para os caminhos e desenvolvimento
de uma pesquisa. Não se trata, pois, de uma metodologia maior ou menor, mas ad-mirar outras
possibilidades que promovem perplexidades e encantamentos. Faz-se necessário, alargar os sen-
tidos do fazer pesquisa: o que somos e o que podemos ser a partir do encontro com a alteridade?
Se assumimos o compromisso social e político com os colaboradores, nossas opções
metodológicas para a pesquisa em práticas sociais buscarão por relações dialógicas, humanizan-
tes e libertadoras na educação em espaços de privação de liberdade e uma compreensão crítica
desse fenômeno.
Não se trata, pois, de dar a voz às pessoas em privação de liberdade! Elas possuem voz
e se expressam de várias maneiras, embora muitas vezes essas maneiras sejam silenciadas vio-
lentamente ou não ouvidas. A postura do dar voz ao outro nos coloca como pesquisadores que
pretendem desbloquear o lugar de inferior das pessoas em privação de privação de liberdade –
assumimos a postura da sua não existência, produzida pela epistemologia e pela racionalidade
hegemônica em lugar de relações mais ecológicas entre os diferentes lugares de legitimidade
(SANTOS, 2006). Trata-se de ouvi-las com respeito, de uma escuta solidária.
Conhecer e pesquisar para a diferença desmonta a falácia do consenso, da categoria que
produz a organização, pois busca as dobras, os escapes, as brechas, as linhas de fuga tornadas
inaudíveis pelos modos abissais de conhecer e pesquisar. Estamos a propor alternativas aos
modos epistemicidas de conhecer do Norte que subalternizam tudo o que busca trabalhar na
diferença e no imprevisível.
Não estamos fora nem dentro; nem armamos nem negamos: indagamos. Fazer pesquisa
vai além de modos de fazer pesquisa: está atravessada por quem somos e pelo lugar de onde
pensamos. Assim como o mundo é o movimento de investigar: as respostas são provisórias e
cambiantes, são possibilidades.
Encerramos trazendo Larrosa (2014, p. 41),
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É preciso manter a porta fechada, não deve deixar entrar o sábio, o especialis-
ta, o moralista, o investigador, construído pela maquinaria da pesquisa, pelo
mercado da pesquisa. E é preciso fazer com que o trabalho não seja assimilado
pelos dispositivos de administração e gestão dos indivíduos e das populações,
pelas formas do biopoder a serviço das quais está a indústria da pesquisa.
Nosso momento é de incertezas, inventividades, de sobrevivência diante das muitas
pandemias sanitária, econômica, política e acadêmica. Fica o convite: pensar a pesquisa de
maneira ecológica e que vá se desvelando e sendo experimentada ao sabor da diferença. Não há
como saborear a diferença com o paladar colonializado...; há outros tons, vozes, ecos, silêncios
e silenciamentos na educação para as pessoas em privação de liberdade!
Referências
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2007.
DUSSEL, Enrique. Alguns princípios para uma ética ecológica material de libertação (re-
lações entre a vida na terra e a humanidade). In: PIXLEY, Jorge (Coord.). Por um mundo
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Recebido em: 20 de janeiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Os modelos de oferta da educação em prisões no Brasil e a construção do seu projeto político pedagógico
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 49-67, jan./abr. 2021 |
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11706
OS MODELOS DE OFERTA DA EDUCAÇÃO EM
PRISÕES NO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DO SEU
PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO
Roberto da Silva
1
Universidade de São Paulo
http://orcid.org/0000-0001-8195-8664
Marineila Aparecida Marques
2
Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo
http://orcid.org/0000-0002-3842-0401
RESUMO:
A aprovação das Diretrizes Nacionais para a Oferta da Educação em Estabelecimentos Penais em 2009
abriu o caminho para a discussão em torno da pertinência de um projeto político pedagógico para o
sistema penitenciário brasileiro, assentado nos dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e
da Lei de Execução Penal. Nesse sentido o projeto político pedagógico – PPP, das prisões possibilita a
salutar complementaridade entre a legislação educacional e penal, favorece a articulação entre políticas
setoriais, potencializa a sinergia entre as ciências pedagógicas e jurídicas e mobiliza distintos campos
prossionais em torno de objetivos comuns. Tomando a Pedagogia Social como a sua inspiração teórica,
o artigo explora a legislação e a produção teórica do GEPÊPRIVAÇÃO (Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade) para discutir os modelos de oferta da Educação
em prisões no Brasil, as potencialidades da Educação para impactar positivamente a Execução \Penal,
aponta os avanços e retrocessos na política criminal e penitenciária e conclui pela potencialização das
prerrogativas que a LDB concede à Educação de Jovens e Adultos para a construção de um Projeto Polí-
tico Pedagógico para a Educação em prisões no Brasil que atenda às determinações da Resolução CNE/
CEB nº 3, de 15 de Junho de 2010.
Palavras Chave: Diretrizes Nacionais. Projeto Político Pedagógico. Educação em Prisões.
ABSTRACT:
THE SUPPLY MODELS OF PRISON EDUCATION IN BRAZIL AND THE
CONSTRUCTION OF ITS POLITICAL PEDAGOGICAL PROJECT
The approval of the National Guidelines for the Offer of Education in Penal Establishments in 2009,
paved the way for the discussion around the pertinence of a political pedagogical project for the Brazil-
ian prison system, based on the provisions of the Law of Directives and Bases of Education and the Penal
Execution Law. In this sense, the political pedagogical project - PPP, of the prisons enables the healthy
complementarity between the educational and penal legislation, favors the articulation between secto-
rial policies, enhances the synergy between the pedagogical and legal sciences and mobilizes different
professional elds around common objectives. Taking Social Pedagogy as its theoretical inspiration, the
article explores the legislation and the theoretical production of GEPÊPRIVAÇÃO (Group of Studies
and Research on Education in Deprivation of Liberty) to discuss the models of education provision in
1 Doutor em Educação (USP). Professor Livre Docente da Pós-Graduação em Educação (USP). Coordenador
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade (GEPÊPRIVAÇÃO).
E-mail: kalil@usp.br
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (USP). Supervisora de Ensino junto
à Diretoria de Ensino da Região Centro Oeste, da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.
E-mail: marineila@usp.br
Roberto da Silva e Marineila Aparecida Marques
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prisons in Brazil, the Education’s potential to positively impact Criminal Execution, points out the ad-
vances and setbacks in criminal and penitentiary policy and concludes by strengthening the prerogatives
that LDB grants to Youth and Adult Education for the construction of a Political Pedagogical Project for
Education in prisons in Brazil that meets the provisions of Resolution CNE / CEB nº 3, of June 15, 2010.
Keywords: National Guidelines. Pedagogical Political Project. Education in Prisons.
RESUMEN:
LOS MODELOS DE OFERTA DE EDUCACIÓN PENITENCIARIA
EN BRASIL Y LA CONSTRUCCIÓN DE SU PROYECTO POLÍTICO
PEDAGÓGICO
La aprobación de los Lineamientos Nacionales para la Oferta Educativa en Establecimientos Penales
en 2009, abrió el camino para la discusión en torno a la pertinencia de un proyecto político pedagógico
para el sistema penitenciario brasileño, basado en las disposiciones de la Ley de Directrices y Bases de
Educación y la Ley de Ejecución Penal. En este sentido, el proyecto político pedagógico - PPP, de las
cárceles posibilita la sana complementariedad entre la legislación educativa y penal, favorece la articula-
ción entre políticas sectoriales, potencia la sinergia entre las ciencias pedagógicas y jurídicas y moviliza
diferentes campos profesionales en torno a objetivos comunes. Tomando como inspiración teórica la Pe-
dagogía Social, el artículo explora la legislación y la producción teórica del GEPÊPRIVAÇÃO (Grupo
de Estudios e Investigaciones sobre Educación en Privación de Libertad) para discutir los modelos de
provisión de educación en las cárceles en Brasil, el El potencial de la educación para impactar positiva-
mente la Ejecución Penal, señala los avances y retrocesos en la política penal y penitenciaria y concluye
fortaleciendo las prerrogativas que otorga LDB a la Educación de Jóvenes y Adultos para la construcci-
ón de un Proyecto Político Pedagógico para la Educación en las cárceles. en Brasil que cumple con las
disposiciones de la Resolución CNE / CEB nº 3, de 15 de junio de 2010.
Palabras clave: Lineamientos nacionales. Proyecto Político Pedagógico. Educación en las Cárceles.
Introdução
A conveniência de discutir um projeto político pedagógico para o sistema penitenciário
brasileiro decorre da aprovação das Diretrizes Nacionais para a Oferta da Educação em Estabe-
lecimentos Penais, aprovada pela Resolução Nº 3, de 11 de março de 2009, do CNPCP e homo-
logado pelo Ministério da Educação por meio da Resolução CNE nº 2, de 19 de Maio de 2010.
A implantação das Diretrizes Nacionais para a oferta da Educação em Estabelecimentos
Penais no Brasil é orientada por três eixos que envolvem, de forma articulada, o sistema público
de ensino e a Execução Penal, seja por meio dos ministérios da Educação e da Justiça, seja por
meio das ações entre secretarias da Educação e da Administração Penitenciária ou equivalente
nos estados.
O Eixo A (Gestão, Articulação e Mobilização) orienta a formulação, execução e mo-
nitoramento da política pública para a educação nas prisões, inclusive com a participação da
sociedade civil, prática coletiva comum na seara da Educação, mas nova para a administração
penitenciária e a execução penal.
Os modelos de oferta da educação em prisões no Brasil e a construção do seu projeto político pedagógico
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O Eixo B (Formação e valorização dos prossionais envolvidos na oferta) indica que a
Educação nas prisões deve atender, além das óbvias necessidades dos presos, as necessidades
de formação continuada e permanente de educadores, agentes penitenciários e operadores da
Execução Penal.
O Eixo C (Aspectos pedagógicos) impõe aos estados a obrigatoriedade da criação de
seus próprios projetos políticos pedagógicos, com base nos fundamentos conceituais e legais
da Educação de Jovens e Adultos, bem como os paradigmas da educação popular, calcada nos
princípios da autonomia e da emancipação dos sujeitos do processo educativo.
Como se depreende da análise destes três eixos e do conjunto das Diretrizes, o PPP das
prisões possui uma dimensão orgânica e estruturante para as ações de múltiplos atores (proje-
to); impacta a Execução Penal, os procedimentos disciplinares e a rotina prisional (político); e
organiza as condições de ensino, o tempo, o espaço e o currículo (pedagógico).
Como a mais nova fronteira da Educação, o PPP das prisões possibilita a salutar comple-
mentaridade entre a legislação educacional e legislação penal - LDB (BRASIL, 1996) e Lei de
Execução Penal (BRASIL, 1984) -, favorece a articulação entre políticas setoriais – Educação,
Trabalho, Saúde, Segurança Pública e Serviço Social -, potencializa a sinergia entre duas ciências
– Pedagogia e Direito Penitenciário – e mobiliza distintos campos prossionais – professores e
agentes penitenciários – em torno de objetivos comuns.
Por meio do Decreto nº 7.626, de 2011, foi promulgado o Plano Estratégico de Educa-
ção no Âmbito do Sistema Prisional, por meio do qual se impôs a todos os estados brasileiros a
obrigatoriedade de construírem o seu Plano Estadual de Educação nas Prisões, de onde emerge,
implícita ou explicitamente o projeto político pedagógico.
O Artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 2, de 19 de maio de 2010 dene que,
As atividades laborais e artístico-culturais deverão ser reconhecidas e valori-
zadas como elementos formativos integrados à oferta de educação, podendo
ser contempladas no projeto político-pedagógico como atividades curricula-
res, desde que devidamente fundamentadas (grifo nosso).
A prática observada no estado de São Paulo para construção do projeto político pedagó-
gico constitui um parâmetro seguido por todos os demais estados brasileiros, ou seja, existe uma
Norma Regimentais Básica para as Escolas Estaduais, que faz uma série de recomendações e dá
orientações para quanto à elaboração di projeto político pedagógico e do regimento escolar, que
deverá ser validado por uma instância do sistema de ensino, tal como uma Diretoria de Ensino.
O Artigo 1º das Normas Regimentais do Estado de São Paulo para as escolas estaduais
As escolas mantidas pelo Poder Público Estadual e administradas pela Se-
cretaria de Estado da Educação, com base nos dispositivos constitucionais
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vigentes, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Estatuto
da Criança e do Adolescente, respeitadas as normas regimentais básicas aqui
estabelecidas, reger-se-ão por regimento próprio a ser elaborado pela uni-
dade escolar (Grifo nosso).
O Artigo 84 da mesma norma reforça que “Incorporam-se a estas normas e ao regimento
de cada escola estadual as determinações supervenientes oriundas de disposições legais ou de
normas baixadas pelos órgãos competentes”.
Isso quer dizer que entre 70 e 80% do projeto pedagógico de uma escola é previamente
prescrito pelo respectivo sistema de ensino, cando entre 20 e 30% para atendimento a especi-
cidades locais e para cumprimento pró-forma dos artigos 14 e15 da LDBN que atribuem relativo
grau de autonomia administrativa, pedagógica e nanceira à unidade escolar.
São mais de 226 mil escolas nos 26 estados e Distrito Federal (INEPDATA, 2019) orga-
nizadas segundo esta mesma lógica e precisamos desta referência para entendermos a forma de
elaboração do Projeto Político Pedagógico para a Educação em Prisões no Brasil.
Sendo o sistema prisional de responsabilidade predominantemente dos estados federados,
a oferta da Educação para as pessoas privadas da liberdade e efetivada por uma diversidade de
modelos em cada estado brasileiro, conforme se verica no quadro a seguir.
Quadro 1.
MODELO DE OFERTA ESTADO CARACTERÍSTICAS
Escola de Referência ou
Escola Vinculadora
Escola Certicadora
Acre, Alagoas, Espírito
Santo, Minas Gerais,
Piauí, Rio Grande do
Norte, São Paulo, Ser-
gipe
Trata-se de uma escola regular, sediada na comunidade, na qual são
lotados os professores que lecionam na prisão e matriculados pre-
sos e presas que queiram estudar. Esta escola faz todos os registros
escolares e emite a documentação escolar necessária.
Escola Penitenciária Amapá, Amazonas,
Pernambuco, Rio de
Janeiro, Tocantins
E o modelo mais antigo existente no Brasil, em que a Escola está si-
tuada dentro da unidade prisional, com toda sua estrutura e equipe.
Por determinação de lei elas tiveram que adotar nomes convencio-
nais para que a documentação escolar, certicados e diplomas não
identiquem a Penitenciária como local de estudos.
Anexos e Extensões Bahia, Goiás, Mara-
nhão, Roraima
Trata-se de uma escola regular que mantem anexos e/ou extensões
em uma ou mais unidade prisionais. Professores, presos e presas
que estudam tem esta escola como referência para efeito de traba-
lho, matrícula e documentação escolar.
CEEJA Ceará, Pará, Paraíba,
Paraná, Rio Grande do
Sul, Rondônia, Santa
Catarina
Professores são vinculados a um Centro de Educação de Jovens
e Adultos, que também recebe a matrícula de presos e presas que
queiram estudar.
Escola Polo Distrito Federal, Mato
Grosso, Mato Grosso
do Sul
Uma única escola (Centro Educacional 01 - DF), (Nova Chance
-MS) e Regina Bettini - MS) centraliza em todo o estado a vincu-
lação institucional de professores e a matrícula de todos os presos e
presas que estejam estudando.
Fonte: Compilação do autor a partir dos Planos Estaduais de Educação em Prisões
3
.
3 Planos Estaduais de Educação em Prisões. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/
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Por imposição da Resolução CNE/CEB nº 2, de 2010, a Educação em prisões deve ser
ofertada por prossionais do quadro regular do magistério, o que inibiu a atuação das fundações
estaduais (FUNAP), que assumiam tais atribuições no Distrito Federal e no Estado de São Paulo.
Nos modelos referenciados acima, cada um apresenta suas vantagens e desvantagens, mas
quando se considera do ponto e vista de um Projeto Político Pedagógico, é possível evidenciar
algumas características.
As escolas de Referência, Vinculadoras e Certicadoras, por exemplo, tem um PPP para
atendimento regular de seus alunos, de seus professores e de sua comunidade, mas ao atender
a população prisional de sua vizinhança tem diculdades em atender às especicidades deste
novo público, proporcionar formação especializada para seus professores e de empregar material
didático pedagógico apropriado para o contexto prisional.
A ausência de um quadro administrativo próprio para atender a prisão, inexistência de
uma direção especíca, de equipe pedagógica, de coordenação e de supervisão duplica o trabalho
administrativo desta unidade escolar, com matrículas, rematrículas, transferências, controle de
ponto e professores, registro de vida escolar e emissão de documentos. Impensável esta mesma
escola lidar com dois PPPs, um para atendimento regular e outro para atendimento do sistema
prisional.
A Escola Penitenciária, modelo mais antigo existente no Brasil, por estar instalada den-
tro de um complexo penitenciário, pode ter secretaria, sala de professores, biblioteca, direção
própria, coordenação pedagógica, supervisão, quadro docente e quadro de apoio administrativo,
podendo exercer bastante autonomia em relação a um PPP.
Em seu desfavor pesa a discussão semântica quanto à propriedade e pertinência do nome
Escola Penitenciária, que pode sugerir uma prática pedagógica orientada para reforçar as praticas
do encarceramento e de tudo o que isso pode signicar, como a estigmatização, a submissão,
o aprender a viver preso, além do fato de que a nomenclatura foi apropriada para se referir a
uma instância de formação de pessoal penitenciário, hoje renomeada em alguns estados para
Academia Penitenciária ou Escola de Administração Penitenciária.
Por força de imposição da legislação, as escolas penitenciárias precisaram alterar a no-
menclatura, adotando nomes convencionais, para que a documentação escolar emitida em favor
de seus alunos não contribuísse no processo de estigmatização com a identicação de Escola
Penitenciária.
MJSP), Disponível em https://www.gov.br/depen/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/educacao-espor-
te-e-cultura/educacao-esporte-e-cultura. Consultado em 30 Out. 2020.
Roberto da Silva e Marineila Aparecida Marques
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O modelo de anexos e extensões é a própria expressão do tradicional puxadinho, espaço
provisório e adaptado para sala de aula, sem qualquer infraestrutura de apoio à atividade docente.
A vinculação da Educação Prisional a um centro ou núcleo de Educação de Jovens e
Adultos, quando este destinado exclusivamente à população presa apresenta mais vantagens
do que desvantagens, dada a liberalidade que a LDB permite a esta modalidade de ensino e à
exibilidade que ela pode ter para atender segmentos especícos.
Deste que o centro ou núcleo tenha infraestrutura própria, direção, coordenação, su-
pervisão, quadro docente, equipe de apoio administrativo, é possível ter e executar um PPP de
maneira bastante razoável, proporcionando formação especíca aos seus docentes e desenvol-
vendo material didático apropriado ao contexto prisional, além de poder realizar os exames de
certicação e de aliar à Educação Básica a Educação Técnica e Prossional.
O modelo da Escola Polo, adotada no Distrito Federal, no Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, dada a exclusividade do atendimento à população prisional, apresenta mais vantagens
do que desvantagens na execução de um PPP próprio, pois tendo todos os elementos e insumos
que conformam uma unidade escolar, pode orientar sua vocação integralmente para a Educação
Prisional e tornar-se referência para a área no estado, inclusive para a formação inicial e continu-
ada de seus docentes e no desenvolvimento e material didático pedagógico próprio e especíco
para este contexto.
Sua desvantagem mais saliente está na questão da logística, que faz com que a sede da
escola esteja muito distante das unidades prisionais onde acontece a Educação.
Condicionantes e determinantes do PPP da Educação em prisões
Como a mais nova fronteira da Educação, contemplada no eixo epistemológico da Edu-
cação de Jovens e Adultos tal qual se pratica no Brasil, sob orientação do já antigo Parecer CFE
nº 699/72, que atribui à EJA três funções básicas: reparadora, equalizadora e permanente ou
qualicadora, a Educação em Prisões requer uma nova arquitetura pedagógica, com redenição
das atribuições dos prossionais que exercem a custódia da pessoa privada da liberdade e uma
nova concertação entre as várias ciências que atuam no contexto prisional.
Em ensaios anteriores do GEPÊPRIVAÇÃO, Roberto da Silva e Fábio Aparecido Moreira
apontaram que,
Muitos estudos, desde pesquisas acadêmicas, observações diretas por parte de
educadores prossionais, relatórios produzidos por investigações judiciárias e
parlamentares até monitoramentos realizados por entidades de defesa dos di-
reitos humanos, assinalam que os programas educativos em estabelecimentos
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penitenciários são inadequados, de baixa qualidade e de pouca frequência por
um único motivo: incompatibilidade entre os objetivos e metas da Educação e
os objetivos e metas da pena e da prisão. (SILVA, MOREIRA, 2006, p. 12).
O título do artigo acima citado é Objetivos educacionais e objetivos da reabilitação penal:
o diálogo possível, e este diálogo é revisitado agora à luz da Resolução CNE/CEB nº 2, de Maio
de 2010, que no Inciso I do Artigo 3º determina que “é atribuição do órgão responsável pela edu-
cação nos Estados e no Distrito Federal (Secretaria de Educação ou órgão equivalente) e deverá
ser realizada em articulação com os órgãos responsáveis pela sua administração penitenciária”.
Diante deste imperativo legal os mesmos autores acima referenciados advertem que
Esta incompatibilidade [acima citada] não é de ordem epistemológica, ainda
que se possa armar que a condição de connamento prolongado, a necessida-
de de rápida adaptação a um ambiente hostil marcado pela cultura da violência
e a perda de referenciais de valor sejam capazes de suscitar outras formas de
saberes e de produção de conhecimentos. [...] A incompatibilidade, diria eu, é
de ordem conceitual. Enquanto prevalecer a concepção de prisão como espaço
de connamento, de castigo, de humilhação e de estigmatização social a Edu-
cação não terá lugar na terapia penal, limitando-se a ser, como efetivamente
tem sido, apenas mais um recurso a serviço da administração penitenciária
para ocupar o tempo ocioso de alguns poucos presos e evitar que se envolvam
em confusões.
Isso quer dizer que precisamos dar ecácia ao princípio do regime de colaboração, tão
enfaticamente colocado no artigo 211 da Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, nos Arranjos de Desenvolvimento da Educação
(ADEs), na Resolução CNE/CEB 1, de 23 de janeiro de 2012, na Lei de Consórcios, de 6 de
abril de 2005, no Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007, no artigo 7º do Plano Nacional
de Educação (PNE) (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014), que dizem: “A União, os Estados,
o Distrito Federal e os municípios atuarão em regime de colaboração, visando ao alcance das
metas e à implementação das estratégias objeto deste Plano.
Ora, a Educação é marcada pela intencionalidade e para isto se serve do espaço, do tem-
po, da progressividade dos conteúdos, do método, da didática, do controle e da avaliação e visa
alcançar seus objetivos em médios e longos prazos e é preciso entender nesta nova arquitetura
pedagógica as atribuições e competências dos entes nomeados na Resolução CNE/CEB que
baliza este estudo.
Neste sentido, a atribuição do município na oferta da Educação em Prisões deveria ser na
oferta da Educação de Jovens e Adultos, especialmente em relação à alfabetização e ao Ciclo I do
Ensino Fundamental e não em relação à Educação Infantil, pois prisão não é lugar para crianças.
Roberto da Silva e Marineila Aparecida Marques
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A propósito, é oportuno a Educação se posicionar contrariamente à Lei nº 11.942, de
2009, que alterou a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984) para instituir a “creche para abrigar
crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a nalidade de assistir a
criança desamparada cuja responsável estiver presa.” Esta lei é uma clara violação dos artigos
5º e 6º de outra lei –8.069¹90 - o Estatuto da Criança e do Adolescente que assim determina
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, pu-
nido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais.
Art. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os ns sociais a que
ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.
A Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou em 14 de Dezembro de 1990 a Re-
solução nº. 45/110 intitulada Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de
Liberdade, também conhecida como Regras de Tóquio, orientando a todos os países a aplicação
de sanções alternativas à prisão, reservando-se o encarceramento somente para atos de maior
poder ofensivo ou para agentes que apresentem maior grau de periculosidade.
Segundo o espírito desta Resolução, o Brasil deveria encontrar urgentemente outras for-
mas de responsabilização criminal da mulher sentenciada pelo cometimento de crimes que não
seja o encarceramento. A concessão (SIC)da Lei 11.942 para que a mulher possa car com
seus lhos pequenos dentro da prisão durante o cumprimento da sentença agrava o problema
e impõe ao município uma atribuição que distorce suas nalidades originárias.
Relação entre educação e execução penal e seus impactos
Preliminarmente há que se lembrar que segundo o Artigo 3º da Lei nº 7.210 de 11 de
Julho de 1984 “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos
pela sentença ou pela lei”, logo impõe-se ao estado, suas agências e seus agentes a difícil tarefa
de assegurar ao condenado a preservação de todos os seus demais direitos não atingidos pela
sentença.
No meio jurídico ainda não há denições precisas e denitivas quanto à superveniência
de um Direito Penitenciário ou de um Direito Educacional, que nos parece seria o campo ade-
quado para a discussão quanto às intersecções entre o exercício do direito à Educação de pessoas
privadas da liberdade e as regras da execução penal vigentes em estabelecimentos penais.
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Em dezembro de 2019, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 104
que instituiu a Polícia Penal como órgão responsável pela segurança dos estabelecimentos pri-
sionais dos estados. A medida foi comemorada pelos sindicatos dos então denominados Agentes
Penitenciários, mas lamentada pelas organizações de direitos humanos e pela Educação e por
algumas razões bem simples.
Ainda que a categoria prossional e seus órgãos de representação tenham comemorado a
iniciativa, para a Educação em Prisões isso signica um injusticável retrocesso, pois uma coisa é
estender o Direito à Educação a agentes penitenciários civis que, de resto, tem as mesmas origens
sociais e apresentam as mesmas necessidades educacionais dos presos sob sua responsabilidade.
Outra coisa muito diferente é pensar a educabilidade social de pessoas fardadas, armadas, que são
treinadas para obedecer ordens hierárquicas sem questioná-las e que, na nossa prática cotidiana,
é a principal fonte de violação de direitos humanos no Brasil.
Na intersecção entre Educação e Execução Penal, entretanto, pode-se pensar em possíveis
sinergias, interpenetrações e impactos positivos.
A segurança penitenciária, por exemplo, é sinônimo de altas muralhas, fossos no seu en-
torno, cães de vigilância e homens grandes e fortes armados até os dentes, com um só propósito:
evitar a fuga do preso. Para a Educação, segurança advém de uma relação de conança entre as
partes, de reconhecimento da autoridade moral do professor e do desejo de ser conduzido pelos
caminhos do conhecimento, da descoberta e da liberdade.
Reorganização do espaço físico. Nem todas as unidades prisionais possuem instalações
próprias para escola ou alas de aulas, congurando um perímetro educacional. Entretanto, a
possibilidade de se ter alas, raios, pavilhões ou módulos destinados aos presos que estudam
pode se constituir em um diferencial desejável por parte dos presos, menos problemático para a
administração penitenciária e mais humanizado do ponto de vista das relações humanas e sociais
que se estabelecem no cárcere.
Transformar as assistências em Educação. Está denitivamente superado o paradigma
assistencialista inscrito nos artigos 10 e 11 da Lei de Execução Penal e devem ser substituídos
pelo paradigma da Educação patrimonial (I material), em Saúde, para os direitos (III -jurídica),
para a cidadania (V – social) e para os valores (VI – religiosa), reorientando a atuação dos res-
pectivos prossionais e de suas ciências para se colocarem a serviço da reabilitação do preso e
não como meros sucedâneos da Justiça para a elaboração de laudos e pareceres.
Substituição da relação prêmio/castigo pela prevalência de direitos. Tudo na prisão é
barganhável a partir desta relação: onde morar, quando trabalhar, as assistências, saídas tempo-
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rárias, visita íntima, acesso ao telefone, etc; em detrimento do exercício de legítimos direitos. A
Educação não barganha nada e reconhece a cada um seus direitos proporcionalmente aos seus
esforços, empenho e rendimento e não há quem não se felicite a sí próprio por ter vencido etapas
na sua trajetória educacional.
Substituição da exploração da mão de obra pela prossionalização. O baixo nível de esco-
laridade e a baixa qualicação prossional da população prisional no Brasil é uma das razões da
exploração da mão de obra do preso, com remuneração vergonhosa, sem direitos previdenciários
e trabalhistas e em qualquer possibilidade de aproveitamento deste trabalho quando em liberdade.
A Educação é fundamental para a qualicação desta mão de obra seja na tarefa da alfabetização,
da elevação da escolaridade ou da prossionalização propriamente dita e é desejável que o preso
esteja cursando o Ensino Médio, pelo menos, para que a prossionalização seja efetiva e possa
representar a aquisição de uma prossão que possa ser exercida quando em liberdade.
Formação de lideranças positivas. Devemos superar a cultura de que a liderança na prisão
seja exercida pelos mais fortes, mais violentos ou com maior coleção de crimes cometidos, nas
quais prevalece o medo e o temos e não o respeito. A Educação é o meio para desenvolver a
capacidade de análise de situação e de conjuntura, aprimorar a argumentação e fomentar o senso
crítico necessário para a tomada de posturas e de decisões.
Progressão escolar como quesito de avaliação da terapia penal. Qual melhor indicador
de sucesso na contemporaneidade do que a taxa de escolarização de uma pessoa ou de uma
população? Quando se verica a escolaridade inicial no momento da prisão e a escolaridade ao
nal do cumprimento da sentença pode-se ter um indicador preciso quanto ao aproveitamento do
tempo de pena por parte do preso. A continuidade dos estudos em liberdade pode ser, inclusive,
uma das condicionalidades para a progressão de regime, desde que de forma consensual e com
os devidos acompanhamentos.
O projeto político pedagógico para as prisões
No livro Educação na Cidade (2001a), Paulo Freire, falando sobre sua experiência como
secretário da Educação na cidade de São Paulo, apresenta sua concepção de construção de projeto
político pedagógico:
Evidentemente, para nós a reformulação do currículo não pode ser algo feito,
elaborado, pensado por uma dúzia de iluminados cujos resultados nais são
encaminhados em forma de pacotes para serem executados de acordo ainda
com as instruções e guias igualmente elaborados pelos iluminados. (FREIRE,
2001a, p. 24).
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A necessidade de um projeto político pedagógico pode ser entendida como decorrência
direta do processo de maturidade democrática pelo qual o Brasil passou recentemente. Uma ca-
racterística deste processo foi a supressão de modelos referenciais para organizar a vida pessoal,
familiar e social e a consequente valorização do indivíduo e de suas experiências.
Historicamente a religião forneceu os modelos de pai, mãe, lho, assim como os parâ-
metros para julgamento do que é certo ou errado e do que é bom ou mau.
Para a Educação é relativamente tranquilo trabalhar em função destes modelos previa-
mente denidos, mas Freire adverte que “o educador comprometido com a construção de um
projeto político transformador constrói sua docência voltada para a autonomia do educando,
valorizando e respeitando a sua cultura, o seu acervo de conhecimentos e sua individualidade”
(FREIRE, 1977a).
A Educação, mais do que qualquer outra área de conhecimento, aprendeu a trabalhar
com a diversidade, gerando respostas que contemplam quase todo o espectro das necessidades
educacionais diferenciadas (indígena, quilombola, gênero, opção sexual, deciências, estran-
geiros, hospitalizados etc.). Paulo Freire tratou da questão da diferença em Pedagogia da In-
dignação (2000), fazendo a defesa do multiculturalismo, no qual o direito de ser diferente em
uma sociedade dita democrática, enquanto uma liberdade conquistada de cada cultura, também
deve proporcionar um diálogo crítico entre as diversas culturas, com o objetivo de consolidar e
ampliar os processos de emancipação.
Portanto, na ausência de modelos únicos, hegemônicos e culturalmente impostos cabe
à comunidade, juntamente com a escola pública que a atende, denir de comum acordo o perl
do educando a ser formado.
As bases de um PPP coletivamente construído podem ser assim resumidas:
• que tipo de pessoas o Estado, a sociedade e a prisão querem formar?
• quais os recursos físicos, humanos e nanceiros disponibilizados para a escola?
• como serão organizados os processos de ensino/aprendizagem, monitoramento e
avaliação do projeto político pedagógico?
Cada Estado brasileiro possui conjunturas especícas tanto na Educação quanto no seu
sistema penitenciário, mas há documentos de referência que podem subsidiar a formulação dos
respectivos projetos. São eles:
1. Plano Estadual de Educação. Nos Estados em que ele existe é pertinente vericar se
o mesmo faz alguma referência à Educação em prisões.
2. Plano Diretor do Sistema Penitenciário. Dentre suas 22 metas, merece atenção a
Meta 15 (Educação e prossionalização), na qual se faz o detalhamento quanto ao
nível de escolaridade de toda a população prisional no Brasil.
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3. Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário. Desdobramento do
Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, que coloca a atenção à saúde do
preso como atribuição do Sistema Único de Saúde (SUS).
4. Deliberações do Conselho Estadual de Educação sobre a oferta da Educação em
Prisões ou, analogamente, sobre Educação de Jovens e Adultos e Educação Técnica
e Prossional.
Observada a diretriz que determina ser a Educação em prisões obrigação do Estado por
meio da articulação entre as secretarias que cuidam das prisões e da Educação, uma primeira
denição a se fazer é quanto à forma de organização do sistema de ensino para atender as uni-
dades prisionais.
O Mato Grosso do Sul, por exemplo, que iniciou a elaboração coletiva do seu plano
estadual mesmo antes da homologação das Diretrizes Nacionais, atende 21 de suas 44 unidades
prisionais por meio da Escola Estadual Pólo Profª. Regina Lúcia Anffe Nunes Betine, criada em
Dezembro de 2003.
Esta escola está credenciada pelo Conselho Estadual de Educação para oferecer todas
as modalidades da Educação Básica, possui um quadro próprio de 60 professores e cinco coor-
denadores pedagógicos e cada unidade prisional atendida é concebida como uma extensão da
escola. Este é o modelo que podemos chamar de escola vinculadora ou escola pólo.
O Estado de Santa Catarina, não obstante possuir desde 1975 uma denominada Escola
Supletiva Penitenciária, faz o atendimento escolar da população prisional por meio dos seus 36
Centros de Educação de Jovens e Adultos (CEJAs), diretamente subordinados a uma coordena-
doria da Secretaria Estadual de Educação. Não obstante haver uma coordenação única para os
36 CEJAs, resguarda-se a autonomia de cada um na elaboração do seu PPP, caracterizando-se
como um modelo descentralizado de atendimento.
No Mato Grosso existe desde 2009 a Escola Estadual Nova Chance, vinculada à Secretaria
Estadual da Educação, que atende 19 das 60 unidades prisionais do Estado. Esta escola também
se caracteriza como uma escola vinculadora e as unidades prisionais atendidas são concebidas
como salas anexas da escola ocial.
Há ainda a possibilidade de que cada unidade prisional esteja diretamente vinculada à
unidade escolar mais próxima ou que cada unidade prisional tenha sua própria escola, inclusive
dotada das respectivas instituições auxiliares como grêmio, Conselho de Escola e Associação
de Pais e Mestres.
Nos três estados aqui referenciados o Plano Estadual de Educação em Prisões foi con-
cebido como as diretrizes estaduais para o tema, articulando secretarias e órgãos de governo;
criando infraestrutura e logística; organizando as carreiras prossionais; estabelecendo atribuições
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e competências e organizando as condições de oferta, scalização e avaliação da Educação nas
prisões.
O projeto político pedagógico constitui o instrumento operacional por meio do qual a
Escola Regina Betine, os CEJAs e a Escola Nova Chance deniram suas prioridades, objetivos
e metas a serem alcançadas em determinado período de tempo. O modelo da escola vinculadora
ou escola pólo possibilita que o PPP seja único para todo o Estado, abrangendo a totalidade das
unidades prisionais atendidas.
Importante ressaltar que no âmbito de um plano estadual não há uma solução única para
oferta da Educação em prisões.
Quando analisados os dados relativos ao perl de escolarização da população prisional
no Brasil, a alfabetização surge como um desao ético a ser enfrentado pelo Estado e pela socie-
dade, pois inadmissível hoje a existência de analfabetismo entre jovens e adultos em sociedades
contemporâneas. A elevação da escolaridade para cerca de 80% dos presos que não concluíram
o Ensino Fundamental soa como uma ação reparadora face ao fato de ter sido negado a eles o
Direito à Educação na idade apropriada.
Durante o processo de elaboração dos planos estaduais para a Educação em estabeleci-
mentos penais nos estados de Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso, a análise dos
dados de escolarização dos presos apontaram para a necessidade de que a Educação de Jovens e
Adultos a ser oferecida assumisse modelagens diversas para atender às diferentes necessidades
de homens e mulheres presos.
A primeira modelagem, para contemplar os presos que não são alfabetizados ou não
exercitaram o direito constitucional à Educação Básica de nove anos foi, prioritariamente, nos
sentidos de alfabetização e de elevação da escolaridade.
Cruzados os dados de escolaridade e de trabalho, entretanto, cou evidente que são
exatamente estes os presos que mais constantemente optam pelo trabalho em detrimento da
Educação, por razões óbvias. Logo, a proposta de Educação para este contingente teve que,
inexoravelmente, considerar a relação trabalho e Educação, possibilitada pelo conceito de “qua-
licação pelo trabalho” enunciado no Artigo 27, Inciso III, combinado com o Artigo 37, § 2º da
LDB que autoriza, inclusive, o reconhecimento de conhecimentos e habilidades adquiridos por
meios informais.
A segunda modelagem contemplou os que possuem o Ensino Fundamental completo,
portanto exercitaram o direito constitucional à escolarização básica de nove anos, mas devem
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ser estimulados à continuidade dos estudos com vistas à elevação, não apenas da escolaridade,
mas também de suas competências técnicas relacionadas ao trabalho.
Os artigos 35, 36 e 41 da LDB autorizam o atendimento desta demanda por meio do Ensino
Médio, no qual também podem ser aproveitados os conhecimentos e habilidades anteriormente
adquiridos, resultando em certicação de Educação Prossional de Nível Médio com validade
nacional e em uma prossão para o indivíduo quando em liberdade.
Uma terceira modelagem objetivou atender os presos que começaram, mas não conclu-
íram o Ensino Médio e que, não obstante isso, exercem no interior da prisão ofícios indexados
na Classicação Brasileira de Ocupações (CBO). O Artigo 40 da LDB autoriza diferentes articu-
lações da Educação Prossional, inclusive com o próprio ambiente de trabalho. A ênfase, neste
caso, foi estimular a conclusão desta etapa, explorando as possibilidades também previstas nos
artigos 39, 41 e 42 da LDB.
Os presos que possuem o Ensino Médio Completo podem se beneciar da Educação
Prossional, estes sim, no sentido de aprendizagem de uma prossão de nível técnico, como
são os casos dos monitores de Educação (§2º do Artigo 9º das Diretrizes) e do Agente Prisional
de Saúde (Art. 9º da Portaria Interministerial 1777, de 9.9.2003 que institucionaliza o Plano
Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário). Este Plano prevê a qualicação prossional de
pelo menos 5% dos presos como Agentes Prisionais de Saúde, com formação equivalente ao do
Agente Comunitário de Saúde.
Somente o uso destes dois dispositivos possibilita formar, de imediato, 25 mil presos
para ajudar a enfrentar os graves problemas de saúde no sistema penitenciário. Usada a analogia
e a mesma proporção para formação de presos como monitores de Educação seriam outros 25
mil auxiliares para os prossionais da Educação. Dadas as características que fazem com que a
Saúde e a Educação possuam alto valor agregado na reabilitação e que os presos possuem, de
modo geral, uma boa representação social destas prossões, mesmo quando exercida por outros
presos, estas são duas prossões sociais de nível técnico capazes de impactar positivamente a
cultura prisional, inclusive na formação de lideranças positivas dentre a população prisional.
Estas possibilidades estão regulamentadas no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos
(MEC, 2004) e as Diretrizes Nacionais fazem menção à “preparação especial” (formação pe-
dagógica) que devem receber os presos para atuação no apoio aos prossionais da Educação,
servindo a mesma orientação em relação aos prossionais da saúde.
Silva, Oliveira e Moreira apresentaram no artigo intitulado Ciência, trabalho d Educação
no sistema prisional brasileiro (2016)
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Todos os prossionais designados para prestar as assistências e os serviços estipulados
pela Lei de Execução Penal, com exceção da assistência religiosa, são funcionários do Estado,
inclusive os professores e instrutores de ofícios na Educação Técnica e Prossional. Essa con-
junção de conhecimentos e de prossionais de diversas áreas de atuação em um mesmo campo
de trabalho possibilita congurar o que Thomas Kuhn, no livro A Estrutura das Revoluções
Cientícas, denomina comunidade cientíca, com a seguinte denição:
Uma comunidade cientíca é formada pelos praticantes de uma especialidade
cientíca. Estes foram submetidos a uma iniciação prossional e a uma educa-
ção similares, numa extensão sem paralelo na maioria das outras disciplinas.
Neste processo, absorveram a mesma literatura técnica e retiraram dela muitas
das mesmas lições. (KUHN, 1998, p. 220).
O tamanho e a complexidade do sistema penitenciário brasileiro apontam para alguns
desaos que não podem ser enfrentados apenas pela Execução Penal. Como reverter a tradição
punitivista da pena e da prisão para concebê-las em sua dimensão educacional e pedagógica?
Como descontruir a “pedagogia do crime” que impera no interior das prisões? Como fazer
para que todos os prossionais que trabalham na prisão assumam as tarefas de Educação e de
reabilitação do preso para o convício social? E, nalmente, como fzer pra que todas as ações e
atividades desenvolvidas na prisão durante o cumprimento da sentença se constituam em meios
de avaliação quanto à ecácia da terapia penal?
Conclusão
Como se depreende dos objetivos deste artigo, a Educação pode impactar e inuenciar
positivamente a Execução Penal, desde que cumpridas as determinações da Resolução CEB/CNE
nº 2 de que a Educação seja atribuição conjunta das secretarias de Educação e da Administração
Penitenciária e que estas criem as estruturas necessárias para viabilizar, de parte a parte, a infra-
estrutura, a reforma dos regimentos internos, a elaboração de um projeto político pedagógico e
a qualicação técnica e prossional de todos os atores envolvidos.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN), por meio da Resolução nº 9, de 18 de Novembro de 2011,
haviam aprovado uma ambiciosa proposta intitulada Programa arquitetônico: Módulo base –
Projeto Referência, com orçamento aprovado e projetos de arquitetura e de engenharia já em
estado adiantado, como proposta para dotar as unidades prisionais brasileiras de módulos de
Educação e de Trabalho, inclusive com construções novas, que
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Em 12 de Abril de 2018, possivelmente por pressões dos governadores de estados, o
mesmo CNPCP editou a Resolução 2 autorizando a a exibilização das Diretrizes Básicas
para Arquitetura Penal antes aprovadas, deixando a critério dos estados construírem ou não os
módulos de Educação e de Trabalho, o que signicou o esvaziamento da proposta original.
Na tese de doutoramento intitulada A ecácia sociopedagógica da pena e privação da
liberdade (SILVA, 2001) descrevi em minucias a pedagogia do crime, seus elementos consti-
tuintes e suas formas de reprodução dentro da prisão, destacando que,
Com a proposta de deslindar os elementos constitutivos de uma suposta peda-
gogia do crime, à Pedagogia e ao pedagogo importam entender a sistemática
de interação entre os internos, que faz com que o indivíduo construa, incorpo-
re e rearme continuamente uma identidade negativa, e os mecanismos subli-
minares que fazem da prática delituosa mais como um recurso de armação
da personalidade negativa do que como um recurso de prática da delinquência
propriamente dita (SILVA, 2001, p. 25).
Retomando os três eixos orientadores das Diretrizes Nacionais para a oferta da Educação
em Estabelecimentos Penais – 1. Gestão, Articulação e Mobilização; 2. Formação e valorização
dos prossionais envolvidos na oferta; 3. Aspectos pedagógicos - não restam dúvidas de que a
cultura prisional precisa ser enfrentada de forma sistêmica em todas as suas dimensões.
A ecácia da pena de privação da liberdade é analisada em função dos objeti-
vos propostos em lei, orientando-se por dois fatores que se revelaram prepon-
derantes após a tabulação dos dados: a) à vulnerabilidade pessoal e social de
quem é a ela submetido, sobretudo diante dos efeitos deletérios da pedagogia
do crime e; b) ao modelo de administração penitenciária, sustentada por um
tripé cujos elementos estruturais são: 1) a permissividade para ocorrência do
tráco de drogas; 2) a permissividade para a corrupção entre alguns poucos
funcionários, como forma de amenizar o rigor e os riscos do trabalho e os
baixos salários pagos e; 3) a compra e venda de privilégios na relação entre
presos e alguns funcionários, todos propiciando a existência, manutenção e re-
produção de uma cultura prisional que norteia a natureza das relações internas
entre presos e entre presos e funcionários. (SILVA, 2001, p. 05)
Pelas razões e argumentos expostos neste artigo e diante da revogação da Resolução
CNPCP nº 9, e a falta de infraestrutura escolar nas unidades prisionais brasileiras, chegamos à
conclusão que dentre os modelos adotados pelos estados brasileiros para a oferta da Educação em
prisões, a Escola Penitenciária é a que oferece melhores condições para ter um Projeto Político
Pedagógico próprio e especíco para a população prisional.
Por Escola Penitenciário estamos nos referindo a uma unidade escolar com identidade
jurídica própria, dotada de direção e de equipe pedagógica próprias, com o respectivo quadro
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docente que, usando as prerrogativas dos artigos 37, 39, 81 da LDB, possa construir coletivamente
o seu próprio projeto político pedagógico, considerando, como é característico deste instrumento,
todos os serviços e os recursos físicos, materiais, humanos e nanceiros existentes na prisão.
Diferentemente de outras políticas públicas em que se privilegia o atendimento do cidadão
por meio de órgãos e serviços públicos existentes na comunidade local, a oferta de Educação
para pessoas privadas da liberdade constitui uma das poucas exceções que justica a oferta deste
direito dentro da própria unidade prisional, por força da restrição do direito de ir e vir previsto
na sentença de condenação.
É esta conjuntura que levou o GEPÊPRIVAÇÃO a rearmar seu posicionamento expresso
no livro Didática no Cárcere II (SILVA, 2018, p. 17), que qualquer proposta educacional para
as prisões brasileiras deve levar em consideração estes fatores:
• deciências de infraestrutura (sala, carteiras, lousas, equipamentos etc.);
• falta de material didático especíco e restrições ao uso de materiais convencionais
de uso comum
• salas com pessoas de diferentes idades
• grande defasagem na relação idade/série
• classes multisseriadas
• excessiva rotatividade dos alunos
• rígidos sistemas disciplinares que impedem livre movimentação dos alunos
• rígidos sistemas de segurança que dicultam o acesso e movimentação de profes-
sores
• diculdade de acesso a recursos de TIC (Tecnologias da Informação e da Comuni-
cação)
• precariedade de estímulos sensoriais (visual, auditivo, tátil, gustativo e olfativo)
Os diferenciais deste PPP são as possibilidades de incorporação do conceito de comunida-
de cientíca tal qual enunciado por Thomas Khun (KHUN, 1998) para agregar todas as ciências
e seus respectivos prossionais em torno de objetivos comuns e de articular a educação escolar
com a educação não escolar e as demais atividades de trabalho, esporte, arte, cultura, saúde e as
assistências jurídica, psicológica, social e religiosa em um mesmo projeto, além de desenvolver
seu próprio material didático pedagógico e proporcionar formação de seus professores segundo
os pressupostos teóricos e metodológicos do seu PPP.
A opção por este modelo tem a ver também com o aproveitamento do potencial que
oferecem os artigos 37, 38 e 81 da LDB.
Art. 37 - § [...] oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as
características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho.
§ [...] o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações
integradas e complementares entre si.
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§ 3º [...] articular-se, preferencialmente, com a educação prossional.
Art. 38 - § 2º Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos por
meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames.
Art. 81 - Art. 81. É permitida a organização de cursos ou instituições de ensino
experimentais, desde que obedecidas as disposições desta Lei.
Por analogia, o Conselho da Comunidade e o Patronato, previstos no Artigo 61, VI e VII
da Lei de Execução Penal são instituições auxiliares do estabelecimento penitenciário e podem
cumprir as funções determinadas no Artigo 14, II da LDB para efeito de cumprimento do pre-
ceito da gestão democrática previsto no Artigo 15 da mesma Lei, inclusive para execução dos
programas suplementares a que se refere o Artigo 4º, VII da LDB e administração de seus pró-
prios recursos nanceiros, como Caixa Escolar, conforme dispõe o Artigo 12, II da mesma LDB.
Como se depreende das análises aqui realizadas, o atendimento às especicidades da
Educação no sistema prisional brasileiro não cabe na estrutura e na forma de organização e de
funcionamento de uma escola regular tal qual as que atendem a rede pública de ensino para
atendimento à comunidade livre.
Finalmente considera-se que professores e professores devam ter dedicação exclusiva
a esta modalidade de ensino, como uma especialidade na carreira do magistério, seleção por
meio de concurso público e direito às prerrogativas relativas ao trabalho perigoso e insalubre, de
acordo com o previsto no Artigo 7º, XXIII na Constituição Federal que determina que seja pago
“adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”.
Referências
BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei Federal nº 7.210, de 11.7.1984.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9394, de 20.12.1996.
Cne. Resolução CNE/CEB nº 2, de 20 de maio de 2010. Institui as Diretrizes nacionais para
a oferta de Educação para jovens e adultos em estabelecimentos penais.
Cnpcp. Resolução Nº 3, de 11 de março de 2009. Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária. Dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação nos estabe-
lecimentos penais.
CNPCP. Resolução Nº 9, de 18 de Novembro de 2011. Institui as Diretrizes Básicas para
Arquitetura Penal. D.O.U de 21 de Novembro de 2011, Nº 222, Seção 1, pág. 79).
CNPCP. Resolução Nº 2, de 12 de Abril de 2018. Dispõe sobre a exibilização das Diretrizes
Básicas para Arquitetura Penal. DOU de 7 de maio de 2018, Nº 86, Seção I, p. 79.
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. 5ª edição. São Paulo: Cortez, 2001a.
Os modelos de oferta da educação em prisões no Brasil e a construção do seu projeto político pedagógico
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KHUN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Cientícas. 5ª. ed. São Paulo: Perspectiva,
1998.
MEC. Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Brasília/DF: MEC/SECAD, 2004.
ONU. Resolução nº. 45/110, de 14 de Dezembro de 1990. Institui as Regras Mínimas para
a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade.
SILVA, Roberto da. A ecácia sociopedagógica da pena de privação da liberdade. Tese de
Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo). São
Paulo: FEUSP, 2001.
SILVA, Roberto da; MOREIRA, Fábio Aparecido. Objetivos educacionais e objetivos da
reabilitação penal: o diálogo possível. IN: Dossiê Questões Penitenciárias. Revista Sociolo-
gia Jurídica. n. 03. Julho/Dezembro de 2006.
SILVA, Roberto da; OLIVEIRA, Carolina Ferreira Bessa de; MOREIRA, Fábio Aparecido.
Ciência, trabalho e Educação no sistema penitenciário brasileiro. Cad. Cedes, Campinas,
v. 36, n. 98, p. 9-24, jan.-abr., 2016.
SILVA, Roberto da. Didática no Cárcere II. São Paulo: Giostri, 2018.
Recebido em: 11 de janeiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Violeta Acuña – Colladon, Roberto Catelli Jr e Francisco Scarfó
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 68-90, jan./abr. 2021
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11707
LA COMPLEJIDAD DE LA EDUCACIÓN DE
ADULTOS EN LAS CÁRCELES DE CHILE,
BRASIL Y ARGENTINA
Violeta Acuña – Collado
1
Universidad de Playa Ancha Ciencias de la Educación (Chile)
http://orcid.org/0000-0001-7544-8828
Roberto Catelli Jr.
2
ONG Ação Educativa (Chile)
http://orcid.org/0000-0002-5329-962X
Francisco Scarfó
3
Universidad Nacional de La Plata (Argentina)
http://orcid.org/0000-0002-7734-2653
RESUMEN:
Las cárceles en el mundo son visualizadas como espacios donde el castigo y la pena por el delito co-
metido es el propósito de estos recintos, los presos son apartados del medio libre, siendo estos lugares
ubicados en las marginalidades de las ciudades en la mayoría de los casos. Por otra parte, también y
contrapuesto de este propósito, corresponde a los estados velar por la justicia, por el bienestar todas las
personas y deben entonces preocuparse por la mantención de estos recintos en cuanto a acondiciones
dignas y por ende a cautelar los derechos de los privados de libertad, derechos como, la salud, derecho
a la educación, a la actividad física, artística entre otras. En este medio hostil, la educación formal a
través de la institución escolar cumple un rol clave se hace cargo del derecho a la educación para todos
y todas las personas, pero la interrogante es ¿cómo se desarrolla esta al interior de las cárceles en países
de Latinoamérica? Este estudio intenta comparar la realidad de la educación y sus docentes quienes se
desempeñan en la educación formal en las cárceles de tres países de América Latina: Brasil, Chile y
Argentina; explora las similitudes y diferencias entre sus prácticas y su contexto. Se utilizó metodología
cualitativa través de entrevistas a los/as docentes de los tres países, de los cuales surgieron temas como
función y rol de la escuela en un recinto penitenciario, aprendizaje, evaluación, logro de objetivos, de-
sarrollo del currículum, relación de los/as docentes con los/as responsables de la seguridad en las cárce-
les. Las conclusiones se concentran en el derecho a la educación de los/as presos/as, el rol contenedor de
la escuela, las tensiones entre la educación y la institución responsable de la seguridad, la complejidad
del curriculum.
Palabras Claves: Educación de Adultos. Cárcel-Escuela. Curriculum.
1 Doctorado (Università Cattolica del Sacro Cuore Milano). Universidad de Playa Ancha Ciencias de la
Educación (Chile). E-mail: v-acuna@upla.cl
2 Doutor em Educação (USP). Ação Educativa (Chile). Professor da área de Ciências Humanas da
Faculdade SESI de Educação com foco na formação de professores. Atua nas áreas de políticas públicas de
educação, avaliação, educação de jovens e adultos e ensino de História. roberto.catelli@acaoeducativa.org.br
3 Magister en Derechos Humanos y Licenciado y Prof. en Cs. De la Educación. Universidad Nacional
de La Plata (Argentina). Vicepresidente del GESEC (Grupo de Estudios Sobre Educación en Cárceles, La Plata,
Argentina). E-mail: franciscoscarfo@hotmail.com
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RESUMO:
A COMPLEXIDADE DA EDUCAÇÃO ADULTO NAS PRISÕES DO
CHILE, BRASIL E ARGENTINA
Os espaços prisionais são vistos em muitos lugares do mundo como lugares nos quais o castigo é o pro-
pósito para reparar crimes cometidos. Os presos são apartados do meio livre e, geralmente, são espaços
localizados em pontos distantes dos centros das cidades em muitos casos. Por outro lado, cabem aos
estados velar pela justiça e bem-estar das pessoas. Devem então preocupar-se com a manutenção destes
recintos oferecendo condições dignas para os privados de liberdade. Devem garantir direitos como:
saúde, educação, atividade física e artística dentre outras. Neste meio hostil, a educação formal cumpre
um papel chave para garantir o direito à educação para todas as pessoas. Entretanto, se coloca a questão:
Como esta se desenvolve no interior dos cárceres nos países latino-americanos? Este estudo compara a
realidade da educação e dos docentes que atuam no espaço carcerário em três países da América Lati-
na: Brasil, Chile e Argentina. Explora as similitudes e diferenças entre suas práticas levando em conta
as realidades especícas. Utilizou-se a metodologia qualitativa por meio de entrevistas aos docentes
dos três países, das quais surgiram temas como: função e papel da escola em um recinto penitenciário,
aprendizagem, avaliação, desenvolvimento curricular e relação dos docentes com os responsáveis pela
segurança nas prisões. As conclusões se concentram no tema do direito à educação dos encarcerados,
em especial, os limites da escola e a tensões relacionadas às instituições responsáveis pela segurança nos
espaços prisionais, a complexidade do currículo.
Palavras-chaves: Educação de Adultos. Educação em Prisões. Currículum.
ABSTRACT:
THE COMPLEXITY OF EDUCATION THE ADULT IN THE PRISIONS OF
CHILE, BRAZIL AND ARGENTINA
Prison facilities are widely understood to deliver punishment as reparation for crime. Inmates are sepa-
rated from the environment and isolated from city centres. On the other hand, justice and welfare are
responsibilities of the state, which ought to be concerned with the maintenance of prisons, offering
dignied conditions for those deprived of their freedom, guaranteeing rights such as: health, educa-
tion, physical and artistic activity. Within this hostile environment, formal education plays a key role in
guaranteeing the right to education for all people. Meanwhile, the question arises: how are these issues
being approached in Latin American prisons? This study compares the reality of two teachers who work
in prison spaces in three countries – Brazil, Chile and Argentina – exploring the similarities and dif-
ferences between their practices, while taking into account their specic circumstances. Throughout a
series of qualitative interviews, several themes arose: the role of education in prison facilities, learning
strategies, evaluation, curriculum development and the relationship between teachers and prison staff.
The conclusions are centered on the prison population’s right to education, specially, regarding the limits
of the school model and the tensions related to the institutions that provide security in prison spaces, the
complexity of the curriculum.
Keywords: Adults Education. Prison Education. Curriculum.
Introducción
La educación en recintos penitenciarios es casi desconocida por la mayor parte de las
poblaciones de los países estudiados. Las políticas educativas no tienen como prioridad la edu-
cación de jóvenes y adultos y, por supuesto, tampoco la educación en contextos de privación
de libertad. Esta realidad y la experiencia de los investigadores en estos contextos educativos
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motivó este estudio que considera tres países de Latinoamérica, países de los autores; Argentina,
Brasil y Chile, con una variable particular estos son repúblicas presidencialistas que desarrollaran
gobiernos con elecciones populares en todos los niveles después de más de tres décadas de la
presencia de dictaduras militares.
Después de vivir en democracia, hoy se advierte mayor conciencia de los derechos sociales
de la ciudadanía en forma más abierta e informada, lamentablemente las condiciones económicas
para todos y todas los ciudadanos/as acentúan las brechas sociales, hay mayores desigualdades
en todo orden; salud, educación, vivienda, trabajo, países que presentan fuerte contraste social y
pocas oportunidades de empleo. Uno de los casos recientes que puede constatar este fenómeno,
es la resistencia popular de la revuelta social en Chile en octubre del 2019.
Uno de los últimos sucesos que los gobiernos del mundo han enfrentado es la situación
sanitaria que ha resentido la población por el COVID 19, las medidas implementadas fueron
distintas, esta situación en los aspectos educativos acentuaron las condiciones de desigualdad
por las exigencias y el aceleramiento del uso de las tecnologías, no solo por su dominio sino
también por el acceso, cabe señalar que el estudio que se presenta fue realizado antes de la
pandemia, por tanto presenta lo que sucedía en estos últimos años, situaciones no resueltas y
que continuaran con pandemia o sin ella.
Una de las interrogantes qué se pretendió responder fue en que medida y cómo se sos-
tiene el derecho a la educación de los/as encarcelados/as que en general son personas con baja
escolaridad. ¿En qué condiciones se realiza este derecho y que oportunidades son ofrecidas a esta
población privada de libertad? ¿en qué condiciones y cuales son las similitudes y diferencias con
a la educación ofrecida fuera de los muros de la cárcel?. Para responder estas y otras preguntas
que fueron surgiendo, de forma más especíca del fenómeno educativo, se realizó un estudio
ambicioso que pretendió comparar, las situaciones educativas en las Escuelas de los recintos
penitenciarios en Chile, Argentina y Brasil. Para comprender la realidad de la educación en las
cárceles de los tres países, se organizó primero una mirada general sobre los estudios, leyes y
procesos de organización de sus currículos, luego a través de entrevistas a docentes respecto a
los aspectos más especícos relacionados con los contextos educativos se formularon preguntas
de investigación como: ¿Cuál es el rol de la Educación en las escuelas Cárcel? ¿Es pertinente
el currículo hoy en las escuelas cárcel? ¿Existen diferencias en los tres países en el tipo de
educación impartida? ¿Cómo se da la relación entre el Ministerio de Educación y el Ministerio
de Justicia para la organización de un sistema educativo en las cárceles? Para responder a estas
preguntas de la investigación hicimos entrevistas a profesores/as de los tres países. El aporte de
este estudio es continuar y defender al idea de seguir desarrollando acciones educativas en las
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cáceles, se conoce que educar en un ambiente de prisiones no es fácil y que los proyectos de
los gobiernos deben contribuir al desarrollo humano y social (JULIÃO, 2018), cómo también
ayudar a desentrañar el complejo mundo educativo en la cárcel.
Algunos datos de contexto de las cárceles en Brasil, Chile y
Argentina
Debemos considerar que Argentina y Brasil son países federales y poseen tanto sistemas
penitenciarios federales como provinciales, y de igual modo mantienen un sistema educativo
provincial y municipal que conviven y tensionan las diferentes regiones, departamentos y/o
provincias. En Brasil, por ejemplo, existen algunas pocas penitenciarias federales que son
consideradas de máxima seguridad. La mayor parte de las penitenciarías son de administradas
por los estados teniendo cambios de un estado para otro, ya en Chile, las penitenciarías están
directamente vinculadas al gobierno central, manteniéndose un control más centralizado de los
espacios carcelarios.
La ley de educación en Brasil, que se denomina de Plano Nacional de Educação (PNE), no
establece ninguna normativa especíca para la educación en cárceles. No hay metas u objetivos
a ser cumplidos. Hay solamente en Brasil una normativa del Consejo Nacional de Educación
(CNE) que, en 2010, creó reglas especícas haciendo la vinculación de la educación en cárceles
con las reglas denidas para la educación de adultos en cada uno de los estados de la federación.
Así, todo que es derecho y regla para la educación de adultos en los estados debe ser también
para la educación en cárceles.
En Chile, la ley general de Educación clasica los niveles educativos y dos modalidades:
la de Educación Diferencial y la de Educación de Adultos. Extrañamente la educación en cárcel
sólo aparece mencionada en el artículo de la modalidad de Educación Especial donde apropósito
de las adaptaciones curriculares vienen mencionadas las cárceles, sin que esta educación este
mencionada en la Educación de Adultos que es la que se imparte en las cárceles chilenas. En
cambio, se destaca en Argentina la Ley general de Educación que tiene como capítulos separados
la Educación de Adultos y la educación en contextos de privación de libertad, lo que da cuenta
de una real inserción del tema en la política nacional del país.
En el caso de Brasil, Argentina y Chile, cuando observamos un período más
amplio, desde 1950, vericamos que se trata de países que han ampliado fuertemente la tasa de
encarcelamiento. En el caso de Brasil aumentó en un 136%, en Argentina el 107% y en Chile
el 105%. Brasil es el segundo país que más aumentó la tasa de encarcelamiento en el mundo,
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Argentina ocupó el quinto lugar y Chile el sexto lugar en aumentar esa tasa, en una muestra de
40 países. (DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
E SEGURANÇA PÚBLICA, 2017)
En lo que se reere a los rangos etarios, se observa en Chile que (FLICK, 2007) en 2013,
el 24% de los encarcelados tenían entre 18 y 24 años y un 40% de 25 a 34 años. De esta forma,
como ocurre en Brasil, la mayoría de los presos se encuentran entre los más jóvenes, en el caso
argentino, el 61% de los encarcelados tienen entre 18 y 34 años.
En Argentina, el 2016 el 96% eran hombres, en ese mismo año en Brasil las cifras al-
canzaban un 6.9% del sexo femenino (PRISON STUDIES, 2019a), la tendencia comprobada es
que la mayor población es masculina a la fecha.
Sobre la escolaridad de los presos, en Argentina, el 5% de los presos tenían como máximo
completado la escuela primaria, que se reere a los primeros seis años de estudio. Otro 30% tenía
el primario incompleto en 2013 y sólo el 7% había completado la escuela secundaria. Sólo el 2%
de los presos tenía un nivel universitario. Las cifras en general son preocupantes, teniendo en
cuenta la situación procesal, la edad y la inclusión en actividades educativas, laborales recreati-
vas y deportivas, en virtud del creciente aumento de la población detenida. Scarfo (2011, p. 63).
Una diferencia importante en el sistema penitenciario argentino y chileno en relación
con el brasileño es la no existencia de una excesiva sobrepoblación carcelaria conforme a los
datos ociales. Mientras que la tasa de ocupación en Brasil en 2016 era del 167.8% (PRISON
STUDIES, 2019a), en Chile era del 100.4% (PRISON STUDIES, 2019b). En el caso argentino
hay que destacar que la sobrepoblación carcelaria comenzó a crecer a partir de 2014, cuando el
número de vacantes comenzó a ser menor que el número de presos y viene creciendo esta so-
brepoblación desde entonces. Vale recordar que el caso de Argentina la tasa de encarcelamiento
pasó de 91 personas detenidas cada 100 mil habitantes en 1997 a 161,8 en 2014. (CENTRO DE
ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES, 2016, cap. 7)
Como se indicó anteriormente, también en el caso de Chile hay un fuerte crecimiento del
encarcelamiento en las últimas décadas. En el año 2000 la población penal en sistemas cerrados
era de 33.050 reclusos, población que fue en aumento llegando a su peak en el año 2010 donde
alcanzo a 54.628 presidiarios, esto fue disminuyendo desde el 2012 hasta el año 2018 llegando
a la cantidad de 41.689 presos (PRISON STUDIES, 2019b).
El perl de los encarcelados es similar al que ocurre en Brasil y Argentina. Del total de
atendidos en abril de 2017, el 89% eran hombres y el 11% mujeres. En relación a los rangos de
edad, en el caso de los varones 44,1% tiene entre 19 y 29 años, un 30,9% tiene entre 30 y 39
años, y un 25% tiene sobre 40 años. También sucede en Chile, como en Brasil que el motivo de
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ingreso en el sistema penitenciario es el delito de robo, mientras que para las mujeres son crí-
menes relacionados con el tráco de drogas. Mientras que el 62,5% de los crímenes cometidos
por los hombres son robo, el 52,9% de las mujeres son presas por crímenes relacionados con el
tráco de drogas, lo que ocurría con el 15,6% de los hombres en 2015 (MINISTERIO DE LA
JUSTICIA; GENDARMERÍA DE CHILE, 2016).
Educación de Adultos, el currículum y el aprendizaje.
La educación al interior de la cárcel está normada por los ministerios de educa-
ción, quienes deben velar por la aplicación de las leyes generales de educación, sin embargo,
al interior de las cárceles, emergen y se relevan las problemáticas presentes en el medio libre
en la educación de adultos en general, una de ellas es la pertinencia del currículo, la didáctica,
los estilos docentes, la evaluación, para resumir los componentes necesarios para desarrollar
el proceso de enseñanza-aprendizaje orientado a la promoción de los estudiantes a un curso
superior o bien al egreso y certicación de la educación media, y/o en casos muy particulares
la Educación Universitaria.
Un elemento relevante que atraviesa la enseñanza formal es el currículum,visualizado
a través de los planes y programas que se constituye en la ruta que siguen los maestros para
impartir las clases, pero se puede constatar que este camino no es fácil. El currículum entonces,
es uno de los elementos claves del proceso educativo, que si es analizado con profundidad, y
se asume su complejidad, se debe apartar una mirada simplista, donde solo se concentra la
observación en algunos componentes de él. Es difícil desentrañar todo lo que puede emerger,
intentando asumir esta complejidad, frente a un tejido de eventos, acciones , interacciones ,
azares, la complejidad que se presenta con rasgos inquietantes de lo enredado, del desorden,
de la incertidumbre.(MORIN, 2011). El currículo puede ser analizado desde la complejidad,
aunque sea difícil, pero se debe asumir que está vivo, es cambiante, no solo se estudia desde
la teoría, sino también en la práctica, se presenta como un campo de estudio donde es delicado
poner en orden fenómenos, con claras clasicaciones y distinciones. Desde un análisis lineal y
tradicional el currículo se presenta casi estático e inamovible, pero el currículum es mucho
más, considera ciencias como la losofía, psicología, antropología, es una entramada red que
se organiza para que los estudiantes transiten por niveles educativos aprendan y se adapten a
la sociedad.(ACUÑA, 2019).
La complejidad del currículum, genera dicultades para comprender a cabalidad como se
maniesta, se puede intentar categorizar y ordenar para poder entender, pero el aspecto educativo
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del currículum profundo es la comprensión de las relaciones entre el conocimiento académico,
el estado actual de la sociedad y el proceso de autoformación.(PINAR, 2014).
Por otra parte es importante señalar que una vez que se estudia el curriculum emergen
y salen a la supercie problemas adicionales por tanto este concepto es elusivo y multifacético.
(GOODSON, 2003). Por otra parte, no solo al curriculum es relevado en el hecho educativo, si
no el aprendizaje como componente importante relacionado directamente con la persona y los
cambios que se producen ella, acompañado de los procesos evaluativos que lo condicionan,
aunque la evaluación sea efectuada en un período posterior a la enseñanza pero intimamente
interconectados, esta relación da paso a otro fenómento, se puede decir entonces que en la
medida que se conoce la forma de evaluar, se condiciona a la forma de aprender. La evaluación
permite incluso evaluar los objetivos del enseñante y dilucidar que independiente del curriculum
hubo elementos que se les dio más importancia que otros a pesar de que existía esa ruta, de aquí
emergen también análisis al curriclum oculto.(BALLESTER, 2004)
Es importante también en el análisis conocer que efectos provoca la evaluación en
las personas, se ha escrito mucho sobre enfoques, se ha querido instalar formas más auténticas
referidas a la evaluación, sin embargo la sociedad neoliberal en la que estamos, introduce peli-
grosos elementos en la práctica educativa, obsesión por la ecacia, competencias, recompensas.
(SANTOS GUERRA, 2007).
Metodología
La metodología usada fue cualitativa, es un estudio que compara tres realidades distintas,
sin embargo no puede enmarcarse estrictamente en un estudio comparado, por la condiciones de
la investigación y las dicultades propias de este tema en particular, la cárcel. Se estudiaron en
un primer momento, la realidad política de los países para establecer alguna referencias simila-
res de comparación que permitiera iniciar el estudio, luego la situación de las cárceles, datos de
población, ubicación geográca, se estudiaron marcos normativos, condiciones y características
de los presos en los tres países, de las cuales se van presentando similitudes y diferencias.
Se diseñó una entrevista abierta que se construyó fundada en el conocimiento obtenido
de las visitas a diferentes cárceles por parte de los investigadores y conversaciones directas con
los profesores/as que trabajan en estos centros penitenciarios, los investigadores conocen las
realidades de los distintos países, lo que signicó un ventaja en cuanto a consensuar la construc-
ción de las preguntas, las cuales fueron validadas por expertos especialistas en metodología y
también en la temática de cárcel. Algunos investigadores consideran que el concepto de validez
está cargado con suposiciones positivistas y que no se reejan dedignamente en el ocio del
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entrevistador (KVALE, 2011), pero se hizo este tipo de procedimiento para tener una conabi-
lidad en el proceso y que hubiera una rigurosidad metodológica en el estudio.
Las preguntas se hicieron respecto a distintos tópicos, sobre las condiciones en que se
enseña, y qué tipos de oportunidades ofrecen a la población privada de libertad. Teniendo una
vista general sobre los estudios, leyes y procesos de organización de los currículos, se hicieron
preguntas respecto a los aspectos más especícos sobre los contextos educativos, como el rol de
la educación en la carcel, si hay una concordancia con el currículo actual en la escuelas cárcel, las
diferencias entre los distintos países en la educación en cárceles, la relación entre el ministerio
de justicia y de educación, etc.
Los participantes en la investigación fueron 11 docentes entrevistados, 4 profesores
chilenos, 4 brasileños y 3 profesores argentinos, estos fueron entrevistados por los investigadores
quienes tienen acceso a las cárceles de los países estudiados. Una dicultad que se enfrenta, sin
embargo, cuando se realizan estudios de este tipo es el acceso a los/as educadores/as y presos/
as, que no siempre es posible y más difícil aún producir grabaciones o registros fotográcos.
Algunas conversaciones presenciales fueron de fundamental importancia para el trabajo, pero no
pudieron ser utilizadas como relatos, no se registraron, por las mismas razones indicados ante-
riormente. Las entrevistas se enfocan más en los entrevistados y su contexto que en un método
inexible que sigue una pauta a pie de la letra (KVALE, 2011). Las respuestas obtenidas en las
entrevistas fueron grabadas y transcritas, se transformaron en información que se codicaron
lograndose establecer diferentes dimensiones y categorías que emergieron del análisis de la
entrevistas con apoyo también de la revisión bibliográca.
Resultados
A continuación, analizamos el contenido de las entrevistas realizadas, se ordenaron
posterior al análisis de la información producto de las respuestas, estás dieron origen a otros
elementos y conceptos que no estaban planteados originalmente y que emergieron desde las
distintas temáticas propuestas en las preguntas; referidas a la apreciación de los estudiantes, a
la función y rol de la escuela al interior de la cárcel, currículum, aprendizaje y evaluación entre
otros. Se presentan en el cuadro a continuación, dimesiones y categorías, conviene subrayar
que a pesar de las diferencias, se pueden levantar un análisis común de los tres países, presen-
tando las respuestas de los entrevistados, en un relato común, distinguindo, contrastándo y/o
complementando sus respuestas de acuerdo al país que representan.. Cabe señalar que también
los investigadores se involucran y jan posiciones epistemológicas que se pueden deducir de la
intencionalidad del estudio.
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A modo de resultados se presenta una tabla resumen que guiará la presentación de elabo-
ración propia de acuerdo a las categorías y dimensiones, con la nalidad de ordenar los hallazgos.
Tabla 1: Codicación
DIMENSIÓN
Categoría
Código
Función y rol de la
escuela
Derecho a la educación
Rol de la Escuela
Posibilidad de educación
Defensas de derechos
Rol liberador de la Escuela
Educación y
Seguridad
Proceso educativo
Articulación Educación y
Seguridad
Trato de gendarmería
Contacto con otros
profesionales
Estudiantes y
proceso de
aprendizaje.
Dificultades de aprendizaje
Características de los
estudiantes
Motivaciones de los
estudiantes
Procesos de evaluación
Falta de hábitos de estudios
Falta de oportunidades
Motivación por beneficios
Compromiso personal
Cumplimiento de objetivos
Currículum y
contexto
Dificultad de definir
Currículum
Modificaciones del
Currículum al contexto de
encierro
Programas flexibles
Currículum adaptado a las
necesidades de los
alumnos.
Fuente: Elaboración propia
Función y rol de la escuela al interior de un recinto penitenciario
Los/as docentes en general asignan un rol importante a la Escuela en tanto esta se rela-
ciona con la Educación, se aborda desde una perspectiva política, se le asigna una función social,
se destaca el derecho a la educación de los/as presos/as y se rescata el efecto socializador entre
los/as presos/as, su desarrollo individual y se acentúa el espacio liberador.
La principal función de la Escuela en contextos de encierro es brindar la po-
sibilidad de educarse, ya que es un derecho que no se debe ver afectado por
la privación de libertad. Una labor práctica, a través de la educación, se dan
herramientas necesarias que se pueden ver traducidas en una oportunidad de
rehabilitación. (CHILE, entrevista 4).
La escuela es una institución que efectúa el derecho de las personas en situación de pri-
vación de libertad a la educación. La precariedad que el Estado ofrece para que el derecho se
efectúe desde una perspectiva de integración social, pero que ese sujeto tenga autonomía y sea
emancipado a través del conocimiento que va más allá de la escolarización aún en el espacio de
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prisión. Todas estas cuestiones van más allá de la legislación, de la escolarización. La Educación
para estos sujetos debe ser un proyecto de vida, que muchos no tuvieron oportunidad de construir,
o una construcción diferenciada. (BRASIL, entrevista 8).
Los/as profesores/as chilenos/as extienden su deseo a que la prisión sea una gran escuela.
La cárcel idealmente debería ser una gran escuela, en el que el Estado recupe-
re una población de muy difícil conciliación con el núcleo social, la escuela
debería ser la intervención más importante de las que funcionan en la cárcel y
sin que sustituyan su rol punitivo… (CHILE, Entrevista 2).
La importancia que los/as docentes consignan a la escuela y su rol desde una perspectiva
más transformadora se ve reejada en las opiniones de los docentes que atribuyen a la escuela
la posibilidad superar la desigualdad social, la escuela entendida no solo como una entidad que
debe promover los aprendizajes consignado en un currículum escolar, sino que es un instrumento
de mitigar la desigualdad, es decir se rescata el rol de la escuela no como reproductora de desi-
gualdad, por el contrario se le asigna una importancia vital en la superación de esta. Es en estas
realidades que la escuela puede avanzar a futuros cambios, mediante el análisis de la realidad
social y la reexión. (AUBERT; GARCIA; RACIONERO, 2009)
Los/as profesores/as brasileños/as se reeren al rol liberador de la Escuela
La escuela es un espacio penitenciario, es liberadora en la construcción de
aprendizajes y en el cambio de comportamiento y conciencia de los derechos
y deberes, así como en la concientización de la ciudadanía del alumno.
En la visión de seguridad en la rutina y en la rutina de una unidad prisional a
la escuela, traduce dos vertientes que divergen, una es proporcionar tranqui-
lidad en el ambiente carcelario y otra es la dicultad del sistema en aceptar la
posibilidad que los reeducandos tengan el derecho de evolucionar, aprender y
crecer como ser humano. (BRASIL, Entrevista 4).
La idea de espacio liberador en la construcción de aprendizajes puede conectarse con
el pensamiento de Freire, de la praxis de la libertad, cuya reexión va en el sentido de libertad
de construcción de lo que se aprende. Mas, también, con la idea de escuela congurada para
desarrollo del proceso de socialización, teniendo así una función principalmente conservadora,
que garantiza un modelo de reproducción social y cultural (Gómez, 2009). Hay también en el
pensamiento del/a profesor/a brasileño/a una defensa de los derechos del ciudadano, que tiene
derecho a la educación y al aprendizaje, pudiendo desarrollarse como ser humano.
Los/as profesores/as argentinos/as destacan el rol contenedor de la Escuela.
Creo que le rol de la escuela en el recinto penitenciario es muy valioso ya que
resulta de mucha contención en el día a día por el estar ocupados en algo como
por ser el único contacto con el afuera. También porque brinda herramientas
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para el crecimiento y desarrollo individual y al mismo tiempo para aanzar
los vínculos colectivos más solidarios y empáticos entre todos los actores de
la comunidad educativa. (ARGENTINA, Entrevista 10).
Las diferentes miradas respecto al rol de la Escuela se mueven desde constituir la cár-
cel en una gran escuela, entendiendo una especie de reeducación, hasta ver a la escuela como
un espacio liberador. Por otra parte, asignar a la escuela un rol contenedor para que se puedan
desarrollar en un espacio carcelario, esto asigna a la Escuela una importancia sustantiva en la
posibilidad de abrir puertas dentro del encierro.
Relación de los/as docentes con los/as responsables de la seguri-
dad y otros/as profesionales en el recinto penitenciario
Una de las tensiones centrales existentes en el campo de la educación en las cárceles es
la relación entre la institución responsable de la seguridad en los presidios y las demandas de
los que realizan el trabajo educativo. Difícilmente la educación es vista por la seguridad como
algo que pueda contribuir positivamente a la reducción de conictos en el ambiente penitencia-
rio. También, no es vista como un derecho del ciudadano, siendo concebida mucho más como
un premio a ser concedido por la seguridad conforme a los criterios de disciplina establecidos.
De esta forma, tanto en Brasil, como en Chile y en Argentina, se observa una supremacía de la
seguridad sobre el derecho a la educación, lo que, en general, crea muchas dicultades para el
avance del trabajo educativo.
Cantero (2010, p. 55) arma que
(…) las instituciones penitenciarias no llegan a concebirse como posibles
espacios reeducativos porque, en realidad, cualquier propuesta de actividad
tiende a considerarse en un orden de importancia secundario frente a la misma
reclusión.
Los/as docentes chilenos/as indican que existe una limitada relación entre el proceso
educativo y la Gendarmería, ya que se limita al traslado de los/as estudiantes a la escuela y a
la toma unilateral de medidas de seguridad, a las que los/as educadores/as no tienen ninguna
interferencia.
Es prácticamente una prestación de servicio donde Gendarmería dota de segu-
ridad, pero no coordina ninguna acción pedagógica excepto algunos eventos
tales como rendición de la Prueba de admisión a la Universidades PSU, gra-
duaciones de n de año y los tribunales de conducta. (CHILE, Entrevista 2)
En general la relación con gendarmería es poca y de mala calidad. El trato
cotidiano se da en el traslado de los alumnos hacia la escuela, proceso que fun-
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ciona mal ya que depende más de la voluntad y estado de ánimo de los funcio-
narios que de algún plan estratégicamente organizado. (CHILE, Entrevista 4)
En Brasil, uno de los/as educadores/as enfatiza también las dicultades de realizar el
trabajo pedagógico teniendo en vista los presupuestos y orientaciones de la seguridad.
Nuestra gran dicultad, articular la educación y la seguridad. Siempre está
justicando que la educación es un derecho de aquellos sujetos. Es necesario
que el director tenga esa visión, así como los agentes penitenciarios. Resol-
vemos parcialmente esta situación con acciones que integran agentes peniten-
ciarios y otros profesionales del sistema y del área de educación. (BRASIL,
Entrevista 8)
Considera que hay una gran dicultad en articular la educación a la seguridad, ya que
no siempre los agentes penitenciarios logran ver la educación como un derecho. Un docente
argentino hace referencia a la necesidad de una negociación permanente para la seguridad en-
tender que la escuela es otra institución con sus reglas, objetivos e ideas propias, teniendo en
ese sentido, independencia de las reglas de la seguridad. Además de la relación establecida con
la gendarmería, se le preguntó también a los/as docentes acerca de su relación con los/as otros/
as profesionales que actúan en el recinto penitenciario. Se indagó sobre la importancia de estos/
as profesionales para su desempeño en el campo educativo.
En el caso chileno, uno de los/as docentes arma tener contacto con psicólogos, asistentes
sociales y enfermeros, que entregan datos tanto de salud, conductuales e información educa-
cional, de los que fueron parte de otra escuela o si vienen de otro penal. Ya los demás docentes
arman tener pocos contactos con otros profesionales, siendo el contacto más recurrente con
el funcionario de traslado de los/as estudiantes desde los módulos hasta la escuela. Indican que
eventualmente mantienen contacto con asistentes sociales o psicólogos que hacen consultas so-
bre determinados aspectos del trabajo pedagógico de los/as alumnos/as. Uno de los/as docentes
menciona aún que debería mantener mayor relación con profesionales responsables por el área
laboral y psicosocial, pero informa que esta relación organizacional es nula.
En Brasil, los/as docentes mencionan mantener contacto con profesionales de apoyo
pedagógico y profesionales responsables por el traslado de los/as educandos /as del pabellón a
la sala de clases. Uno de los/as docentes brasileños indicó también que además de los agentes
penitenciarios mantiene contacto con los coordinadores de actividades laborales, siendo éstos
quienes “nos acompañan, dialogan e intervienen cuando es necesario, para el mantenimiento y
control de la convivencia en el recinto prisional” (BRASIL, Entrevista 7).
Los/as docentes argentinos/as mencionan a los mismos actores con los que conviven y
dialogan en el espacio carcelario los/as docentes chilenos/as: sector de apoyo y coordinación
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pedagógica, jefes de seguridad, los responsables del traslado de los/as educandos/as, asistentes
sociales, psicólogos y los/as responsables de actividades laborales. Sin embargo, cada uno de
ellos menciona uno u otro, no parece haber la presencia de todos estos actores en su contexto
de actuación más cotidiana. La mención más común fue a los equipos de coordinación y apoyo
pedagógico.
Aprendizaje y evaluación
Las respuestas de los/as profesores/as de los tres países referidos al aprendizaje, se rela-
cionan con aspectos cognitivos, diferencias individuales, motivaciones y contextos del/a alumno/a
en la cárcel, la mayoría habla del currículum y contenidos.
La gran mayoría de los/as entrevistados/as destaca que los/as estudiantes en el ambiente
carcelario poseen muchas dicultades de aprendizaje, indican problemas en lo que se reere a
la lectura y la escritura y, también, a la poca capacidad de lidiar con temas abstractos. Se indica
también que, en muchos casos, son personas bastante distantes del universo escolar o que tienen
bajo interés por estos temas, preriendo algo más práctico como la formación profesional, infor-
mática o temas relacionados a la ciudadanía. Los/as docentes argentinos/as entrevistados/as son
más enfáticos en armar que se trata de estudiantes curiosos/as y dispuestos/as a aprender cuando
se logra que se interesen por el proceso de aprendizaje.
Para una docente chilena:
A groso modo, podemos ver que el aprendizaje de los contenidos es secundario
para los alumnos y que no presentan gran interés por ellos. Si bien esta situ-
ación se debe a distintos factores, especícamente en cuanto a los contenidos
podemos decir que son extensos y ajenos a la realidad del alumnado, lo que
hace complejo su aprendizaje. (CHILE, Entrevista 1)
Para una docente brasileña:
Estos son estudiantes que no han tenido la oportunidad de asistir a la escuela a
una edad favorable y tienen dicultades para comprender la lectura del mundo.
El acceso al estudio académico es fundamental para elevar la educación y for-
talecer la ciudadanía. (BRASIL, Entrevista 6)
Por último, para uno de los docentes argentinos:
En cuanto al aprendizaje creo que los estudiantes de la cárcel poseen algunas
dicultades relacionadas a la falta de un hábito de estudio sostenido como así
también es defectuosa la lectura y la escritura lo cual diculta el resto de los
aprendizajes. No obstante, son entusiastas, esmerados y ponen el esfuerzo para
superarse a diario pese a tales dicultades (ARGENTINA, Entrevista 10).
En general en Chile, la gran motivación de los detenidos son los benecios que aporta
a su conducta asistir a la escuela. Hay estudiantes que tienen una historia de fracaso escolar y
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baja autoestima, pero esta sube, cuando van adquiriendo logros y demuestran su esfuerzo a su
familia superando las dicultades, de alguna forma se vuelve a repetir el fenómeno que ocurre
en la escuela, la cultura del éxito, importa más la aprobación (SANTOS GUERRA, 2007). La
cultura del resultado del reconocimiento, por tanto, esta es una arista que tanto en la cárcel o en
la escuela se dan de la misma forma, es decir la cultura que busca la aprobación de otros de la
sociedad del estímulo por alcanzar logros. En Brasil y Argentina, los/as profesores/as se cen-
tran en el esfuerzo que ellos hacen por aproximar los temas a la realidad de los/as alumnos/as,
motivándolos para que su aprendizaje sea signicativo. Los/as docentes muestran su interés en
renovar la pedagogía, los/as profesores/as argentinos destacan que si bien es cierto al inicio los/
as estudiantes lo hacen para obtener “benecios” y acceder a “derechos penitenciarios” como
salidas transitorias y/o anticipadas, luego esta actitud cambia motivados por estímulos rmados.
Existe una motivación instrumental por los benecios que aporta ir a la es-
cuela en cuanto a puntaje de conducta dentro del penal, hay una motivación
por portar objetos simbólicos (un maletín, objetos escolares), una motivación
individual saldar una deuda con la escolarización, también orgullo, reconoci-
miento, mejorar la autoestima. (CHILE, Entrevista 3)
Dos etapas que comienza en el hecho de concurrir a la escuela por el benecio
o por el simple hecho del benecio, hasta llegar al punto de nunca falta a cla-
ses y demandar a los docentes cada vez más información. Pero no todos pasan
por esta etapa y son los desafíos para abordar la docencia. (ARGENTINA,
Entrevista 11)
Los/as profesores/as chilenos/as destacan más la motivación escolar de los/as alumnos
sin hacer referencia a su intervención o propuesta pedagógica en cambio los/as profesores/as
brasileños/as y argentinos/as enfatizan su trabajo y su propuesta del trabajo que realizan, los/
as profesores/as argentinos/as perciben sus alumnos/as más motivados/as por aprender, uno de
los principios que son destacados dentro de las propuestas constructivistas del aprendizaje es la
motivación y el compromiso efectivo personal del estudiante por adquirir aprendizajes, consi-
derándolos como uno de los los principios más desaantes, ya que signica una motivación por
aprender y no solo por aprobar el curso (Poplin 1998, apud Ahumada Acevedo 2005).
La motivación necesaria para que contenga proyecto pedagógico para la edu-
cación en prisiones, currículos contextualizados, con proposición de una edu-
cación popular, con ejes temáticos y temas generadores, los estudiantes deben
ser reconocidos como seres humanos, con la posibilidad de contribuir para
la transformación social. Sí los temas generadores fueran contextualizados,
sobre reexiones de ser y estar en el mundo, existe la posibilidad de la moti-
vación. (BRASIL, Entrevista 8)
En general hay una apreciación distinta de los/as profesores/as de Brasil y Argentina, que
relacionan la acción pedagógica con la motivación de los/as estudiantes, involucrándose como
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docentes, en cambio, los/as docentes chilenos opinan desde la desmotivación del/a estudiante y
desde la crítica hacia el/a alumno/a y pretenden interpretar desde su experiencia las razones de
la desmotivación escolar.
Respecto a la participación se advierte una diferencia muy marcada. Los/as docentes chi-
lenos/as, por una parte, explican cómo se van involucrando los/as estudiantes en las actividades
que proponen, las cuales tienen relación con lo afectivo y su apreciación respecto a la respuesta
frente a las actividades, además de destacar el respeto al/a docente, tienden a diferenciar grupos
distintos de estudiantes. En cambio, los/as docentes brasileños/as y argentinos/as se reeren al
entusiasmo de sus alumnos/as, a sus aportes. Los/as profesores/as brasileños/as hacen énfasis en
la participación de los/as alumnos/as construcción del currículum destacando lo positivo como
propuesta, mientras que los/as docentes argentinos destacan la participación y aporte de sus ideas.
Se logra en relación con el apoyo e interés del docente, lo que es identicado
por el educador, esto se da en el nivel de involucramiento de que desarrolle
el educador con el estudiante, incluso pasa por algo emocional. Mientras más
libertad el interno comienza a experimentar al momento de desarrollar una
actividad mayor es el resultado de la gestión que se pretende lograr. (CHILE,
Entrevista 1)
Cuando el alumno participa en la construcción del currículo es el elemento
motivador, su respuesta amplía las posibilidades de aprendizaje. En EPJA,
los ejes temáticos posibilitan la exibilidad en el aprendizaje (BRASIL, En-
trevista 8)
Altamente participativo, Excelente siempre aportando ideas, superadoras de
las docentes (ARGENTINA, Entrevista 11)
Los/as profesores/as chilenos/as y brasileños/as tienden a referirse a las actividades que
realizan como centro de sus respuestas y apreciaciones, en cambio los/as docentes argentinos/
as enfatizan en la actitud del/a alumno/a, es decir, en la participación, no propiamente en la ac-
tividad que realizan. Dos de los/as profesores/as chilenos/as tienden a seguir tipicando a los/
as alumnos/as, y no se involucran en su propia propuesta pedagógica.
Tres grupos marcados, los entusiastas, los abúlicos, y los de irregular compro-
miso, con alta propensión a la frustración. Los entusiastas y comprometidos:
Su voluntad está puesta en un compromiso personal con los estudios como
una herramienta de cambio y pasatiempo provechoso para el encierro. Un
grupo tiende a la instrumentalización de la escuela, los profesores y las activi-
dades para rutinas propias de la cultura carcelaria. (conocidos, hacer negocios,
intercambiar información). Otro grupo oscila entre su interés de sobrevivir
ante privaciones de la cárcel ...y los hace evitar el protagonismo, ejemplo los
evangélicos. (CHILE, Entrevista 2).
Se distingue la apreciación de los/as docentes brasileños/as y argentinos/as en cuanto a
una valoración positiva sobre el logro de objetivos de sus alumnos/as, en cambio los/as chilenos/
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as insisten en describir más bien las distintas condiciones de trabajo entre el medio libre y el tra-
bajo al interior de la cárcel, como también distinguen a los/as estudiantes en cuanto a su ritmo de
aprendizaje. Aunque entre profesores/as chilenos/as tienen distintas opiniones en cuanto al logro
de objetivos, sus respuestas tienen como foco las características de los/as estudiantes en la clase.
En relación a los objetivos que se plantean, que van en línea con lo dispues-
to en el currículum, los logros son bajos. No logran llegar al nivel analítico
requerido para los niveles que cursan, escasa comprensión de lectura y de la
mano una paupérrima redacción de ideas simples. (CHILE, Entrevista 4)
Se caracteriza el entorno como complejo y distinto, se hace mención a la relación espacio
tiempo para el/la privado/a de libertad una dimensión distinta para quienes ingresamos desde
el medio libre con otra noción de tiempo, se destaca lo complejo de estar dentro de los muros.
Se destaca que entre chilenos/as, brasileños/as y argentinos/as hay similitudes en las
opiniones, es decir, hay a lo menos un profesor de Chile, uno de Argentina y uno de Brasil que
creen en los/as estudiantes, consideran que logran los objetivos entendiendo su especicidad y
cada uno de ellos/as aporta en la apreciación positiva respecto al logro, sin cuestionar las limi-
taciones que otros/as docentes destacan.
Los objetivos suelen ser ambiciosos, pero en líneas generales puedo decir que
los estudiantes alcanzan los objetivos previstos tanto aquellos conceptuales
como los actitudinales. (CHILE, Entrevista 3)
Nuestros alumnos son participativos e interesados en la propuesta de enseñan-
za del programa, siempre nos sorprenden con sus logros y desempeño. Se
ponen a disposición de la propuesta planteada por los profesores y sus compo-
nentes curriculares con sus particularidades. (BRASIL, Entrevista 5)
Los logros son positivos y la mayoría de las veces se cumplen los objetivos.
Creo que los objetivos se plantean en base al diagnóstico realizado de acuerdo
con los estudiantes del curso… (ARGENTINA, Entrevista 10).
Un docente argentino destaca el aprendizaje que los/as estudiantes que cabe destacar
dada las condiciones y dicultades que tiene el aprendizaje.
Cuando entré a la escuela pensaba que nada puede cambiar, que siempre sería
todo igual, hoy que termino no solo digo que la sociedad se puede cambiar,
sino que se debe cambiar. Más aprendizaje que ese no se me ocurre (ARGEN-
TINA, entrevista 11)
Sobre los procesos de evaluación, la característica transversal tiene relación con com-
prender la evaluación como proceso. Los/as profesores/as explican que se aplican los mismos
instrumentos que en el medio libre que en cualquier otra escuela, destacado la variedad de
instrumentos usados para vericar que los/as estudiantes aprenden. Se revela también que ante
la realidad carcelaria no se puede aplicar el mismo criterio que en los/as estudiantes fuera de la
cárcel. Aparece, también, en este análisis, en primer lugar, la necesaria relación entre los aspec-
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tos de estrategias metodológicas y el sistema de evaluación, en segundo lugar, la variedad de
aspectos que son valorados y evaluados por los/as docentes como, por ejemplo, la asistencia.
En este aspecto en particular todos los/as profesores/as hacen aportes en un todo coherente, in-
dependiente de los países hay una contribución hacia un enfoque más innovador, se vislumbran
enfoques referidos a una evaluación auténtica.
Uno de los/as profesores/as argentinos/as hace mención a la promoción, dado que la
evaluación se relaciona nalmente con el superar un nivel y pasar al otro
Una cuestión que consideramos importante en cuanto a la evaluación de los
adultos es la de intentar dar las oportunidades que sean necesarias hasta lograr
un grado de aprendizaje que permita la promoción. (ARGENTINA, Entrevista
11).
En lo que se reere a los espacios de aprendizaje para la realización del trabajo educativo,
los/as profesores/as indican diversas dicultades en los tres países estudiados. En el caso chileno,
se plantea como cuestión central la propia relación de los/as estudiantes con el estudio y, asimismo,
la interferencia de la gendarmería. Para tres de los cuatro docentes chilenos/as entrevistados/as,
el espacio en que ocurre el trabajo educativo no favorece el desarrollo de las tareas propuestas
por el/la profesor/a, puesto que se trata de un ambiente hostil, en el cual la interferencia de la
gendarmería es constante en la perspectiva de mantener la seguridad. Hay situaciones en que las
clases no ocurren o son interrumpidas por decisión de la gendarmería. Según indicó un profesor,
que en un módulo prisional no hay gendarme especíco para la escuela, así, siempre que ocurre
un conicto en el módulo, aunque independiente del trabajo realizado en la clase, se produce la
interrupción de las clases.
Las labores educacionales en ocasiones dependen exclusivamente del funcio-
nario que está a cargo del espacio, es decir, si el módulo un día esta conicti-
vo, el funcionario informa al profesor que no es seguro que entre por lo tanto
las clases no se desarrollan. En ocasiones los módulos están siendo allanados
por lo tanto no hay quien pueda abrir la puerta de ingreso a dicho lugar por lo
tanto a veces los tiempos son más limitados o simplemente no se desarrollan
las clases. (CHILE, Entrevista 2).
Los/as docentes brasileños/as se quejan de las dicultades en liberar a los/as alumnos/
as de los pabellones para ir a la escuela, de la falta de seguridad para turno nocturno y de es-
tudiantes que dejan de asistir a las clases por estar sometidos a un período de castigo por mala
conducta. Se reclama, también, de las salas improvisadas y de la falta de materiales, incluyendo
la ausencia de libros didácticos.
En el caso argentino se indica, asimismo, la ausencia de alumnos/as en las clases por
razones relacionadas al sistema penitenciario, como el traslado de presos/as y otras razones
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relacionadas a la seguridad. Reclaman, también, la falta de espacios adecuados para realizar las
clases y la ausencia de recursos tecnológicos.
Con ello, los/as docentes de los tres países constatan la precariedad en la que ocurre el
trabajo educativo, que carece de espacios y materiales adecuados, además de haber un predomi-
nio de las medidas de seguridad sobre el proceso educativo, dicultando que los/as estudiantes
mantengan una frecuencia regular a las clases. En contextos de encierro, las escuelas funcionan
dentro de otra institución, la lógica de la seguridad condiciona el funcionamiento de la escuela,
no sólo los aspectos pedagógicos-didácticos sino la distribución del poder (BLAZICH, 2007).
Currículum y contexto
En todos los/as docentes se advierte debilidad en la conceptualización del currículum,
todos se reeren a él sin especicar, no se puede inferir por sus respuestas si existe claridad, si
hay una concepción teórica que los/as profesores/as de los diferentes países tengan o si míni-
mamente se hace referencia al ¿qué?, ¿cómo?, ¿cuándo enseñar y evaluar? Se advierten algunas
diferencias entre los/as profesores/as respecto a los énfasis que hacen unos y otros. Por un lado,
los/as profesores/as chilenos/as se apegan más a la normativa, explican que adaptan el currículo,
que seleccionan contenidos; por otra parte, los/as profesores/as brasileños/as hacen referencia
a los contenidos que privilegian en general y a los aspectos metodológicos y a cómo enfrentan
las materias que los/as alumnos/as deben aprender, también se reeren a las diversas poblacio-
nes que se debe atender y no se reeren a currículum ocial; por su lado, los/as profesores/as
argentinos/as se reeren a los tiempos de aprendizaje, a los cambios con contenidos emergentes
y a formas distintas de abordar los temas.
los contenidos los expongo en su totalidad, enfocándolos con los internos
en los temas y subtemas que lo componen. Comenzamos a realizar una selec-
ción de estos en ocasiones los reconguramos. Se intenta relevar sus experien-
cias personales. (CHILE, Entrevista 1).
En general los/as profesores/as modican las indicaciones curriculares adaptándolas a
las necesidades de los/as alumnos/as, lo curricular entendido aquí por los/as profesores/as como
una secuencia de objetivos, contenidos, no logran dar cuenta de la amplitud de lo que es un
currículum, de sus concepciones y /o componentes (PINAR, 2014). Más bien los/as docentes
inmediatamente explican lo que hacen en el aula, cómo se aborda y cómo consideran la realidad
de los/as alumnos/as, innovando en formas para lograr que los/as alumnos/as aprendan.
Intento aplicarla en orden, pero me permito alterar el itinerario curricular por-
que trabajo con programas en general exibles…así agrego o quitos temas de
acuerdo a las necesidades o inquietudes que surgen en cada curso, rara vez
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termino el temario. (CHILE, Entrevista 3).
…trato de organizarme y ofrecer los mismos contenidos con las mismas exi-
gencias, pero sí teniendo en cuenta que los tiempos del proceso de aprendizaje
pueden ser otros. Así mismo, hay clases en que los contenidos del currículum
quedan suspendidos ante emergentes de lo cotidiano que también merecen
atención. (ARGENTINA, Entrevista 10).
Hay que distinguir que el currículum se expresa a través de un programa que los/as do-
centes deben desarrollar en los diferentes cursos que imparten, esta selección de contenidos la
realizan ellos, según ciertos criterios, según el contexto y, también, según las características de
los/as estudiantes. Estas son adaptaciones que realizan en forma aislada en sus aulas sin que sea
formalizado en un tipo de currículum especíco para estos contextos.
La ausencia de un análisis más profundo que llegue a cuestionar categorías implícitas
en el currículum como son: aprendizaje, objetivos y evaluación, reconociendo y validando la
experiencia, no de una forma tímida o de menos valor, por el contrario, tomando posición res-
pecto a ello. Las categorías del currículum y sus contenidos son un dispositivos de selección y
control social decisivos para el análisis del currículum y sus beneciarios (GOODSON, 2003).
Por otra parte, existe una mirada que rescata el aprendizaje más transversal que no tiene
relación directamente con los objetivos de aprendizaje que emanan del currículum, el centro está
puesto en lograr, la satisfacción, el reconocimiento, las relaciones entre los/as docentes y los/
as alumnos/as, el interés por aprender y el signicado para el/la propio/a docente. Por tanto, las
experiencias relevantes son descritas desde la subjetividad del/a docente y no están enfocadas
en el aprendizaje de contenidos sino de todo aquello que humaniza al hombre, no solo a los/as
presos/as sino también a los/as docentes, sus palabras están relacionadas con el logro la emoción
y el sentimiento relacionado con la satisfacción.
De alguna manera los docentes en estos espacios se revelan al currículo a todo lo estan-
darizado, un currículo secuestrado por quienes tienen la autoridad sobre él, donde en general
los profesores del medio libre pierden muchas veces esa autoridad para enseñar lo que es más
valioso. El currículo es una conversación compleja donde estudiantes y docentes pueden activar
sus conocimientos previos, circunstancias presentes intereses y desintereses. (PINAR, 2014).
Conclusiones
Los/as profesores/as entrevistados/as reconocen y valoran el papel social de la escuela y
el derecho a la educación de los/as encarcelados/as. Sin embargo, maniestan que las condiciones
no son las adecuadas para que la educación se realice. Una de las dicultades centrales indica-
das por los/as profesores/as de los tres países es la relación con la institución responsable de la
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seguridad en las cárceles, uno de los posibles motivos es que no existe una visión compartida
con el trabajo educativo que se realiza. La seguridad en las cárceles es prioritaria, y la educación
no es vista como una posible solución para iniciar un proceso de cambio en las personas y sus
relaciones, como también orientarse hacia un proyecto de vida diferente. En varias ocasiones las
clases se interrumpen o se priorizan otras actividades que son un “benecio” para el/la detenido
como es la atención psicosocial que es estrategia de los programas de Gendarmería en las cár-
celes de Chile. Otro de los problemas en general es que los/as estudiantes son transferidos/as o
impedidos/as de asistir a las clases regular y cotidianamente, haciendo que el proceso educativo
se interrumpa y dependa de las reglas de seguridad. Las instituciones penitenciarias no llegan a
concebirse como posibles espacios de reeducación porque, en realidad, cualquier propuesta de
actividad tiende a considerarse en un orden de importancia secundario.
Esto debilita toda trayectoria educativa y proyecto basado en la educación y formación
de las personas encarceladas, considerando que la educación que se imparte en los centros edu-
cativos constituye en la actualidad en el medio libre organizaciones muy complejas, en continuo
desarrollo y con una estrecha relación de interdependencia con el medio que están situados
(MATEO ANDRÉS, 2006). En este caso la cárcel es una institución distinta, pero de una com-
plejidad diferente de acuerdo a su naturaleza, por tanto, ambas instituciones son un fenómeno
difícil de indagar y comprender.
Para quienes son responsables de la seguridad, ocurre que, la educación es vista como
un “privilegio” de aquellos/as que poseen buen comportamiento y no un derecho del sujeto. La
lógica que siempre coloca el castigo como elemento central de su acción no logra garantizar que
el derecho a la educación se establezca de manera efectiva.
Así, es preciso reconocer la educación como un derecho humano, siendo distintos los
nes, por un lado, de la educación y, por otro, de la condena, el objetivo no es la punición, sino
la valorización del individuo. Es necesaria una educación que pueda atender a todos/as los/as que
tienen este derecho en el espacio carcelario y, para eso, precisa tener condiciones básicas como:
clases continuas, material didáctico, carga horaria compatible y profesores/as preparados/as. Se
trata de posibilitar que el/la individuo/a pueda tornarse protagonista de su historia, “que tenga
voz propia, que adquiera visión crítica de la realidad donde está inserto y procure transformar
su realidad – la pasada, la presente y la futura (CAMMAROSANO ONOFRE; FERNANDES
JULIÃO, 2013, p. 57). A lo que se reere al papel de la Educación en las prisiones en relación
con los/as individuos/as, Silva y Moreira (2012, p. 92) arman que su nalidad “debe ser única
y exclusivamente la de ayudar al ser humano privado de la libertad a desarrollar habilidades y
capacidades para estar en mejores condiciones de disputar las oportunidades socialmente creadas”.
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En lo que se reere al proceso de aprendizaje, se destacan los problemas relacionados con
el propio currículo ofrecido para los/as encarcelados/as en los tres países. Los/as educadores/as
hacen referencia al poco interés de los/as presos/as por muchos de los temas escolares presen-
tados como propuesta de trabajo. Además, muchos presos presentan dicultades de aprendizaje,
lo que hace aún más inadecuado un currículo que, en la mayoría de las veces, no fue pensado
especícamente para este espacio y sujetos que viven en esa condición. Los/as profesores/as
de los tres países indican el esfuerzo en tratar de aproximar el currículo de la realidad de los/
as estudiantes, pero se enfrentan a muchas dicultades, como las arriba mencionadas: falta de
materiales didácticos y las limitaciones impuestas por la seguridad.
Para Onofre y Julião, es necesario que se hagan elecciones pedagógicas apropiadas a
estos individuos en este contexto siempre teniendo como punto de partida una educación orien-
tada para los derechos humanos que tenga como foco la libertad, la igualdad, la solidaridad, el
respeto, la tolerancia y la integridad personal. Con referencia a los/as educadores/as, deben ser
personas capaces de elaborar un proyecto educativo multiprofesional, que contribuya para la
construcción de un proyecto de vida de los/as educandos/as, se trata de una atención más integral
de lo que se realiza en la escuela convencional. En ese proceso debe estar involucrado también
al agente penitenciario, el asistente social, el psicólogo, en n, todo el grupo que regula la vida
en el espacio carcelario (ONOFRE; JULIÃO, 2013, p. 63). De otro modo, siempre vamos tener
currículos que no hacen con que estés/as jóvenes y adultos/as encarcelados/as avancen teniendo
en vista as sus expectativas y las condiciones objetivas para realizar sus estudios.
Los/as profesores/as entrevistados/as en los tres países arman que con los currículos que
desarrollan, los resultados obtenidos son bajos, aunque algunos profesores/as indiquen, también,
que, a pesar de lo inadecuado de los currículos, logran alcanzar resultados que juzgan positivos.
Es en estas valoraciones y armaciones de los/as docentes que se abren interrogantes respecto
de descubrir ¿cuál es la posición de los/as docentes respecto al currículum, al aprendizaje y la
evaluación? Porque si en la apariencia la dimensión pedagógica está presente, habría que pre-
guntarse por cuál es de verdad la posición política subyacente, qué recorte de la realidad se ha
realizado y qué intereses subyacen en la selección de conocimiento (BRUSILOVSKY, 2006).
De la misma manera que los currículos necesitan ser adecuados a la educación en cár-
celes, también es necesario que el sistema de evaluación tenga su especicidad. Sin embargo,
no es lo que ocurre en los tres países, ya que los/as profesores/as arman contar con las mismas
estrategias de evaluación pensadas para niños y jóvenes fuera de los muros de las cárceles.
Establecer un espacio educativo en la cárcel es tarea de todos, práctica educativa, una relación
La complejidad de la educación de adultos en las cárceles de Chile, Brasil y Argentina
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 68-90, jan./abr. 2021 |
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educando educador entre adultos, respeto a la experiencia, estudio de contexto, currículo situado
son desafíos pendientes. (ACUÑA COLLADO, 2018).
Finalmente las categorías levantadas en este estudio, y toda la información que emerge,
dan cuenta de los complicaciones que se encuentran en el análisis, es difícil concentrarse en
solo un aspecto, cuando inmediatamente se ve imbricado con otros, una red. La educación en la
cárcel, debe ser observada con una teoría, una lógica distinta, una teoría de la complejidad que
pueda resultar conveniente al conocimiento del hombre.(MORIN, 2002).
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Recebido em: 20 de fevereiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Estudos / Ensaios
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 92-115, jan./abr. 2021
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10230
VOZES DO CÁRCERE: A PRÁTICA
LITERÁRIA E A REDUÇÃO DE PENA PELA
LEITURA NA PERSPECTIVA DE PESSOAS
PRIVADAS DE LIBERDADE
Eli Narciso da Silva Torres
1
Grupo de Pesquisa Focus - Universidade Estadual de Campinas
http://orcid.org/0000-0002-8295-9367
Gesilane de Oliveira Maciel José
2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul
http://orcid.org/0000-0001-5868-8459
Miguel Barthiman dos Santos
3
Observatório da Violência e Sistema Prisional (UFMS)
http://orcid.org/0000-0002-4969-2031
RESUMO:
Este artigo procura demonstrar a função das práticas literárias no âmbito da remição de pena pela leitura
a partir de perspectivas, conhecimentos e experiências de pessoas privadas de liberdade. Para isso, utili-
zou-se da técnica da entrevista narrativa para compreender a vivência literária, vinculada aos contextos
individuais e coletivos dos participantes. Inicialmente o estudo aborda as políticas educacionais e as
iniciativas de fomento à leitura e escrita nas prisões, como mecanismo de inclusão social, de desenvol-
vimento educacional e intelectual. Em seguida, aponta as ações literárias desenvolvidas em diferentes
estados da federação, com dados atualizados sobre os projetos e instituições envolvidas em programas
de remição pela leitura no Brasil. Por m, apresenta as narrativas de participantes do Projeto “Remição
pela Leitura - Educação para a Liberdade”, que compartilham suas percepções sobre as experiências
vivenciadas durante as práticas de leitura e escrita, além de dialogar sobre como os sujeitos envolvidos
percebem o mundo e a inuência do projeto literário em seu cotidiano no interior da prisão. Os resulta-
dos encontrados apontam que a ação literária contribui, signicativamente, para (a) ampliar os códigos
linguísticos do participante, (b) auxilia para o aprimoramento dos processos cognitivos; (c) de sociabi-
lidade e, por sua vez, (d) na modulação da maneira como o indivíduo vivencia as interações cotidianas
com o grupo em condição de aprisionamento. O suporte teórico/literário favorece ainda, para novas
reexões sobre a própria trajetória, e a respeito da vida no período posterior à prisão.
Palavras-chave: Leitura e escrita na prisão. Remição pela leitura. Pessoas privadas de liberdade.
Educação em prisões. Narrativas de pessoas presas.
1 Doutora em Educação (UNICAMP). Socióloga. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Educação,
Instituições e Desigualdade - FOCUS (UNICAMP). Coordenadora do Observatório da Violência e Sistema
Prisional - Linha de Pesquisa: Sociedade, educação e sistema punitivo - CNPq. E-mail: eli.educ@hotmail.com
2 Doutora em Educação (UNESP/Presidente Prudente). Docente EBTT (IFMS), Integra o Observatório da
Violência e Sistema Prisional e o Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Políticas Públicas e Espaço Escolar
(GPFOPE). E-mail: gesilane.jose@ifms.edu.br
3 Especialista em Gestão em Segurança Pública com ênfase em Sistema Prisional pela Faculdade
Tecnológica Paulista. Graduado em Letras. Integra o Observatório da Violência e Sistema Prisional (UFMS).
E-mail: mbarthimann@gmail.com
Vozes do cárcere: a prática literária e a redução de pena pela leitura na perspectiva de pessoas privadas de liberdade
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 92-115, jan./abr. 2021 |
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ABSTRACT:
VOICES FROM PRISON: LITERARY PRACTICE AND REDUCED SEN-
TENCE FOR READING FROM THE PERSPECTIVE OF PEOPLE DE-
PRIVED OF THEIR LIBERTY
This article seeks to demonstrate the role of literary practices in the context of the remission of sentences
for reading from the perspectives, knowledge and experiences of people deprived of their liberty. For
this, it was used the technique of narrative interview to understand the literary experience, linked to the
individual and collective contexts of the participants. Initially, the study addresses educational policies
and initiatives to promote reading and writing in prisons, as a mechanism for social inclusion, educatio-
nal and intellectual development. Then, it points out the literary actions developed in different states of
the federation, with updated data on the projects and institutions involved in reading remission programs
in Brazil. Finally, it presents the narratives of participants in the “Remission for Reading - Education
for Freedom” project, who share their perceptions about the experiences they have experienced during
reading and writing practices, in addition to discussing how the subjects involved perceive the world and
inuence of the literary project in his daily life inside the prison. The results found point out that literary
action contributes signicantly to (a) expanding the participant’s linguistic codes, (b) helps to improve
cognitive processes; (c) sociability and, in turn, (d) modulating the way the individual experiences daily
interactions with the group in a condition of imprisonment. The theoretical / literary support also favors,
for new reections on his own trajectory, and on life in the period after the arrest.
Keywords: Reading and writing in prison. Remission by reading. People deprived of their liberty. Edu-
cation in prisons. Narratives of prisoners.
RESUMEN:
VOCES DESDE LA CÁRCEL: PRÁCTICA LITERARIA Y REDUCCIÓN
DE PENAS PARA LA LECTURA DESDE LA PERSPECTIVA DE LAS
PERSONAS PRIVADAS DE LIBERTAD
Este artículo busca demostrar el papel de las prácticas literarias en el contexto de la remisión de la pena
por la lectura desde las perspectivas, conocimientos y vivencias de las personas privadas de libertad.
Para ello, se utilizó la técnica de la entrevista narrativa para comprender la experiencia literaria, vincu-
lada a los contextos individuales y colectivos de los participantes. Inicialmente, el estudio aborda políti-
cas e iniciativas educativas para promover la lectura y la escritura en las cárceles, como mecanismo de
inclusión social, desarrollo educativo e intelectual. Luego, señala las acciones literarias desarrolladas en
diferentes estados de la federación, con datos actualizados sobre los proyectos e instituciones involucra-
das en programas de remisión lectora en Brasil. Finalmente, presenta las narrativas de los participantes
en el proyecto “Remisión por la lectura - Educación para la libertad”, quienes comparten sus percepcio-
nes sobre las experiencias que han vivido durante las prácticas de lectura y escritura, además de hablar
sobre cómo los sujetos involucrados perciben el mundo. y la inuencia del proyecto literario en su vida
diaria dentro de la prisión. Los resultados encontrados señalan que la acción literaria contribuye signi-
cativamente a (a) expandir los códigos lingüísticos del participante, (b) ayuda a mejorar los procesos
cognitivos; (c) sociabilidad y, a su vez, (d) modular la forma en que el individuo experimenta las inte-
racciones diarias con el grupo en condición de encarcelamiento. El soporte teórico / literario también
favorece, para nuevas reexiones sobre su propia trayectoria, y sobre la vida en el período posterior a
la detención.
Palabras clave: Leer y escribir en prisión. Remisión por lectura. Personas privadas de libertad. Educa-
ción en las cárceles. Narrativas de prisioneros.
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 92-115, jan./abr. 2021
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Introdução
As ações educacionais sejam elas, formais ou informais e desenvolvidas em espaços de
privação de liberdade – práticas educativas na prisão – acontecem de forma distinta de outros
ambientes escolares, tendo em vista a hostilidade inerente ao “sistema penitenciário” e a neces-
sidade do Estado em instituir medidas disciplinares e/ou de controle institucional.
Se por um lado, a realidade das unidades prisionais se congura, em regra, como um
polo de conitos e violências presentes no histórico de rebeliões e massacres no país; por outro,
na tentativa da contenção do avanço dos domínios de grupos criminosos, parte dos gestores
penitenciários compreendem a implantação de procedimentos disciplinares como elementares à
assimilação de normas, rotinas e a manutenção da segurança institucional diante da superlotação
carcerária. Tudo isso, diante da complexidade penitenciária do país que reúne a terceira maior
população carcerária do mundo, contando com mais de 748.000 pessoas privadas de liberdade
(DEPEN, 2020a).
Nesse cenário de elevado encarceramento e tensões cotidianas, a Lei de Execução Penal
(LEP/1984) visa efetivar as determinações de sentença ou decisão jurídica e possibilitar con-
dições para a integração social da pessoa privada de liberdade. Para isso, a legislação prevê a
oferta de assistências penitenciárias com o objetivo de prevenir o crime e orientar o retorno à
convivência em sociedade. Como assistências destacam-se a saúde, amparo jurídico, material,
social, religioso e educacional (BRASIL, 1984).
Nas últimas décadas, o Brasil reuniu esforços de intelectuais, militantes e políticos
prossionais que culminou num processo gradativo de institucionalização da política nacional
de educação para pessoas presas, mediante produção de normativos legais (TORRES, 2017;
TORRES, 2019).
Entre os normativos destacam-se, a Resolução nº 3, de 2019 do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária (CNPCP); a Resolução CNE/CEB nº 02, de 19 de maio de
2010, que indicou as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação nos estabelecimentos pe-
nais; o Decreto nº 7.626/2011, de 24 de novembro de 2011, que instituiu o Plano Estratégico de
Educação no âmbito do Sistema Prisional; e, a Lei 12.433/2011, de 29 de junho de 2011, que
instituiu a remição pelo estudo durante a execução da pena.
Cabe destacar que a Lei 12.433/2011, alterou a LEP/84, e garantiu à pessoa presa o direito
de reduzir parte da pena pela participação e frequência escolar. Assim, ao participar de atividades
educacionais, tanto em aspectos formais, como outros projetos educativos não formais (sujeitos
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Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 92-115, jan./abr. 2021 |
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a avaliação do ministério público e poder judiciário) e prossionalizantes, o privado de liberdade
poderá “pagar” dias de pena de prisão pela via educacional.
Por m, foi publicada a Nota Técnica n.º 1/2020, que apresenta “[...] orientação nacional
para ns da institucionalização e padronização das atividades de remição de pena pela leitura
e resenhas de livros no sistema prisional brasileiro” (DEPEN, 2020c, p.310), as quais serão
abordadas detalhadamente na próxima seção.
As práticas literárias desenvolvidas mediante programas de “remição pela leitura” são
fundamentais aos processos de ensino, aprendizagem e trocas sociais, conforme demonstrado
pela Nota Técnica n.º 1/2020 (DEPEN, 2020b).
Nessa direção, diversos projetos de leitura e escrita (práticas literárias) têm sido im-
plantados nos estados brasileiros, recorrendo às parcerias viabilizadas entre as Universidades,
Secretarias Estaduais de Educação, Institutos Federais e órgãos de execução penal.
Com base na experiência Projeto de Leitura – Educação para a Liberdade, instituída em
penitenciárias do estado de Mato Grosso do Sul (MS), este artigo procura entender a função
das práticas de leitura e escrita no cotidiano e sob a ótica de pessoas privadas de liberdade. Para
compreender a função dessas práticas no cárcere buscou-se organizar o estudo a partir de dois
eixos: O primeiro trata do (i) alcance das ações literárias desenvolvidas em diferentes unidades
prisionais a partir da remição de pena pela leitura e das iniciativas de fomento a prática literária
nas prisões. O segundo, (ii) descreve alguns relatos de experiências vivenciadas pelos participan-
tes e o impacto da atividade literária nas vivências, no cotidiano do cárcere e, consecutivamente
para as expectativas de viver em grupo e em sociedade.
Para isso, utilizou-se do dispositivo de entrevistas narrativas, procurando reconhecer o
processo de escuta desses indivíduos que vivem em situação de reclusão e silenciamento insti-
tucional em decorrência das normas do sistema penitenciário. A narrativa possibilita agregar as
experiências e percepções das pessoas privadas de liberdade que participam assiduamente do
Projeto desenvolvido no presídio Instituto Penal de Campo Grande (IPCG), MS.
A entrevista narrativa refere-se a um dispositivo de coleta de dados que procura superar
o tipo de entrevista baseado em pergunta-resposta. Ela emprega um tipo especíco de comuni-
cação cotidiana, por meio do contar e escutar história, além de abrir possibilidades de sentido
e compreensão, frente a partilha de experiências de vida e de percursos biográcos (JOVCHE-
LOVITCH, BAUER, 2003; SOUZA, 2014; CLANDININ, CONNELLY, 2015).
Para a apreciação dos dados, adotou-se a análise compreensiva-interpretativa, na direção
de apreender regularidades e irregularidades tanto do aspecto individual e particular do narrador,
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 92-115, jan./abr. 2021
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quanto sobre o conjunto de narrativas orais e escritas, conforme delineado por Souza (2014) e
ainda por Clandinin e Connelly (2015). Enquanto, o recorte teórico ancora-se nas reexões de
Freire (1981, 1979, 1987), além dos diálogos empreendidos pelos pesquisadores que se dedi-
cam aos estudos sobre a política, a oferta e/ou práticas da educação em espaços de privação de
liberdade, entre eles, Onofre (2011, 2015), De Maeyer (2013), Ireland (2011), Torres (2019),
José (2019).
A legislação, a educação e remição de pena nas prisões
As políticas em educação em prisões estão vinculadas ao conceito de cultura e aos
princípios de emancipação, cidadania e autonomia, e conguram-se como um mecanismo de
promoção, proteção e reparação dos direitos humanos, além de oferecer novas possibilidades
de acesso à vida, quando em condição de liberdade.
A Constituição Federal de 1988 assegura à educação a legitimidade do direito social,
visando o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania e sua
qualicação para o trabalho, com vistas a garantir a equalização de oportunidades educacionais
com padrão mínimo de qualidade de ensino (BRASIL, 1988).
Para dialogar a respeito da perspectiva da educação para todos, ocorreram diversos
encontros internacionais, entre eles: a Conferência de Jomtien (UNESCO, 1998); a Declaração
de Hamburgo: agenda para o futuro (UNESCO, 1999); e a Educação para todos: o compromisso
de Dakar (UNESCO; CONSED; AÇÃO EDUCATIVA, 2001). A partir desses encontros foram
promulgados documentos que reforçam a necessidade de garantir o direito universal à educação
para todos; a urgência em superar as disparidades educacionais enfrentadas pelos grupos
excluídos; a necessidade de consolidar a inclusão progressiva de temas de educação para a vida
nas modalidades formal e não-formal; e a defesa que o acesso à educação de qualidade deva
atender às populações em situação de vulnerabilidade.
Dentre as medidas que contribuíram para a institucionalização da garantia de direitos à
educação de pessoas presas no Brasil, o projeto Educando para a Liberdade (UNESCO, 2006),
constitui-se como referência anterior às legislações e, principalmente como marco fundamental
na construção de uma política pública integrada e cooperativa direcionada à população privada
de liberdade. Nesse documento, estabelece-se o compromisso de que sejam fortalecidas as po-
líticas de incentivo ao livro e à leitura nas unidades prisionais, com implantação de bibliotecas
e com programas que atendam não somente aos alunos matriculados, mas a todos os integrantes
da comunidade prisional (JOSÉ, 2019).
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No ano de 2009, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)
promulgou a Resolução de nº 03 de 11/03/2009, em que associa a oferta da educação às ações
complementares de fomento à leitura e a inauguração ou recuperação de bibliotecas para atender
à população privada de liberdade (CNPCP, 2009).
Enquanto no ano de 2010, o CNE emitiu Diretrizes Nacionais de Educação para a oferta
de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos
penais, no qual destacam, entre outras orientações, que sejam instituídas políticas de estímulo à
leitura e à escrita nas unidades prisionais (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010).
Com o advento da remição pelo estudo, em 2011, possibilitou que o condenado que
cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto possa remir parte do tempo de execução da
pena. Essa remição pode ocorrer da seguinte forma: 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas
de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive prossionalizante, ou
superior, ou ainda de requalicação prossional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias. Em
caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena
(desde que certicado por órgão competente), serão acrescidos 1/3 na remição (BRASIL, 2011).
O Decreto nº 7.626/2011 promulgou o Plano Estratégico de Educação, no âmbito do Sis-
tema Prisional (PEESP), que visava expandir e aprimorar a oferta educacional (educação básica,
prossionalizante e superior) no sistema penitenciário a partir de articulações interministeriais
e com os estados.
Como desdobramento das ações educacionais, novos entendimentos jurídicos e analogias
passaram a abarcar a remição de “leitores resenhistas” de livros. Cabe destacar que se trata de
ações vinculadas às atividades educativas articuladas à administração estadual, municipal de
educação ou da área prisional, e agregadas ao preceito do sistema de justiça criminal, que englo-
ba as administrações penitenciárias, e revertidas para ns de remição de pena dos custodiados
(TORRES, 2019; DEPEN, 2020b).
No ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Recomendação nº
44, de 26/11/2013 orienta que sejam consideradas atividades de caráter complementar para a
remição pelo estudo no contexto da educação nas prisões, entre elas, a remição pela leitura.
Nessa concepção, o leitor privado de liberdade passa a ter 4 (quatro) dias reduzidos da pena a
cada resenha produzida e considerada apta, observando o limite de 48 (quarenta e oito) dias por
ano (CNJ, 2013).
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
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Práticas de leitura em espaços prisionais
O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mapeou 26 estados e o Distrito Federal
executando projetos de remição pela leitura e 1 (um) projeto no Sistema Penitenciário Federal
(SPF), conforme demonstra a Nota Técnica nº 1/2020/DEPEN:
Quadro 1: Normativos estaduais que regulamentam a remição pela leitura por unidade federativa e Sistema.
4
ESTADO
INÍCIO/
ANO
NOME DO PROJETO
QUANTIDADES
DE PRESOS
PARTICIPANTES
Sistema
Penitenciário
Federal
2009 Remição pela Leitura
4
-
Acre 2015 Leitura Livre 46
Alagoas 2017 Projeto Lêberdade 44
Amazonas 2015 Programa de Remição da Pena através da Leitura 1.734
Amapá NC NC 30
Bahia 2014 Há diversos projetos 567
Ceará 2016 Livro Aberto 4.586
Distrito Federal 2018 Ler Liberta 700
Espírito Santo 2017
Ler Liberta; Remição pela Leitura; Virando a
Página e a Hora de Ler e Voar
239
Goiás 2014 Programa de Remição pela Leitura 150
Maranhão 2017 Projeto Leitura Interativa 1.215
Mato Grosso 2018 Remição pela Leitura 301
Mato Grosso do
Sul
2014
Remição pela Leitura - Educação para a
Liberdade
258
Minas Gerais 2014 Projeto de Remição pela Leitura 1.573
Pará 2012 A leitura que Liberta 225
Paraíba 2016 Projeto de Remição pela Leitura 399
Paraná 2012 Remição pela Leitura 3.343
Pernambuco 2017 Remição de Pena pela Leitura 6.846
Piauí 2015 Leitura Livre 137
Rio de Janeiro 2016 Remição de Pena pela Leitura 807
Rio Grande do
Norte
2017 Projeto Remição pela Leitura NC
Rio Grande do
Sul
2019 Remição pela Leitura NC
Rondônia 2014 Remição pela Leitura 1.577
Roraima 2017 Leitura pela Libertação 252
Santa Catarina 2016 Projeto Despertar pela Leitura 2.006
São Paulo 2009
Clubes de Leituras; Remição pela Leitura: Dos
Direitos Educativos ao Acesso à Justiça; e outros
25.108
Sergipe 2019 Remição pela Leitura 90
Tocantins 2014 Remição pela Leitura NC
Fonte: DEPEN (2020), com adaptações dos autores.
4 3.694 resenhas foram elaboradas no ano de 2019.
Vozes do cárcere: a prática literária e a redução de pena pela leitura na perspectiva de pessoas privadas de liberdade
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Os dados do mapeamento demonstram que, no ano de 2019, foram atendidos 7% da po-
pulação prisional do país (DEPEN, 2020b). Trata-se de um quantitativo relevante, especialmente
ao considerar o percentual, médio, de 10% de pessoas atendidas na educação formal (DEPEN,
2020a).
A maior participação nos projetos literários, para ns de remição, ocorre nos estados
em que as Secretarias Estaduais de Educação assumem as ações vinculadas a atividades com-
plementares, no âmbito da educação formal. Em outros estados, as atividades de remição pela
leitura ocorrem por meio de parcerias estabelecidas entre as universidades, igrejas, professores
voluntários, Institutos Federais, dentre outras instituições e as Secretarias Estaduais de adminis-
tração penitenciária (DEPEN, 2020b).
Nesse sentido, o propósito de oferecer acesso ao letramento literário à pessoa privada
de liberdade, congura-se, sobretudo, como garantia de direitos ao reconhecê-la como via de
inclusão social e desenvolvimento educacional e intelectual, podendo ampliar o campo de co-
nhecimento sociocultural do indivíduo.
Soares (2009) compreende o letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender
a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo
como consequência de ter-se apropriado da escrita. Sendo assim, o letramento pressupõe que
o indivíduo que se envolve em práticas de leitura e de escrita torna-se uma pessoa diferente
adquirindo uma outra forma de pensar.
Ainda na visão da autora, a pessoa letrada passa a ter uma outra condição social e cul-
tural. Não se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, cultural, mas de mudar
seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura, sua relação com os
outros, com o contexto e com os bens culturais (SOARES, 2009).
O ato de ler deve proporcionar ao educando tanto a leitura da palavra como a leitura
crítica do mundo. Nesse sentido, sua função assume um caráter diretivo, com atenção voltada
a partir da leitura de mundo pautada pelas condições históricas, políticas e sociais. Da mesma
forma, a leitura implica sempre em uma percepção crítica, interpretação e “reescrita” do lido
(FREIRE, 2001).
Considerando essa chave de análise, o processo de observação das entrevistas busca
compreender qual o impacto da atividade literária nas vivências, no cotidiano do cárcere e nas
expectativas de viver em sociedade, sob a ótica de pessoas privadas de liberdade.
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O Projeto Remição pela Leitura - educação para a liberdade
O Projeto Remição pela Leitura - Educação para a Liberdade é desenvolvido pelo Obser-
vatório da Violência e Sistema Prisional
5
, vinculado à Linha de Pesquisa Sociedade, Educação
e Sistema Punitivo
6
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura, Psicologia, Educação e
Trabalho (CPET) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
7
.
A partir dos estudos desenvolvidos pelo Observatório e do interesse pela temática vol-
tada à educação em espaços prisionais, foi criado o Projeto Remição pela Leitura - Educação
para a Liberdade e implementado nos municípios de Campo Grande e Corumbá, tanto em uni-
dades prisionais masculinas como femininas. Os projetos estão balizados pela Portaria 1/2018
da 1ª Vara de Execução Penal (VEP), que posteriormente foi atualizada pela portaria conjunta
001/2019 das VEP’s.
Conforme orientação da Portaria, a participação da pessoa privada de liberdade deve
ocorrer de forma voluntária, desde que tenha as competências de leitura e escrita mínimas ne-
cessárias para a execução das atividades. O prazo para leitura da obra literária é de 30 (trinta)
dias, apresentando, ao nal deste período e no prazo de 10 (dez) dias, resenha a respeito do
assunto (VEP, 2019).
Os encontros congregam de 20 a 25 pessoas e acontecem a cada quinze dias, por meio
de ocinas e rodas de leitura a partir de diferentes gêneros literários, orientações sobre escrita
(redação, ortograa e gramática) e diálogo e devolutiva sobre as resenhas produzidas.
A unidade prisional é a responsável pela inscrição dos participantes e organização da
lista de presença, bem como designar espaço para as ocinas, controlar o trânsito e acesso dos
participantes e comunicar aos ministrantes os motivos de ausência dos participantes, seja por
soltura, transferência de estabelecimento penal ou desistência voluntária de participação do
projeto (MORENO, FLANDOLI, SANTOS, 2020).
A comissão responsável pela avaliação do texto deve observar os aspectos relacionados
à compreensão e compatibilidade do texto com o livro para considerá-la como apta. Os critérios
de avaliação das resenhas, segundo entendimento das portarias, devem considerar a estética do
texto, limitação ao tema e dedignidade.
5 O Observatório busca aprofundamento teórico e epistemológico em temáticas que envolvam a exclusão
social, a criminalidade e sobre como vem se institucionalizando as políticas nacionais e internacionais para o
sistema penitenciário. Nesta direção, tem mapeado os índices e elevação de crimes contra jovens negros, as políti-
cas de execução penal, a gênese das políticas públicas, a oferta da educação em prisões e a remição de pena pela
via educacional no Brasil e em outros países da América Latina (JOSÉ, TORRES, FLANDOLI, 2017).
6 Coordenado pela pesquisadora Dra. Eli Narciso da Silva Torres.
7 Coordenado pela Profa. Dra. Beatriz Rosália Gomes Xavier Flandoli.
Vozes do cárcere: a prática literária e a redução de pena pela leitura na perspectiva de pessoas privadas de liberdade
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O Juízo decidirá, posteriormente, sobre o aproveitamento do participante e a correspon-
dente remição. Nesse caso, a contagem do tempo para ns de remição será de 4 (quatro) dias de
pena para cada 30 (trinta) dias de leitura.
Para esse artigo, foi realizada a análise das ações literárias desenvolvidas no Instituto
Penal de Campo Grande (IPCG), entre o período demarcado pelos meses de julho de 2018 e
novembro de 2019
8
. O IPCG opera em segurança média, destinada aos presos do sexo masculino
que cumprem pena em regime fechado. Atualmente a unidade abriga 1.633 pessoas privadas de
liberdade (IPCG, 2020).
Para a execução do projeto, foram escolhidas obras que variam entre clássicas e con-
temporâneas. Alguns livros foram cedidos pela própria unidade, de outras penitenciárias ou de
doações do próprio Grupo de Pesquisa.
Desde a instituição, 118 integrantes já participaram do projeto, entretanto a rotatividade
(acesso e permanência) é elevada, visto que ocorrem desistências ao longo das ações. Os motivos
são variados, que se justicam pela diculdade no processo de leitura e escrita, ou por questões
administrativas ou judiciais, entre elas destacam-se, as transferências entre unidades prisionais,
a progressão de regime e o recolhimento disciplinar
9
. A Tabela 1, a seguir, demonstra os resul-
tados correspondentes aos 18 meses de execução do projeto.
Tabela 1: Resultados do Projeto Remição pela Leitura – Educação para a Liberdade – julho/18 a no-
vembro/19.
MÊS
TOTAL DE RESENHAS PRODUZIDAS
RESENHAS
APROVADAS
RESENHAS
REPROVADAS
Julho/18 16 11 5
Agosto/18 17 8 9
Setembro/18 17 10 7
Abril/19 19 13 6
Maio/19 15 14 1
Junho/19 12 12 0
Julho/19 18 15 3
Agosto/19 14 14 0
Setembro/19 10 10 0
Outubro/19 13 12 1
Novembro/19 08 5 3
TOTAL 159
124 35
78% 22%
Fonte: Elaboração dos autores.
8 Neste período, o projeto foi coordenado pela Profa. Dra. Gesilane de Oliveira Maciel José.
9 As celas disciplinares são conhecidas na linguagem dos internos como “a forte” e anunciam que lá é um
lugar que “o lho chora e não não vê”, em analogia ao isolamento total. Os presos são alojados ali quando sur-
preendidos portando entorpecentes ou celulares, ou ainda, aqueles que não têm convivência nas celas de origem”
(TORRES, 2011, p. 80). No período de recolhimento a pessoa presa deixa de frequentar a escola.
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
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No período foram escritas 159 resenhas, sendo 124 consideradas aptas e o equivalente a
78% de aprovação, e outras 35 resenhas consideradas não aptas, ou seja, 22% do índice global.
Cabe destacar que no período de outubro/18 a mar/19, não foram realizadas ocinas ou elabo-
ração de resenhas por precauções de segurança.
A constituição do caminho da leitura e escrita: percursos
metodológicos
Para identicar como os indivíduos percebem a contribuição do projeto literário, sele-
cionamos as narrativas de 9 (nove) integrantes, nomeados aqui como participantes.
Consideramos que a entrevista narrativa possibilita que o narrador conte sua história
(em sequência temporal ou em um continuum), procure explicar os fatos e dialogar com os
acontecimentos que constroem a vida individual e social, em contextos subjetivos e concretos,
conforme perspectiva delineada por Jovchelovitch e Bauer (2003); Souza (2014) e Clandinin e
Connelly (2015).
Tal dispositivo permite compreender a vivência literária, vinculada a contextos indi-
viduais e coletivos, com histórias vividas e contadas diretamente, “mas também as coisas não
ditas e não feitas, que moldam a estrutura da narrativa” (CLANDININ, CONNELLY, 2015, p.
104). Nessa dimensão, cada participante da pesquisa narrou sua trajetória de vida escolar e sua
experiência com a leitura.
Como critério de escolha, optamos pelos participantes mais assíduos e que produziram
maior número de resenhas. Entre eles, 2 (dois) participantes possuem o ensino fundamental
completo, 6 (seis) o ensino médio completo e 1 (um) possui o nível superior completo com curso
de pós-graduação lato sensu.
As entrevistas estão amparadas pelo Termo de Consentimento e Livre Esclarecimento
(TCLE), e foram realizadas utilizando-se do recurso de gravação de áudio e, posteriormente,
foram transcritas para maior aprofundamento nas análises.
Quanto à apreciação dos dados, buscou-se traçar um perl escolar do grupo pesquisado
e sua percepção sobre o projeto a partir dos encontros literários. Para isso adotou-se a análise
compreensiva-interpretativa, conforme descrito por Souza (2014) e Clandinin e Connelly (2015),
no qual possibilita analisar as regularidades e irregularidades do conjunto das narrativas tanto
nos aspectos singulares como coletivos.
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Sentido da leitura e o Projeto Remição pela Leitura - educação para
a liberdade
As narrativas dos participantes foram delineadas a partir de três perspectivas: (a) itinerário
escolar; (b) percepção sobre seu gosto pela leitura e, (c) experiência com o Projeto Educação
para a Liberdade.
O primeiro elemento apresentado pelos participantes tem relação com seu percurso escolar.
Há casos, por exemplo, dos que não conseguiram dar continuidade nos estudos, justicado por
questões familiares e socioeconômicas,
PARTICIPANTE 4: Então, eu sou remanescente de uma família muito hu-
milde e tive muita diculdade, perdi mãe, perdi avó muito cedo, então isso
dicultou o meu estudo. Aí, depois de crescer na adolescência, tive um apego
pela leitura, mas nunca tive a oportunidade, um apoio para estudar.
PARTICIPANTE 8: Eu nunca cheguei a repetir de ano, mas parei de estudar
na época por causa de condição nanceira, tinha que trabalhar durante o dia,
chegava cansado e muitas das vezes parava de estudar por esse motivo.
PARTICIPANTE 9: Na época eu gostava [de estudar], mas não tive muita
oportunidade por minha família ser uma família pobre, então eu estudei só até
os 11 anos de idade, na 3ª série.
Carreira e Carneiro (2009) destacam que pelo menos 95% das pessoas privadas de liber-
dade se enquadram na situação de pobreza, o que possivelmente dicultou que tivessem acesso à
educação ainda antes de estarem em situação de aprisionamento. Esses indicadores corroboram
com os relatos acima, no qual demonstra que a falta de acesso à escola ou a oportunidade de
continuidade nos estudos, se justica, em grande medida, devido a sua condição socioeconômica.
Tal realidade demonstra um descompasso no cumprimento de políticas que defendem o
acesso e a universalização da educação pública como um direito.
Pode-se dizer que o estado de MS se assemelha à média dos índices nacionais publi-
citados pelo Departamento Penitenciário Nacional, caracterizados pela baixa escolaridade da
população encarcerada. Nessa perspectiva, a leitura do quadro também demonstra que 99,24%
dos aprisionados em MS não obtinham o ensino superior completo, em torno de 90% não ha-
viam completado o ensino médio, e ainda, cerca de 65% das pessoas presas não tinham o ensino
fundamental completo (DEPEN, 2015).
Cabe relembrar que a população prisional é composta por indivíduos adultos
que não permaneceram na escola regularmente, em tempo oportuno, durante
o período socialmente esperado para acessar a educação escolar formal. Por-
tanto, trata-se de sujeitos oriundos das camadas populares que incorporaram o
fracasso escolar às suas trajetórias, como concepção individualizada e carac-
terística neoliberal (TORRES, 2019, p. 259).
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Sobre esse assunto, Charlot (2001) destaca que a relação dos alunos com o saber e com a
escola não é a mesma nas diferentes classes sociais. Para o autor, as camadas populares enfrentam
maiores diculdades na escola, considerando que esses estudantes possuem comportamentos
distintos em face de diferentes tipos de saberes ou de aprendizagens.
As disparidades são postas às camadas populares em razão da escassez de capitais, em
especial, de capital cultural, o que favorece para o indivíduo encontrar diculdades em acessar
os códigos de leitura e/ou literários. Consecutivamente levando-o ao fracasso escolar e, com isso,
à manutenção do status quo, considerando que a escola ocupa-se de transmitir o capital cultural
pensado para e a partir da legitimidade das elites (BOURDIEU, 1988).
Como consequência, àqueles que não conseguiram concluir os estudos básicos, muitas
vezes, carregam a culpa e vergonha por não deter o conhecimento, ou não terem se esforçado
o bastante, negando inclusive o processo de exclusão que lhe usurpou ou dicultou o acesso à
escola (CAPUCHO, 2012). Tal discurso sombreia a negação de direitos e o processo de exclusão
social a que estão sujeitos.
Nesse sentido, a luta dos jovens oriundos de camadas populares contra o fracasso escolar
continua sendo um dos principais desaos das políticas públicas educacionais.
Para Arroyo (2014), a chegada dos educandos com vidas tão precarizadas às escolas obriga
a docência repor suas bases do viver com a devida centralidade nos processos de aprender, de
formação e desenvolvimento humano. O direito à educação, ao conhecimento e à cultura está
atrelado às formas de viver nas tramas do presente. Sendo assim, quando se ignora a precari-
zação do viver dos educandos, há a responsabilização de uns e outros pelo fracasso escolar. As
vítimas, nesse caso, ainda são responsabilizadas pelos processos escolares e por sua própria
condição de pobreza.
Dessa forma, para cumprir o propósito de contribuir com a modicação na vida dos
estudantes, é preciso considerar “Outras pedagogias para Outros sujeitos” no espaço escolar, de
forma que a educação se transforme em um local de humanização e de construção de um novo
espaço do viver.
Freire (1967) compreende que para romper com esse círculo de subjugação das camadas
populares, ou como denomina “dos condenados da terra”, é inadiável e indispensável construir
processos educativos - dentro das condições históricas de sua sociedade-pautados por uma ampla
conscientização das massas brasileiras, por meio de uma educação que as coloquem em uma
postura de autorreexão e de reexão sobre seu tempo e seu espaço.
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Para o educador, a educação humanista e libertadora deve passar por dois momentos
distintos: o primeiro em que os oprimidos desvelam o mundo da opressão e comprometem-se
na práxis, com a sua transformação; e o segundo, em que, transformada a realidade opressora,
a educação deixa de ser do oprimido e passa a ser a educação dos homens em processo de per-
manente libertação (FREIRE, 1987).
Nesse sentido, a educação se estabelece como uma prática educativa que só poderá alcan-
çar efetividade e ecácia na medida em que abarca a participação livre e crítica dos educandos,
inclusive, levando-os a compreensão a respeito de seus percursos escolares relacionados aos
contextos históricos e sociais.
Por outro lado, alguns participantes relataram que foi possível concluir os estudos apenas
no interior do espaço prisional,
PARTICIPANTE 2: [...] eu vim terminar meus estudos aqui na cadeia, cum-
prindo pena.
PARTICIPANTE 3: Tive a oportunidade de fazer uma prova, do Enceja, que
contribuiu para que eu conseguisse conquistar meu ensino médio.
PARTICIPANTE 8: Eu comecei a estudar não no presídio, mas acabei termi-
nando o ensino médio [aqui] no presídio.
A oferta da educação em prisões do ensino regular é compreendida como um direito em
si mesmo e ganha mais importância quando é direcionada ao pleno desenvolvimento humano e
às suas potencialidades, valorizando o respeito aos grupos socialmente excluídos. Essa concep-
ção busca efetivar a cidadania plena para a construção de conhecimentos, o desenvolvimento de
valores, atitudes e comportamentos, além da defesa da justiça social (BRASIL, 2007).
Cabe destacar, que embora o conceito de educação esteja bastante vinculado aos aspectos
de cultura e ao mecanismo de promoção, proteção e reparação dos direitos humanos, a assis-
tência do ensino regular em espaços prisionais ainda demonstra um índice bastante reduzido,
considerando que a estimativa é que o acesso à educação atenda a média de 10% da população
encarcerada (DEPEN, 2020a).
Alguns especialistas do tema, como Onofre (2011, 2015), Ireland (2011) e De Maeyer
(2013) sinalizam que a educação no contexto prisional é uma ferramenta adequada para o pro-
cesso formativo, no sentido de produzir mudanças de atitudes e contribuir para a integração
social do indivíduo.
Ireland (2011) destaca, inclusive, a necessidade de situar a Educação de Jovens e Adul-
tos na perspectiva da aprendizagem e da educação ao longo da vida. Na mesma direção, De
Maeyer (2013, p. 47) compreende que “Aprender ao longo da vida é deixar momentaneamente
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seu estatuto provisório de detento para se inscrever em uma perspectiva mais a longo prazo sem
acrescentar um julgamento social ao julgamento penal”.
Para Ireland (2011) a educação é sempre mediada por uma realidade complexa e no caso
prisional, torna-se ainda mais volátil. Na visão do autor, outros tipos de aprendizagem podem
servir como incentivos para eventualmente o indivíduo retomar o percurso escolar, ora inter-
rompido, sobretudo, se o mesmo possui uma escolaridade precária com experiência negativa
da escola. Assim, o projeto de leitura se estabelece como um espaço que pode possibilitar uma
nova percepção do indivíduo sobre a escola e sobre a construção de sua aprendizagem.
Cabe destacar que as ações educacionais devem ser estruturadas como políticas públicas
sistematizadas e contínuas, com a oferta de atividades que promovam a participação expressiva
dos privados de liberdade. Somado a isso, é importante reconhecer que essas ações vão além do
processo de ensinar, pois podem contribuir com os processos formativos em espaços coletivos,
produzir saberes que permitam uma formação humanizada e, consequentemente, contribuir para
que o indivíduo repense suas práticas, sua cultura e sua relação com a sociedade (JOSÉ, 2019).
Para isso, Freire (1979) compreende que nenhuma ação educativa pode prescindir de
uma reexão sobre o indivíduo e de uma análise sobre suas condições culturais. Isso implica
em dizer que a educação deve estabelecer uma relação dialética com o contexto da sociedade à
qual se destina.
Sobre outra perspectiva de análise, foi possível notar certo distanciamento de alguns
participantes quanto ao processo de leitura.
PARTICIPANTE 6: [...] eu sempre fui uma pessoa que gostei de ler, mas eu
tive essa prática mais constante depois desse projeto que eu comecei a ler com
mais anco.
PARTICIPANTE 7: [...] devido ao trabalho e outras obrigações, eu fui me
distanciando um pouco, só que aqui eu redescobri esse hábito, eu redescobri
essa paixão, essa necessidade de ler e isso foi graças ao projeto.
Os relatos apontam que a cultura literária não fez parte do percurso de vida desses par-
ticipantes, o que exigia certo esforço para que se adequassem à proposta do projeto. Por outro
lado, há aqueles que já se sentiam familiarizados com o processo de ler e cultivavam o gosto
pela leitura, antes mesmo de ingressar no projeto.
PARTICIPANTE 1: Sempre gostei de ler, né. Até por conta da necessidade
[...] a gente viaja né. Você busca conhecimento, você cresce no seu dia a dia,
na sua caminhada, ajuda, fortalece, sempre gostei.
PARTICIPANTE 4: Gosto [de ler], apesar de ser muito seletivo na minha lei-
tura. [...] eu procuro mais para o lado do que eu quero saber, do que eu gosto
mesmo, não leio qualquer coisa.
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PARTICIPANTE 5: Gosto muito de ler, inclusive, me considero um leitor
compulsivo e acho a leitura muito importante na vida da gente.
PARTICIPANTE 6: Na verdade essa prática da leitura, eu sempre tive, eu
sempre gostei de ler quando criança, eu lia revistas de quadrinhos, eu sempre
fui uma pessoa que gostei de ler.
Diante dos relatos, nota-se a importância de ações que valorizam atividades de natureza
literária, as quais visam potencializar o gosto pela leitura de forma a contribuir com a constru-
ção de práticas que promovam o desenvolvimento cultural, intelectual e o potencial criativo do
indivíduo.
Candido (2004) compreende que a literatura faz parte de uma das atribuições vinculadas
aos direitos humanos. Sua análise indica que o direito não deve car restrito aos bens fundamen-
tais como moradia, alimentação, instrução e saúde; mas o direito se amplia na medida em que se
alcança “bens culturais”, como a arte ou a literatura. Em sua visão, a sociedade não compreende
o indivíduo como sujeito propenso a acessar bens culturais, por exemplo, ler Dostoievski ou
ouvir os quartetos de Beethoven (CANDIDO, 2004).
Nessa perspectiva, incluir as práticas literárias ao repertório de bens culturais possibilita
o acesso ao conhecimento, auxilia no processo de conscientização e para a incorporação de
capital intelectual, elementos reconhecidos como direitos fundamentais e inerentes à vida em
sociedade e, por isso, estão na base da reexão sobre os direitos humanos e se colocam como
desaos. Contudo, são acessos negados aos indivíduos das camadas populares quanto à formação
do gosto literário em período anterior à prisão e trata-se de desao ainda maior aos entusiastas
da leitura e escrita em ambientes de privação de liberdade.
Soares (2009, p. 120) complementa que “o letramento é, sem dúvida alguma, pelo menos
nas modernas sociedades industrializadas, um direito humano absoluto, independentemente das
condições econômicas e sociais em que um dado grupo humano esteja inserido”. Além disso, Rojo
(2002) defende que a leitura é importante para a cidadania, para escapar dos textos e interpretá-
-los, de relacionar com outros textos de maneira situada na realidade social, de avaliar posições
e ideologias que constituem seus sentidos e, enm, de trazer o texto para a vida e colocá-la em
relação com ela.
Em princípio, não basta apenas oferecer acesso a arte e a literatura, é preciso que o leitor
aprenda a fazer uso do ler e do escrever, e saiba responder às exigências de leitura e de escrita
que a sociedade faz continuamente (SOARES, 2009). Entende-se, nesse sentido, que oferecer
acesso ao letramento literário, signica contribuir com a perspectiva dos direitos individuais à
pessoa privada de liberdade.
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Por sua vez, Pereira (2020) considera que a prática literária está presente na vida e no
cotidiano dos sujeitos encarcerados como uma espécie de “ferramenta de sobrevivência” às
adversidades, ociosidade, privação de direitos sociais, injustiças, e opressões vivenciadas no
cárcere. Diante de tal cenário, a leitura em ambiente penitenciário torna-se prática essencial-
mente indispensável “[...] na medida em que serve à administração penitenciária como forma
de ocupar a rotina dos sujeitos, serve a estes como forma de interpretação da vida e na formação
do pensamento autônomo, crítico e, por isso, transformador” (PEREIRA, 2020, p. 104).
Em outra direção, De Maeyer (2013, p. 47) entende que “Ler não é a atividade de um
ser passivo, de alguém que quer passar o tempo. Ler é uma relação dinâmica com o texto, com
a imagem, com o lme, com as questões, com a história”.
Nesse sentido, ao considerar a leitura como uma possibilidade de educação e de recon-
ciliação com o ato de aprender, o autor traz uma reexão com relação ao espaço da biblioteca,
pois considera que esse local pode deixar de ser um cômodo muito vinculado a um depósito
silencioso, utilizado como consumo e apropriação simbólica de uma cultura estrangeira, e pos-
sa contribuir de forma signicativa para se estabelecer uma nova cultura literária no ambiente
prisional. Sua visão é que esse espaço pode se (re)congurar como um local de produção de
cultura e de expressão do universo atual de cada um, inscrevendo-se na perspectiva da educação
permanente (DE MAEYER, 2013).
Para Freire (1981, 1989), ler implica sempre na percepção crítica, interpretação e re-escrita
do lido, na compreensão, portanto, da relação entre leitura do mundo e leitura da palavra, de
assumir uma postura crítica como sujeito ativo, em especial, compreendendo o condicionamento
histórico-sociológico do conhecimento.
No que concerne a possibilidade da remição pela leitura, os participantes estabelecem
tanto a importância de acesso ao conhecimento, como da possibilidade de reduzir a pena.
PARTICIPANTE 3: A remição é uma consequência. Eu vejo ela como uma
consequência, se eu ganhar isso, legal. Mas eu gosto da aventura que isso me
gera, da viagem no meu psicológico, na minha alma, no meu coração, no meu
espírito que isso me leva, no prazer que isso me dá, na liberdade que isso me
dá.
PARTICIPANTE 4: [...] eu acho que o mais interessante é o aprendizado den-
tro do projeto.
PARTICIPANTE 5: A remição não deixa de ser importante porque diminui a
quantidade da nossa pena né, mas eu acho que o mais importante é o conheci-
mento adquirido [...].
PARTICIPANTE 7: É um dos pontos importantes, mas eu não vejo como um
ponto mais importante porque existem outras formas de remição. Eu acredito
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que o que a gente obtém no livro, é mais uma forma de amenizar também a situ-
ação na qual nos encontramos, mas não é o ponto mais importante.
PARTICIPANTE 8: Pra mim [o mais importante] é o desenvolvimento pessoal
e intelectual.
Observa-se que os participantes reconhecem que as ações de leitura e escrita ultrapassam
a perspectiva de progredir de regime pela via da remição de pena, mas também possibilitam a
ampliação do acesso ao conhecimento. Nas palavras do participante 3: “[...] eu gosto da aventura
que isso me gera, da viagem no meu psicológico, na minha alma, no meu coração, no meu espírito
[...]”; ou como diz o participante 8: “O mais importante é o desenvolvimento pessoal e intelec-
tual”. Tais relatos justicariam, em tese, a motivação e a assiduidade dos participantes nas ações
desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa. Nota-se, portanto, que o interesse pelo conhecimento pode
caminhar junto com a possibilidade de remir os dias de pena.
Já o participante 7 comenta que “[...] existem outras formas de remição”. Sobre isso, cabe
mencionar, que o “presídio IPCG”, oferece educação na modalidade EJA, cursos prossionalizantes
e diferentes atividades de trabalho, entre elas, artesanato, barbearia, cantina, faxina, marcenaria,
serralheria, reciclagem de lixo, recolhimento de marmitas, etc. Ademais, a unidade conta com o
trabalho remunerado na fábrica de gelos, padaria, armação de ferragem, costura de bola, cozinha,
beneciamento de mandioca, manufatura de crina de cavalo, entre outras (IPCG, 2020).
Cabe pontuar, ainda, que a pessoa presa que labora “deve ou deveria” receber remuneração
não inferior a 3/4 do salário mínimo (LEP/84), contudo, segundo dados do Depen (2017), pelo
menos 41% da população prisional em atividade laboral recebiam menos que o valor estipulado
pela LEP, no ano de 2017. Apesar do não cumprimento da legislação, ainda assim, a opção em
trabalhar de forma remunerada torna-se mais atrativa do que a participação em outros projetos.
Nesse sentido, quando o participante 7 aponta que existem outras formas de remição, entende-se,
que não seria o fator da “redução dos dias de pena” a principal motivação por sua participação no
projeto. Em vista disso, mesmo diante de outras possíveis ofertas de trabalho ou estudo que possam
surgir, até o momento, para esses participantes, o projeto de leitura apresenta-se como diferencial
para o crescimento pessoal e intelectual.
Em outro momento, os participantes discorreram sobre suas percepções quanto aos bene-
fícios acarretados pelo processo de ler, escrever e falar.
PARTICIPANTE 2: A leitura me despertou o interesse, vontade de ler, então
melhorou muito meu vocabulário, minha forma de escrever também.
PARTICIPANTE 5: [...] melhorou a dicção, a escrita, a própria leitura em si.
PARTICIPANTE 8: [...] no começo a gente conforme vai lendo, vai aprendendo
a se expressar, escrever, tudo a gente percebe a diferença. Agrega novas palavras.
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Segundo os relatos, a leitura serviu como um instrumento de enriquecimento da lingua-
gem e escrita, agregou novas palavras, melhorou o vocabulário e despertou maior interesse na
aprendizagem.
De fato, a leitura promove habilidades cognitivas e metacognitivas que possibilitam que
o indivíduo decodique símbolos, capte signicados, intérprete sequências de ideias ou eventos,
estabeleça analogias, comparações, linguagem gurada, relações complexas, habilidades de fazer
previsões sobre o sentido do texto, de construir signicados, de reetir sobre o signicado do
que foi lido e tirar suas conclusões (SOARES, 2009). Todos esses elementos são necessários
para que o leitor compreenda o texto e possa, posteriormente, redigir uma resenha de acordo
com a obra literária lida. Tais competências, naturalmente auxiliam no aperfeiçoamento de sua
linguagem e na forma de se comunicar com o outro.
Entretanto, Soares (2009) também aponta que é difícil denir as competências neces-
sárias para evidenciar o domínio de um letramento funcional, considerando que não se trata
simplesmente de um conjunto de habilidades individuais de leitura e escrita, mas em como essas
habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais.
Em que pese a possibilidade de socialização proporcionada pelo processo de leitura e
escrita mediante as experiências e trocas vivenciadas no projeto, é preciso considerar, ainda,
que a concepção e a instrumentalização da prática literária suportam interferências forjadas de
acordo com as necessidades e condições sociais especícas de determinado momento histórico.
Diante disso, questionou-se qual o impacto sociocultural proporcionado pela participação no
projeto de leitura. Ou seja, em que medida a ação interfere na vida, nos atos, no cotidiano e nas
perspectivas dos indivíduos sobre sociabilidade em grupo e em sociedade?
A partir do entendimento dos participantes, a participação nas ocinas modicou con-
cepções a priori e a maneira de enxergar o mundo,
PARTICIPANTE 1: [...] porque na medida que você vai lendo, você vai tendo
coisas que vai te resgatando, você volta no seu eu, no seu mundo [...] Aí você
olha para o passado, coisas que você lutou, que você buscou e hoje você está
aqui nessa situação né. Que a gente mesmo criou. Mas através da leitura,
através do ensinamento, através desses encontros, eu tenho que realmente ser
um ser humano mais humano, digamos assim.
PARTICIPANTE 3: A minha visão de mundo expandiu muito, expandiu muito
pelo lado das religiões, pelo lado das ideologias, pelo lado das etnias, porque
aborda vários assuntos a literatura, e tem contribuído para eu ver o mundo de
vários pontos de vista, de várias maneiras de se interpretar o mundo, não só
do meu modo de ver o mundo, mas procurar ver a visão de outras pessoas, de
outros autores, de personagens que passam por situações muito difícil, muitas
vezes até nas suas histórias, como eles lidam com isso, como lidam com as
vitórias, com as derrotas, com os relacionamentos, e isso tem contribuído na
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minha maneira de enxergar o mundo.
PARTICIPANTE 6: Na minha condição de custodiado, eu vivo com outras
pessoas, então o meu relacionamento dentro de uma cela hoje, é muito mais
seguro, muito mais agradável por conta da leitura, eu atribuo isso a leitura,
porque através da leitura a gente pode se policiar, a gente pode talvez estar
tendo, como eu já disse, outro ponto de vista, e a gente saber resolver as ques-
tões que são impostas no dia a dia com o auxílio da leitura. A leitura traz muita
autoajuda pra gente.
PARTICIPANTE 7: Houve uma mudança bem grande, acho que cada livro
que você lê, ele te marca de uma forma especial, ele te ensina algo. Então
constantemente você está passando por uma transformação, você está vendo
coisas diferentes, observando situações diferentes, e aprendendo a lidar com
essas situações. Então é uma mudança gradativa, mas ela é constante.
Na ótica dos participantes, a experiência literária tem contribuído para que repensem
sua trajetória de vida, se tornem mais humanos, compreendam melhor a visão dos colegas no
interior das celas, saibam lidar com outros pontos de vista e aprendam a lidar com situações
diversas. Nesse caso, ca evidente os benefícios que o projeto tem contribuído para o cotidiano
desses indivíduos.
O participante 3 demonstra indícios de que sua percepção sobre a realidade social se
modicou para além de sua vivência no cotidiano da unidade prisional, quando relata que “[...]
sua visão expandiu muito pelo lado das religiões, pelo lado das ideologias, pelo lado das etnias
[...]”. A narrativa caminha na direção proposta por Freire (1989) quando menciona sobre a im-
portância do ato de ler. Para o educador, a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto, no qual cria-se um movimento
do mundo à palavra e da palavra ao mundo, de forma que a leitura do mundo possa ser escrita
ou reescrita, ou seja, de transformá-la por meio de sua prática consciente (FREIRE, 1989).
o participante 6 percebe que a leitura modicou a interação com os colegas de cela
“[...] então o meu relacionamento dentro de uma cela hoje, é muito mais seguro, muito mais
agradável por conta da leitura [...]”. A narrativa demonstra as potencialidades humanísticas e
certa simbiose com a leitura que atua como meio motivador de aproximação entre os indivíduos
e, com isso, ameniza as tensões em ambiente hostil e de superlotação (PEREIRA, 2020).
Na mesma direção, Soares (2009) aponta que o letramento “em perspectiva mais radical”,
torna-se responsável por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de
poder presente nos contextos sociais.
Entende-se, assim, que projetos literários na prisão, contribuem para o alargamento da
percepção crítica do indivíduo, de forma que a leitura faça sentido para si, em processo reexivo
sobre seus próprios atos e, sobretudo, para a compreensão da vida em sociedade.
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Notas nais
Este artigo procurou vericar como participantes de projeto de leitura em unidades prisio-
nais percebem práticas literárias e os reexos proporcionados na vida e no cotidiano penitenciário.
Nota-se, a partir de suas narrativas, que as ações literárias têm contribuído, signicativa-
mente, para os avanços de capacidades relacionadas às práticas de leitura, escrita, em especial,
para a ampliação de códigos linguísticos dos participantes. Assim como vem modicando a
forma como agem, pensam, interagem com os demais colegas em condição de aprisionamento
e nas reexões sobre história e problematização da própria realidade. Isto implica em dizer, que
projetos dessa natureza, contribuem fortemente com o processo de socialização e para o exercício
da cidadania e integração à sociedade no período posterior à privação de liberdade.
Nesse sentido, considera-se fundamental que o Estado brasileiro (união, estados e muni-
cípios) institucionalize políticas educacionais de fomento da leitura e escrita, de caráter perma-
nente, e com o investimento em bibliotecas e acervo literário nas prisões brasileiras, de forma
a alcançar maior quantitativo de pessoas, especialmente ao considerar a restrição de oferta da
educação formal no sistema penitenciário.
Por m, a resolução de duas frentes será determinante para a expansão da oferta e garantia
do acesso às práticas de leitura e escrita, que desdobram-se em remição pela leitura em espaço
de privação de liberdade, a saber: (1) aprovação de Projeto de Lei que altera a LEP e introduz a
previsão da remição pela leitura e escrita na prisão e a (2) gestão da política penitenciária pelo
Depen, em parceria com as Secretarias estaduais de modo a instituir, de fato, um Programa
Nacional de remição pela leitura.
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Recebido: 07 de Dezembro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Odair França de Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10235
PROFESSOR EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO
DE LIBERDADE: UM FAZER DOCENTE
EM CONSTRUÇÃO
Odair França de Carvalho
1
Universidade de Pernambuco
http://orcid.org/0000-0003-4864-4510
Maria do Socorro da Silva Ferreira
2
Rede Estadual de Educação de Pernambuco
http://orcid.org/0000-0003-0044-4384
RESUMO:
O estudo tem como objetivo apresentar as narrativas docentes sobre a prática pedagógica desenvolvida
no interior de uma escola na penitenciária Dr. Edvaldo Gomes. Ancora-se na abordagem qualitativa e na
pesquisa narrativa. Os sujeitos da pesquisa foram 13 professores que atuam nas diversas etapas da Edu-
cação de Jovens e Adultos. Como instrumento de coleta de dados, recorreu-se à aplicação de um ques-
tionário para levantamento do perl dos colaboradores e a distribuição de um caderno para construção
de um memorial narrativo. A análise de dados ancorou-se na forma interpretativa-compreensiva a partir
do método da análise do conteúdo de Bardin (2011). Os resultados obtidos anunciam uma prática anco-
rada nos saberes da experiência e neste sentido, os professores são desaados a romperem com práticas
educativas conservadoras, sejam elas fora ou dentro do espaço de privação. Além disso, ao escutar os
professores, pode-se apreender que o exercício da docência na prisão é uma ação solitária desse grupo,
pois esses têm desenvolvido suas práticas a partir de experiências pautadas no erro e no acerto, tendo
como base a ação educativa anterior, tornando esse fazer em processo em construção. Assim, nesse ce-
nário, a formação continuada em serviço ocupa um lugar de destaque na edicação de novos saberes no
campo da educação em prisões, como espaço de reexão-ação sobre os sucessos, fracassos e desaos na
possibilidade de produção de novos conhecimentos sobre o papel da educação no resgate do homem e
da mulher privados de liberdade.
Palavras-chave: Prática Pedagógica. Educação em Prisões. Pesquisa Narrativa.
ABSTRACT:
TEACHER IN SPACES OF DEPRIVATION OF FREEDOM: A TEACHER
DOING UNDER CONSTRUCTION
This study aims to present the teaching narratives about the pedagogical practice developed inside a
school at the Dr. Edvaldo Gomes. It is anchored in the qualitative approach and in narrative research.
The research subjects were 13 teachers who work in the various stages of Youth and Adult Education. As
a tool for data collection, it used the application of a questionnaire to survey the prole of employees and
the distribution of a notebook to build a memorial of the narrative. The data analysis was anchored in the
interpretive-comprehensive form based on the method of content analysis by Bardin (2011). The results
obtained announce a practice anchored in the knowledge of the experience and in this sense, teachers
are challenged to break with conservative educational practices, whether outside or inside the prison.
1 Doutor (UFU). Professor Adjunto (UPE). E-mail: odair.carvalho@upe.br
2 Mestra em Educação. Professora da Rede Estadual de Petrolina e da Rede Municipal de Educação de
Pernambuco. E-mail: socorropedagoga@outlook.com
Professor em espaços de privação de liberdade: um fazer docente em construção
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In addition, listening to the teachers, one can learn that teaching in prison is a solitary action by this
group, as they have developed their practices based on experiences based on error and success, based
on the previous educational action, making this work in process under construction. Therefore, in this
scenario, continuous training in service occupies a prominent place in the building of new knowledge in
the eld of education in prisons, as a space for reection-action on the successes, failures and challenges
in the possibility of producing new knowledge on the role of education in the rescue of men and women
deprived of their liberty.
Keywords: Pedagogical Practice. Prison Education. Narrative Research.
RESUMEN:
MAESTRO EN ESPACIOS DE PRIVACIÓN DE LIBERTAD: UN MAES-
TRO HACIENDO EN CONSTRUCCIÓN
Este estudio tiene como objetivo presentar las narrativas docentes sobre la práctica pedagógica desar-
rollada al interior de una escuela en el Penal Dr. Edvaldo Gomes. Está anclado en el enfoque cualitativo
y en la investigación narrativa. Los sujetos de investigación fueron 13 docentes que laboran en las dis-
tintas etapas de la Educación de Jóvenes y Adultos. Como herramienta de recolección de datos, utilizó la
aplicación de un cuestionario para relevar el perl de los empleados y la distribución de un cuaderno para
construir un memorial de la narrativa. El análisis de datos se ancló en la forma interpretativa-integral
basada en el método de análisis de contenido de Bardin (2011). Los resultados obtenidos anuncian una
práctica anclada en el conocimiento de la experiencia y en este sentido, los docentes tienen el desafío de
romper con las prácticas educativas conservadoras, ya sea fuera o dentro de la prisión. Además, escu-
chando a los docentes, se puede aprender que la docencia en prisión es una acción solitaria de este grupo,
ya que han desarrollado sus prácticas a partir de experiencias basadas en el error y el éxito, a partir de la
acción educativa previa haciendo esta obra en proceso en construcción. Por tanto, en este escenario, la
formación continua en servicio ocupa un lugar destacado en la construcción de nuevos conocimientos en
el ámbito de la educación en las cárceles, como espacio de reexión-acción sobre los aciertos, fracasos
y retos en la posibilidad de producir nuevos conocimientos sobre el papel de educación en el rescate de
hombres y mujeres privados de libertad.
Palabras clave: Práctica Pedagógica. Educación Carcelaria. Investigación Narrativa.
Introdução
O texto apresentado é um recorte de uma dimensão do resultado de um estudo desen-
volvido em nível de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e
Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI), da Universidade de Pernambuco, integrando os trabalhos
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Escolar e não Escolar no Sertão Pernambucano.
A temática central dessa investigação são as práticas educativas de educadores no interior de uma
escola prisional em Petrolina/PE. Nesse processo de investigação, duas questões nortearam a
nossa pesquisa que agora apresentamos nesse artigo: Quais são os maiores obstáculos ao exercer
à docência dentro da prisão?; e Que práticas pedagógicas podem existir nas salas de aula neste
espaço educacional?
Odair França de Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
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Há uma discussão em toda América Latina
3
sobre o papel da educação dentro do sistema
prisional e do papel do educador, desse movimento destaca-se a produção do Mapa Regional
de Educação em Contextos de Privação da Liberdade na América Latina (RANGEL, 2009). É
neste contexto que se acredita que as proposições desse artigo irão contribuir para pensar o fazer
docente em uma escola dentro da prisão. Este território vive todos os problemas que ocorrem
na unidade prisional que advém de uma sociedade em crise: o analfabetismo, a exclusão social,
o preconceito, o fracasso escolar, as desigualdades sociais e tantos outros. Assim, concorda-se
com Carvalho (2013) ao enfatizar que:
grandes desaos a serem superados ao organizar um sistema educacional
prisional brasileiro, grande em diculdades, mas também em possibilidades,
sistema esse que foi sendo estruturado com experiências singulares em esta-
dos, cidades e unidades. Acreditando que o maior desao seja implantar ações
educativas signicativas em parceria com a área de segurança, a instituição
penal institucionaliza retira independência e autonomia do ser humano (p. 54).
Nesse sentido, os desaos em sua maioria se alicerçam na prática pedagógica que é re-
alizada nas salas de aulas ou nas “celas de aula” das unidades educacionais dentro do sistema
prisional. Com as poucas ações formativas para preparar os prossionais que atuam em escolas
dentro da prisão, faz necessário reetir sobre o processo formativo e as práticas pedagógicas de
docentes que atuam nesses ambientes, visando buscar ações mais efetivas para as reais necessi-
dades deste espaço educativo – a escola na prisão. Onofre (2011, p. 110), esclarece que mesmo
perante este cenário,
Os estudos sobre educação de adultos em situação de privação de liberdade
têm mostrado a possibilidade de se construir a escola nas prisões enquanto es-
paço diferenciado das prerrogativas carcerárias. (PENNA, 2003; ONOFRE,
2002; SANTOS, 2002; LEME, 2002; PORTUGUÊS, 2001; SILVA, 2001)
O presente trabalho tem como objetivo apresentar as narrativas docentes sobre a prática
pedagógica desenvolvida no interior de uma escola na Penitenciária Dr. Edvaldo Gomes. No
primeiro momento, apresenta-se os caminhos metodológicos da pesquisa, em seguida, realiza-
-se uma breve caracterização da unidade prisional. No terceiro momento, expõe-se o lócus da
3 Destacam-se nesse processo os diálogos realizados com o Programa Eurosocial vinculado à União que
tem o objetivo de promover troca de experiências entre representantes do poder público da América Latina em
áreas como justiça, educação, emprego e saúde. Essa articulação resultou na criação em 2006 da Rede Latino-
-Americana de Educação em Prisões (RedLECE) objetivo de possibilitar a troca de experiências, a elaboração
coletiva de reexões e ações fundamentais para o fortalecimento da política de educação nas prisões latino-ame-
ricanas e a compreensão da educação como um direito humano ao longo de toda a vida aos privados de liberdade.
São membros: Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras e Paraguai, representados por seus
respectivos ministérios da educação; Colômbia e Peru, representados por seus institutos nacionais penitenciários;
o México, representado por sua Secretaria de Educação Pública; e o Uruguai, através da Administração Nacional
de Educação Pública do país. Resultando no diálogo e na produção de conhecimento entre os pesquisadores desses
países.
Professor em espaços de privação de liberdade: um fazer docente em construção
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pesquisa. No quarto momento, apresenta-se elementos que perpassam os fazeres e as práticas
dos professores. E por m, apresentamos as considerações nais.
Os caminhos da pesquisa
Esta pesquisa se inspirou em uma abordagem narrativa, de natureza qualitativa. Os da-
dos foram coletados por meio do levantamento bibliográco acerca da temática da pesquisa,
observações das aulas, aplicações de questionários, entrevistas com os educadores a partir dos
relatos narrados, registros de campo sobre suas práticas pedagógicas, histórias de vida e da
sua formação (cadernos). A análise de dados ancorou-se na forma interpretativa-compreensiva
a partir do método da análise do conteúdo de Bardin (2011). Assim, pautou-se no memorial/
autobiograa dos educadores, acreditando que ela “permite ao indivíduo-sujeito tornar-se ator
do seu processo de formação, por meio da apropriação retrospectiva do seu percurso de vida”
(NOVOA; FINGER, 2014, p. 154).
Para a construção das narrativas de experiências vividas pelos educadores - que foram
registradas em cadernos utilizados pelos colaboradores para registro (memorial), essas narrativas
foram organizadas da seguinte maneira: anos iniciais (1ª fase - dois e 2ª fase - dois); anos iniciais
do Ensino Fundamental (três da 3ª fase, três da 4ª fase) e na EJA Ensino Médio (um por módulo
totalizando três sujeitos), perfazendo um total de 13 colaboradores
4
.
Nesta pesquisa, foi utilizado o critério da invisibilidade dos narradores. Para a apresen-
tação dos colaboradores e suas narrativas (memoriais), retratamos os sujeitos por codinomes
de ores. Foram eles: Margarida, Girassol, Rosa, Violeta, Lírio, Bem-me-quer, Jasmim, Tulipa,
Crisântemo, Lavanda, Flor, Antúrio e Allium.
O levantamento bibliográco acerca da temática, assim como as observações de aulas,
foram de relevância para proporcionar a aproximação com o grupo pesquisado. Após estes pro-
cedimentos, realizou-se a análise de dados mediante a descrição dos fenômenos coletados com
os educadores, estudantes e carreirinhas
5
. Os dados com os colaboradores foram coletados no
primeiro semestre de 2019.
A pesquisa que embasa essa produção obteve autorizações das duas secretarias que
regem a educação no interior das prisões no estado de Pernambuco: a Secretaria Executiva de
4 É preciso esclarecer que no processo de tessitura do texto (recorte) em alguns momentos retrata-se a
percepção dos alunos, que foram coletadas durante a pesquisa, por meio de uma entrevista feita a 26 estudantes
que frequentavam a escola naquele momento, com indagações sobre os motivos que levam os alunos a abandonar
a escola e a prática pedagógica (avaliação, planejamento e, relação professor-aluno).
5 Os carreirinhas são detentos que organizam as demandas dentro do Pavilhão para ações na área da
saúde, educação, trabalho, serviço social entre outras atribuições, também são denominados de faxina.
Odair França de Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 116-136, jan./abr. 2021
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Ressocialização e a Secretaria de Educação. Após o consentimento das secretarias, realizou-se
os mesmos procedimentos de solicitação de autorização junto ao diretor da penitenciaria Dr.
Edvaldo Gomes.
O processo de coleta e análise dos dados proporcionaram uma compreensão maior da
dinâmica escolar, revelando nuances antes não percebidas no decorrer do dia a dia, como por
exemplo: os sujeitos envolvidos para que ocorra as aulas; o estar em sala de aula na escola loca-
lizada dentro da prisão; as relações com pares que caem na lógica da rotina ou melhor do piloto
automático. Assim, acaba-se encarando a escola na prisão como um espaço normal.
A Penitenciária Dr. Edvaldo Gomes
A Penitenciária Dr. Edvaldo Gomes é uma instituição que abriga exclusivamente privados
de liberdade do sexo masculino. A unidade prisional é localizada na zona urbana de Petrolina, mais
especicamente na Av. Jatobá, nº 640, Bairro: Henrique Leite. Foi inaugurada em 24/05/2002.
Esta unidade abriga indivíduos com mais diversos delitos e situações: provisórios, sentenciados
e os que cumprem a pena em regime fechado e semiaberto.
Atualmente, a penitenciária tem a capacidade para 775 pessoas, mas sua lotação está de
1.279 homens, neste sentido, foi criado de forma improvisada, o pavilhão de regime semiaberto,
vindos de cadeias públicas circunvizinhas. Deste quantitativo, 216 são sumariados; 809 estão no
regime fechado; 251 detentos no semiaberto; 0 no patronato; 9 indígenas; 0 estrangeiro. Contam-se
64 agentes penitenciários distribuídos entre plantonistas e diaristas. Esse efetivo não é suciente,
já que é preciso um agente para cada cinco presos, segundo a Resolução nº 9 de 13/11/2009, do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), nesse caso, deveria haver mais
de 250 (duzentos e cinquenta) agentes para atender de forma eciente as demandas da unidade.
Os privados de liberdade da unidade são abrigados em 4 pavilhões nomeados por letras
do alfabeto do A a D. Nestes espaços há: 1 pavilhão assistencial (presos trabalhadores da unida-
de), 1 pavilhão individual (crimes sexuais), 2 celas seguro (indivíduos sem convívio social) e a
unidade do semiaberto. Aqui, todos recebem três refeições diárias.
Após essa breve incursão sobre a unidade prisional, apresenta-se algumas informações
sobre a escola.
A Escola Estadual Bento XVI
A escola estadual Bento XVI foi instituída em 2012, através do Decreto nº 37717, de
29/12/2011. Situada na Penitenciária Dr. Edvaldo Gomes, esta escola contempla dois anexos.
Professor em espaços de privação de liberdade: um fazer docente em construção
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Neles, funcionam ensino fundamental (anos iniciais e anos nais), ensino médio, programas do
Travessia (fundamental e médio da modalidade EJAI - Educação de Jovens e Adultos e Idosos).
O anexo feminino tem duas salas de aula com uma turma da 2ª fase anos iniciais, uma
turma do Programa Travessia Fundamental e uma turma do Travessia Médio, nos turnos da manhã
e tarde. Na unidade do semiaberto, há duas salas de aula que funcionam uma turma do Travessia
Médio e uma com Travessia Fundamental (1ª fase e 2ª fase), nos turnos manhã, tarde e noite.
Para o ano de 2019, de uma população de 1.279 detentos, foram matriculados 466 alu-
nos, com frequência atual de 303 alunos, distribuídos da seguinte forma: os anos iniciais do
ensino fundamental com 148 alunos, os anos nais do ensino fundamental com 93 alunos, o
EJA médio com 35 alunos, o Programa Travessia (Fundamental e Médio) com 27 estudantes.
Quanto à estrutura física, no espaço há cinco salas para as seguintes nomeações: coordenação,
professores, secretaria, gestão e supervisão pedagógica. Nesse período, a unidade contava com
142 estudantes que não conheciam o processo de alfabetização.
Ainda sobre a estrutura física, a escola não possui biblioteca, há apenas um espaço deno-
minado sala de leitura. Há uma cozinha, dois banheiros para os alunos e dois para os educadores.
A unidade conta com uma equipe gestora composta pela gestora, pela gestora adjunta,
pela secretária e pela coordenadora pedagógica que atua junto a 28 educadores, desses, 18 são
do quadro efetivo e recebem uma graticação diferenciada
6
, que os contratados não recebem. A
faixa etária dos educadores da unidade escolar é de 40 a 82 anos, com experiência de mais 20
anos de docência. A escola dispõe de dois data shows, um computador para professores e não há
laboratório para os alunos. O material pedagógico utilizado são os livros da modalidade EJA. Há
poucos mapas e existem apenas 2 microscópios em perfeitas condições de uso, mas em desuso.
Em relação à prática educativa pedagógica, naquele momento da pesquisa, a escola não
vivencia nenhuma atividade para além das aulas regulares, apenas um projeto foi desenvolvido
no primeiro semestre de 2019 e que nalizou com a culminância da festa junina. No Projeto
Político-Pedagógico é mencionada a temática formação continuada, mas não ocorreu nenhuma
formação direcionada para os educadores na prisão neste primeiro semestre, mesmo tendo sido
especicado um cronograma de estudo para os professores.
6 Graticação de Exercício em Unidade Socioeducativa GEUS, estendida pela Lei Complementar n°
304, de 10 de julho de 2015, para o servidor ocupante de cargo público de professor, com jornada laboral mensal
de 200 (duzentas) horas-aula, na função de professor ou coordenador pedagógico da Rede Pública Estadual de
Ensino, lotado em efetivo exercício nos centros de ensino no âmbito do Sistema Prisional do Estado, a partir do
mês de outubro de 2015.
Odair França de Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
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Práticas educativas que se forjam no fazer
No ensino brasileiro há muitos problemas de aprendizagem e escolarização,
e estes se intensicam devido aos métodos ou estratégias didáticas não muito
pertinentes utilizadas para a apropriação dos conhecimentos cientícos pelos
sujeitos, por meio das disciplinas escolares (LONGAREZI, JESUS, 2018, p.
536).
Mediante os relatos fornecidos pelos colabores a respeito da formação e dos saberes
construídos por esses sujeitos para atuar no ambiente prisional, concorda-se com a armativa
de Longarezi e Jesus (2018), sobre as diculdades que permeiam esse espaço pedagógico, tendo
em vista que os professores, exceto Lírio, não possuem especialização e desempenham seus
fazeres a partir dos saberes da experiência. Dessa forma, busca-se nesta seção responder a duas
questões-chave da pesquisa: Que práticas pedagógicas podem existir nas salas de aula neste
espaço educacional? Quais são seus maiores obstáculos ao exercer à docência dentro da prisão?
Assim sendo, tem-se como objetivo identicar quais são as práticas pedagógicas desenvolvidas
no interior da escola. Para isso, buscou-se respostas nos estudos de Carvalho (2014), Libâneo
(2011), Sacristán (1999), Tardif (2000, 2010) e Onofre (2011, 2009).
De acordo com Vaillante e Marcelo (2012, p. 75), “as práticas de ensino seguem sendo
o elemento mais valorizado, tanto pelos docentes em formação como em exercício, com relação
aos diferentes componentes do currículo formativo”. Os futuros professores têm contato com as
práticas de ensino durante toda sua vida escolar, mas é durante a formação inicial que adentram
às escolas, com o papel de estagiário, que seria a sua primeira experiência para romper com
práticas pedagógicas estabelecidas ou reconstruí-las.
Sacristán (1999) dene a prática educativa como algo maior que apenas o ofício dos
professores: como uma cultura compartilhada pelos prossionais da educação. O autor ainda
conceitua a prática pedagógica como aquela que acontece nas salas de aula e não pode ser tomada
de modo isolado ou em uma perspectiva de prática cultural autônoma. Esta dialoga como outras
dimensões como a social, a política e a econômica. Complementando os debates elucidados,
entende-se que,
[...] nesse sentido, a prática pode ser vista como um processo de aprendizagem
através do qual os professores retraduzem sua formação e a adaptam à pros-
são, eliminando o que lhes parece inutilmente abstrato, ou sem relações com a
realidade vivida e conservando o que pode servir-lhes de uma maneira ou de
outra (TARDIF, 2010, p. 53).
Para o autor, os professores recorrem aos saberes para refazer suas práticas e, “[...] em-
bora os professores utilizem diferentes saberes, essa utilização se dá em função do seu trabalho
Professor em espaços de privação de liberdade: um fazer docente em construção
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e das situações, condicionamentos e recursos ligados a esse trabalho” (TARDIF, 2010, p. 17),
pois, os sucessos ou fracassos nos fazem pensar e repensar o seu fazer no cotidiano do ato de
ensinar. Para Tardif (2000, p. 11),
[...] os saberes prossionais são saberes trabalhados, lapidados e incorporados
no processo de trabalho docente e que só têm sentido em relação às situações
de trabalho concretas, em seus contextos singulares e que é nessas situações
que são construídos, modelados e utilizados de maneira signicativa pelos
trabalhadores do ensino.
Pode-se associar que os saberes que os professores agilizam num determinado contexto,
neste caso o da escola regular, não são os mesmos agilizados para a docência no interior de uma
escola na prisão e com alunos que trazem marcas singulares, em relação às crianças e adoles-
centes. Ao aplicar o questionário aos alunos, algumas situações começaram a ser desveladas em
relação à prática pedagógica dos(as) professores(as) e quando responderam sobre a prática de-
senvolvida no interior das salas de aula, as impressões dos estudantes foram positivas, armando
que 85% dos professores planejam suas aulas e 15% improvisam na hora de ensinar, dado que
foi conrmado nas observações de campo. Já em relação ao tema: se aula é bem explicada e se
essas explicações são claras, 96% dos pesquisados armam que sim.
Esse diálogo é bem relevante, pois corroboramos com os pensamentos de Tardif (2000) e
Sacristán (1999), quando os saberes docentes, e nesse caso, o saber da experiência dissociado da
ação-reexão-ação, retraduzem a ação do professor, decorre de situações, as quais, na visão de
Libâneo (2011), necessitam de rupturas, haja vista as complexidades da educação contemporânea,
que forma o sujeito para que ele signicados aos conhecimentos construídos/apreendidos.
Essa reexão é traduzida na fala Violeta (2019), ao elencar que a prática pedagógica precisa ir
além da tríade - saliva, lousa e livro - e que há necessidade de romper com a prática tradicional.
O rompimento com a prática tradicional trouxe várias ações de sucesso que ocorreram em outros
momentos. A professora traz elementos da interdisciplinaridade em sua fala como o debate sobre
a parceria, a ousadia, o investimento no novo.
Necessita-se dialogar a respeito dessas considerações de Violeta (2019), pois há mo-
mentos, em que os debates dos colaboradores evidenciam a falta de formação continuada dos
prossionais que atuam nesse ambiente, assim, como são demarcadas, que tais práticas são
reverberadas por saberes experienciais. Também chama-se a atenção a respeito desse debate
sobre a interdisciplinaridade a partir dessa inter-relação à parceria, à ousadia, ao investimento
no novo. Sabe-se, inclusive, e nos apoiando nos debates de Silva e Carvalho (2019), entende-se
que essas ações contemplam um fazer interdisciplinar de fato, desde que esteja associado ao
processo de ação-reexão-ação, contemplando, sobretudo, as singularidades e as complexidades
Odair França de Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
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concernentes da sala de aula do presídio. Violeta (2019) destaca como ações que protagonizam a
prática pedagógica por meio do saber-fazer interdisciplinar e acrescenta, que reconhece a escola
como um lugar em transformação constante.
Ação interdisciplinar ocorrida na experiência Semana da Língua Portuguesa;
Semana da Matemática onde todas as áreas do conhecimento eram vivencia-
das durante uma semana por toda a Escola.
Projeto Protagonizando a Paz na escola. Com o objetivo de sensibilizar para
fortalecer uma rede de solidariedade para contribuir para reduzir violência
no dia a dia desao de ampliar a prática de valores (generosidade, gentileza,
compreensão, solidariedade, cooperação.
Contribuindo de forma signicativa com nossas reexões, Rosa (2019), revela que apren-
deu a trabalhar na escola da prisão por meio da troca de saberes, com seus pares. Observando
a prática e a maneira de trabalhar dos colegas, naquele ambiente aprendeu bastante com eles.
Carvalho (2014) nos alerta que uma das múltiplas possibilidades de a prática docente se desen-
volver de forma signicativa, é por meio do planejamento didático-pedagógico, sob o qual se
traçam novos caminhos em vistas de uma ação prática reexiva.
Dessa forma, e entrando em consonância com os dizeres de Lavanda (2019), entende-se
que quando os professores reetem em meio a sua prática, consequentemente, conseguem dei-
xar marcas preciosas na construção do conhecimento do aluno e na própria ação-reexão-ação.
Assim, como defende Carvalho (2014), o planejamento é uma ação essencial e indispensável ao
fazer do professor que reete sua prática. Já Lavanda (2019), discorre que
[...] percebi a necessidade de me planejar e de estabelecer metas em sala de
aula além de ver o meu aluno como um ser único, carecedor de respeito é
carecedor de uma aula digna. Na sala de aula pude perceber que a educação
realmente transforma e que o professor pode e deve mediar a essa transforma-
ção, prova disso é que quanto maior o grau de instrução do apenado menor é
o índice de reincidência na vida carcerária (LAVANDA, 2019).
Para revigorar o processo de ensino e de aprendizagem dentro do sistema prisional, a
professora Lavanda (2019), busca no planejamento, as estratégias que oportunizem o estudante
a ir além da educação escolar.
[...] com o ensino médio tive o prazer de ver histórias mudando, alunos sendo
aprovados no ENEM e cursando posteriormente uma faculdade. Nas aulas de
Redação eu tentei ir além das normas da escrita e trabalhei com diversos temas
onde sempre tive o feedback do aluno quase que em sua maioria. Trabalhar
com essa clientela não é fácil e nunca será. Sempre existirá algo a ser feito,
repensado, planejado.
É preciso planejar sim de maneira que seu conteúdo tenha relevância para esse
aluno, pois se depender de livros, os mesmos não contemplam essa realidade.
Professor em espaços de privação de liberdade: um fazer docente em construção
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Os alunos começam, mas nem sempre terminam e os motivos são os mais di-
versos. Diante dessa realidade o professor tem que ser um entusiasta, acreditar
no valor de seu trabalho, na sua contribuição para com aquelas vidas e buscar
se reciclar todos os dias.
A Escola Bento XVI é uma escola que oportuniza ao professor material didá-
tico necessário e a gestão é aberta às solicitações dos professores. O que falta
mesmo é entusiasmo, pois não tem como entusiasmar o aluno se o professor
não se entusiasma primeiro. É necessário estudo, anco, já não se aceita mais
a possibilidade de cadernos amarelados de dez anos atrás.
Outro fenômeno que desgasta muito a nossa escola é o índice de faltas por
parte do professor, pois no sistema carcerário não deve existir aula vaga por-
que elas geram evasão escolar e eu não compreendo o porquê que o professor
aqui tem essa mentalidade irresponsável visto que não há como repor as aulas
(LAVANDA, 2019).
Lavanda compartilhando suas ideias em relação aos professores que trabalham na pri-
são, destaca a importância de ser um professor motivador, que compreende os desaos de um
ambiente diferenciado.
[...] é triste admitir, mas quem mais coloca o processo educacional a perder
aqui na escola é o professor. Claro que existem prossionais que fogem da
regra, mas são minoria. Hoje trabalho com as mesmas disciplinas nas 3ª e 4ª
fase de EJA e também encontro diculdades com relação à alfabetização dos
mesmos, visto que nesta época eles já deveriam estar alfabetizados (LAVAN-
DA, 2019).
Esse diálogo de Lavanda (2019) corrobora ao que Freire (2012, p. 27) fala sobre a “im-
portância do papel do educador, o mérito da paz com certeza de que faz de sua tarefa docente
não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar a pensar certo”. Assim, a alfabetização
de jovens e adultos é sem dúvida um ato desaador para o professor que demonstra esforço de
fazer com que seus alunos avancem na escrita e na leitura.
A professora Lavanda (2019) ressalta ainda sobre o nível de aprendizagem dos seus
alunos nos anos nais e sobre a diculdade em encontrar, nas turmas, estudantes analfabetos.
[...] me vejo muitas vezes alfabetizando os mesmos e na maioria das vezes
atrasando os conteúdos referentes à série correspondente. Aqui é um lugar
onde a opressão e a busca pela educação caminham juntas. É um lugar desa-
ador de se trabalhar e quando os cadeados e grades se abrem para vir para a
escola o professor deve se “despir” de preconceitos e encarar o seu aluno com
respeito, entendendo que o seu aluno merece ser tratado com respeito, enten-
dendo que aqui é um lugar com especicidades próprias e que o professor tem
que estar preparado para lidar com essa clientela (LAVANDA, 2019).
Odair França de Carvalho e Maria do Socorro da Silva Ferreira
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Margarida (2019), também destaca a importância do planejamento para obter sucesso
na aprendizagem, sendo que a maioria dos estudantes só tem a aula para adquirir e construir os
conhecimentos. É preciso planejar sim de maneira que seu conteúdo tenha relevância para esse
aluno, pois se depender de livros, os mesmos não contemplam essa realidade. Violeta (2019)
também reconhece a importância do planejamento
as reuniões da equipe são importantíssimas para enxergamos a prática e discu-
tirmos os dados coletados, revelados em números ou em depoimentos (orais
ou escritos) pelos estudantes. Exemplo: constatação de opiniões a respeito de
um tema, a constatação do grande índice de desistência, evasão, do grande
número de analfabetos, das diculdades enfrentadas por diversos estudantes e
discutir a necessidade de aquisição ou compra de algum equipamento (VIO-
LETA, 2019).
Ainda se reconhece os momentos de planejamento coletivo como necessários para discutir
a prática e as problemáticas que afetam a escola, a nosso ver, os colaboradores já internalizaram a
importância do planejamento para o sucesso do processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido,
defendemos que, por meio do planejamento, a ação educativa decorre subsidiada por novas
atitudes docentes (LIBÂNEO, 2011), por fazeres ancorados na curiosidade, no pensar certo e com
vistas à mudança, à inovação (FREIRE, 2012), como reconhecimento de que os saberes docentes
fortalecem a prática pedagógica, de modo a potencializar transformações (CARVALHO, 2014).
Libâneo (2011) destaca a necessidade de se entender a prática pedagógica como um pro-
cesso que potencialize aos alunos, por meio do ensino, a pensar sobre o que aprende/apreende, de
modo que construam aprendizagens críticas a respeito do apreendido. Nesse sentido, Flor (2019)
destaca as ações de planejamento demonstrando que planejar leva a conhecer fatos no coletivo.
Reuniões da Equipe – importantíssimas para enxergamos a prática. Para dis-
cutirem dados coletados, [...] digo revelados em números ou em depoimen-
tos (orais ou escritos) pelos estudantes. Exemplo: Constatação de opiniões a
respeito de um tema; Constatação de grande índice de desistência, evasão;
Constatação de grande número de analfabetos; ou alfabetizando pessoas não
alfabetizadas; Diculdades enfrentadas por diversos estudantes; Para discutir
necessidade de aquisição ou compra de algum equipamento (FLOR, 2019).
Flor (2019) ressalta, ainda, que ao perceber a diferença do sistema prisional, procurou
desenvolver sua prática pedagógica aportado no processo de autoformação, como meio de me-
lhorar sua prática. Podemos demonstrar essa armação mediante sua fala
Tempos depois, senti necessidade de revisitar as Funções no EJA, estudando
o PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais em Ação: Função Reparadora,
Função Equalizadora, Função Qualicadora De maior amplitude, trata da
Educação Permanente
Que a escola, é espaço por essência, “transformador”, possa se constituir pal-
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co para - criar, recriar, refazer histórias, possibilidades novas, caminhar, a re-
educandos e educadores.
Nesse caminhar, olho atento para minhas limitações, para minha participação
na construção da organização Escolar, pois cada um de nós é responsável,
corresponsável.
Uma Instituição Educacional responsável pela formação de cidadãos, que se-
rão todos juntos responsáveis pela HUMANIZAÇÃO da sociedade (FLOR,
2019).
Flor (2019), também, reconhece o espaço escolar como o lugar da oportunidade e possi-
bilidades no processo de humanização e realiza uma autoavaliação destacando suas limitações.
O reconhecimento de Flor (2019) dialoga com os de Onofre, ao armar que:
A volta à sala de aula oferece a muitos deles a possibilidade de poder sair da
cela, “distrair a mente” e ocupar seu tempo com coisas úteis, como se pode
comprovar no estudo realizado. Quando os alunos referem-se à escola como
espaço onde ocupam a mente com coisas boas e preenchem o tempo ocioso,
pode-se atentar para a falta de atividades em que vivem (2011, p. 116).
A colaboradora Lavanda (2019) remete a questão do material didático, mas não esclarece
quais seriam, no entanto, aponta mais dois fatores da evasão escolar: o alto índice de faltas e a
ausência de entusiasmo de alguns professores, fatos que devem remeter às contratações apon-
tadas anteriormente. E ainda acusa que alguns prossionais que não se atualizam e recorrem a
cadernos de planejamento de aulas de tempos passados, revelando que não estão abertos ao novo.
É importante acrescentar, que mediante essa reexão de Lavanda (2019), o debate sobre a ação
interdisciplinar, a partir do elemento de parceria destacado por Violeta (2019), caracteriza-se
por discurso dissociado do fazer.
A Escola Bento XVI é uma escola que oportuniza ao professor material didá-
tico necessário e a gestão é aberta às solicitações dos professores. O que falta
mesmo é entusiasmo, pois não tem como entusiasmar o aluno se o professor
não se entusiasma primeiro. É necessário estudo, anco, já não se aceita mais
a possibilidade de cadernos amarelados de dez anos atrás.
Outro fenômeno que desgasta muito a nossa escola é o índice de faltas por
parte do professor, pois no sistema carcerário não deve existir aula vaga por-
que elas geram evasão escolar e eu não compreendo o porquê que o professor
aqui tem essa mentalidade irresponsável visto que não há como repor as aulas
(LAVANDA, 2019).
Percebe-se no relato de Lavanda (2019) que existem fragilidades nas relações estabelecidas
entre os colaboradores. É certo, que em qualquer ambiente de trabalho, as relações interpessoais
são situações singulares, as quais necessitam ser respeitadas em suas diversidades a m de evitar
problemas de relacionamentos entre os pares. Ao se tratar das diculdades, os colaboradores
destacam o impedimento na realização de algumas atividades devido às normas de segurança
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que interferem diretamente na prática pedagógica, pois a identidade do aluno só é respeitada
dentro do pavilhão escolar, como se pode ver no relato:
Neste lugar não existe indisciplina, mas existe a alta rotatividade de alunos, a
baixa autoestima, abstinência (ansiedade, nervosismo), desalento, desencanto
e muitos que não querem ou não consegue se apartar do crime (MARGARI-
DA, 2019).
Neste lugar não existe indisciplina, mas existe a alta rotatividade de alunos, a
baixa estima, abstinência, desalento, desencanto e muitos que não querem ou
não consegue se apartar do crime. É difícil planejar e muitas vezes ter a sen-
sação de que pouco ou nada cou no aluno naquela aula (LAVANDA, 2019).
Entre os principais fatores que vivenciei e vivencio na escola foi/é o de en-
contrar realidades bem diferentes da escola pública regular como: pequenos
números de alunos, heterogeneidade dos alunos e grande rotatividade de alu-
nos (GIRASSOL, 2019).
Grande rotatividade de alunos (CRISÂNTEMO, 2019).
Girassol (2019) revela as singularidades da realidade da escola na prisão, ao comparar
o ambiente regular ao do prisional. Destaca que a rotatividade de professores também é um
problema e enfatiza que os professores são colocados para exercer à docência na prisão sem
nenhuma preparação, pois não reconhece as singularidades do espaço e os perigos.
O ponto destacado é a ausência de indisciplina, que contribui para que a dinâmica do
processo de ensino-aprendizagem ocorra de maneira satisfatória. Por outro lado, as educadoras
relatam que o alto índice de remanejamento (pavilhão, seguro, unidade) prejudica a aprendiza-
gem do aluno e o fazer docente, a rotatividade no sistema prisional é um problema, que perma-
nece para escola resolver, pois várias pesquisas, já apontaram essa problemática em todo país
(ONOFRE, 2009).
Assim, os sistemas estaduais de educação e os órgãos responsáveis pelas prisões, não
buscam exibilizar a organização escolar, para além da forma dura e rígida que existe em bimes-
tres, semestres e anos, pois é uma realidade da prisão. Fora isso, destacamos que os problemas
comportamentais não dicultam as interações sociais entre professor e alunos. Girassol (2019),
em seu relato, remete-se a dinâmica da instituição penal como um obstáculo a prática pedagógica,
pois esta impede a realização de algumas atividades pedagógicas.
Como também as atividades que não podem ser realizados nas celas, somente
em salas de aulas o que diculta a aprendizagem e prejudica o aprofunda-
mento do currículo. Outra coisa que traz diculdade são as revistas/vistorias
surpresas feitas pela polícia militar nas celas, dicultando o planejamento das
execuções dessas atividades (GIRASSOL, 2019).
Revistas/vistorias surpresas, pela polícia militar nas celas, dicultando o pla-
nejamento das execuções (CRISÂNTEMO, 2019).
Professor em espaços de privação de liberdade: um fazer docente em construção
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 116-136, jan./abr. 2021 |
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Ao tratar da avaliação, os alunos em sua totalidade foram contundentes ao dizer que a
participação deles não existe na elaboração dos instrumentos de avaliação, decisão que ca à
mercê do professor, revelando uma visão tradicional de avaliação. Mas, por outro lado, destacam
que 95% dos professores socializam o resultado dos exames e dialogam sobre a mesmo, e que
penas 5% não comenta.
Também armam que existem incentivos por parte dos docentes para que alunos
participem das aulas, mas que 12% não utilizam dessa estratégia para o processo de ensino-
-aprendizagem. Em relação ao senso de humor dos professores, 35% declaram que os(as)
professores(as) não têm. Em relação ao entusiasmo dos professores durante as aulas, obtivemos
a mesma porcentagem que a do senso de humor. Fato que deve ser melhor investigado, pois as
dimensões das relações interpessoais apresentam um índice elevado na avaliação dos alunos e
aqui se reconhece que essa relação é de suma importância, para que o docente crie um vínculo
afetivo com os estudantes, principalmente no ambiente prisional, enfatizado por Freire (2012),
como um dos saberes a prática docente a amorosidade.
Ao serem questionados sobre as estratégias de ensino e aprendizagem, neste caso, o
trabalho em grupo, revelou-se que 58% dos professores não recorrem a essa atividade, fato que
deve ser explicado, a nosso ver, pela predominância da gura do preso e suas marcas (bravo,
violento, bandidão, machão, matador), impedindo o professor de avançar em outras possibilidades
de arranjo metodológico coletivo o que dialoga com Onofre, quando esclarece que:
[...] é preciso desmascarar alguns mitos sobre os riscos de se lidar com a popu-
lação sentenciada, pois atrás desses mitos está o ceticismo e a postura elitista
de administradores dessas organizações, que, por se constituírem em donos
do saber “especializado”, desqualicam quaisquer propostas de mudanças
(2011, p. 118).
Neste contexto, a escola que deveria quebrar esse estigma, continua reproduzindo a mesma
violência. Assim, percebe-se que essa postura eleva a identidade do preso e rebaixa a identidade
do aluno, fato que pode ser questionado, pois em atividades comemorativas, o cenário se apre-
senta de maneira totalmente inversa, visto que os reeducandos realizam danças, apresentações em
grupos, organizam festas como - a festa junina, do dia do índio e a comemoração do dia dos pais.
Ao serem questionados se o professor dá oportunidade ao estudante de expor as suas
ideias e reexões a respeito dos conteúdos propostos, 56% armam que sim, mas 44% dizem
que não. Os professores, na tentativa de evitar situações delicadas ou de enfrentamento dentro
de sala de aula, não possibilitam as manifestações das ideias dos estudantes. Por sua vez, Violeta
(2019), destaca que o maior desao do professor é:
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[...] é restituir o ser humano, sua responsabilidade por uma educação que
construa uma aprendizagem signicativa, que valorize as pessoas, a sua exis-
tência e a existência do outro na dinâmica e do movimento do mundo. A im-
permanência das coisas, a consciência de que a realidade existe mediando à
vida (VIOLETA, 2019).
O desao da Escola restituir o ser humano. Sua responsabilidade por uma
educação, pela construção de sua aprendizagem, atualização valorização da
pessoa, de sua existência e da existência ou outro e da dinâmica e do movi-
mento do mundo (FLOR, 2019).
A escola do sistema prisional não é simplesmente uma escola, mas um espaço
que busca reconstruir vidas, fazer com que evoluam como seres humanos e
que sempre acreditem em si (JASMIM, 2019).
Crisântemo (2019) destaca vários obstáculos para desenvolver a prática educativa no
interior da escola, mesmo ela estando em um pavilhão autônomo, como: heterogeneidade dos
alunos; diculdades de professores que se adaptam ao sistema prisional, e muitas vezes a con-
tratação de professores que não estão preparados para lidar com uma nova realidade e que não
possuem vínculos com a escola; indisposições e doenças dos alunos que dicultam o aprendizado
e as atividades não poderem ser realizadas nas celas, somente em salas de aulas o que diculta
a aprendizagem e prejudica um aprofundamento no programa da disciplina.
Infelizmente, percebe-se divisão/ exclusão entre os alunos pelos crimes come-
tidos, ou seja, pedólos e estupradores são discriminados por outros colegas;
A maioria dos reeducandos com seus problemas físicos, psicológicos ou de
relacionamentos na cela cam distantes, sem interesse, apáticos e buscam
apenas a remição
7
;
A professora Crisântemo (2019) naliza o texto deixando a seguinte frase: “a minha
alegria não é ver o aluno retornando as minhas aulas e sim encontrá-lo integrado a sociedade”.
Apesar de ter apenas 8 anos de docência, a professora manifesta uma maturidade:
[...] e por m, esta experiência possibilitou-me perceber o quanto posso con-
tribuir para o desenvolvimento dos alunos, não só no cognitivo, mas princi-
palmente com o psicológico e o espiritual. Com uma história de cunho moral,
uma palavra de conforto, um sorriso, um elogio, uma leitura e comentário so-
bre um texto cristão e uma prece no início da aula são luzes lançados em pedra
brutas e que um dia poderão ter o seu próprio brilho (CRISÂNTEMO, 2019).
Como se observou, a professora Crisântemo (2019) parece confundir seu papel de
educadora, trazendo para si funções que não seriam da docência em sua totalidade, abraçando
7 Ver: CASTILHO, Auriluce Pereira. A remição como forma de instrumentalizar a efetividade dos direitos
e garantias fundamentais aos reeducandos. 2016. 154 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas) -
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016. Disponível em: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2016.134
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responsabilidade que podem num futuro, desenvolver o mal-estar docente. Enquanto que a
professora Flor (2019), nos seus 23 anos de docência, demonstra maturidade advinda da ex-
periência, revelando como ela aprendeu a lidar com os alunos e apreendeu a cultura do lugar e
primordialmente destaca a importância de ajudar os alunos a ler o mundo.
Percebe-se o espaço em que vivem as pessoas privadas de liberdade como um
espaço sobrecarregado, às vezes congestionadas, cheio de impasses, tensões.
Convivem entre regras, códigos de condutas, obediência, adaptação ao cárce-
re.
A impermanência das coisas, a consciência de que a realidade existe median-
do a vida. A nossa vida mediada pela realidade. Perceberam a diculdade em
ir direto ao ponto – trabalho com/sobre tipos ou situações de violência, vício,
por exemplo. Ficam mais agressivos em defesa de vício.
Mais proveitosos foram os trabalhos que tomam como ponto de partida, refe-
rência ou situação de vínculo com o que eles têm ou guardam de melhor, de
positivo. Há uma reserva de bem, do que foi de melhor construído em cada
ser. Esse é o ponto de partida, de base para ampliar possibilidades (FLOR,
2019).
Neste relato, pode-se observar o processo de autorreexão e o autoformação. Este diálogo
possibilita o aprendizado na prática, fator importante para a construção e desenvolvimento do
prossionalismo. Nóvoa (2009, p. 40) comenta que “a formação deve contribuir para criar nos
futuros professores hábitos de reexão e de autorreexão que são essenciais numa prossão”.
Para Josso (2004), o projeto de formação constituído pelo sujeito é mediado pelo pesquisador-
-formador, a partir de estratégias instigadoras das experiências, que requer a ação de projeção.
O processo de projeção é constituído pelo ato de aprender a descobrir novos meios de pensar e
de fazer diferente. Assim, a professora Flor (2019), buscou, sua auto-orientação, a melhoria da
qualidade do seu trabalho, passando um pouco da sua experiência em educação de prisões, para
superar os desaos vivenciados por ela nesse ambiente.
O professor Antúrio (2019) demonstra preocupação em propiciar uma aula de qualidade
dentro da especicidade prisional. Acredita que a educação pode promover transformação para
uma vida diferenciada. Relata que busca a inovação pedagógica com objetivo de resgatar a
autoestima dos estudantes.
A minha trajetória pedagógica parte do princípio da contribuição da constru-
ção moral e ética do cidadão. Trabalhei como educador em Educação Física,
não só como professor que leciona conteúdos voltados para a minha área,
mas aprendendo do que ensinando na vivência com vários alunos que pude
encontrar ao longo dos meus 10 anos de educação. A minha experiência em
educação prisional, me deu a oportunidade de conhecer o ser humano nas suas
diferentes naturezas. Tenho procurado melhorar na forma de elaborar minhas
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aulas, buscando assim associar os conteúdos com lúdico e as novas tecnolo-
gias (ANTÚRIO, 2019).
Enfatiza-se, que nossas observações apontam, que mesmo frente às situações de conitos,
tensões, incertezas, Flor (2019) e Antúrio (2019) entenderam o fazer docente como um proces-
so de mobilização, de incentivo, de provocação e de estímulo aos alunos detentos. Percebe-se,
também que essas ações dos professores, estão associadas às práticas docentes dos saberes da
experiência que desenvolvem no cotidiano de suas ações e a presença de princípios do desen-
volvimento prossional.
Por m, encontra-se outro fator que diculta o desenvolvimento de uma prática pedagó-
gica inovadora que é a desmotivação prossional dos docentes, que traz obstáculos para atingir
a qualidade da educação, constituindo uma problemática no processo do ensino-aprendizagem,
tanto na relação com os alunos e colegas de trabalho. A professora Jasmim (2019) relata os
motivos que a deixa desmotivada em ministrar suas aulas.
[...] mas por pouquíssimas vezes fui reconhecida e daí iniciou-se uma desmo-
tivação grandiosa, pois sabia que sozinha ou com a minoria, não conseguiria
mudar servidores acomodados, mal acostumados, num ambiente desorganiza-
do e negativo (JASMIM, 2019).
Pelo relato da professora, muitos são os motivos que a deixa desmotivada dentro da escola,
a partir de um olhar externo, acreditamos que as práticas da professoras não são muito inovadoras
para o ambiente prisional e isso diculta a implementação das mesmas, levando-a a frustração.
Sobre as consequências da desmotivação, Guerra (2002) expõe:
(...) se a classe docente está desmotivada dicilmente ultrapassa o cumpri-
mento das suas obrigações administrativas, como o cumprir horários, assistir
a reuniões, dar aulas, partilhar a docência, dar notas e a realização de diversas
tarefas burocráticas. No sentido dos professores ultrapassarem esta desmoti-
vação aponta algumas sugestões para que os professores se sintam mais moti-
vados, como atuarem em equipa, dialogarem, projetarem e trabalharem como
uma comunidade, estarem abertos à aprendizagem. Se atuarem deste modo,
com certeza desfrutarão da sua prossão e sentir-se-ão mais motivados. Refe-
re ainda que: “o problema da motivação dos professores é complexo porque
conduz a um ciclo vicioso: se não estão motivados, não se entregarão de corpo
e alma à sua prossão, nem desfrutarão das suas dimensões mais reconfortan-
tes” (GUERRA, 2002, p. 71).
Mesmo não tendo apoio do grupo de trabalho, Jasmim (2019), segue o seu trabalho.
Acima de tudo, sua relação com os alunos parece positiva, sentindo deles respeito e valorização
prossional. A positividade dos alunos a faz buscar cada vez mais meios de ir além para alcançar
seus objetivos.
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O trabalho com reeducandos me fez ter um olhar diferenciado para aqueles
privado de liberdade, pensei melhor sobre o conceito que tinha da realidade
de cada um. Nada justica praticar crimes, mas precisei ter delicadeza no
“olhar”, no pensar. A partir de discussões em sala de aula, inúmeras interroga-
ções surgiram diante da minha experiência de vida direcionada do paradoxo
da experiência deles. Percebi que maior parte dos presos foi criado pela avó,
muitos não têm pai registrado como também são pobres.
As circunstâncias, as disparidades em relação às classes sociais, oportunida-
de de como a educação de qualidade de, que infelizmente o sistema público
vai oferecer, entre tantas reexões, me fazem acreditar, veementemente que
nosso país, nossos governantes os servidores prisionais não se empenham em
criar projetos que possam trazer para a sociedade esses presidiários, seu pre-
conceito, sem temer, desde que haja um trabalho, sério que busque resultados
positivos.
Reetir sobre nossa prática pedagógica nos faz mudar a postura que tínhamos
em uma escola regular. Escolas para alunos privados de liberdade devem ser
inovadoras, trabalhar a prática, estimular a leitura, os debates [...].
Pensando positivo verei o invisível e conseguirei o “impossível” (JASMIM,
2019).
O professor Allium (2019), menciona, em seu relato, pontos relevantes que levam os
estudantes presos a abandonarem seus estudos.
[...] Quanto à evasão escolar, existem diferentes motivos: condições de saúde
visual, desmotivação, desinteresse, etc. O que se sabe é que faz-se necessário
um empenho coletivo das pessoas envolvidas na educação prisional para que
haja uma redução signicativa dessa evasão, tendo em vista que este público,
apesar de rotativo, está muito perto da escola (ALLIUM, 2019).
Em suas narrativas, os colaboradores também remetem-se aos altos índices de evasão no
sistema prisional e chama atenção da narrativa do professor Allium (2019). Ele arma a falta de
empenho por parte do coletivo escolar. No trecho de sua narrativa, encontram-se relatos seme-
lhantes aos da professora Jasmim (2019), quando diz que é “necessário um empenho do coletivo”.
Conclui-se, que as práticas pedagógicas estão aprisionadas a uma força maior, que é a
cultura prisional e a força da segurança, levando os professores a frustrarem-se na atuação no
interior da escola da prisão, por não possuir a liberdade da escola fora dos muros. Destaca-se
que apesar da produção acadêmica ter crescido em torno da temática da educação em espaços
de privação de liberdade, a problemática em torno do fazer docente e do papel da escola no
interior da prisão caminha a curto passos, pois muito dos achados da nossa pesquisa, apresenta
convergências com estudos da primeira década dos anos 2000 (ONOFRE, 2009).
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Considerações sobre o movimento...
Ao tentar compreender a dinâmica do processo educativo no interior de uma unidade pri-
sional a partir do fazer docente, observou-se que existe uma complexidade em torno da existência
da escola dentro da unidade prisional. Esta, por mais que seja um espaço autônomo, vive sobre
as determinações das ocorrências do cotidiano prisional. Mesmo assim, é reconhecida como um
espaço plural que possibilita aprender, socializar, conviver e, principalmente, sobreviver a prisão.
O processo educativo se materializa a partir das vivências e da formação dos professo-
res. Neste caso, os professores receberam um processo formativo para atuar em salas de aulas
“regulares” para crianças, jovens e adolescentes. Isto diculta sua atuação nos primeiros anos
dentro da unidade escolar. Assim, os relatos apontam que os professores tiveram pouco contato
com as teorias que tratam da EJA e da Andragogia e pouco conhecimento dos aspectos culturais
e da vida que inuenciam o processo de formação do adulto e principalmente do adulto preso.
Os professores são desaados a romperem com práticas educativas conservadoras da es-
cola e com as suas, seja fora ou dentro da prisão. Nesse sentido, observa-se, que há uma ausência
de política de formação em serviço que ajude o coletivo escolar a: criar estratégias que visem
superar as diculdades e os limites impostos pelo lugar; assim como, promover um processo
de autoformação que leve os professores a compreender esse espaço. De outra forma, se esse
mínimo na formação não for garantido, apenas os saberes da experiência não darão conta de
romper com as grades do aprisionamento do ato educativo emancipatório.
Dessa forma, a escola no cárcere oferece aos adultos a oportunidade de avançarem em seus
estudos, mas o que falta a esta escola é conciliar esta educação com as atividades prossionais.
O trabalho para os reeducandos ainda é o referencial maior, não tem como desconectar isto. O
tempo destinado a educação no sistema penitenciário poderia estar ligado a outras aprendizagens,
saindo da formalidade e se enriquecendo com outras formas inovadoras (projetos didáticos,
aulas práticas, uso da EaD dentre outras formas), pois observa-se neste espaço apenas a mera
transposição das estratégias das escolas que funcionam fora do sistema.
Portanto, para que haja o fortalecimento das práticas educativas, é importante que a for-
mação continuada dos educadores que atuam nestes ambientes de forma sistematizada quebre
os grilhões do conservadorismo da escola e da prisão para promover um processo formativo
que reconheça a pessoa humana, presa, como um ser que pode se reconectar com o mundo em
transformação.
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Recebido em: 08 de março de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Por uma educação libertadora e uma didática fundamental com pessoas em privação de liberdade
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 137-154, jan./abr. 2021 |
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10545
POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA E UMA
DIDÁTICA FUNDAMENTAL COM PESSOAS EM
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
1
Jilvania Lima dos Santos Bazzo
2
Universidade Federal de Santa Catarina
http://orcid.org/0000-0002-8000-9130
Rui Dias Florêncio
3
Casa da Criança do Morro da Penitenciária (Florianópolis – SC)
http://orcid.org/0000-0003-1075-8360
RESUMO:
Neste artigo, objetiva-se reetir sobre a educação libertadora no contexto da Socioeducação ou da Edu-
cação em Prisões, fundamentados nas dimensões político-social e humana de uma educação liberta-
dora, com vistas à superação da prática da educação bancária e da violência simbólica, com pessoas
em privação de liberdade. Pretende-se aprofundar a discussão acerca dos aspectos pedagógicos e da
atuação docente na educação com pessoas em privação de liberdade por meio de uma breve articulação
conceitual entre as perspectivas de Paulo Freire (2018), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2013)
acerca da cultura escolar. Como é possível praticar uma educação libertadora, com vistas à superação
da educação bancária e da prática da violência simbólica, com pessoas em privação de liberdade? Para
responder tal problemática, recortamos uma abordagem metodológica fundamentados na perspectiva
multidimensional da Didática apresentada por Candau (2013) e empreendemos uma pesquisa biblio-
gráca a m de pensar a educação com pessoas em privação de liberdade no âmbito político-social e
humano, escolhendo como autores de referência as contribuições de Freire (2018) e Bourdieu e Passeron
(2013). Na sequência, partimos para as contribuições de autores que são referência no âmbito da dimen-
são humana do processo de ensino e aprendizagem, tais como Neill (1995) e Rogers (2004). Ainda que
parciais, os resultados apontam que a prática da ação dialógica com pessoas em privação de liberdade
é uma proposta que permite superar a educação bancária e a violência simbólica, contribuindo para a
emancipação social destas pessoas.
Palavras-chave: Educação. Didática. Violência simbólica. Educação bancária. Educação libertadora.
Ação dialógica. Privação de liberdade.
1 Este artigo faz parte de uma pesquisa intitulada, provisoriamente, “Sonho ou utopia? Em busca de uma
educação libertadora” que vem sendo desenvolvida no âmbito do Doutorado em Educação no Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e está vinculada ao Grupo
de Estudos e Pesquisas em Didática e suas Multidimensões – GEPDiM/UFSC. http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogru-
po/520118.
2 Doutora em Educação (UFSC). Professora do Departamento de Metodologia de Ensino (MEN) e do
Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSC). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática e suas
Multidimensões - GEPDIM. E-mail: jilvania.bazzo@ufsc.br
3 Mestre em Reabilitação Psicomotora (Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa).
Psicomotricista na Casa da Criança do Morro da Penitenciária (Florianópolis – SC) e na Associação Caminhos
para a Vida (Florianópolis – SC). E-mail: ruidiasorencio@gmail.com
Jilvania Lima dos Santos Bazzo e Rui Dias Florêncio
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ABSTRACT:
FOR A LIBERATING EDUCATION AND A FUNDAMENTAL DIDACTIC
WITH PEOPLE IN DEPRIVATION OF LIBERTY
This article aims to reect on liberating education in the context of Socioeducation or Education in
Prisons, based on the political-social and human dimensions of liberating education, with a view to
overcoming the practice of banking education and symbolic violence, with people in deprivation of lib-
erty. It is intended to deepen the discussion about the pedagogical aspects and the teaching performance
in education with people in deprivation of liberty through a brief conceptual articulation between the
perspectives of Paulo Freire (2018), Pierre Bourdieu and Jean-Claude Passeron (2013) about school cul-
ture. How is it possible to practice a liberating education, with a view to overcoming banking education
and the practice of symbolic violence, with people in deprivation of liberty? To answer this problem, we
cut out a methodological approach based on the multidimensional perspective of Didactics presented by
Candau (2013) and we undertake a bibliographic research in order to think about education with people
in deprivation of liberty in the political-social and human scope, choosing as authors of reference the
contributions of Freire (2018) and Bourdieu and Passeron (2013). In the sequence, we start with the con-
tributions of authors who are reference in the scope of the human dimension of the teaching and learning
process, such as Neill (1995) and Rogers (2004). Although partial, the results show that the practice of
dialogical action with people in deprivation of liberty is a proposal that allows to overcome banking
education and symbolic violence, contributing to the social emancipation of these people.
Keywords: Education. Didactic. Symbolic violence. Banking education. Liberating education. Dialogic
action. Deprivation of liberty.
RESUMEN:
POR UNA EDUCACIÓN LIBERADORA Y UNA DIDÁCTICA FUNDA-
MENTAL CON PERSONAS EN PRIVACIÓN DE LIBERTAD
Este artículo tiene como objetivo reexionar sobre la educación liberadora en el contexto de la Socio-
educación o Educación en Prisiones, a partir de las dimensiones político-sociales y humanas de la edu-
cación liberadora, con miras a superar la práctica de la educación bancaria y la violencia simbólica, con
personas en privación de libertad. Se pretende profundizar la discusión sobre los aspectos pedagógicos
y el desempeño docente en educación con personas en privación de libertad a través de una breve articu-
lación conceptual entre las perspectivas de Paulo Freire (2018), Pierre Bourdieu y Jean-Claude Passeron
(2013) sobre la cultura escolar ¿Cómo es posible practicar una educación liberadora, con miras a superar
la educación bancaria y la práctica de la violencia simbólica, con personas privadas de libertad? Para
dar respuesta a esta problemática, recortamos un abordaje metodológico basado en la perspectiva multi-
dimensional de la Didáctica presentada por Candau (2013) y realizamos una investigación bibliográca
con el n de pensar la educación con personas en privación de libertad en el ámbito político-social
y humano, eligiendo como autores de referencia los aportes de Freire (2018) y Bourdieu y Passeron
(2013). En la secuencia, partimos de las aportaciones de autores referentes en el ámbito de la dimensión
humana del proceso de enseñanza y aprendizaje, como Neill (1995) y Rogers (2004). Aunque parcial,
los resultados muestran que la práctica de la acción dialógica con personas en privación de libertad es
una propuesta que permite superar la educación bancaria y la violencia simbólica, contribuyendo a la
emancipación social de estas personas.
Palabras clave: Educación, Didáctica, Violencia simbólica, Educación bancaria, Educación liberadora,
Acción dialógica, Privación de libertad.
Por uma educação libertadora e uma didática fundamental com pessoas em privação de liberdade
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 137-154, jan./abr. 2021 |
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Introdução
Educação... Quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo.
O mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um
outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o luar da vida dum pobre, como
tem gente que diz. Comparação, no seu, essa palavra vem junto com quê?
Com escola, não vem? Com aquele professor no, de roupa boa, estudado,
livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jei-
to, como deve ser... Do seu mundo vem estudo de escola que muda gente
em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi
isso aqui. - fala de Antônio Cícero de Souza, o Ciço, um camponês de Minas
Gerais com quem Carlos Brandão (1980 apud FREIRE, 1997, p. 36) teve um
diálogo sobre educação.
A modernidade e o ensino escolar se constituem como um contexto marcado pela falta de
sensibilidade para encontrar a “boniteza” que o professor e antropólogo Carlos Brandão (1980
apud FREIRE, 1997) encontrou e transcreveu da fala de Antônio Cícero de Souza
4
. “Boniteza”
essa que, segundo Freire (1997), deve ter a atenção especial de todos e todas as educadoras e
educadores, se comprometendo com a pesquisa epistemológica do “saber de experiência feito”
das classes populares, antes ou concomitantemente com a pesquisa sobre as práticas docentes.
Na ótica de Freire (1997), este saber sobre o qual a etnociência se tem ocupado e que
se debruça acerca do saber da cultura dos grupos populares – sobre como sabem e como siste-
matizam o seu saber – deve ser o ponto de partida para a prática pedagógica democrática, pois
é a partir do conhecimento dos educandos e das educandas que os educadores ou educadoras
haverão de iniciar o seu diálogo pedagógico.
Freire (1997) pondera que a busca pela multiculturalidade não se institui na justaposição
de culturas, nem no poder exacerbado de umas sobre as outras, mas na liberdade conquistada e
no direito assegurado de cada cultura ter o respeito das outras, correndo o risco de ser diferente
e sem medo de o ser. Só assim é possível que as diversas culturas cresçam juntas, sem a tensão
permanente provocada pela soberania de uma sobre as outras. A multiculturalidade trata-se de
uma escolha democrática de um caminho que jamais estará terminado e acabado, pois, neces-
sariamente, se refaz a cada momento.
Freire (1997) entende que a tensão vivida deve ser a do inacabamento que se assume
como razão de ser da própria cultura e de conitos não antagônicos e não aquela anteriormente
4 Trata-se de parte da fala transcrita sobre educação de Antônio Cícero de Souza, o “Ciço”, lavrador do
sul de Minas Gerais, publicada originalmente no prefácio de um livro-coletânea sobre a educação popular, de que
Paulo Freire fez parte, intitulado A questão política da educação popular, e organizado por Carlos Brandão em
1980. (BRANDÃO, 1980).
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causada pelo medo, pela desesperança ou pela injustiça. Portanto, Freire (1997) critica a forma
como a escola ignora e apaga a cultura e o saber popular, impondo de forma autoritária e não
democrática o ensino de um saber que, muitas vezes, está muito longe da realidade dos educan-
dos e das educandas.
Com um pensamento similar, Bourdieu e Passeron (2013) explicam que o trabalho peda-
gógico escolar visa impor a legitimidade da cultura dominante, camuando o poder arbitrário que
é exercido sobre os membros dos grupos ou classes dominadas. Os autores armam que o fato
da cultura das classes dominantes ser aquela que é valorizada pela escola, ao contrário do saber
das classes populares, que é desvalorizado, faz com que a cultura dominante seja considerada
como a única cultura autêntica, ou seja, como cultura universal.
Além disso, um dos efeitos menos percebidos da escolaridade obrigatória é o reconheci-
mento das classes dominadas do saber e do saber-fazer legítimos na sua sociedade, por exemplo,
em matéria de direito, de medicina, de técnica, de entretenimento ou de arte, e a desvalorização
do saber e do saber-fazer que elas efetivamente dominam, por exemplo, o direito consuetudi-
nário, a medicina tradicional, as técnicas artesanais, a língua ou a arte popular (BOURDIEU;
PASSERON, 2013).
Na visão de Bourdieu e Passeron (2013), o trabalho pedagógico tende a condenar os
profetas ou criadores e a estimular uma homogeneização da cultura em detrimento da criação
individual, pois a nalidade da programação escolar é a reprodução cultural e social. Nesta ótica,
a função do ensino é a de legitimar a cultura dominante e valorizar socialmente aqueles que a
possuem, tendo como nalidade a conservação social e a perpetuação das relações de classe e
as estruturas de poder. Estes autores armam que todo o sistema de ensino institucionalizado
tem as suas caraterísticas especícas de estrutura e funcionamento voltadas para a sua função de
reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor, que designam de reprodução
cultural. Desse modo, o sistema escolar contribui para a reprodução das relações entre os grupos
ou classes, num processo que Bourdieu e Passeron (2013) designam de reprodução social.
Bourdieu e Passeron (2014) demonstram como o sistema escolar, que é revestido por
uma aparência de neutralidade e democratização, continua a reproduzir as desigualdades so-
ciais, camuadas pela ilusão da meritocracia. No seu trabalho sobre o sistema de ensino como
reprodutor social ca clara a ligação estreita entre classe e sucesso escolar, mostrando como os
mecanismos de seleção escolar se tornam dispositivos legitimadores da máquina de reprodução,
e excluem aqueles que não são os legítimos “herdeiros” do sistema, pois estão mais longe da
cultura dominante que ele privilegia
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Segundo Bourdieu e Passeron (2013, p. 30), “as contestações mais radicais de um poder
pedagógico se inspiram na utopia autodestrutiva de uma pedagogia sem arbitrário”. Na perspectiva
destes autores, essas utopias visam a garantir o monopólio da imposição legítima, mascarando
a verdade objetiva de toda ação pedagógica. Para tanto, elas mascaram a “violência simbólica”
que reside em toda e qualquer ação pedagógica, pois, “toda ação pedagógica é objetivamente
uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultu-
ral.” (BOURDIEU; PASSERON, 2013, p.26). Neste sentido, a ideia de uma ação pedagógica
culturalmente livre, que não possua arbitrário, nem no que impõe e nem na maneira de fazê-la,
consiste numa espécie de mascarar a verdade objetiva da ação pedagógica.
As abordagens de Bourdieu e Passeron (2013) e Freire (2018) nos provocam a pensar a
seguinte questão: como é possível praticar uma educação libertadora, com vistas à superação da
educação bancária e da prática da violência simbólica, com pessoas em privação de liberdade?
5
Para responder tal problemática, recortamos uma abordagem metodológica fundamentados na
perspectiva multidimensional da Didática apresentada por Candau (2013) e empreendemos uma
pesquisa bibliográca a m de pensar a educação com pessoas em privação de liberdade no âm-
bito político-social e humano, escolhendo como autores de referência as contribuições de Freire
(2018) e Bourdieu e Passeron (2013). Na sequência, partimos para as contribuições de autores
que são referência no âmbito da dimensão humana do processo de ensino e aprendizagem, tais
como Neill (1995) e Rogers (2004), pois apesar de partirem de uma visão liberal de educação
podem nos ajudar a profundar essas dimensões da “Didática Fundamental” (CANDAU, 2013).
Por m, reunimos as contribuições apresentadas numa reexão sobre a prática da educação
libertadora com pessoas em privação de liberdade.
Este trabalho tem como objetivo reetir sobre a educação libertadora no contexto da
Socioeducação ou da Educação em Prisões, fundamentado nas dimensões político-social e hu-
mana de uma educação libertadora, com vistas à superação da prática da educação bancária e da
violência simbólica, com pessoas em privação de liberdade. Consideramos que este artigo pode
ajudar a responder à necessidade apontada nos estudos de se aprofundar a discussão acerca dos
aspectos didático-pedagógicos e da atuação docente na educação com pessoas em privação de
liberdade (FONSECA, 2013; ONOFRE; 2015; DUARTE; PEREIRA, 2017; PESSOA; ALBER-
TO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019; ONOFRE, FERNANDES; GODINHO, 2019).
Importa destacar ainda que a reexão apresentada poderá também servir de fonte para estudos
5 Conforme consta na primeira nota de rodapé, esta questão de pesquisa faz parte de
um trabalho de investigação mais amplo, cujo título ainda provisório é: “Sonho ou utopia? Em
busca de uma educação libertadora.
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e investigações em torno dos conceitos teóricos e metodológicos que envolvem os processos
educativos no âmbito da Socioeducação, ou da Educação em Prisões.
Violência simbólica e educação libertadora: da dimensão político-
social do ato de ensinar
A perspectiva de Bourdieu e Passeron (2013) de que qualquer ação pedagógica consiste
numa violência simbólica, na medida em que se trata de uma imposição de um arbitrário cultural,
parece estar alinhada com uma ideia de cultura
6
como algo estanque, e não como algo dinâmi-
co e vivo, que é constantemente recriado. Trata-se de uma concepção que entende as pessoas
envolvidas nos processos educativos como meras reprodutoras culturais e não leva em conta
a sua agência como produtoras de cultura, notadamente os educandos e educandas. Isto é algo
particularmente característico da visão adultocêntrica do pensamento ocidental, que não enxerga
os educandos e educandas como sujeitos epistêmicos e produtores de cultura, mas como um
“vir a ser” (TASSINARI, 2007). Portanto, os educandos e educandas são vistos como pessoas
que precisam ser educadas para poderem se tornar sujeitos, ou seja, são vistos como objetos
passivos da educação.
Essa análise está de acordo com Bicalho e Paula (2009) que apontam que Bourdieu e
Passeron (2013) na sua concepção de violência simbólica não consideram o sujeito como um
agente da relação, mas como alguém que apenas se resigna. Na compreensão de Bicalho e Pau-
la (2009), eles apresentam uma visão que não abre a possibilidade de uma mudança concreta
no mundo social, e que vê a ordem como algo inquestionável na reprodução da sociedade. No
mesmo sentido, Toscan (2011) aponta que, na sua teoria da violência simbólica, Bourdieu e
Passeron (2013) negam a autonomia e a consciência dos sujeitos nas relações pedagógicas que
são estabelecidas.
Toscan (2011) aproxima a perspectiva da violência simbólica de Bourdieu e Passeron
(2013) com a prática da educação bancária descrita por Freire (2018) como aquela baseada em
programas educacionais engessados, que visam “depositar” conteúdos de uma forma impositiva.
Ao fazer a sua crítica à educação bancária, Freire (2018) apresenta uma proposta educacional
alternativa e possível, baseada na sua teoria de ação dialógica, que nos permite reetir sobre
como superar a reprodução da educação bancária e da ação pedagógica como violência simbólica.
6 Salientamos que a concepção de cultura como algo estanque na perspectiva de Bourdieu e Passeron
(2013) se refere à sua utilização neste livro na sua denição de ação pedagógica. Sabemos que corremos o risco de
fazer uma referência ao conceito numa perspectiva diferente daquela que o próprio Bourdieu mobiliza em outros
momentos da sua obra. Reforçamos, porém, que nos referimos aqui especicamente à sua utilização no âmbito da
conceptualização da ação pedagógica e que está devidamente datada.
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Na sua teoria da ação dialógica, Freire (2018) defende que o adulto “socializador” não
deve ser o único a ser visto como agente, recusando a ideia da passividade da recepção dos
valores, princípios e atributos sociais. Para tal, Freire (2018) substitui essa ideia pela noção
de construção de signicados e sentidos na interação e interlocução. Além disso, tal como nos
aponta Glass (2013), a educação libertadora proposta por Freire visa, principalmente, estimular
a criticidade e o poder dos aprendizes de intencionalmente transformarem a si e ao seu mundo.
Conforme as conclusões apresentadas por Glass (2013), a teoria freiriana de prática da
educação libertadora assenta na perspectiva ontológica de que produzimos história e cultura
ao mesmo tempo em que história e cultura nos produzem. Nessa perspectiva é possível pensar
uma pedagogia que auxilia as pessoas a despertarem para a força que cada um tem dentro de
si, e que reside na liberdade e na capacidade que temos de fazer algo novo, que transforma o
mundo material e transcende os sentidos e as práticas histórico-culturais que recebemos. Deste
modo, Freire (2018) arma a nossa existência ontológica de coprodutores do mundo histórico
e cultural onde vivemos.
Na mesma linha de Freire (2018), Oliveira (1999) arma que a coeducação pode acon-
tecer na medida em que as pessoas se reconhecem como seres inacabados, o que não pode ser
visto como uma caraterística de determinadas fases da vida, mas um atributo humano. Lapassade
(1975 apud OLIVEIRA, 1999) arma que esse inacabamento é o que possibilita a própria cultu-
ra, pois é o que nos permite estarmos constantemente nos recriando, qualquer que seja a idade.
O outro é aquele que testemunha o nosso inacabamento e nos ajuda a nos humanizarmos, pelo
que a recriação de si só pode ocorrer no encontro com esse outro. Nesta forma de ver o mundo,
viver é o processo de nos tornarmos o que somos em potencialidade, tal como é proposto por
Fromm (1968 apud OLIVEIRA, 1999).
Por outro lado, a vertente teórica de Bourdieu e Passeron (2013) sobre a temática da
violência simbólica parece estar baseada numa visão de poder
7
no campo educacional como algo
exclusivamente centralizado na gura e no papel de quem educa, pois consideram que a ação
pedagógica é uma imposição de um arbitrário cultural por um poder arbitrário. Pelo contrário,
a educação libertadora parece estar relacionada com uma visão de poder próxima com aquela
descrita em Foucault (2008), ou seja, o poder pertence àqueles que decidem, que tomam para si
a tarefa de escolher, tomar decisões.
Numa visão foucaultiana, poderíamos dizer que o poder, ao contrário das perspectivas
convencionais que armam a sua centralidade e posse, é exercido em múltiplas direções, como se
7 Conforme já registramos na nota de rodapé anterior, neste texto o conceito de cultura está circunscrito
na obra publicada por Bourdien e Passeron em 2013 e se refere especicamente à sua mobilização no âmbito da
conceptualização da ação pedagógica. (BOURDIEU; PASSERON, 2013).
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fosse uma rede que se constitui por toda a sociedade. Foucault (2008) concebe o poder exercido
a partir de manobras, técnicas ou disposições que não deixam de serem resistidas, respondidas,
absorvidas, aceitas ou transformadas. As relações têm inerentes a si os seus jogos de poder,
que consistem em enfrentamentos constantes e perpétuos, e aos quais está inerente, também, a
liberdade e o potencial de revolta.
Louro (2011) salienta que as concepções foucaultianas sobre o poder trouxeram ainda
outro contraponto às ideias tradicionais, que consiste em percebê-lo não apenas como coercitivo
e negativo, mas como produtivo e positivo. Assim, o poder passa a ser visto não apenas como
aquele que nega, impede, ou coíbe, mas, também, como aquele que produz, faz ou incita.
Na ressonância desse horizonte epistemológico, Freire (2018) também nos aponta que
a liberdade é uma conquista e não uma doação. Portanto, a liberdade à qual se refere na sua
pedagogia libertadora não é um conceito abstrato, um ponto ideal fora das pessoas ao qual elas
poderiam se alienar. Freire (2018) concebe a liberdade como um movimento de busca permanente,
pois ninguém tem liberdade para ser livre e, por isso mesmo, precisamos estar constantemente
engajados na luta e nesse movimento de conquista. Ser livre signica correr riscos, dar um passo
além na busca do ser mais, sabendo que a busca não se faz sozinho, mas com o outro, pois como
diria Freire (2018, p. 29) “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se
libertam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.
A liberdade, por assim dizer, trata-se do próprio processo de busca, que leva à comunhão
criadora e que permite aos indivíduos serem autenticamente, armando-se como atores da pró-
pria história. Ela exige a disponibilidade para o autoconhecimento e a coragem de decidir ser,
existir nos seus autênticos desejos, armando o seu poder de criar e de transformar o mundo
com os outros, em comunhão, desde que não implique concretamente desejo de morte. Se as-
sim o for, o mais prudente é o afastamento protetor e curador. Não existem pessoas livres, mas
pessoas em processo de libertação, que acontece a partir do momento em que nos engajamos
no estabelecimento de relações autênticas com o outro e conosco próprios. Portanto, é somente
na comunicação, interação e interlocução, que tem sentido a vida humana, pois o pensar de
uma pessoa somente ganha autenticidade no pensar dos outros, mediatizados pelo mundo e em
intercomunicação. (FREIRE, 2018).
Por esta razão, o diálogo é visto como uma exigência existencial, tratando-se do encon-
tro entre pessoas que pronunciam o mundo, sendo essa a base de construção do conhecimento,
enquanto ato de criação. Por isso, Freire (2018) acredita que não há diálogo se não houver um
profundo amor ao mundo e aos outros. O ato de criação é fundado pelo amor que torna possível
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o diálogo, realizado em relação horizontal, cuja base é a conança. Através dessa verdadeira
comunhão é possível gerar a verdadeira colaboração que torna possível a ação libertadora.
Na mesma linha do pensamento pedagógico freiriano, Oliveira (1999) utiliza o termo
“coeducação” para denir o processo através do qual se podem alcançar relações igualitárias,
no qual ocorre uma modicação recíproca dos sujeitos, que surge quando ambos convergem
na busca de relações onde se aceitam as diferenças interindividuais. Aqui não cabe a distinção
entre educador e educando, mas, sim, a denição de uma comunidade de indivíduos que juntos
problematizam o mundo e buscam soluções coletivas para as questões percebidas.
Esta forma de educação implica, então, a superação da contradição educador e educandos,
de tal modo que ambos sejam, simultaneamente, educadores e educandos, professor e estudan-
tes. O método de ensino é visto como uma atitude de desejar ensinar e aprender. Freire (1997)
enfatiza que o/a educando/a precisa se reconhecer como sujeito que é capaz de conhecer e que
quer conhecer em relação com outro sujeito, que também se reconhece como capaz de conhecer,
para que, assim, ambos consigam alcançar o objeto de conhecimento. Ensinar e aprender são,
deste modo, vistos como o processo de conhecer, que implica re-conhecer-se a si mesmo.
Freire (1997) pondera que a grande importância política do ato de ensinar consiste em
permitir que os educandos e educandas se assumam como sujeitos cognoscentes e, à medida em
que vão imergindo nos signicados e atribuindo sentidos, vão se tornando também signicadores
críticos. Nos círculos de cultura propostos pela sua pedagogia, ensina-se mutuamente, portanto,
há aprendizagens em “reciprocidade de consciências” e em diálogo circular, intersubjetivando-
-se em cooperação, colaboração e afetividade. Assim, as pessoas vão assumindo, criticamente,
o dinamismo de sua subjetividade criadora.
Educação libertadora e violência simbólica: da dimensão humana
do ato de ensinar
Somando-se à teoria crítica freiriana, compreendemos que Neill (1995) e Rogers (2004),
que são referências das pedagogias não-diretivas, podem colaborar no aprofundamento das
práticas libertadoras, pois a partir das suas ideias podemos concluir que uma pedagogia que não
se utilize da violência simbólica é aquela em que o educador ou a educadora aceita incondicio-
nalmente o educando ou a educanda como ele ou ela é. Desse modo, é possível não condicionar
a pessoa a ser como nós gostaríamos que ela fosse, ou da maneira como nós próprios, fôssemos
e não conseguimos ser.
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Kohan (2007) arma que quando falamos em formar cidadãos solidários, tolerantes,
respeitosos e democráticos, estamos a armar como nós gostaríamos de ser e não somos. Por-
tanto, quando o educando ou a educanda é aceita pelo educador ou educadora como ele(ela) é,
pode, a partir dessa aceitação, aceitar-se a si mesmo(a) e permitir-se ser autêntico(a). Ou seja,
como poderia um educador ou educadora ensinar um educando ou educanda a aceitar-se a si
mesmo(a) e a ser autêntico(a), se ele(a) não se aceita? A mediação do processo educativo é uma
“atividade de parceria, disposição para estar com o outro; é uma atitude de coração e coragem,
somente homens e mulheres inteligentes, sensíveis e humanos são capazes de desenvolvê-la”
(BAZZO, 2020, p. 280).
Podemos, com o debate, considerar que o exercício de uma educação libertadora consiste
no envolvimento de um processo de crescimento e amadurecimento estabelecido entre pessoas.
Tal processo exige o desenvolvimento conjunto de capacidades para estabelecer relações au-
tênticas, se engajando num percurso de transformação mútua. De acordo com Rogers (2004),,
o estabelecimento de relações autênticas depende da capacidade de não julgar a si próprio nem
ao outro, desenvolvendo a aceitação empática e o acolhimento amoroso.
A empatia consiste na capacidade de se colocar no lugar do outro e é a base para uma
relação sem condicionamentos, na qual se permite que esse outro seja o que verdadeiramente é.
As competências da aceitação incondicional do outro, autenticidade e empatia, que foram de-
nidas por Rogers (2004) apresentam-se como fundamentais na ação pedagógica e terapêutica, e
são a base para a criação de uma relação libertadora, da qual a conança vai se tornando o seu
principal suporte.
Neill (1995) considera que a libertação do outro consiste na sua aprovação, pois é apenas
quando se sente aprovado na sua autenticidade, que se sente livre para ser o que é, tornando-se,
assim, um ser social. O autor arma que o amor cura, ou seja, a aprovação e a liberdade que se
oferecem ao outro de ser el a si próprio. A aceitação do outro como ele é permite que ele acei-
te, de forma livre e sem receio, os sentimentos positivos que os outros nutrem em relação a si.
Isso faz com que a pessoa não apenas aprenda a se aceitar, como comece a gostar de si
própria, o que não se trata de ser arrogante, mas de se sentir bem na sua própria pele. Desse modo,
a pessoa desenvolve uma alegria de viver que é espontânea e livre, contagiando os que vivem
ao seu redor e transparecendo um sentimento de plenitude e autorealização. (ROGERS, 2004).
Este processo de aceitação é fundamental para o desenvolvimento da pessoa, seja qual
for a fase da vida em que se encontre. Em relação à pessoa em situação de privação de liberdade,
é importante escutar a sua criança interna, saber sobre suas necessidades e o que ela precisa. O
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trabalho educativo haverá de iniciar com esses fundamentos: a pessoa é a mais importante, sua
história de vida.
Como já vimos, o processo de libertação avança se o educando ou a educanda se sente
aprovado(a) na sua autenticidade. Porém, o adulto educador ou educadora está, muitas vezes,
mergulhado(a) nas suas próprias fragilidades, pois as desaprovações que sofreu ao longo da sua
vida fazem com que não consiga aprovar a si próprio. Consequentemente, não consegue aprovar o
outro, encontrando-se demasiadamente autocentrado e sem conseguir reconhecê-lo e valorizá-lo.
Envolver-se no processo de aceitar o outro implica envolver-se no processo de aceitar
a si mesmo(a), para assim poder entrar em relações de reciprocidade, que Buber (2009) dene
como a relação “Eu-Tu”. Portanto, para o educador ou a educadora auxiliar o educando ou a
educanda no seu processo de libertação ele ou ela deve também estar envolvido no seu próprio
processo de libertação.
O amor, que signica conar, respeitar e aceitar o eu do outro, é a ferramenta educacional
e terapêutica mais poderosa. Ele é a cura. Ele consiste em permitir a liberdade e aprovação para
ser o que se é. O único condicionamento que as nossas emoções deveriam receber deveria ser
o condicionamento do amor. Neste sentido, podemos encontrar uma ponte entre Neill (1995),
Rogers (2004), Buber (2009), Freire (1997) e João dos Santos (n/d apud BRANCO, 2000), –
criador da “Pedagogia Terapêutica”, para quem a arte de educar, de curar e de amar são na sua
base idênticas, e consistem, essencialmente, em colocar o seu próprio funcionamento neutral ao
serviço do funcionamento dos outros.
Isto não signica que uma educação libertadora não implica a integração de limites, tendo
em vista que a liberdade consiste em fazermos o que quisermos, desde que não se interra com a
liberdade alheia. Portanto, não tem problema dar limites, desde que isso não seja feito – de uma
posição moralista, ou seja, julgando e culpabilizando as ações do outro. O importante é saber
como dar limite sem culpabilizar. (NEILL, 1995).
Freire (2018) arma que não exercer autoritarismo não signica ter uma posição libe-
ralista, que levaria os outros a licenciosidades. A teoria dialógica freiriana nega o autoritarismo
da mesma forma que nega a licenciosidade, armando, assim, a autoridade e a liberdade. Da
mesma maneira, Neill (1995) assegura que numa educação disciplinada o educando(a) não tem
direitos, enquanto que numa educação licenciosa ele(a) tem todos os direitos.
Freire (2018, p.103) arma que “se não liberdade sem autoridade, não também
esta sem aquela”, portanto, o que está na base da autoridade autêntica é a liberdade que em
certo momento se faz autoridade. Não se tratam de realidades antagônicas, nem separáveis
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uma da outra, pois toda hipertroa de uma provoca a atroa da outra. A verdadeira pedagogia,
destaca Freire (2018), é aquela em que dois seres fazem juntos o aprendizado da autoridade e
da liberdade verdadeiras, que ambos, como um só corpo, buscam instaurar ao transformarem a
realidade que os mediatiza.
A busca do Ser-Mais, ou da aprendizagem da relação EU-TU
Segundo Freire (2018), os seres humanos vivem permanentemente uma relação dialética
entre os condicionamentos e a sua liberdade. As barreiras que os seres humanos encontram e
que restringem as suas liberdades, Freire (2018) chamou de “situações-limite”. Para enfrentar
essas “situações-limite”, os seres humanos devem tomar distância, objetivando aquilo que os
limita, que ele nomeou como “percebido-destacado”. No momento em que os seres humanos
tomam consciência dos seus limites e percebem esses obstáculos à sua libertação, iniciam a sua
ação libertadora, realizando aquilo que Álvaro Vieira Pinto (n/d apud FREIRE, 2018) designa
de “atos-limites”, que são aqueles que se dirigem à superação dos limites da realidade.
Freire (2018) ressalta que, no momento em que a percepção crítica se inaugura, se gera
um clima de esperança e conança que leva os seres humanos a se empenharem na superação
dessas situações que os limitam. Essa superação, envolta na crença, no sonho possível e na utopia
que virão, faz os seres humanos partirem em busca do que ele designou de “inédito-viável”, que
é algo não conhecido ou vivido, e que ao se tornar realidade permite com que os seres humanos
concretizem a sua vocação de Ser-Mais.
Na visão de Freire (2018), esta superação só pode acontecer na ação sobre a realidade
concreta, na medida em que a partir do momento em que forem superadas essas situações, com
a transformação da realidade, novas situações surgirão, solicitando novos “atos-limite”. O cons-
tante enfrentamento com a realidade vai delineando a dimensão histórica do ser humano, que
vai sendo operada de transformação em transformação, num movimento de permanente devir.
Fica evidente que, na teoria dialógica freiriana, não pode haver um sujeito que domina
pela conquista e um objeto dominado. Ao contrário, existem sujeitos que se encontram para a
pronúncia do mundo e para a sua transformação. Na teoria da ação antidialógica, que Freire
(2018) procura combater, a conquista implica a transformação do outro em quase “coisa”, pois o
eu dominador transforma o tu dominado num mero “isto”. Em contraposição, o eu dialógico
sabe que é exatamente o tu que o constitui e, ao ser constituído por um tu, esse tu se constitui,
também, como um eu, pois enxerga no seu eu um tu. “Desta forma, o eu e o tu passam a ser,
na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu.” (FREIRE, 2018, p. 96).
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Resumindo, Freire (1997) não coloca o centro da sua perspectiva educativa nem no edu-
cando, nem no educador, nem no conteúdo, nem no método, mas nas relações humanas atraves-
sadas pelos seus vários componentes. Nesta linha de pensamento, ele se aproxima das ideias de
Buber (2009), cujo existencialismo se baseia numa fenomenologia da relação, mostrando que o
amor não é algo possuído pelo eu como se fosse um sentimento, mas como algo que acontece
entre dois seres humanos, situando-se além do eu e aquém do tu, ou seja, na esfera entre os dois.
O encontro com o tu é algo que exige que o eu se coloque disponível através de um ato do seu
ser, que é o ato de voltar-se ao outro, sendo, portanto, o seu ato essencial/vigoroso. A realiza-
ção do eu acontece na relação com o tu, na medida em que “toda verdadeira vida é encontro”
(BUBER, 2009, p. 49).
Na compreensão de Buber (2009), a relação Eu-Tu é a origem primordial do ser humano,
na medida em que cada um se torna eu na relação com o tu. Portanto, a relação Eu-Tu dá-se
ao nível do ato puro, da ação sem arbitrariedade. Nessa abordagem, somente quando as pessoas
entram, verdadeiramente, em relação é que se tornam livres e, portanto, criadoras. Deste modo, o
ser humano é tanto mais uma pessoa, quanto mais intenso é o seu eu. A armação do seu eu, ou
seja, o que a pessoa quer dizer quando se diz, decide o seu lugar e para onde leva o seu caminho.
A educação libertadora com pessoas em privação de liberdade
A partir das perspectivas teóricas apresentadas, podemos armar que Bourdieu e
Passeron (2013) e Freire (2018) convergem na crítica que fazem à deslegitimação do saber e da
cultura popular operada pelo ensino escolar, que os primeiros descrevem através do conceito
de violência simbólica e o segundo do conceito de educação bancária. A contribuição desses
autores, que abarca principalmente a dimensão político-social e humana do processo de ensino e
aprendizagem, juntamentamente com a colaboração de outros autores para aprofundar a discussão
desse processo, tais como Neil (1995) e Rogers (2004), permite-nos reetir sobre como realizar
uma educação libertadora, indo além da prática da educação bancária e da violência simbólica,
com pessoas em privação de liberdade.
Glass (2013) destaca que o atual contexto global de políticas neoliberais produzem práticas
educacionais baseadas em testagem, classicação e seleção, e vêm se reproduzindo no modelo de
educação bancária criticado por Freire (2018). Neste cenário, as pessoas que participam desses
processos educacionais continuam sendo envolvidas num sistema de reprodução da violência
simbólica, tal como foi descrito por Bourdieu e Passeron (2018).
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A esse cenário se acrescenta o fato de que o modelo educativo que se coloca em prática
no contexto de privação de liberdade é similar ao do ensino regular, mesmo se tratando de uma
realidade tipicamente não formal, o que parece dicultar um trabalho pedagógico que leve em
conta a realidade objetiva e concreta dos educandos e educandas. (FONSECA, 2013; DUARTE;
PEREIRA, 2017).
Além disso, apesar de haver um reconhecimento de que a educação de jovens e adultos
deve ser diferenciada, trazendo como missão a valorização do saber popular e o desenvolvimento
de reexões críticas sobre a sua realidade, existe, ainda, uma contradição entre o plano jurídico do
direito à educação básica e a sua negação pelas políticas públicas. Mais ainda, mesmo que esses
compromissos aparecem nesses documentos legais, falta uma reexão mais aprofundada sobre
como colocá-los em prática, além da consolidação das condições objetivas para tal (PESSOA;
ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019).
Dito isto, percebemos a importância de reetirmos sobre a teoria da ação dialógica frei-
riana como proposta que visa contrapor o presente cenário educacional marcado pela educação
bancária, nomeadamente no contexto da educação de pessoas em privação de liberdade. Isto
porque, a perspectiva freiriana nos permite reetir que é possível realizar uma educação liber-
tadora, indo além dos processos educativos marcados pela violência simbólica. No âmbito da
sociologia da educação, Bourdieu e Passeron (2013) nos apresentam um contributo importante
para entendermos a reprodução cultural e social que acontece no processo de ensino e aprendi-
zagem. Por outro lado, na sua proposta losóca, social e política para a educação, Freire (2018)
nos permite avançar numa perspectiva de superação dessa reprodução, por meio da ação dialógica
que ocorre de modo horizontal, colaborativo e cooperativo. Portanto, a pedagogia libertadora
consiste numa possível resposta à cultura de violência dos sistemas de ensino, atendendo à ne-
cessidade de se realizar uma educação baseada nos direitos humanos, que deve ser discutida e
colocada em prática dentro das unidades prisionais (DUARTE; PEREIRA, 2017).
A proposta educacional de Freire (2018) apresenta um caminho de superação das relações
pedagógicas centradas no educador ou educadora, ou nos conteúdos a serem “depositados” no
educando ou educanda. Em contraposição, o autor defende que o centro dos processos educativos
deve estar nas interações e interlocuções que se estabelecem no decorrer do próprio processo.
Ou seja, naquilo que acontece a partir da ação dialógica. Portanto, para alcançar uma educação
libertadora na qual não exista violência simbólica com pessoas em privação de liberdade é neces-
sário colocar em prática os princípios da ação dialógica propostos por Freire (2018), alcançando
relações pedagógicas que Buber (2009) dene como relação Eu-Tu.
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Importa destacar que não signica que o conhecimento do conhecido terá prioridade sob o
conhecimento do desconhecido. Em “Pedagogia da Esperança”, Freire (1997) rebate as críticas à
sua obra que o acusam de defender uma educação que se que apenas pelo “saber de experiência
feito” e que não permita o acesso ao conhecimento ciêntico. Para tal, ele esclarece que na sua
ótica é direito dos educandos e educandas conhecer o conhecido e conhecer o desconhecido.
Portanto, na sua visão, tanto os conhecimentos universais quantos aqueles particulares e saberes
singulares são potências criadoras e direito de todos e cada um de ter acesso e apreendê-los.
Os resultados desse estudo nos possibilitam reetir acerca das práticas pedagógicas liber-
tadoras em contexto de privação de liberdade, na medida em que a ação dialógica não depende
de condições externas aos sujeitos, mas da sua disposição para se envolverem num processo de
libertação conjunta. Essa ação deve partir da disponibilidade dos educadores e educadoras para
conhecerem a realidade particular dos educandos e educandas, valorizando o seu “saber de expe-
riência feito” (ONOFRE, 2015; PESSOA; ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019).
Ademais, tomando como ponto de partida os sujeitos e suas histórias de vida, podemos
avançar para uma discussão no sentido da importância de ajudar as pessoas, envolvidas no pro-
cesso de ensino e aprendizagem no contexto da Educação em Prisões ou Espaços Socioeduca-
tivos, a compreenderem as situações, os contextos e os limites do sistema político-econômico e
social no qual estão inseridas e através do qual elas se zeram homens e mulheres privadas de
sua liberdade, contribuindo assim para a sua emancipação social. (ONOFRE, 2015; PESSOA;
ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019).
Para tal, é fundamental estimular os educadores e educadoras a conhecerem e a con-
siderarem a realidade sociocultural e a cultura carcerária, como ponto de partida para as suas
problematizações e intervenções pedagógicas. Por m, destacamos a importância de aprofundar
a reexão sobre a necessidade da exibilização curricular e da criação de propostas curriculares
que respondam às necessidades especícas das pessoas em privação de liberdade. (ONOFRE;
2015; DUARTE; PEREIRA, 2017; PESSOA; ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA,
2019; ONOFRE, FERNANDES; GODINHO, 2019).
Considerações nais
Neste artigo, procuramos aprofundar a teorização sobre os conceitos de educação liber-
tadora e violência simbólica, trazendo as perspectivas de Freire (2018) e Bourdieu e Passeron
(2013), e estabelecendo interlocuções entre eles e outros autores que colaboraram para pensar-
mos a educação de pessoas em privação de liberdade. A partir desssas contribuições, pudemos
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reetir sobre a possibilidade da prática de uma educação libertadora, destacando principalmente
os aspectos teóricos e metodológicos da proposta que Freire (2018) nos apresenta para superar
a educação bancária e a ação não dialógica.
Acreditamos que a exposição crítica apresentada, embora em construção – pelos moti-
vos já explicitados nas notas de rodapé –, pode contribuir para o debate em torno dos processos
educativos com pessoas em privação de liberdade. As pessoas que se encontram na condição de
suspensão do direito de ir e vir não devem ser privadas do direito de se envolverem em processos
educativos libertadores, considerando que a experiência de práticas dialógicas, conforme discutido
anteriormente, pode ajudar no processo de compreensão do seu estado de ser cidadão de direito
e de poder – isto porque aprenderão a olhar para o sistema de uma forma crítica, percebendo as
suas estratégias mortíferas e também suas fragilidades.
Consideramos pertinente reetir sobre a importância de colocar a ação dialógica em prática
no contexto de pessoas em privação de liberdade, ajudando-as a entenderem as situações-limite
que enfrentam e os percebidos-destacados que as condicionam, para que todos juntos e cada um
ou cada uma se engajem em processos coletivos de libertação que conduzam ao inédito-viável.
Finalmente, devemos ter em consideração que, tal como nos aponta Freire (2018), a li-
berdade trata-se do próprio processo de busca, e é algo que não pode ser doado nem tirado. Ela
é uma conquista que cada pessoa deve fazer ao se engajar no movimento de se tornar autora da
sua própria história, em comunhão, colaboração, cooperação e parceria na aventura de ser-sendo
humano, verdadeiramente humano.
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Recebido em: 28 de fevereiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Políticas de educação em prisões do estado da Bahia: constituição de um novo plano estadual
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11620
POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES DO
ESTADO DA BAHIA: CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO
PLANO ESTADUAL
Maria das Graças Reis Barreto
1
Rede Estadual de Ensino do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-9161-3341
Newdith Mendonça Dias
2
Rede Estadual de Ensino do Estado da Bahia
https://orcid.org/0000-0001-5601-9286
RESUMO:
O presente artigo é resultado de pesquisa acadêmica em que propusemo-nos investigar e analisar as
contribuições do Plano Estadual de Educação em Prisões na Bahia e como este se articula, mediado pela
intersetorialidade. É resultado de um Projeto de Pesquisa desenvolvido com professores e gestores de
escolas especícas e vinculadas que ofertam educação em prisões no Estado. Optou-se pela abordagem
qualitativa, pois essa metodologia se preocupa com aspectos da realidade produzida pela interação entre
a prisão e a comunidade escolar. Nesse contexto, o levantamento de dados ocorreu por meio da revisão
bibliográca de referências em relação as políticas públicas especícas sobre Educação em Prisões:
(Julião, 2019); (Onofre, 2019); dos Projetos Políticos Pedagógicos (Silva; Moreira, 2011); (Barreto,
2017) e por meio de questionários semiestruturados destinados aos professores que exercem à docência
para as pessoas em situação de restrição e privação de liberdade e gestores escolares. No que se refere
às políticas públicas, conrmou-se que estas são efetivadas no que se refere a construção de políticas
públicas locais, quando os prossionais da educação e execução penal e outros setores dialogam com a
dimensão pedagógica desenvolvidas nas escolas – questões comprovadas nas respostas dos participan-
tes da pesquisa.
Palavras-chave: Educação em Prisões. Políticas Públicas. Educação de Jovens e Adultos.
ABSTRACT:
EDUCATION POLICIES IN PRISONS OF THE STATE OF BAHIA: THE
CONSTITUTION OF A NEW STATE PLAN
The main goal of this article is the result of an academic research in which we purpose to investigate and
analyze the Plan of Education in Prisons of the State of Bahia and how it is articulated, mediated by its
intersectoral approach. This is the result of the Research Project developed with Teachers and education
managers of specic and afliated schools that offers education in prisons around the State. The qualita-
tive approach was the one chosen, as this methodology takes in account the aspects of the reality pro-
duced by the interaction between prison and the scholar community. In this context, the data collection
occurred by bibliographic review of references related to specic public polices about Prison Education:
(Julião, 2019); (Onofre, 2019); dos Projetos Políticos Pedagógicos (Silva; Moreira, 2011); (Barreto,
1 Mestre em Gestão e Tecnologias Aplicadas à Educação (UNEB). Professora aposentada da Rede
Estadual de Ensino do Estado da Bahia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Forma(em)Ação - GEFEP (UNEB).
E-mail: mariagrbarreto@hotmail.com
2 Mestre em Gestão e Tecnologias Aplicadas à Educação (UNEB). Professora Aposentada da Rede
Estadual de Ensino do Estado da Bahia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Forma(em)Ação GEFEP (UNEB).
E-mail: diasnewdith@gmail.com
Maria das Graças Reis Barreto e Newdith Mendonça Dias
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2017) and by semi-structured surveys attributed to teachers and education managers that educate people
deprived of its freedom. In relation to public policies, it was conrmed that these are implemented in
terms of local public policies, when professionals in education and penal enforcement and other sectors
dialogue with the pedagogical dimension developed in schools - proven in the responses of participants
in the survey.
Keywords: Prison Education. Public Polices. Youth and Adult Education.
RESUMEN:
POLÍTICAS EDUCATIVAS EN LAS CÁRCELES DEL ESTADO DE
BAHÍA: LA CONSTITUCIÓN DE UN NUEVO PLAN ESTATAL
El objetivo principal de este artículo es el resultado de investigación académica en la que nos propone-
mos investigar y analizar el Plan de Educación Penitenciaria del Estado de Bahía y cómo se articula, me-
diado por su enfoque intersectorial. Este es el resultado del Proyecto de Investigación desarrollado com
docentes y gerentes educativos de escuelas especícas y aliadas que ofrece educación en los centros
penitenciarios del Estado. El enfoque cualitativo fue el elegido, ya que esta metodología toma en cuenta
los aspectos de la realidad producidos por la interacción entre la prisión y la comunidad escolar. En este
contexto, la recolección de datos se realizó mediante revisión bibliográca de referencias relacionadas
con políticas públicas especícas sobre Educación Penitenciaria: (Julião, 2019); (Onofre, 2019); dos
Projetos Políticos Pedagógicos (Silva; Moreira, 2011); (Barreto, 2017) y por encuestas semiestructu-
radas atribuidas a docentes y gestores educativos que educan a personas privadas de su libertad. En
relación a las políticas públicas, se constató que estas se implementan en términos de políticas públicas
locales, cuando los profesionales de la educación y la aplicación penal y otros sectores dialogan con la
dimensión pedagógica desarrollada en las escuelas, comprobado en las respuestas de los participantes
en la encuesta.
Palabras clave: Educación Penitenciaria. Políticas Públicas. Educación de Jóvenes y Adultos.
Introdução
A luta em torno do direito à educação em prisões tem se constituído um elemento funda-
mental de resistência no sentido da efetivação do referido direito. Defende-se que a elaboração
e reformulação dos Planos Estaduais para Pessoas em Privação de Liberdade e Egressas do
Sistema Prisional estabeleçam diálogos intersetoriais essa desaadora tarefa se apresenta aos
setores da sociedade que insistem em fragmentar em nichos que pouco se articulam em relação
ao contexto social, político, econômico e cultural em que a prisão está inserida.
Assim é necessário que a intersetorialidade se apresente com as suas peculiaridades, mas
dialogue com outras dimensões, além da prisão e da educação, para que sejam assegurados o
direito à educação das pessoas em situação de privação de liberdade e aos egressos da prisão.
Com objetivo de compreender melhor a referida questão é necessário reexões a partir
das demandas vivenciadas pelos professores e as proposições das políticas públicas especícas
para educar em prisões. Assim, discutimos a educação em prisões e as ressonâncias das políticas
públicas na perspectiva do direito à educação, os desaos e possibilidades de educar nesse espaço.
No primeiro momento discutimos o PEESP a partir do Decreto Presidencial nº 7626/2001.
Políticas de educação em prisões do estado da Bahia: constituição de um novo plano estadual
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Desse modo, a presente pesquisa apresenta uma abordagem qualitativa e tem como âmbito
de investigação o processo de construção/reformulação dos Planos Estaduais de Educação em
Prisões do Estado da Bahia. Ao observar que embora com uma proposta de discussão interse-
torial, percebe-se a necessidade de participação mais ampla de representantes dos movimentos
sociais, sindicatos, Conselho Penitenciário, Colegiado Escolar com a participação dos estudantes
privados de liberdade.
Assim, como utilizamos como estratégias metodológicas, pesquisa documental e biblio-
gráca para a coleta de dados empíricos, optamos por utilizar questionários, aplicados através
da ferramenta do Google. Por estarmos implicadas no processo de construção do PEEP/Ba
2020/2024, organizamos formulários que foram enviados para professores e gestores que atuam
nas Unidades Escolares que atendem aos privados de liberdade no Estado da Bahia e estão parti-
cipando das discussões nos Grupos de Trabalho. Esses dados empíricos nos permitem identicar
o nível de participação das escolas no Estado e sua real necessidade.
O Plano Estadual de Educação em Prisões da Bahia: trajetórias
Em 2001 um Decreto Presidencial da Presidenta Dilma Roussef nº 7626/2001, cria o
Plano Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional (PEESP). Esse Plano dene
competências para o Ministério da Educação e o Ministério da Justiça. Para a execução do PEESP
está previsto que a União prestará apoio técnico e nanceiro, mediante a elaboração de planos
de ação estaduais que deverão conter: a) diagnóstico das demandas; b) estratégias e metas; e c)
atribuições de cada órgão do Ente Federativo. Essa medida visa ampliação da matrícula e oferta
da Educação em Prisões em todo o território Nacional.
A partir da vigência deste Decreto, os estados foram solicitados a construir seus Planos
Estaduais de Educação em Prisões, na perspectiva de executar o Plano Estratégico de Educação
no Âmbito do Sistema Prisional (PEESP). Entretanto nem todos os estados apresentaram seus
Planos.
A construção do primeiro PEEP no estado da Bahia iniciou em dezembro de 2011 a partir
do I Seminário Estadual de Educação em Prisões que tinha como proposta: Discutir políticas
públicas, no âmbito da intersetorialidade da Educação de Jovens e Adultos privados de liberdade
e estabelecer diretrizes para a elaboração do Plano Estadual de Educação em Prisões e propor
ações que possibilitaram a construção a partir das Diretrizes Nacionais para Oferta de Educação
nos Estabelecimentos Penais, garantindo o direito à educação como princípio fundamental na
implementação de políticas públicas nessa área. (PEEP, 2012)
Maria das Graças Reis Barreto e Newdith Mendonça Dias
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O processo de construção coletiva do Plano foi constituído por representantes da SEC
Superintendência da Educação Básica, Educação Prossional, Coordenação da EJA, do Progra-
ma Todos pela Alfabetização, Representantes da SEAP, Superintendência de Ressocialização
Sustentável e Diretoria de Integração Social; Representantes do Conselho Estadual de Educação/
Comissão da Educação de Jovens e Adultos; representantes de Unidades Prisionais (Salvador,
Feira de Santana e Juazeiro).
Observa-se que, ainda não tinha uma formação com representações de todos os segmentos
e atores sociais da prisão. Na versão de 2020-2024, em elaboração, foi organizada por Eixos
com uma participação mais ampliada. Esse Plano vem acrescido de uma proposta educacional
para os egressos do Sistema Prisional. As informações levantadas conrmam essa participação
mais ampliada.
Figura 1: Participação dos prossionais em Educação na construção do PEEP.
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2020).
No Estado da Bahia, o Sistema Penitenciário conta com um programa de escolarização
que contempla a Educação Básica em todos os níveis na modalidade de Educação de Jovens e
Adultos. Tivemos um crescimento nessa oferta, a partir das políticas implementadas desde o
primeiro PEEP em 2012. O Estado ofertava educação em 11 Unidades Escolares, em 2015 passou
para 14 Unidades Escolares. Nessa organização da oferta da educação formal, contamos com um
total de 20 escolas ofertando educação no Sistema Prisional do Estado, sendo 14 Unidades de
Ensino Estaduais e 06 Unidades Municipais, sendo 19 escolas de Vinculação e uma especíca -
Colégio Estadual Professor George Fragoso Modesto, com vínculo estadual que oferta EJA nos
Tempos Formativos I, II e III.
O referido Colégio oferta educação escolar desde 1991, conforme Portaria 671/1994, ini-
ciando no Sistema Penitenciário do Estado. A criação da Escola Especial da Penitenciária Lemos
Políticas de educação em prisões do estado da Bahia: constituição de um novo plano estadual
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Brito, atualmente Colégio Estadual Professor George Fragoso Modesto, iniciou com a oferta de
duas turmas no 1º grau, correspondente às séries iniciais. Atualmente oferta Educação Básica
na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) em 09 Unidades Prisionais, atendendo aos
Três Tempos Formativos e em três turnos de ensino. Com um total de 45 professores efetivos
da Rede Estadual de Ensino. Entretanto, essa oferta e disposição de professores não ocorre em
todas as Unidades Prisionais do Estado, tampouco seja garantia de efetividade de ações.
Os Planos Estaduais de Educação nas Prisões apresentados como parte da pro-
posição para obtenção de apoio nanceiro, com vistas à ampliação e qualicação da oferta da
educação nos estabelecimentos penais na Bahia ao longo desses anos, caram aquém do que
fora proposto, assim como em outros Estados da Federação
Apesar do aumento na oferta de educação escolar no espaço da prisão, ainda requer de
ações efetivas na execução deste Plano, a exemplo, uma organização curricular que atenda a
especicidade da população prisional organizada de forma coletiva, alinhada com as Diretrizes
e outros dispositivos legais que atenda aos alunos em todos os regimes (provisório, fechado,
semiaberto e aberto), com uma formatação e tempo de atendimento considerando as especici-
dades desses regimes.
A oferta de educação para presos e presas, tanto na condição de provisório
quanto na de condenados, ou até mesmo para àqueles que cumprem medida
de segurança, nos obriga a pensar a radicalidade da “especicidade própria”
do seu tratamento consequente. É louvável a perspicácia do conselheiro ao
enxergar o mais invisível dos segmentos da EJA.
De norte a sul do país, não se pode dizer que possuímos experiências ho-
mogêneas de educação em espaço de privação de liberdade. Em geral, são
experiências bem distintas, com características particulares de acordo com a
região e/ou unidade carcerária. Convivem no país experiências diversas: ensi-
no regular; exame supletivo; projetos e programas de alfabetização diversos;
atuação de organismos públicos e de organizações não governamentais etc.
Enquanto alguns estados consolidam uma política fundamentada em princí-
pios e metodologias, outros iniciam ainda os seus primeiros passos. (JULIÃO,
2019, p. 217).
O PEESP/ Decreto 7626/2011, evidencia e a importância do envolvimento da socieda-
de civil no contexto das prisões com as Unidades Escolares para elaboração e organização de
procedimentos metodológicos que garantam a efetividade da educação. Sinaliza a necessidade
de articulação de diversos segmentos que atuam no espaço da prisão para promoverem inter-
locuções relacionadas a garantia do direito à educação. Desta forma, reforça a necessidade de
construção do PPP especíco.
Neste contexto, os Estados têm buscado elaborar o Plano no sentido de garantir os princí-
pios do Decreto 7626/2011, Plano Estratégico de Educação do Sistema Prisional. Assim, discutir
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o Plano Estadual para Educação em Prisões, requer contextualizar a educação na perspectiva do
direito nesse espaço socialmente reconhecido, além de analisar outras normativas que precedem
as políticas públicas especícas sobre Educação para as pessoas em privação de liberdade.
Os Planos Estaduais da Bahia apresentaram ao longo das três versões, ampliação no
número de Unidades Escolares com oferta de educação para os privados de liberdade, eviden-
ciando a importância das políticas públicas na garantia do direito à educação para essas pessoas.
Contudo, não garantiu a ampliação da matrícula e que, conforme levantamento do In-
foPen, esse dado em 2019 foi o mais baixo dos últimos cinco anos. Isso rearma a necessidade
de uma Política Pública com ações efetivas que envolva todos os atores sociais que atuam nas
prisões: os privados de liberdade, prossionais da segurança, saúde, da educação, instituições
parceiras e voluntariado, dentre outras. Requer a criação de estratégias que aproxime os marcos
legais a realidade
Hoje, o direito a educação para os privados de liberdade no Brasil já está consolidado,
é uma educação que além da escolaridade deve cumprir o papel de promoção humana, é uma
etapa vencida, ela se encontra no estágio de análise das práticas e experiências para poder avaliar
e consolidar políticas públicas.
Apesar de todos esses avanços, não existe uma política de alinhamento na proposta pe-
dagógica e curricular das escolas que atendem aos privados de liberdade, não há uma política
de valorização dos prossionais que atuam nesse espaço em todas as Unidades. Percebe-se que,
ainda se tem uma grande lacuna entre o que está instituído em lei e o que acontece na prática,
no dia a dia destas Unidades na capital e interior da Bahia.
No Estado da Bahia é ofertada educação para os privados de liberdade na modalidade EJA
(Educação Básica). Existem propostas de atendimento com oferta de ensino para o nível superior
em outra modalidade; entretanto ainda não foram efetivadas. Os programas de atendimento, em
sua maioria, oferecem atividades e cursos para o trabalho, e que muitos são aproveitados na
mão de obra de empresas existentes dentro do Complexo Penitenciário em sistema de parceria.
Dessa forma, é preciso efetivar as ações de educação que forme esse indivíduo para a vida e
não tão somente capacite-o para o trabalho. A educação na prisão deve promover a emancipação
como humanização desse sujeito, superando esse condicionamento histórico de formação para
o trabalho.
Certamente, é preciso ir muito além do que garantir a oferta, garantir qualidade também,
tão pouco contemplada nas suas especicidades. Faz-se necessário a criação de uma proposta
pedagógica especíca para o sistema penitenciário, estabelecendo uma maior articulação dos
órgãos gestores da administração penitenciária com a Secretaria da Educação para que se possa
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adequar às necessidades de aprendizagens e formas de vida desse coletivo e assim, possa atender
as especicidades desses indivíduos.
É preciso compreender que a educação no sistema prisional não pode prescindir da arti-
culação intersetorial, primeiramente da Secretaria que administra o Sistema Penitenciário e da
Secretaria que Oferta Educação e subsequente dos setores de saúde, trabalho, das organizações
não governamentais que atuam nesse espaço. Desta forma, é importante o trabalho coletivo,
com a participação da comunidade em que o diálogo sobre as questões pedagógicas pode ser
potencializado com abordagens interdisciplinares e a partir do contexto prisional.
[...] as práticas de trabalho, de participação em cultos religiosos, de discussão
de documentários, de rodas de leitura, entre tantas outras promovidas pelo
coletivo de educadores-professores, psicólogos, assistentes sociais, prossio-
nais da saúde, advogados, gestores, agentes penitenciários -, podem signicar
avanços, se ancorado em um projeto educativo construído pelo coletivo de
cada unidade de privação de liberdade, incluindo-se nele os estudantes e suas
demandas. (ONOFRE, 2019, p.47-48)
Considerando que o PPP é um instrumento que garante a execução das ações e orienta-
ções curriculares e organizacionais de uma instituição educativa, essa necessidade deverá estar
consolidada neste instrumento da Unidade Escolar para que se possa proceder a organização
curricular atendendo a especicidade com as lógicas temporais e de regime, prevendo a insta-
bilidade dos tempos de reclusão na Unidade Prisional e garantindo assim, não só a oferta, mas
também a oportunidade da aprendizagem ao aluno privado de liberdade.
O projeto escolar - o Projeto Político Pedagógico, é um importante instrumento de in-
tervenção sobre a realidade, podendo se instituir novas realidades e intervir na realidade local.
A LDB no seu artigo 12 nos traz que “Os estabelecimentos de ensino, respeitando as normas
comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de elaborar e executar sua proposta
pedagógica”. No seu artigo 15, estabelece os graus de autonomia pedagógica, administrativa
e de gestão nanceira, observadas as normas gerais de direito nanceiro e público. Portanto,
deve congregar proposições relacionadas com os aspectos pedagógicos, administrativos, polí-
ticos, sociais e econômicos, levando em consideração a realidade especíca de cada instituição
de ensino. Desta forma, a organização de um PPP especíco para as escolas que atendem aos
privados de liberdade é uma ação imprescindível para garantia de direitos.
Conforme levantamento das escolas que atendem aos privados de liberdade no Estado
da Bahia, temos:
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Figura 2. PPP em Educação em Prisões no Estado da Bahia.
Fonte. Elaborado pelas autoras (2020).
Alguns estudos como o de Silva (2011), Onofre (2014), Julião (2013) revelam que o
Projeto Político Pedagógico das prisões deve ser articulado com a execução penal. Este Projeto
deve estabelecer um diálogo intersetorial, dialogar com o modo de sentir e agir desses sujeitos
encarcerados e desses prossionais que atuam nesse espaço.
Para Onofre (2014):
[...] é preciso deixar claro que a escola não é a única instituição social que
educa, e seu poder é limitado. Outras instituições e meios sociais exercem
fortes inuências, uma vez que se congura uma interação entre as pressões
sociais e os desejos, necessidades e possibilidades do sujeito nos contextos
socioeconômicos, culturais e políticos. Há que se considerar também que a
escola veicula valores que podem convergir ou conitar com os que circulam
nos outros meios sociais frequentados pelos indivíduos ou aos quais estão
expostos (ONOFRE, 2014, p.86).
As metas do PEEP devem integrar a participação de diversos setores, que foram orga-
nizados por Eixos, assim distribuídos: Gestão, Educação Formal/Alfabetização; Educação Não
Formal; Qualicação Prossional; Estrutura; Formação e Capacitação de Prossionais. Cada
Eixo deverá estabelecer metas e ações para o próximo período (2020-2024).
O tempo, o caminho e reexões na construção dos planos (2012-
2024)
No Estado da Bahia, a partir das orientações do PEESP, o primeiro Plano, foi elaborado
em 2012, envolvendo os prossionais da educação e execução penal. Foi realizado um Seminário
Estadual com o objetivo de discutir a Educação em prisões no estado, as metas e ações para o
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biênio 2012-2014, a partir do diagnóstico realizado pela Secretaria da Educação e Secretaria de
Justiça Cidadania e Direitos Humanos. Uma das metas foi a ampliação do número de matrículas.
Percebe-se que o número de matrícula no estado ampliou e a criação de escolas de vinculação
que ofertam educação para os privados de liberdade em atendimento a proposta PEESP tem
evidenciado a importância das políticas públicas na perspectiva da garantia do direito à educação
para essas pessoas. Outra meta alcançada foi elaboração de uma normativa especíca através
do Conselho Estadual da Educação, a Resolução CEE n.43 no Art. 13 que, estabelece as Dire-
trizes para Educação de Jovens e Adultos em situação de privação de liberdade. Por ocasião da
elaboração desta Resolução, além de ocinas, houve audiência pública com vários setores da
sociedade no sentido de validar as garantias para os estudantes da EJA no Sistema prisional.
Em 2015, atendendo às novas demandas, o coletivo de professores, agentes penitenciá-
rios, gestores das Escolas especícas e de vinculação, além de outros prossionais da educação
e execução penal, participaram de um Encontro Estadual com objetivo de socializar as ações
desenvolvidas pelas Escolas que ofertam educação nas prisões e novas propostas que emergi-
ram desse Encontro. Nesse período as Secretarias da Educação e Secretaria de Administração
Penitenciária e Ressocialização, renovaram o Termo de Cooperação Técnica, especicando as
competências de cada Secretaria.
O Decreto 7626/2011, orienta para a reformulação do Plano, um período de 4 anos de
vigência, (2020-2024), além de ampliar para as pessoas egressas do Sistema Prisional.
A atualização/elaboração do Plano Estadual de Educação para Pessoas Privadas de Liber-
dade e Egressas do Sistema Prisional é orientada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública/
Departamento de Penitenciário Nacional D/MJ e constituiu um momento muito importante de
reexão acerca da realidade educacional nas Unidades Prisionais, compondo o marco situacional
do Estado e estabelecendo metas e ações para garantir o direito à educação.
A intersetorialidade: caminho colaborativo
Por se tratar de um mecanismo de gestão e integração de ações dos diferentes setores da
esfera pública, o Plano Estadual de Educação para Pessoas Privadas de Liberdade e Egressas do
Sistema Penitenciário deve ser pautadas nas Diretrizes e objetivos do PEESP,
Art. 3º São diretrizes do PEESP: II - integração dos órgãos responsáveis pelo
ensino público com os órgãos responsáveis pela execução penal;
Art. 4º São objetivos do PEESP: I - executar ações conjuntas e troca de infor-
mações entre órgãos federais, estaduais e do Distrito Federal com atribuições
nas áreas de educação e de execução penal. (BRASÍLIA, 2011).
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Estudos recentes, Julião (2020) propõe uma reavaliação na política de execução penal que
atenda a realidade do sistema penitenciário, possibilitando a remição pena não só pela educação,
que haja uma integração com outros segmentos, pessoas e órgãos da sociedade, além dos pros-
sionais que povoam esse espaço.
[...] compreendo ser fundamental, que se reconheça e se levem em consideração
os interesses individuais, as relações internas e externas ao cárcere constituídas,
principalmente em âmbito familiar, social e religioso, além propriamente da
execução com qualidade dos programas e projetos desenvolvidos no ambiente
carcerário ou para atender a referida clientela. (JULIÃO, 2020, p. 246)
A elaboração do Plano Estadual de Educação em Prisões, a partir de 2012 contemplou nas
discussões vários setores da sociedade: Ministério Público, Universidades, Conselho Penitenciário,
Secretaria da Educação, Secretaria de Administração Penitenciária contempla a referida integração,
que possibilita elaboração de metas e propostas de intervenção.
No entanto, será necessária a participação dos estudantes privados de liberdade para garantir
e ampliar o direito à educação na denição de metas e ações no âmbito da educação formal e não
formal. Ainda assim, os Planos anteriores não contemplam os Movimentos Sociais na defesa dos
Direitos Humanos, especicamente os direitos das pessoas privadas de liberdade.
Além disso, os Planos anteriores, não trazem um posicionamento crítico, não discute o
encarceramento em massa, embora compreendemos que a educação não vai resolver os problemas
da prisão, mas deve ser um caminho de possibilidades para a emancipação e autonomia do sujeito
privado de liberdade.
Nesse sentido, as discussões com a participação de órgãos da administração prisional, da
execução penal, da educação, além da sociedade civil e os estudantes favorecem a legitimidade
na elaboração do Plano e podem promover avanços para efetivar as ações.
Vale ressaltar várias mudanças no Colégio Estadual Professor George Fragoso Modesto
a partir das escuta e proposições dos estudantes: alteração do nome da Escola, implantação de
aulas no turno da noite, validação dos dias de visita íntima como dias letivos com a realização de
atividades semipresenciais, direitos previstos e garantidos na legislação que a partir do conheci-
mento e apropriação desses dispositivos serviram de base o diálogo no sentido de validar o que
está instituído e institucionalizado. Portanto, emancipação e autonomia dos sujeitos, precisam
acontecer nesses espaços que são socialmente reconhecidos.
Aspectos metodológicos
A presente investigação foi desenvolvida nas escolas com professores e gestores escola-
res. Baseou-se em uma abordagem qualitativa, pois se caracterizou pela coleta de informações
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junto aos sujeitos investigados, a m de produzir contextualização das demandas educacionais
que pudessem colaborar com a reformulação do novo Plano Estadual de Educação em Prisões
do Estado. As informações ocorreram por meio da revisão de pesquisas bibliográcas sobre
educação em prisões, políticas públicas especícas e revisão documental. Posteriormente por
meio de questionários destinados aos professores e gestores das Unidades Escolares que ofertam
educação em prisões no Estado.
Nesse contexto, os questionários foram respondidos on-line por meio da ferramenta
Google. Google formulários que possibilitou alcance das escolas do interior do Estado.
Percepções de gestores escolares e professores sobre o Plano
Estadual
Pensar educação no espaço da prisão nos leva a reetir a situação do encarceramento em
massa, da punição e desumanização. Nesse sentido, a educação dentro dos espaços prisionais é
considerada por estudiosos como uma política pública que pode contribuir com o processo de
humanização de pena e ir além da escolarização. A escola no sistema prisional é uma alternativa
de retomada de estudos que, lá fora, foi negligenciado e, até mesmo, a oportunidade de estudar
pela primeira vez. Transformando essa oportunidade em momentos de reexões acerca de sua
vida pregressa na perspectiva de transformação do seu futuro. Entretanto, a garantia através dos
dispositivos legais não é prerrogativa de sucesso e que a escola apenas vá oferecer possibilidades
de preparação para o retorno desse sujeito à sociedade com ações de enfrentamento aos desaos
extramuros. Preparar mão de obra para atender ao mercado de trabalho não promove autonomia
e emancipação do sujeito.
Assim, um dos pilares normativos para a elaboração das políticas públicas atuais para
educação em prisões é a Constituição Federal de 1988 que, em seu Artigo 205 estabelece a
educação como direito de todos e dever do Estado e da família, a ser promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade. Temos, então, que o direito à Educação é garantido para todas
as pessoas, inclusive, as que estão em condições de privação de liberdade. Vale destacar que,
em relação à Educação, a LDB nº 9394/96, a Câmara dos Deputados apresenta o PROJETO
DE LEI N.º 7.117, DE 2017 em que propõe alteração educação para os privados de liberdade,
Altera a redação do art. 37 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre
a educação de jovens e adultos para pessoas privadas de liberdade em esta-
belecimentos penais. Art. 1º O art. 37 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, passa a vigorar acrescido dos seguintes § e § 5º: “Art. 37, §
A oferta de educação de jovens e adultos para pessoas privadas de liberdade
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em estabelecimentos penais obedecerá a diretrizes nacionais e será realizada
pelos sistemas de ensino em articulação com os órgãos responsáveis pela ad-
ministração do sistema prisional. § As ações, projetos e programas gover-
namentais destinados à educação de jovens e adultos, incluindo o provimento
de materiais didáticos, apoio pedagógico, alimentação e saúde dos alunos,
contemplarão as instituições e programas educacionais dos estabelecimentos
penais.” (BRASIL, 2017).
As políticas públicas para os privados de liberdade tiveram grandes avanços nos estudos
e encaminhamentos políticos no país possibilitando a garantia do direito à educação, contudo, é
preciso que sejam efetivadas e articuladas aos outros setores da sociedade.
Além das políticas públicas, vale destacar os Movimentos Sociais e Documentos referen-
ciais sobre a Educação de Jovens e Adultos. Vale destacar, a apresentação do Projeto o Marco de
Ação de Belém, Documento aprovado na 6ª Conferência Internacional de Educação de Jovens e
Adultos que ocorreu em Belém, em 2009. Este Documento inclui a aprendizagem dos estudantes
em situação de privação de liberdade numa perspectiva da aprendizagem ao longo da vida, da
participação, inclusão e equidade,
Aprendizagem ao longo da vida, “do berço ao túmulo”, é uma losoa, um
marco conceitual e um princípio organizador de todas as formas de educação,
baseada em valores inclusivos, emancipatórios, humanistas e democráticos,
sendo abrangente e parte integrante da visão de uma sociedade do conheci-
mento. Rearmamos os quatro pilares da aprendizagem, como recomendado
pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, quais se-
jam: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a convi-
ver com os outros. A educação inclusiva é fundamental para a realização do
desenvolvimento humano, social e econômico. Preparar todos os indivíduos
para que desenvolvam seu potencial contribui signicativamente para incen-
tivá-los a conviver em harmonia e com dignidade. Não pode haver exclusão
decorrente de idade, gênero, etnia, condição de imigrante, língua, religião, de-
ciência, ruralidade, identidade ou orientação sexual, pobreza, deslocamento
ou encarceramento. É particularmente importante combater o efeito cumu-
lativo de carências múltiplas. Devem ser tomadas medidas para aumentar a
motivação e o acesso de todos... oferecer educação de adultos nas prisões,
apropriada para todos os níveis; adotar uma abordagem holística e integrada,
incluindo mecanismos para identicar parceiros e responsabilidades do Esta-
do em relação a organizações da sociedade civil, representantes do mercado
de trabalho, educandos e educadores. O avanço na educação de jovens e adul-
tos em prisões não é apenas uma prioridade nacional. Está em construção uma
articulação no contexto internacional para discutir e propor políticas públicas
para o segmento. (BRASÍLIA, 2009).
Esse dispositivo sobre EJA contempla a diversidade dos sujeitos. Destacamos, aqui, a
educação em situação de privação de liberdade, ancorado nas Diretrizes especícas para essas
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pessoas. No entanto, vale uma alerta sobre o conceito de “Educação ao longo da vida”, propostos
nesses documentos,
Para o modelo do capital humano, a Aprendizagem ao longo da Vida é uma
“estratégia” para acelerar o crescimento econômico e a competitividade. Para
o modelo humanitário, a Aprendizagem ao Longo da Vida, reforça a demo-
cracia e a proteção social, valorizando a educação cidadã. (GADOTTI, 2016,
p. 5)
Nesse contexto, a Educação de Jovens e Adultos privados de liberdade deve estar anco-
rada no segundo modelo. Um modelo que possibilite a autonomia e emancipação do sujeito, na
concepção de Paulo Freire.
Nesse contexto, ainda sobre esse movimento para educação nas prisões, Barreto (2017),
destaca o Projeto Educando para a Liberdade em 2006,
O Projeto Educando para a Liberdade, fruto da parceria entre os Ministérios
da Justiça e da Educação e Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil com apoio do Governo do Japão
numa perspectiva de armação dos direitos fundamentais e de inclusão dos
sujeitos em situação de privação de liberdade. Esse Projeto se constitui em
referência ousada na construção de uma política pública que integra e busca
cooperação além do enfrentamento de exclusão e de invisibilidade desses jo-
vens que têm a cidadania e sua condição de humanidade negadas. (BARRE-
TO, 2017, p.56-57).
Além desse Projeto considerado basilar para o avanço das políticas públicas nessa área,
vale lembrar que em 2007 foi lançado o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e,
em relação à Educação Básica,
Deve abarcar questões concernentes aos campos da educação formal, à escola,
aos procedimentos pedagógicos, às agendas e instrumentos que possibilitem
uma ação pedagógica conscientizadora e libertadora, voltada para o respeito
e valorização da diversidade, aos conceitos de sustentabilidade e de forma-
ção da cidadania ativa. (BRASIL, PNEDH 2007). Na concepção do PNEDH,
quando se trata da educação básica entendo que a modalidade da Educação
de Jovens e Adultos está incluída, mas não explicitada, no contexto da ação
pedagógica libertadora, que deve atender a jovens e adultos que se encontram
em situação de opressão, e que estão nas camadas populares da sociedade. No
entanto, destaca a diversidade dos sujeitos, que também entendo como o con-
texto sociocultural em que estão inseridos, considerando às questões étnicas,
acessibilidade, religiosa, gênero e geração. (BARRETO, 2017, p.52).
Embora o PNEDH destaque aqui a educação formal, cabe discutir o direito à educação
não formal que, possibilita ao estudante fazer uma leitura de mundo na perspectiva freiriana.
Em 2009, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), estabelece
a Resolução CNPCP nº 3/2009, que dispõe sobre as Diretrizes para oferta de educação nos esta-
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belecimentos penais, assegura a oferta vinculada à legislação vigente, tanto da educação quanto
da execução penal, atendendo aos eixos pactuados em 2006 no Seminário pela Educação nas
Prisões, Nesse contexto outras normativas vão se delineando nessa área tão singular da Educação
em Prisões, com uma nova representação legal através das Diretrizes Curriculares, a Resolução
nº 02 de maio de 2010 que, em seu Art. 2º orienta,
As ações de educação em contexto de privação de liberdade devem estar cal-
cadas na legislação educacional vigente no país, na Lei de Execução Penal,
nos tratados internacionais rmados pelo Brasil no âmbito das políticas de
direitos humanos e privação de liberdade devendo atender às especicidades
dos diferentes níveis e modalidades de educação e ensino e são extensivas aos
presos provisórios, condenados, egressos do sistema prisional.
Vale ressaltar que, outro desdobramento do PEESP, foi a homologação da Resolução
CEE nº 043/2014 de 14 de julho de 2014. Ainda em consonância com as Diretrizes da EJA no
Estado da Bahia em 2011, foi implantado o Tempo Formativo III, condição para fechar o ciclo
da Educação Básica da EJA, embora a determinação para a implantação do Ensino Médio tenha
sido estabelecida em 2015, através da Lei nº 13.163, de 9 de setembro de 2015, modica a Lei
de Execução Penal (LEP) de 1984, para instituir o Ensino Médio nas penitenciárias, em seu Art.
2º, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:
Art. 18-A. O ensino médio, regular ou supletivo, com formação geral ou edu-
cação prossional de nível médio, será implantado nos presídios, em obediên-
cia ao preceito constitucional de sua universalização.
§ 1o O ensino ministrado aos presos e às presas integrar-se-á ao sistema esta-
dual e municipal de ensino e será mantido, administrativa e nanceiramente,
com o apoio da União, não só com os recursos destinados à educação, mas
pelo sistema estadual de justiça ou administração penitenciária
§ 2o Os sistemas de ensino oferecerão aos presos e às presas cursos supletivos
de educação de jovens e adultos.
§ 3o A União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal incluirão em
seus programas de educação à distância e de utilização de novas tecnologias
de ensino, o atendimento aos presos e às presas.
Logo, a legislação garante a Educação Básica completa na modalidade EJA,
orientando que os Estados assumam a responsabilidade através do Sistema
Penitenciário, incluindo em seus programas à Educação à Distância e a uti-
lização de novas tecnologias que se contrapõem com as restrições para utili-
zação desses recursos estabelecidos pelo dispositivo que considera crime a
entrada de equipamentos eletrônicos nas prisões. (BRASIL.2014).
Isto posto, diante das políticas públicas apresentadas cam evidenciadas que há um re-
conhecimento social em relação aos direitos à educação para as pessoas privadas de liberdade.
No entanto, será necessário efetivá-las, especicamente em relação à dimensão pedagógica.
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Considerações Finais
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa foi possível compreender a dinâmica do pro-
cesso de construção/reformulação dos Planos Estaduais para Educação nas Prisões, elaborados
no Estado da Bahia que, possuem lacunas, mas cabe ampliar as discussões, elaborar um Projeto
especíco de Educação para pessoas privadas de liberdade para além das normativas, mas um
Plano em que na sua essência um posicionamento crítico da condição das prisões do estado e
como fazer uma educação que liberte, que seja afetiva em que as relações sociais sejam mais
humanas. Necessário entender a fala dos estudantes privados de liberdade, acreditamos que esse
é o primeiro passo para assegurar o direito à educação.
Nesse contexto, a intersetorialidade se mostra como uma estratégia permanente que deve
ser ampliada a participação na perspectiva da garantia do direito à educação.
Outro aspecto importante que foi possível pontuar ao longo da pesquisa, evidencia-se pelo
avanço das políticas púbicas especícas nacionais e locais, no entanto, existem muitos desaos
para a efetivação de um Projeto Político Pedagógico que atenda as especicidades da prisão e a
construção de um Comitê Gestor para acompanhar ao logo do período de vigência do Plano, as
metas e ações propostas durante as discussões.
Referências
BAHIA. Plano Estadual de Educação no Sistema Prisional da Bahia. SEC/SEAP. Salvador,
2012.
BAHIA. Plano Estadual de Educação no Sistema Prisional da Bahia. SEC/SEAP. Salvador,
2015.
BAHIA. Secretaria da Educação do Estado da Bahia. Projeto Político Pedagógico do Colégio
Professor George Fragoso Modesto. Salvador, 2011.
BAHIA. Secretaria da Educação do Estado. Projeto Político Pedagógico do Colégio Professor
George Fragoso Modesto. Salvador, 2013.
BAHIA. Secretaria da Educação do Estado da Bahia. Portaria 671/1991. Ato de Criação da
Escola Especial da Penitenciária Lemos Brito. Diário Ocial 09.02.1994.
BAHIA. Conselho Estadual de Educação. Resolução CEE nº 43 de 14 de julho de 2014.
Dispõe sobre a oferta, pelo Sistema Estadual de Ensino, da Educação Básica na modalidade
Educação de Jovens e Adultos, para pessoas em situação de privação de liberdade nos estabe-
lecimentos penais do Estado da Bahia. Salvador. Publicada em 06 de março de 2015.
BARRETO, Maria das Graças Reis. EDUCAÇÃO EM PRISÕES: outras estratégias para
outro sujeito de direito. Trabalho Final de Conclusão de Curso. Programa de Pós-graduação
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Maria das Graças Reis Barreto e Newdith Mendonça Dias
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 155-170, jan./abr. 2021
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Recebido em: 03 de janeiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Adolescentes e jovens em conito com a lei: a percepção de “punição” no regime socioeducativo de internação
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 171-188, jan./abr. 2021 |
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.9439
ADOLESCENTES E JOVENS EM CONFLITO COM
A LEI: A PERCEPÇÃO DE “PUNIÇÃO” NO REGIME
SOCIOEDUCATIVO DE INTERNAÇÃO
1
Solimar Santana Oliveira
2
http://orcid.org/0000-0002-5831-3726
Secretaria de Estado da Educaçao de Goiás
Guilherme Resende Oliveira
3
http://orcid.org/0000-0002-2170-3608
Universidade de Brasília
RESUMO:
A partir do objeto investigado, o sistema socioeducativo, este artigo tem o objetivo de investigar a per-
cepção de adolescentes e jovens que estão em cumprimento de medida socioeducativa de internação em
um Centro de Atendimento e Medida Socioeducativa (CASE)
4
. A metodologia de abordagem qualitativa
iniciou-se por meio de revisão teórica, abarcando autores que contribuem para a temática como Foucault
(1987); Freire (1980; 1987); Volpi (1999); Soares (2002); Onofre (2007); Leal e Carmo (2014), entre
outros. Por seguinte pesquisa de campo por meio de entrevistas semiestuturadas com um grupo de 6
adolescentes e jovens que cumprem medida de internação no CASE. Foi realizada a triangulação dos
documentos, referencial teórico e dados empíricos gerados por meio das entrevistas, no qual passaram
também por uma análise de conteúdo com o propósito de apreender a percepção dos colaboradores da
pesquisa em questão. Os documentos investigados demonstram que a socioeducação deve cumprir a
oferta de educação, e isso é constatado, porém os teóricos desse tema defendem que deve-se abranger
uma formação além do ensino de disciplinas, para atuação cidadã efetiva em seu contexto e seu convívio
político-social. A análise demonstrou que há limitações na implementação da ação socioeducativa, pois,
esses sujeitos apontam que o sistema é uma oportunidade de continuidade formativa, contudo ainda é
também uma via punitiva pelo conito que eles possuem com a lei.
Palavras-Chave: Educação. Socioeducação. Punição.
ABSTRACT:
ADOLESCENTS AND YOUNG PEOPLE IN CONFLICT WITH THE LAW:
THE PERCEPTION OF “PUNISHMENT” IN THE SOCIO-EDUCATIONAL
REGIME OF HOSPITALIZATION
Based on the object investigated, the socio-educational system, this article aims to investigate the per-
ception of adolescents and young people who are in compliance with a socio-educational measure of
hospitalization in a Center for Assistance and Socio-educational Measure (CASE). The qualitative ap-
proach methodology started through a theoretical review, covering authors who contribute to the theme
as Foucault (1987); Freire (1980; 1987); Volpi (1999); Soares (2002); Onofre (2007); Leal and Carmo
1 A produção cientíca proposta é fruto de estudos realizados na pesquisa, “A ação socioeducativa e o
papel da secretaria de estado da educação de Goiás na garantia de educação àqueles que estão em cumprimento
de medidas socioeducativas”, A problemática envolvia o questionamento se o atendimento socioeducativo pode
ser concebido como um período de oportunidade para a continuidade formativa ou como punição por ato ilícito
cometido pelo jovem e/ou adolescente.
2 UNIALFA. E-mail: sollimar.advogada@gmail.com
3 Doutor em Economia (UNB). Professor Titular (UNIALFA). E-mail: guilherme.oliveira@unialfa.com.br
4 Todos os procedimentos realizados no decorrer da pesquisa foram aprovados pela instituição colabora-
dora e cumpriu todos os requisitos éticos durante a realização da pesquisa.
Solimar Santana Oliveira e Guilherme Resende Oliveira
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(2014), among others. Following eld research through semi-structured interviews with a group of 6
adolescents and young people who are undergoing hospitalization measures at CASE. The triangulation
of documents, theoretical framework and empirical data generated through the interviews was carried
out, in which they also underwent a content analysis in order to apprehend the perception of the research
collaborators in question. The investigated documents demonstrate that socio-education must comply
with the education offer, and this is veried, but the theorists of this theme argue that training should be
included in addition to the teaching of disciplines, for effective citizen action in its context and its poli-
tical coexistence- Social. The analysis showed that there are limitations in the implementation of socio-
-educational action, as these subjects point out that the system is an opportunity for formative continuity,
however it is also still a punitive way for the conict they have with the law.
Keywords: Education. Socio-education. Punishment.
RESUMEN:
ADOLESCENTES Y JÓVENES EN CONFLICTO CON LA LEY: LA
PERCEPCIÓN DEL “CASTIGO” EN EL RÉGIMEN SOCIOEDUCATIVO
DE HOSPITALIZACIÓN
A partir del objeto investigado, el sistema socioeducativo, este artículo tiene como objetivo investigar
la percepción de adolescentes y jóvenes que están en cumplimiento de una medida socioeducativa de
hospitalización en un Centro de Atención y Medida Socioeducativa (CASE). La metodología del abor-
daje cualitativo partió de una revisión teórica, abarcando a autores que aportan al tema como Foucault
(1987); Freire (1980; 1987); Volpi (1999); Soares (2002); Onofre (2007); Leal y Carmo (2014), entre
otros. Seguimiento de la investigación de campo a través de entrevistas semiestructuradas con un grupo
de 6 adolescentes y jóvenes que se encuentran sometidos a medidas de hospitalización en CASE. Se
realizó la triangulación de documentos, marco teórico y datos empíricos generados a través de las entre-
vistas, en las que también se sometió a un análisis de contenido con el n de aprehender la percepción
de los colaboradores de la investigación en cuestión. Los documentos investigados demuestran que la
socioeducación debe cumplir con la oferta educativa, y así se verica, pero los teóricos de esta temática
argumentan que la formación debe incluirse además de la enseñanza de disciplinas, para la acción ciu-
dadana efectiva en su contexto y su política. convivencia- Social. El análisis mostró que existen limita-
ciones en la implementación de la acción socioeducativa, ya que estos sujetos señalan que el sistema es
una oportunidad para la continuidad formativa, sin embargo también sigue siendo una vía punitiva por
el conicto que tienen con la ley.
Palabras clave: Educación. Socioeducación. Castigo.
Introdução
Dados nacionais publicados pelo Levantamento anual do Sistema Nacional de Atendi-
mento Socioeducativo (SINASE) mostram que em 2018 foram solicitadas 1.440 vagas para o
cumprimento de medida socioeducativa de internação em alguns estados, contudo, 704 foram
negadas por falta de vagas no sistema. Em 2019, até o dia 10 de dezembro, foram 1.010 solici-
tações e 361 negadas (BRASIL, 2019).
Nesse panorama, entre atendimento e oferta de vagas para que haja o cumprimento de
medida de internação, tem-se a socioeducação a partir da compreensão de uma educação voltada
para o convívio social. Em alguns locais a gestão desse sistema socioeducativo pelas redes es-
taduais de educação. Em Goiás é realizada pela Gerência de Programas e Projetos Intersetoriais
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e Socioeducação da Secretaria de Estado da Educação (SEDUC) e pela Secretaria de Desenvol-
vimento Social (SEDS).
A sistematização do trabalho é voltada para uma abordagem de preparação dos adolescen-
tes e jovens para o convívio social, atuarem como cidadãos e futuros prossionais, na perspectiva
de ressignicação protagonista de suas vidas e da própria realidade social, bem como para não
reincidirem na prática dos atos infracionais.
A SEDUC e a SEDS são responsáveis pela gestão da política de atendimento socioe-
ducativo em âmbito estadual e visam garantir a escolarização básica nos níveis fundamental e
médio aos adolescentes e jovens em conito com a lei que cumprem medida socioeducativa de
internação provisória, internação em estabelecimento educacional e semiliberdade nas Unidades
de privação e restrição de liberdade do Estado.
A formação e o desenvolvimento de qualquer criança e jovem, como caminho para a
construção de seu futuro, é de extrema importância, e a educação se faz ainda mais fundamental
quando se trata de adolescentes em conito com a lei, que hoje cumprem algum tipo de medida
socioeducativa (GOIÁS, 2017).
Essa ação socioeducativa propõe a efetivação de uma educação de qualidade que possibi-
lite os adolescentes e jovens em comprimento de medidas socioeducativas, ser, viver e conviver
com foco em seu projeto de vida, propiciando oportunidades para que o mesmo seja agente
transformador da sua realidade frente ao convívio social e tenha uma vida futura fora do mundo
infracional e criminal (GOIÁS, 2019).
Cabe ressaltar que, ao tratar de medidas socioeducativas, tem-se também que reetir
acerca da privação de liberdade e ou prisão. Michel Foucault (1987) nos traz seus estudos sobre
a prisão, desde o seu surgimento
5
, passando por várias transformações que ocorreram no mo-
delo prisional. Para Foucault (1987) a prisão é a única que surge como a mais ecaz forma de
punição, sendo o melhor meio de castigar o indivíduo e deve ser regida por três princípios: o
isolamento, o trabalho e a duração do castigo. “De maneira que se deveria falar de um conjunto
cujos três termos (polícia-prisão-delinquência) se apoiam uns sobre os outros e formam um
circuito que nunca é interrompido” (FOUCAULT, 1987, p. 309). Infere-se desse modo que há
uma certa dependência dos três termos, sem um não haveria razão de existir o outro, sem aqueles
que não “obedecem” às regras, as leis, as doutrinas e tudo aquilo que envolve a convivência em
comunidade, não poderia haver o instituto da prisão, nem tão pouco o controle policial, porque
um foi feito para o outro e vice-versa.
5 Salientamos que o autor citado, Foucault, em sua obra trata da história da prisão e de seu nascimento no
Ocidente nas sociedades europeias respectivamente.
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Nesses termos, Soares (2002) arma que esses fatores, mas levando em consideração
principalmente a falta de escolarização, desigualdades sociais e de oportunidades no mercado
de trabalho, de maneira bem especíca culminaram para que o indivíduo, entrasse para uma
vida ilícita e viesse a ser penalizado pelo sistema judiciário e por isso veio a ser apreendido em
penitenciárias ou alguma casa/instituição/unidade de reclusão, como forma de punição pelo ato
que foi feito/praticado por ele.
Diante disso, tem-se como proposta o objetivo de investigar a percepção de adolescentes
e jovens, que estão em cumprimento de medida socioeducativa de internação em um Centro de
Atendimento e Medida Socioeducativa (CASE), acerca da concepção do atendimento socioe-
ducativo como um período de oportunidade, para a continuidade formativa, ou como punição
por ato ilícito cometido pelo adolescente e/ou jovem.
A metodologia de abordagem qualitativa que se iniciou por meio de pesquisa teórica,
abarcando autores que contribuem para a temática e, por seguinte, pesquisa de campo por meio
de entrevistas semiestuturadas com os 6 adolescentes e jovens que cumprem medida de inter-
nação no CASE do município de Porangatu no Estado de Goiás. Essas entrevistas ocorreram no
ano de 2020 e ressalta-se que, com a Pandemia de Covid 19, houve a garantia da segurança e da
saúde por meio da observância das regras sanitárias e das orientações da Organização Mundial
da Saúde (OMS), devido ao contexto que estávamos expostos. As entrevistas, após permissão
dos entrevistados e da gestão do CASE, foram registradas por meio de gravação em áudio e por
anotações escritas da pesquisadora que foi presencialmente ao local.
Para garantir o anonimato desses colaboradores eles serão apresentados neste artigo como
S1, S2, S3, S4, S5 e S6. Portanto, o propósito global nesta pesquisa contempla uma metodologia
de investigação que prioriza a descrição à indução e ao estudo das percepções dos indivíduos
envolvidos na investigação (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Além disso, a pesquisa qualitativa
permite uma compreensão mais ampla dos fenômenos investigados, a partir do contexto em
que estão inseridos.
O texto está dividido em seções no qual se inicia pela apresentação de concepções acerca
da privação de liberdade para os jovens e adolescentes que estão em conito com a lei a partir das
contribuições dos teóricos e da previsão legal do ECA e do SINASE. Em seguida, abordamos a
Socioeducação como é contemplada no ECA e no SINASE, e dando sequência nessa abordagem
como está contemplada na Rede de Ensino. No próximo tópico é apresentada as percepções dos
socioeducandos. Por m tecemos algumas considerações acerca das percepções apresentadas e
de toda a triangulação realizada por meio da análise dos teóricos, dos documentos legais e das
entrevistas dos colaboradores da pesquisa.
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A privação de liberdade para jovens e adolescentes em conito
com a Lei
A socioeducação é o processo de ressocialização realizado por meio da Educação, as
legislações que contemplam sua previsão é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o
SINASE.
O ECA de 1990 é o instrumento que tenta assegurar os direitos das crianças e dos adoles-
centes em substituição ao anterior Código de Menores de 1979, que permitia ao Estado recolher
crianças e adolescentes que estariam em situação irregular perante as leis (sem família ou em
delinquência, termo utilizado na referida lei) e interna-los até a sua maioridade em uma espécie
de reformatório para receber educação e aprenderem algum ofício para o trabalho.
O princípio fundamental do estatuto, que foi instituído pela Lei de número 8.069 de 13
de julho de 1990, é a proteção integral a todas as crianças e adolescentes. Em sua Parte Especial,
está direcionada sobre ações para aqueles jovens que se incluem no grupo em conito com a lei.
Neste, apresenta-se a política de atendimento dos direitos a eles.
Por isso, a socioeducação é um direito previsto que tem como um dos seus objetivos
promover a escolarização dos adolescentes em situação de privação de liberdade com vistas ao
exercício de sua cidadania no sentindo de voltar ao convívio em sociedade.
O adolescente em contexto de privação de liberdade (BERGER, 2005, p. 81) é autor de
ato constituído como infracional. Um ato infracional é, segundo o artigo 103 do ECA (1990),
“como crime ou contravenção penal”, e ainda disciplina que “são penalmente inimputáveis os
menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às medidas previstas nesta lei” (BRASIL, 1990, art. 104).
De modo que no ECA a privação de liberdade está prevista no artigo 106, “nenhum adolescente
será privado de sua liberdade senão em agrante de ato infracional ou por ordem escrita e funda-
mentada da autoridade competente”. Já no artigo 108 “a internação, antes da sentença, pode ser
determinada pelo prazo máximo de 45 (quarenta e cinco) dias”. E o artigo 123 ainda estabelece
que a internação deverá ser em locais distintos, oferecendo abrigo ao adolescente, bem como
atividades pedagógicas condizentes com sua idade, ainda que essa internação seja provisória.
O processo do adolescente que se enquadra como autor de ato infracional, como está
estabelecido no ECA (1990), ocorre em tribunais especiais, onde ele é julgado: são as Varas Espe-
ciais da Infância e da Juventude – no qual está sujeito ao cumprimento de medida socioeducativa
conforme o previsto no artigo 112, podendo ser: advertência; obrigar de reparar o dano; prestar
serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação
em estabelecimento educacional.
Solimar Santana Oliveira e Guilherme Resende Oliveira
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Essas medidas socioeducativas podem ser compreendidas a partir de duas dimensões
defendidas por Volpi (1999) como de natureza coercitiva (punitivas) e educativa (formação).
De qualquer forma, as medidas socioeducativas devem constituir-se numa garantia de acesso do
adolescente infrator ao conhecimento sistematizado, além de garantir a superação de sua exclusão
social. Além do acesso ao ensino, o adolescente infrator deverá ser assistido pela saúde, defesa
jurídica e prossionalização, promovidas prioritariamente pelas políticas públicas de acesso
formuladas para este infrator especíco conforme legislação brasileira.
Além da medida de privação de liberdade, o ECA (1990) prevê outras, sendo quatro
medidas socioeducativas: prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, regime de
semiliberdade e a internação. Todas essas medidas são aplicadas pela autoridade competente.
Sobre a medida de prestação de serviços à comunidade, o artigo 117 do ECA ensina que
se trata da realização de tarefas gratuitas e não podem exceder o tempo máximo de 6 meses,
preferencialmente em entidades assistenciais, hospitais, escolas e órgãos comunitários ou go-
vernamentais.
Este tipo de serviço deverá considerar a aptidão do adolescente, podendo ser cumprida
num período máximo de 8 horas diárias, inclusive aos sábados, domingos ou feriados e não
prejudicar o tempo dedicado ao ensino ou trabalho formal.
A liberdade assistida tem como objetivo o acompanhamento, auxílio e orientação do
adolescente por pessoa designada pela autoridade competente, durante um período mínimo de
6 meses, podendo ser prorrogado por igual período, ser revogada ou substituía, desde que con-
sultados o seu orientador, Ministério Público e defensor.
O regime semiaberto é uma transição do regime fechado para o aberto, oportunidade em
que o adolescente infrator poderá exercer atividades laborais e estudos, independentemente de
autorização judicial.
Já a medida socioeducativa de internação não deve ultrapassar o período máximo de 3
anos, contudo o juiz deve a cada 6 meses realizar uma avaliação dessa medida de internação,
interrompendo-a, prorrogando ou mudando para a medida semiaberta.
Essas medidas socioeducativas como a de liberdade assistida que é coercitiva e educa-
tiva e que por meio de acompanhamento o adolescente deve ser assegurado sua frequência na
escola, ou a de prestação de serviços à comunidade, poderá car sob a responsabilidade dos
municípios que poderá rmar convênios com entidades não-governamentais para a execução
dessas medidas socioeducativas.
Em linhas gerais, o adolescente que está em conito com a lei e que cumpre alguma me-
dida socioeducativa, segundo Volpi (1999) deve ter garantido: o acompanhamento personalizado,
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inclusão social, manutenção dos vínculos familiares, acesso à escola e ao mercado de trabalho
mediante prossionalização.
Elas devem promover a proteção integral do adolescente por meio de políticas públicas
e sociais básicas, além disso, deve garantir a escolarização em qualquer tipo de medida socioe-
ducativa inclusive na medida de internação.
Assim sendo, para que se tenha essa compreensão, deve-se também compreender o que é
a socioeducação, que segundo o ECA (1990) e o SINASE (2012), ainda não existe uma denição
unânime do termo. Essas duas leis trazendo consigo as diretrizes e normas para o atendimento
socioeducativo no Brasil, contudo, não descrevem o termo socioeducação de maneira clara, su-
gerindo apenas interpretações acerca da palavra. Por isso, é necessário recorrer a pesquisadores
e teóricos que tratam do assunto como Bisinoto et al. (2015), Paes (2008), Volpi (1999), Zanella
(2011) e Valente (2015).
Bisinoto et al. (2015) faz uma crítica à falta de clareza e pouca intencionalidade das po-
líticas públicas de ressocialização dos jovens e adolescentes infratores no Brasil, evidenciando
uma lacuna entre a teoria e prática no que tange às medidas socioeducativas propostas pelo ECA
e SINASE.
Paes (2008) também fez uma crítica neste sentido, esclarecendo que as políticas públicas
de ressocialização no Brasil enfatizam muito mais as medidas socioeducativas do que as formas
de ensinar e prossionalizar os adolescentes e jovens infratores.
Zanella (2011) dene a socioeducação como um conjunto de ações pedagógicas voltadas
para a ressocialização e intencionalidade socioeducativas tendo como objeto os adolescentes e
jovens infratores, de forma que possam complementar seus estudos, bem como, ter a oportuni-
dade de participar ativamente do mercado de trabalho.
Dessa forma, para Zanella (2011) o planejamento e a avaliação da ação socioeducativa
devem ser realizadas no intuito principal de conceber o adolescente como o objeto do processo
de socioeducação e não a infração cometida por ele, pois quem é o sujeito a ser ressocializado é
o adolescente, por isso, ao planejar e avaliar as medidas deve-se considerar o adolescente e seus
direitos previstos nas legislações.
No sentido de pensar no adolescente e não apenas no ato cometido por ele, Valente (2015)
dene a socioeducação como além de tentar imputar ao adolescente o sentimento de responsa-
bilização, também é um mecanismo para atingir dimensões sociopsicológicas do adolescente
para que ele possa aprender a ser e conviver em sociedade.
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A partir desses autores percebe-se que, realmente, ainda existe imprecisão quanto a deni-
ção do termo socioeducação e, ainda mais, essa indenição leva ao reducionismo de um trabalho
socioeducativo, gerando diculdades no exercício de sua função educativa. Desse modo, a lógica
punitiva no entendimento comum sobre a dimensão pedagógica da medida socioeducativa, imer-
ge o adolescente nessa condição e o torna apenas como aquele que sua medida socioeducativa
deixando de ser um sujeito de direito e de ser um indivíduo em desenvolvimento.
A socioeducação no ECA e no SINASE
O estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 é o início da retomada das dis-
cussões para assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes em substituição ao anterior
Código de Menores de 1979.
Contudo, para se fortalecer e fazer cumprir essa política de direitos, tem-se em 2002 a
partir de avaliações nacionais acerca dos programas de atendimento socioeducativo realizado
pelo Ministério da Justiça, a elaboração de um documento que veio com a proposta de estabelecer
diretrizes para execução de medidas socioeducativas. A partir deste documento criou-se em 2006
pela Resolução nº 119/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), e posteriormente
pela Lei de número 12.594 de 18 de janeiro de 2012.
Tanto o ECA (1990) como o SINASE (2012) fazem referência a criança e o adolescente
com uma concepção de sujeitos de direitos, prevendo sua proteção integral e assegurando o
pleno desenvolvimento, seja físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de usufruir
e exercer sua liberdade e dignidade.
O SINASE (2012) foi constituído com o propósito de se estabelecer diretrizes estaduais,
municipais e distrital, para o atendimento socioeducativo, garantindo o direito à educação, bem
como a ressocialização do adolescente infrator. As diretrizes propostas pelo SINASE pressu-
põem um conjunto de princípios, regras e critérios jurídicos, políticos, educativos, nanceiros e
administrativos baseados nas normativas nacionais e internacionais das quais o Brasil se tornou
signatário.
Entende-se que o objetivo principal do SINASE é a implementação efetiva de uma política
voltada ao adolescente e conito com a lei. Em seu Artigo 1° institui-se que: “Esta Lei institui
o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e regulamenta a execução das
medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional” (BRASIL, 2012).
Adolescentes e jovens em conito com a lei: a percepção de “punição” no regime socioeducativo de internação
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A socioeducação aqui é compreendida como política pública especíca para adolescentes
e jovens que estão inseridos no SINASE, ou seja, que estão ou que tiveram seus direitos violados
ou ainda que violaram direitos pelo cometimento de atos infracionais. Assim sendo, segundo o
SINASE, as medidas socioeducativas têm por objetivos responsabilizar os adolescentes e jovens
infratores sobre seus delitos, com reprovação de sua conduta infracional, aplicando-lhes as dispo-
sições de sentença previstos na legislação, bem como promover sua integração e inserção social.
O SINASE é a lei que regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas
aos adolescentes, de modo que, ela determina as normas e os padrões que devem ser seguidos
pelas instituições e pelos prossionais que atuam nesse sistema (LEAL; CARMO, 2014). O
sistema funciona por meio de relações mantidas pelo sistema educacional, sistema único de
saúde, sistema de justiça e segurança pública, e sistema único da assistência social. Assim sendo,
o SINASE é uma política pública que se destina a “inclusão do adolescente em conito com
a lei que se correlaciona e demanda iniciativas dos diferentes campos das políticas públicas e
sociais” (BRASIL, 2006, p. 23).
Infere-se então que esse sistema é um grande marco regulatório e importante no que
tange a socioeducação, pois promove a intervenção do jovem de maneira educativa visando sua
proteção integral.
A socioeducação na rede de ensino
A concepção de socioeducação parte da premissa de que o jovem e a promoção de seu
desenvolvimento constituem a centralidade da proposta socioeducativa. Com o Estatuto da
Criança e do Adolescente representa uma importante conquista na atenção e intervenção com
adolescentes e jovens autores de atos infracionais (LEAL; CARMO, 2014).
O processo socioeducativo deve romper com os ciclos vivenciados pelo adolescente
vinculando-o a um processo de educação que seja voltado à vida em liberdade. Assim sendo, as
autoras Leal e Carmo (2014, p. 206) armam que a partir desse entendimento “a Socioeduca-
ção se congura como uma resposta às premissas legais do ECA, ao mesmo tempo que é uma
resposta às demandas sociais contemporâneas”. Segundo elas os principais objetivos da socio-
educação envolvem a responsabilização do adolescente e jovem infrator incentivando sempre
que possível sua reparação, além da integração social e garantia de seus direitos individuais e
sociais conforme preceitua a legislação brasileira.
Dessa forma, entende-se que a educação e a responsabilização são eixos estruturantes no
processo da socioeducação, com um papel fundamental na mediação entre jovens e adolescentes
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e a sociedade, contribuindo para a reintegração ao convívio familiar e social, além de evitar o
cometimento de novos atos infracionais.
Concebe então a socioeducação como uma ferramenta desenvolvida e voltada para ações
que sejam orientadas para a transformação da realidade do jovem numa perspectiva emancipató-
ria. Nesse sentido, Leal e Carmo (2014) esclareceram que há um conito entre as respostas das
políticas públicas de proteção ao adolescente e jovem infrator no Brasil, pois a prática efetiva
das ações necessárias para a socioeducação andam longe de serem implementadas por todos os
estados brasileiros, promovendo um mínimo de dignidade humana conforme preceitua a Cons-
tituição Federal de 1988 e legislações correlatas.
Para que a socioeducação seja uma política de ação formadora para aqueles que estão
em cumprimento de medidas socioeducativas, ela deve ser realizada por meio de uma dimensão
pedagógica intencional visando a ressignicação das trajetórias dos adolescentes em conito
com a lei e possibilitando com isso a construção de novos projetos de vida.
O ambiente de privação de liberdade possui suas particularidades, desse modo, é um
grande desao para todo o sistema socioeducativo. Teixeira (2007, p. 14) defende que a educa-
ção no sistema prisional deve ser “uma educação que contribua para restauração da autoestima
e para a reintegração posterior do indivíduo em sociedade.”
Sobre isso, temos a contribuição de Paulo Freire (1987) ao armar de que não há outro
caminho a seguir, a não ser aquele da pedagogia humanizadora, em que o diálogo seja uma
constante e permanente ação a favor dos oprimidos.
Conforme o que os autores defendem, há uma grande falta de uma mobilização e cons-
cientização da sociedade em relação aos presos, sobretudo, em relação ao direito à educação
daqueles que se encontram em tal situação. Entende-se que a presença da sociedade civil no
ambiente prisional, através da participação efetiva nas discussões e promoção de ações educati-
vas, facilitaria no desenvolvimento de projetos educativos e propiciaria novas oportunidades e
motivação para que os presos aderissem de forma efetiva aos programas de ensino.
Desse modo, Freire (1980, p. 26) enfatiza que a conscientização se constitui como uma
dialética que não existe fora da práxis, pois se o país é consciente de seu dever em relação à
educação dos oprimidos, esse pensar consciente será capaz de transformar a realidade desses
mesmos indivíduos, transformando-os e transformando a sociedade a sua volta.
Por isso, o grande desao na atualidade, quando se fala de educação e ressocialização de
jovens e adultos dentro do sistema penitenciário brasileiro, está, em primeiro lugar, em garantir
que o jovem possa concluir seus estudos na idade própria, que é um grande desao. Segundo,
desmisticar a educação dentro dos centros do sistema penitenciário, pois, a realidade é que a
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pessoa ao regressar a sociedade, sofre muito preconceito em vários segmentos, principalmente
no mercado de trabalho, sendo que, um dos objetivos dessa educação em cárcere é ressocializar
esse indivíduo de modo que o mesmo dê continuidade em seus estudos e possa efetivamente
ingressar qualicado em um emprego digno, superando qualquer falsa suposição sobre seu
passado como detento.
Dessa forma, o ensino garantido e ministrado aos adolescentes e jovens no sistema so-
cioeducativo não é um privilégio apenas, mas um direito previsto na legislação brasileira.
Para que esse direito se efetive com eciência, os sujeitos envolvidos nesse processo
devem conhecer a realidade de cada instituição que mantêm o jovem ou o adulto, bem como
procurar entender tua a estrutura e carga de conhecimentos já trazidos pelo aluno, de maneira
que dessa forma poderá trabalhar com ele os mecanismos que o auxiliaram na sua transformação
plena e assim ele poderá nalmente regressar a sociedade.
Onofre (2007) arma que a socioeducação não se constitui apenas como uma forma de
comunicar e fazer com que os adolescentes e jovens interajam com outros indivíduos, mas como
um instrumento de socialização, dando-lhes oportunidade de uma vida mais digna e longe dos
delitos.
De tal modo que percebermos essas particularidades dentro do ambiente prisional é tão
importante, quando, ministrar um conteúdo em si para esse público-alvo. Com isso, poderá ha-
ver uma signicativa restauração de fatores pessoais implícitas em cada indivíduo: motivação,
autoestima e auto realização, além de favorecer de certo o exercício da cidadania.
Para Julião (2003) a educação dos adolescentes e jovens infratores tem como objetivos
manter os reclusos ocupados; melhorar sua qualidade de vida no interior da prisão; incentivar a
mudança de atitudes; acesso ao conhecimento e inserção à vida social pautada nos ideais éticos
e morais exigidos de todo indivíduo.
Uma educação que preocupa-se em proporcionar qualidade de vida e ocupação para
aqueles que vivem em uma realidade de reclusão é um desao muito além daquela educação
que busca primeiramente a formação da pessoa, pois, aqui temos que mostrar para o indivíduo
que está inserida nesse processo, toda a importância de uma formação para uma vida pregressa,
pensar num futuro melhor, mudar valores e princípios em prol de uma convivência em socieda-
de, nesse sentido observamos a grande barreira aqui a ser derrubada: a transformação da pessoa
humana para viver em sociedade, a ressocialização do ser por meio da Educação.
Assim sendo, é função da Rede de Ensino por meio da socioeducação devolver o adoles-
cente à sociedade para exercer a cidadania e usufruir de liberdade convivendo com o próximo
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levando em conta direitos e deveres, e é função do Estado oferecer as condições dignas de ali-
mentação, saúde, formação prossional, lazer, esporte, cultura, e educação.
Percepções dos socioeducandos
Nesta seção apresentam-se as percepções acerca da ação socioeducativa dos socioedu-
candos do CASE em Porangatu e do Colégio Presidente Kennedy. Aqui totaliza-se com 06 o
número de sujeitos colaboradores da pesquisa, sendo todos socioeducandos. Eles serão nomeados
da seguinte forma para preservar sua identidade: S1, S2, S3, S4, S5 e S6.
As percepções dos socioeducandos
6
se fez necessário para captar as inuências da ação
socioeducativa, sua efetividade e suas implicações na vida desses sujeitos. Principalmente no
que tange essa percepção como oportunidade de formação ou de punição.
Assim sendo o primeiro tópico abordado foi o período escolar em que estavam durante
a medida socioeducativa de internação. A partir das informações passadas por eles temos suas
caracterizações elencadas:
• S1 está há um ano em meio e cursa o 9º ano do ensino fundamental, não estudava
anteriormente e já trabalhava - seu trabalho era na zona rural. Ele gostaria de fazer
um curso na área de informática;
• S2 está há um ano, não estava estudando regularmente e não informou os motivos.
Ele gostaria de fazer um curso na área de informática e no futuro poder ser Bom-
beiro;
• S3 está no CASE há seis meses e cursa o 8º ano do ensino fundamental, não estudava
anteriormente a medida, não informou os motivos para parar de estudar, e trabalhava
como ajudante de pedreiro. Ele gostaria de fazer um curso na área de informática;
• S4 está sob medida de internação há seis meses e não estudava anteriormente, infor-
mou que precisou trabalhar e por isso parou com os estudos. Ele gostaria de fazer
um curso na área de mecânica, com Bomba Injetora, pois já estava trabalhando com
isso e gostaria de se aperfeiçoar;
• S5
7
é um socioeducando egresso do CASE e cou sob medida de internação por um
pouco mais de 1 ano, estudava no ensino regular antes de cumprir a medida socioe-
ducativa de internação, estava matriculado no 1º ano do Ensino Médio e após saída
da unidade ainda não retornou os estudos em escola regular porque não conseguiu
realizar a matrícula, disse que tentou mas que não deu certo e que irá tentar poste-
riormente. Ele gostaria de fazer um curso na área de informática;
• S6 está em medida de internação há um ano e 11 meses, não estudava há mais de três
6 Todos os socioeducandos que estavam cumprindo medida socioeducativa de internação que participaram
da pesquisa foram acompanhados durante as entrevistas pelo coordenador do CASE. Foi solicitado pelo coordena-
dor que durante a entrevista não fosse falado sobre os atos ilícitos cometidos pelos jovens.
7 O Egresso do CASE S5 por não estar na unidade de medida socioeducativa durante a entrevista esteve
acompanhado de um responsável que consentiu a entrevista de maneira documentada por meio do TCLE.
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anos antes de cumprir a medida socioeducativa e agora está matriculado no 1º ano
do Ensino Médio. Ele gostaria de fazer um curso para ser Bombeiro;
Por seguinte iniciamos a conversa acerca das relações deles com os educadores do CASE.
Todos os socioeducandos armaram ter um bom relacionamento com seus professores e que
gostam do ensino ofertado. S1 (2020) apontou que gosta muito das atividades extracurriculares
como jogar bola, ouvir música, hip hop e demais atividades que possibilitam que eles saiam dos
alojamentos. “Gosto porque... é melhor que car lá no alojamento, né. (S1, 2020).”
Sobre a oferta de outros cursos, como prossionalizantes, alguns informaram que teve
o de “Jovens Empreendedores”, confecção de pizza, “Eles ensinam a fazer esses trem aí de
cozinha, pizza, outras coisas... (S1, 2020)” e outros desconhecem qualquer curso diferente que
tenha sido ofertado pelo CASE, talvez porque estão amenos de um ano na unidade e devido a
Pandemia muitas atividades que poderiam ser ofertadas não ocorreram.
Esse curso de Jovens Empreendedores os socioeducandos que zeram referência a ele
informaram que foi por meio de vídeo e data-show que ocorreram as aulas.
O socioeducando S5 fez um relato muito interessante de que iria fazer um curso na área
de seu interesse, informática, contudo não foi possível porque o Juiz não liberou. “Eu ia fazer um
curso, só que aí não deu certo pela... porque o juiz não autorizou, mas foi só isso.” (S5, 2020).
Aqui entra aquela questão que foi relatada anteriormente pelos gestores de que a oferta de cursos
por outras instituições e órgãos é condicionada há muita burocracia e que não é fácil retirar um
socioeducando para estudar em outras instituições, mesmo que acompanhado de um servidor que
geralmente não é identicado, ca no ambiente como um estudante comum, para não constranger
o estudante e demais cursistas. Essa questão foi tão latente para esse socioeducando que ao nal
da entrevista ele ainda reforçou que “gostaria de ter tido feito um curso prossionalizante pra
mim já sair trabalhando, com emprego. (S5, 2020).”
Nesse sentido questionamos acerca dessas oportunidades de educação, de acolhimento
e de certo modo de encarceramento o que eles percebiam e sentiam sobre isso, se sentiam que
estavam sendo punidos pelo Estado. Sobre isso S1 (2020) armou que para ele era uma oportu-
nidade, pois antes ele não estava estudando, “E aqui eu posso aprender muitas coisas, e quando
sair eu posso terminar meus estudos, né... Que eu nunca pensava em terminar meus estudos, e
aqui... já tenho a minha oportunidade. Vou fazer um curso rápido de Técnico em Informática.”
(S1, 2020).
Outro fator apontado por S1 (2020) é de que poderia ter mais oportunidades de realizar
outras tarefas no CASE para que ele pudesse aprender mais, e poder realizar algo melhor. “Se
tivesse oportunidade para gente fazer algo melhor, igual eu faço a limpeza da unidade, eles pu-
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dessem dar mais tempo pra para car mais de fora do alojamento... fazer... tiver mais, melhor...
mais atividade. (S1, 2020).” Percebe-se um anseio com relação a saída da parte de alojamentos
no qual pelo relato desse socioeducando é um período que ca ocioso e o seu desejo é de realizar
mais tarefas, mais atividades, cursos, entre outras coisas no intuito de aprender e poder ter novas
oportunidades. S4 assevera que é uma oportunidade que não teria caso estivesse na rua porque
dentro da unidade “Aqui tem que estudar agora, é bom né véi... livra a cabeça, sei lá... ca de
boa, né... mas é bom, é uma oportunidade boa. (S4, 2020).”
Uma fala que traz reexão acerca de que o CASE é considerado por alguns deles como
uma medida punitiva e de prisão, encarceramento é a de S4 que para ele deveria ter que haver
melhorias na “cela” dele. “Aqui é bom, mas quero que melhora minha cela, os trem tudo, né...
A cela tá meia paia, mas...Melhorar minha cela...A situação tá meia ruim... tá crítica não, mas
tá de boa. (S4, 2020).” Ele ainda complementa que poderia haver mais oportunidades para
aprender mais.
O socioeducando S5 também relata que para ele o Estado o está punindo por ter feito
algo contra a lei, ele diz que estudar no CASE é muito bom, mas “Só que, tipo, car preso...
(S5, 2020)”. Aqui nesse relato vê-se que o jovem sente-se como um “preso” e não como um so-
cioeducando, talvez devido diversas questões como no caso de a falta de oferta de modalidades
de cursos prossionalizantes, ou de outras atividades que saíssem do proposto pelo currículo
comum. Temos até aqui nestes relatos uma provocação para podermos perceber uma dimensão
punitiva em conito com a dimensão educativa.
Para o socioeducando S6 não percebe que está sendo punido, ele arma que está sendo
ótimo estar no CASE, “é bom pra mim, porque aqui eles, não é obrigação deles, mais é um
futuro pra nós também, né, uma coisa boa pra nós, porque sem o estudo também, hoje tá difícil
né (S6, 2020).” Ele ainda complementa sua fala ao relatar que é preciso estudar para conseguir
sobreviver e “o estudo ajuda mais, a gente seguir a vida da gente. Eu pretendo assim, terminar
meus estudo e lutar, né, pra ver se eu consigo o que eu quero, ser um bombeiro. (S6, 2020).”
Esse socioeducando, S6, no nal da entrevista armou que no CASE ele pode repensar
na vida e em suas ações. Disse:
No tempo que eu aqui eu fui reetindo minha cabeça, pensando nos erros
que já cometi, e que eu vim parar aqui também e pretendo ser uma pessoa que
dá orgulho para família, pessoa melhor daqui para frente. (S6, 2020).
Todos de maneira unânime apontaram que os estudos no CASE é uma oportunidade de
poderem ser melhores e que poderiam após a saída da unidade poder fazer cursos e arrumar
emprego. Contudo percebe-se que uma fala recorrente e que poderia ser de conformismo e a de
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que eles no nal das entrevistas armavam que estava tudo bom, tudo ótimo e que nada precisava
de ajustes. Mas ca-se com a indagação acerca da questão dos cursos prossionalizantes, das
atividades extracurriculares e de qualquer atividade que poderia agregar novos valores para eles.
Nem eles podem indicar com propriedade acerca disso, pois em sua maioria já se conformaram
com aquilo lhe é ofertado.
Algumas considerações
Partindo do pressuposto de que a socioeducação e tema relevante e urgente para ser dis-
cutido e investigado sobre sua efetividade na garantia de direitos dos jovens e adolescentes em
conito com a lei. A questão central que norteou foi se o atendimento socioeducativo pode ser
concebido como um período de oportunidade para a continuidade formativa ou como punição
por ato ilícito cometido pelo jovem e/ou adolescente. Nesse ínterim teve como objetivo investi-
gar a percepção de jovens e adolescentes que estão em cumprimento de medida socioeducativa
de internação do Centro de Atendimento e Medida Socioeducativa (CASE) do município de
Porangatu no Estado de Goiás.
Na primeira seção tivemos as contribuições dos teóricos que culminou em algumas de-
nições acerca do termo socioeducação. A partir deles, podemos concluir que ainda existe certa
imprecisão quanto ao conceito, mas é partir desses apontamentos que podemos considerar que
para melhor compreender sua denição, a socioeducação está diretamente vinculada à educação
social, que é um campo vasto desde a educação escolar e não escolar, bem como a educação
formal, não formal e a educação informal, e engloba uma diversidade de práticas educativas,
sendo a educação para o trabalho, cidadã, política, na cidade e nas prisões, entre outras.
Por seguinte temos a articulação entre o ECA, o SINASE e, assim, a Socioeducação que
ocorre por meio da coordenação e operacionalização das políticas públicas sobre adolescentes
e jovens em conito com a lei. Por isso, esse entrelaçamento articulado dessas duas legislações,
ECA e SINASE, e a Socioeducação quando efetivado poderá promover programas, serviços
e ações desenvolvidas a partir da inter-relação entre práticas educativas, demandas sociais e
direitos humanos.
Os sujeitos entrevistados, adolescentes e jovens, fazem parte desse contexto de articulação
no que prevê o ECA, o SINASE bem como a própria Socioeducação que deve principalmente
ter como objetivo promover o desenvolvimento de potencialidades humanas, da autonomia e da
emancipação, além de fortalecer os princípios éticos da vida social.
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Uma problemática encontrada durante a visita ao CASE foi a de que suas famílias não
residem no município onde se localiza o centro de atendimento socioeducativo, pelo menos a
grande maioria, o que é se torna um grande desao para aproximar eles da escola. Esse dado,
não foi aqui neste texto analisado pois não era o objetivo deste artigo, contudo ele é interessante
e poderá ser subsídio para análises futuras em diálogos com autores que tratam do tema.
O que ocorre é que, infelizmente, os socioeducandos ao cumprirem medida de internação,
só fazem jus a visitação familiar uma vez por semana, nas quintas-feiras e muitas vezes as famílias
não conseguem ir até o local. Aqui ressaltamos que esse sistema de visitação apenas um dia na
semana é muito parecido, se não igual, ao do sistema prisional, no qual um dos socioeducandos
inclusive clamou seu alojamento de “cela”, o que acaba por se fazer uma referência a uma prisão
comum, ou seja, acaba inferindo que a percepção do mesmo e de que ele se vê sendo punido pelo
estado. Aqui nesse ponto ca apenas a interrogação e reexão de que o sistema socioeducativo
ainda é percebido, de forma errônea é claro, como um sistema punitivo.
Além disso, outro ponto que foi percebido é o de que muitos desses socioeducandos já
não estavam frequentando a escola, já trabalhavam ou simplesmente não frequentavam por ou-
tras questões. Com isso, cou-se no ar algumas questões como, por exemplo, o que ainda falta
para que estes sujeitos ao sair do CASE ainda tenham interesse em continuar frequentando uma
escola, uma formação, um curso, uma faculdade? Existe políticas para inserção desse socioedu-
cando de maneira satisfatório e de qualidade na sociedade? A resposta ainda é negativa. Não há
políticas voltadas para a efetiva reinserção desse socioeducando na sociedade, tão pouco algo
dentro da unidade socioeducativa que o cative e que o leve a ter o desejo e anseio por continuar
sua formação. Acerca disso, nas falas dos socioeducandos isso cou tão supercial e que foi
perceptível que quando estão dentro da unidade o desejo é participar de todas as atividades e
formações possíveis, mas ao entrevistar o egresso, o mesmo relatou que ainda não voltou a es-
tudar, ou seja, existe uma lacuna entre o período de cumprimento da medida socioeducativa e a
saída, o que poderíamos chamar de pós medida de internação.
Assim sendo, naliza-se com mais esse apontamento de que uma necessidade de
agregar a efetividade de parcerias, instituições e organizações em prol de oferecer oportunida-
des formativas aos socioeducandos, na perspectiva da EJA, de que cumpra-se as funções de:
reparar, equalizar e qualicar, bem como ir no sentido de uma formação que seja cidadã, haja
visto que muito direitos desses jovens e adolescentes foram violados, e um deles foram acesso
e permanência para uma educação de qualidade de modo que assim eles poderão superar essa
percepção e sentimento de medida de punição.
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Recebido em: 20 de fevereiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
O ciclo de políticas em contextos da educação em prisão
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 189-207, jan./abr. 2021 |
189
DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10605
O CICLO DE POLÍTICAS EM CONTEXTOS DA
EDUCAÇÃO EM PRISÃO
Selma dos Santos
1
http://orcid.org/0000-0003-3791-1281
Universidade Estadual de Feira de Santana
Eduardo José Nunes Fernandes
2
http://orcid.org/0000-0002-9358-8039
Universidade do Estado da Bahia
RESUMO:
O presente artigo é baseado nos estudos de Jefferson Mainardes, que utiliza a abordagem do ciclo de
políticas, proposta pelos pesquisadores ingleses Stephen J. Ball e Richard Bowe, e irá discutir contextos
da educação em prisão. São cinco contextos previstos na abordagem, destacados por Mainardes: o da
inuência (em que as políticas públicas são iniciadas e os discursos construídos pelos grupos de inte-
resse); o da produção do texto (é o momento da confecção dos documentos normativos); o da prática
(onde a política é interpretada e recriada); o dos resultados/efeitos (procura avaliar os impactos da polí-
tica frente às desigualdades existentes); e o de estratégia política (visa identicar estratégias para lidar
com as desigualdades detectadas). O objetivo deste artigo é analisar o ciclo de políticas da educação em
prisão na perspectiva de diferenciar educação prisional/carcerária de educação da e na prisão. Portanto,
pretende-se elucidar o contexto de inuência que possibilitou a emergência do discurso da educação
em prisão, apreciar o contexto de produção do texto por meio da discussão de dispositivos políticos e
normativos sobre o atendimento educacional aos privados de liberdade, ilustrar o contexto político da
prática da educação em prisão, avaliar o contexto dos resultados/efeitos dos impactos da política frente
às desigualdades existentes e, por m, identicar o contexto de estratégia política para lidar com as
desigualdades detectadas.
Palavras-chave: Ciclo de políticas. Educação em prisão. Legislação. Remição pela leitura. Políticas
públicas educacionais.
ABSTRACT:
THE CYCLE OF POLICIES IN CONTEXTS OF EDUCATION IN PRISON
This article based on the studies by Jefferson Mainardes that uses the cycle of policies approach, pro-
posed by the british researchers Stephen J. Ball and Richard Bowe, will be applied in contexts of educa-
tion in prison. There are ve contexts foreseen in the approach, highlighted by Mainardes: the one of
inuence (in which public policies are initiated and speeches constructed by interest groups); the one
of the text production (it is the moment of making the normative documents); that of practice (where
the policy is interpreted and recreated); that of results / effects (it seeks to rate the impacts of the policy
with regard to existing inequalities); and the one of political strategy (that aims to identify strategies to
deal with the detected inequalities). This article objective is to analyze the cycle of policies of education
in prison in the perspective of distinguishing prison/jail education from education of and in the prison.
1 Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora assistente da UEFS. Doutoranda em
Educação e Contemporaneidade – PPGEduc (UNEB). Membro do Grupo de Pesquisa Teoria Social e Projeto
Pedagógico – TSPPP. Membro do Núcleo de Pesquisa Formação de Professores – NUFOP (UEFS). E-mail:
selmapibiduefs@gmail.com
2 Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor adjunto da UNEB. Professor do Programa de Pós-
-graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC (UNEB). Vice coordenador do Grupo de Pesquisa
Teoria Social e Projeto Pedagógico. E-mail: eduardojosf2@gmail.com
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
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Therefore, it is intended to elucidate the context of inuence that made possible the emergence of the
discourse of education in prison, to appreciate the context of text production through the discussion of
political and normative mechanisms on educational assistance to the deprived of liberty, to illustrate the
political context from the practice of education in prison, evaluate the context of the results / effects of
the impacts of the policy with regard to existing inequalities and, nally, identify the context of political
strategy to deal with the detected inequalities.
Keywords: Policy cycle. Education in prison. Legislation. Remission by reading. Educational public
policies.
RESUMEN:
EL CICLO DE POLÍTICAS EN CONTEXTOS DE EDUCACIÓN EN PRISIÓN
Este artículo se basa en los estudios de Jefferson Mainardes, quien utiliza el enfoque del ciclo de políti-
cas, propuesto por los investigadores ingleses Stephen J. Ball y Richard Bowe, y analizará los contextos
educativos penitenciarios. Hay cinco contextos previstos en el enfoque, destacado por Mainardes: el
de inuencia (en el que se inician las políticas públicas y los discursos construidos por los grupos de
interés); la producción del texto (es el momento de hacer los documentos normativos); el de la práctica
(donde se interpreta y recrea la política); el de resultados / efectos (busca evaluar los impactos de la
política ante las desigualdades existentes); y el de estrategia política (tiene como objetivo identicar
estrategias para hacer frente a las desigualdades detectadas). El objetivo de este artículo es analizar el
ciclo de políticas de educación en prisión con miras a diferenciar la educación carcelaria / carcelaria de
la educación carcelaria. Por tanto, se pretende dilucidar el contexto de inuencia que posibilitó el surgi-
miento del discurso de la educación en prisión, apreciar el contexto de producción de textos a través de
la discusión de disposiciones políticas y normativas sobre la asistencia educativa a los privados de liber-
tad, para ilustrar el contexto político. desde la práctica de la educación penitenciaria, evaluar el contexto
de los resultados / efectos de los impactos de la política ante las desigualdades existentes y, nalmente,
identicar el contexto de la estrategia política para atender las desigualdades detectadas.
Palabras clave: Ciclo de políticas. Educación en prisión. Legislación. Remisión por lectura. Políticas
públicas educativas.
Introdução
Fundamentados em abordagens pós-estruturalistas, que consideram a “ação dos sujeitos”
um aspecto crucial para a compreensão das políticas públicas (MAINARDES; FERREIRA;
TELLO, 2019), e pluralistas, Stephen J. Ball e Richard Bowe propuseram, como abordagem
de análise das políticas públicas, o denominado “ciclo de políticas”. Esta abordagem constitui-
-se num referencial analítico exível e dinâmico, que destaca a natureza complexa da política,
enfatiza as relações micropolíticas e a atuação dos agentes.
O presente artigo irá explorar a proposição de Stephen J. Ball e Richard Bowe a partir
dos estudos realizados por Mainardes (2019, 2018, 2006 a, b) pois o mesmo traz uma tradução
dessa proposição para o contexto brasileiro nos indicando a possibilidade de aprofundamento
de análise das políticas públicas a partir do “ciclo de políticas.
De acordo Mainardes (2018, p. 10),
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As ideias de Ball, incluindo a abordagem do ciclo de políticas, inscrevem-se
no contexto da policy Sociology (sociologia das políticas educacionais), ou
seja, o uso de teorias e métodos da sociologia para a análise de políticas. De
modo geral, a sociologia das políticas pressupõe uma análise crítica das políti-
cas (desde a sua formulação, produção do texto, atuação na prática, resultados
e consequências); a necessidade de levar em consideração as consequências
das políticas para classes sociais distintas; a importância de explicitar um con-
ceito de política e de política educacional; bem como explicitar questões re-
lacionadas ao Estado e seu papel na oferta educacional em geral e da política
investigada, de modo mais especíco.
A importância de uma teorização sobre Estado vem sendo debatida desde a formulação
inicial da abordagem do ciclo de políticas. Os pesquisadores são desaados a explicitar uma
posição teórica acerca da concepção e do papel do Estado e de suas relações com a política
investigada (MAINARDES, 2018, p. 12). [...] Além de uma concepção de Estado, é importante
que o pesquisador explicite sua concepção/conceito de política educacional, o qual necessita
ser coerente com a concepção de Estado e com as demais opções teórico-epistemológicas da
pesquisa. (MAINARDES, 2018, p. 13).
Explicitando a concepção de Estado, devemos dizer que o cenário em que acontecem
os governos brasileiros dos últimos vinte anos é de uma proposta de Estado Neoliberal, e esses
governos apresentam continuidades, descontinuidades e até rupturas de políticas, mas cada um as
formulam de maneira diferente. No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010),
por exemplo, a formulação de políticas públicas tinha o mérito de escutar, dialogar com os mo-
vimentos sociais e a sociedade civil organizada, em correlações de forças nem sempre contínuas.
Os demais governos da história recente do Brasil, anteriores e posteriores ao PT, apresentam
uma postura neoliberal com pouca participação da sociedade civil organizada, caracterizando
mais fortemente a postura de não intervenção popular nas decisões sobre as políticas públicas.
Este artigo diz respeito a política de educação para os privados de liberdade, a educa-
ção em prisão. Apresentamos as características do ciclo de políticas, que, conforme Mainardes
(2006b, p. 58), são: “[...] a desconstrução de conceitos e certezas do presente, engajamento crítico,
busca de novas perspectivas e novos princípios explicativos, focalização de práticas cotidianas
(micropolíticas), heterogeneidade e pluralismo e articulação entre macro e microcontextos”.
Observa ainda o estudioso que
A abordagem do ciclo das políticas permite a análise da trajetória completa
de uma política, desde a sua emergência no cenário internacional, nacional e
local até o contexto da prática. E ainda até o contexto dos resultados/efeitos e
delineamento de possibilidades de intervenção para reduzir ou eliminar desi-
gualdades reproduzidas pela política, sem estabelecer hierarquias entre esses
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contextos. De variadas formas, o pesquisador é estimulado a reetir sobre a
totalidade da política. (MAINARDES, 2006a, p. 100)
Assim, busca-se articular os processos macro e micro na análise de políticas educacio-
nais para educação em prisão desde a formação do discurso da política e sobre a interpretação
ativa que os prossionais que atuam no contexto da prática fazem para relacionar os textos da
política à prática. No contexto da política, em termos dos marcos legais, temos uma legislação
em vigor que reconhece o direito subjetivo à educação de pessoas privadas de liberdade (ver
organogramas). No entanto, a atuação desses marcos legais está pulverizada, visto não haver um
setor especíco dentro das secretarias de segurança pública e de educação com nanciamento
para gestar as escolas no sentido de que desenvolvam ações pedagógicas nos presídios e que
ampliem o número de vagas para todos os interessados em estudar. Há uma disparidade entre os
discursos e a prática, conforma Mainardes salienta nas reexões de Bowe e Ball:
[...] A política não é feita e nalizada no momento legislativo e os textos pre-
cisam ser lidos em relação ao tempo e o local especíco de sua produção.
Os textos políticos são o resultado de disputas e acordos, pois os grupos que
atuam dentro dos diferentes lugares da produção de textos competem para
controlar as representações da política (Bowe et al, 1992). Assim, políticas
são intervenções textuais, mas elas também carregam limitações materiais e
possibilidades. As respostas a estes textos têm consequências reais. Estas con-
sequências são vivenciadas dentro do terceiro contexto, o contexto da prática.
É importante destacar a distinção feita por Ball (1993a) entre “política como
texto” e “política como discurso”. Os textos das políticas terão uma plurali-
dade de leituras devido à pluralidade de leitores. [...] Os textos políticos são o
resultado de disputas e compromissos. A política enquanto discurso enfatiza
os limites do próprio discurso. [...] (MAINARDES, 2006a, p. 97)
Mainardes (2006a, p. 98) diz que, de acordo com Ball e Bowe (BOWE et al, 1992), “o
contexto da prática é o lugar onde a política é sujeita à interpretação e recriação e onde a política
produz efeitos e consequências que podem representar mudanças e transformações signicativas
na política original”.
O ciclo de políticas compreende cinco contextos: o contexto da inuência (em que as
políticas públicas são iniciadas e os discursos construídos pelos grupos de interesse); o contexto
da produção do texto (é o momento da confecção dos documentos normativos); o contexto da
prática (onde a política é interpretada e recriada); o contexto dos resultados/efeitos (procura ava-
liar os impactos da política frente às desigualdades existentes); o contexto de estratégia política
(visa identicar estratégias para lidar com as desigualdades detectadas) (MAINARDES, 2018,
2006 a, b). Destaca-se que os cincos contextos do ciclo de políticas estão inter-relacionados,
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não se constituindo como etapas lineares, sequenciais, já que cada contexto envolve diferentes
lugares e grupos de interesses.
Considerando o exposto, o presente artigo visa analisar o ciclo de políticas da educação
em prisão na perspectiva de diferenciar educação prisional/carcerária de educação da e na prisão,
conforme será tratada no contexto de inuências. A educação prisional/carcerária é a assistência
educacional desenvolvida como mera medida humanitária ou estratégia de gestão prisional que
visa a diminuição de conitos internos na administração de encarcerados. O discurso da educação
em prisão é a garantia de implantação e atuação de políticas públicas de cumprimento do direito
subjetivo à educação para toda população encarcerada. É a educação formal que aponta soluções
para as questões educacionais dos presos, possibilitando a diminuição do tempo dentro da prisão
e o retorno à sociedade com a perspectiva de reinserção social. Uma educação que se tenha cla-
reza do diferencial na e da prisão. Na: o indivíduo tem direito de ser educado no lugar onde está
cumprindo pena ou aguardando-a. Da: o indivíduo tem direito a uma educação pensada desde o
seu lugar e com a sua participação vinculada à sua cultura e às necessidades humanas e sociais.
Pretende-se elucidar o contexto de inuência que possibilitou a emergência do discurso
da educação em prisão; apreciar o contexto de produção do texto por meio da discussão de
dispositivos políticos e normativos quanto ao atendimento sobre o processo educacional aos
privados de liberdade; ilustrar o contexto político da prática da educação em prisão; avaliar o
contexto dos resultados/efeitos dos impactos da política frente às desigualdades existentes e,
por m, identicar o contexto de estratégia política para lidar com as desigualdades detectadas.
Em vista disso, pretende-se explanar o contexto de inuência que possibilitou a emergên-
cia do discurso da educação em prisão, examinar o contexto de produção do texto por meio da
discussão de dispositivos políticos e normativos sobre a educação para os privados de liberdade
e, por m, informar o contexto político de uma prática – o Projeto Leitura Prazerosa visando a
remição pela leitura no Conjunto Penal de Feira de Santana.
O contexto de inuência
Para compreender o contexto de inuência na abordagem do ciclo de políticas é rele-
vante situar como os discursos são construídos no decorrer do tempo, de modo a apontar algu-
mas inuências presentes na política investigada e elucidar as relações macro e micropolíticas
(MAINARDES, 2006 a, b).
Segundo Mainardes (2006b, p. 51), é no contexto de inuência
[...] que os conceitos adquirem legitimidade e formam um discurso de base
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para a política. O discurso em formação algumas vezes recebe apoio e outras
vezes é desaado por princípios e argumentos mais amplos que estão exer-
cendo inuência nas arenas públicas de ação, particularmente pelos meios de
comunicação social.
A expressão “educação em prisão” tem se constituído em elemento de ordem das agendas
de políticas públicas contemporâneas, sendo apropriada, reinterpretada e veiculada por diversos
grupos de interesse (juristas, militantes dos direitos humanos, professores, políticos de esquerda,
intelectuais, pesquisadores, agentes de segurança, etc.), de acordo com os efeitos discursivos
almejados. E num contexto de superlotação carcerária, aviltamento de direitos e pouca escolari-
dade, o discurso da “educação em prisão” emerge, nas relações de poder-saber, como um regime
de verdade, ou seja, como a “solução” para quem se encontra encarcerado.
O discurso da educação em prisão “como uma expressão da educação de jovens e adultos
voltada para uma população e um contexto especícos” (IRELAND, 2011, p. 25), como uma
das soluções para as questões educacionais dos presos, possibilitando a diminuição do tempo
dentro da prisão e o retorno à sociedade com a perspectiva de reinserção social.
A função da prisão, de acordo a lei de execução penal, é punir o indivíduo, proteger a
sociedade e ressocializar. No processo de ressocialização entra a educação. A educação faz parte
do contexto da execução penal e é tratada como mais uma assistência. Inclusive, nos últimos anos,
o Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Justiça (MJ), em diálogo, aprovaram diretrizes
que tratam dessa questão da Educação para Privados de Liberdade, as Diretrizes Nacionais para a
Oferta da Educação em Estabelecimentos Penais aprovadas pela Resolução nº 3, de 11 de março
de 2009, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e homologadas
pelo Ministério da Educação por meio da Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação
(CNE), de 19 de maio de 2010. A questão da educação no espaço da prisão nos chama a sair de
uma ideia de educação prisional, de uma educação carcerária para defender uma educação para
os sujeitos jovens, adultos e idosos que estão em situação de restrição e privação de liberdade, ou
seja, precisamos reconhecer que estamos falando de uma educação de jovens e adultos, que estes
indivíduos estão privados de liberdade, e precisamos pensar em uma política pública particular,
levando em conta essa situação. A grande questão está na política pública a partir do indivíduo
que é o demandante da política de educação de jovens e adultos. As políticas públicas de educa-
ção implementadas no sistema prisional em alguns estados começaram a partir de 2005 com a
SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), quando
muitos documentos foram aprovados em âmbito federal. O que observamos, muitas vezes, é
que são políticas improvisadas, fragmentadas e descontínuas; precisamos compreender que não
estamos falando de um projeto ou programas, mas de políticas públicas para esses indivíduos.
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Já avançamos na perspectiva de que, quando se fala na educação prisional, educação
carcerária, compreende-se hoje que se trata de uma educação que está no ambiente de privação
ou restrição de liberdade e se vem avançando, ainda mais, quando se tem as Diretrizes aprovadas
pelos Conselhos (CNPCP e CNE). Hoje se compreende que essa é uma educação para jovens
e adultos que estão em situação de restrição e privação de liberdade, que neste caso está sendo
implementada no ambiente prisional. Isto põe em discussão se a Educação de Jovens e Adultos,
modalidade de ensino da educação básica de acordo as Diretrizes Nacionais da Educação – Lei
nº 9394/96, responde às necessidades e características dos encarcerados.
Discute-se uma educação em prisões como especicidade para a população com restrição
ou privada de liberdade. Pensa-se a educação em prisões como uma garantia de implantação
e atuação de políticas públicas de cumprimento do direito subjetivo à educação para toda po-
pulação carcerária, tendo a escola como prática social. Dentre os pesquisadores que defendem
a escola como prática social relevante nos espaços prisionais, estão De Maeyer (2013, 2011),
Ireland (2011), Julião (2020, 2016, 2009), Onofre (2017, 2016, 2013), Silva e Moreira (2011).
Eles propõem a escola como espaço de possibilidades e de aprendizagens para o convívio no
encarceramento e, depois, na sociedade livre. Esses autores evidenciam que a escola é um espaço
importante de promoção de interações entre os sujeitos, de valorização de identidades, de culturas,
de afetividade e de cidadania. Ainda, apresentam reexões para a construção de uma educação
em prisões que tem como foco os sujeitos em restrição e privação de liberdade e se posicionam
contrários à educação nas prisões com o papel principal de ‘ressocialização’, de ‘reingresso’ na
sociedade; propõem a educação ao longo da vida.
Julião (2020, 2016, 2009) defende que a escola deve preparar o indivíduo no processo de
socialização à vida, dentro e fora da prisão. Ele entende que estamos diante do novo paradigma
de execução penal (incompletude institucional) e,
[...] é fundamental que as instituições educacionais estejam realmente alinha-
das com os propósitos estabelecidos, construindo e atualizando os seus proje-
tos políticos pedagógicos [...] a escola seja da prisão e não apenas uma escola
na prisão. Uma escola que cumpra as determinações legais ao mesmo tempo
em que respeite as características e peculiaridades dos seus sujeitos [...] (JU-
LIÃO, 2016, p. 35).
A escola na prisão é transcorrida por contradições. “As prisões são lugares multicultu-
rais e nesse espaço, aprender, compreender e aceitar as diferenças será certamente muito útil”
(DE MAYER, 2013, p. 42) e buscar ter em pauta os demais direitos humanos é importante para
que se cumpra o papel da escola, “reconhecer a centralidade da educação, não cair na contra-
dição de depositar nesta a responsabilidade de resolver, por si só, o problema da violência e da
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criminalidade e de ‘habilitar a pessoa privada de liberdade para sua reentrada na sociedade”
(IRELAND, 2011, p. 23).
A escola nas prisões pode ser espaço diferenciado das normativas prisionais, com avanço
nos direitos humanos e aprendizagens ao longo da vida. “Dar dignidade é dar conança”, “per-
mitir a cada um reencontrar em si sua dignidade fundamental” (DE MAYER, 2013, p. 43), ação
basilar de uma educação em prisão que acontece na perspectiva da e na prisão.
Aprende-se na prisão o que ali se encontra; o que ali se compartilha com os outros.
Desaprende-se a ter iniciativas, a tomar decisão, entretanto, espera-se que ao sair da prisão o
egresso tome iniciativas de que foi privado e viva integrado à sociedade. “Tudo isso é a educa-
ção da prisão, não a educação na prisão!” (DE MAEYER, 2013, p. 42). Fazemos um parêntese
para esclarecer a educação da prisão a que estamos nos referindo é uma educação formal, a da
escolarização. Pois, a “educação” informal existe dentro da prisão. Essa educação informal da
prisão tem “educado” os indivíduos para atuarem no mundo do crime. Os indivíduos se articulam,
se organizam e assumem papeis dentro de facção ou no controle do pavilhão, na hierarquia da
convivência. “A cultura da prisão é a educação por pares, é a reprodução dos comportamentos
ou a imitação dos comportamentos valorizados. É a cultura do mais forte, da desenvoltura, do
silêncio, do transitório” (DE MAEYER, 2013, p. 45).
No entanto,
A educação na prisão é também a educação (em sentido largo) pelo e para
o conjunto do pessoal: administração, guardas, prossionais da saúde, pes-
soal de serviço, etc. Toda atividade, mesmo banal que possa parecer, pode
ser oportunidade de educação não formal (refeição, higiene, relações sociais,
lazer, etc.). (DE MAEYER, 2013, p. 41)
Aventa-se uma educação de presos que quase sempre não passaram pelo processo da
escolarização. E, sim, pelas formas de aprendizado informal das escolhas criminosas de sobre-
vivência no mundo (quer seja dentro da prisão, quer seja fora). A armação deste perl desenha
em parte a identidade da prisão brasileira, marcada por uma população reincidente. É preciso
uma intervenção sólida para mudança desse perl, é que entra a educação formal da prisão
como política pública que possibilitará oportunidades ao indivíduo, trazendo até ele um ensino,
traçando um diálogo em que ele se reconheça e enxergue na formação caminhos para saída do
mundo do crime, com emprego e inserção social.
A educação na prisão como política educacional ou projeto político-pedagógico espe-
cíco requer ser feita com a participação ativa dos indivíduos que estão encarcerados, porque
não basta a assistência educacional ser implementada conforme a lei e as diretrizes, é necessário
dialogar com quem irá participar do processo de escolarização, incentivá-los a pensar sobre a
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educação enquanto possibilidade cultural de inserção, de emancipação e convivência com os
diferentes. E pensar a si mesmo como sujeito das ações que possam trazer transformações sociais
e “desenvolvimento de habilidade e capacidades para estar em melhores condições de disputar
oportunidades socialmente criadas” (SILVA; MOREIRA, 2011, p. 92).
As condições violentas de desumanização das condições de vida na prisão parecem tornar
impossível dialogar com os presos. Mas “a presença de educação escolar nas prisões, além da
garantia de um direito humano, arma a valorização do desenvolvimento e da busca perma-
nente de cada indivíduo em ser mais” (ONOFRE, 2016, p. 51). Contudo, é preciso avançar no
sentido desse diálogo, é preciso dar um passo de superação na realidade da injustiça social, da
desigualdade, da opressão, que exige transformações sociais estruturais e imprescindíveis. Os
indivíduos da educação em prisões são aqueles que vivenciam os efeitos diretos dessa realida-
de perversa, mas que não se conformam com ela. São indivíduos em condições diferenciadas,
mas a quem não deve ser negada a possibilidade de operar mudanças nas relações de convívio
social. O respeito às diferenças, sempre plural em suas expressões, em seus sentimentos, em
seus movimentos no existir, deveria ser a marca da síntese cultural da prisão a ser considerada
em qualquer ação educacional.
Infelizmente, no atual contexto, a expressão desses indivíduos é quase nula e quase não
se faz identicada. O processo dessa trajetória de mudança é longo e requer uma ação educativa
conscientizador desenvolvida por prossionais da educação, justiça, segurança pública e egressos
do sistema prisional, pesquisadores, militantes do desencarceramento, que lutam pela política
de redução da prisão.
Nesse contexto, o debate está instaurado entre grupos de interesse e o Estado brasileiro.
Grupos de interesse inuenciados por tratados internacionais, políticas penais com viés educa-
cionais de direitos humanos e o Estado com a perspectiva de “menos Estado, mais mercado” que
não tem se ocupado com as condições materiais e sociais dos privados de liberdade, gerando a
miserabilidade carcerária e a reincidência. Ademais, para a sociedade resta a insegurança por
não saber lidar com a violência instaurada pela ausência de um Estado social.
Como poderá ser observado no Organograma macro e micro contextuais em políticas
públicas e educação em prisão (abaixo), toda política lida com a inuência de contextos macros
(internacionais, nacionais, estaduais) e micros (municipais, local de execução). Os documentos
internacionais – Regras Mínimas para o Tratamento de Presos (1955), Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos (1966), Convenção contra a Tortura e outros Tratos ou Penas Cruéis,
Inumanos ou Degradantes (1975), Carta Africana dos Direitos de Homem e dos Povos (1981) –
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inuenciam a organização nacional das políticas. A título de exemplo, no Brasil, a agenda dos
direitos humanos tornou-se um conteúdo fundamental em busca da efetivação de relações sociais
igualitárias e justas, da garantia da dignidade da pessoa humana, em comprometimento com a
redução das desigualdades e com a promoção do bem-estar de todos, livre de preconceitos ou
discriminação de qualquer espécie, a partir dos documentos internacionais. Com vista a assegurar
os direitos dos privados de liberdade, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP), Resolução nº 14 de 11 de novembro de 1994, estabeleceu as Regras Mínimas para o
Tratamento de Presos no Brasil. E, paralelo no contexto brasileiro a prisão contemporânea está
sob a inuência das políticas de combate à criminalidade (lei antidrogas e criminalização da
pobreza) importada dos Estados Unidos da América.
Assim, percebemos as inuências discursivas dos documentos internacionais macros
contextuais na elaboração dos documentos nacional, estaduais, municipais e especícos para o
atendimento de privados de liberdade em um conjunto penal.
Figura 1. Organigrama macro e micro contextuais de políticas públicas de educação em prisão.
Fonte. Elaborado pela autora.
O ciclo de políticas em contextos da educação em prisão
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E, acerca das relações de contexto de inuências macro e micro, para que não tenhamos
uma visão ingênua, é bom deixar claro que muitos acordos que o Brasil assina não passam de
um ato meramente burocrático, forçoso em função da dependência nanceira ou política do
país, mas sem que haja de fato a intenção política de cumprir com o que está sendo acordado.
É possível que textos políticos internacionais, que estão no organograma, sofram, in-
tencionalmente, no contexto do Brasil, alterações de enunciados para congurar outros efeitos
discursivos.
Assim, as diretrizes políticas globais e as relações políticas nacionais e locais em educação
na prisão se dão por meio de interconexão e interdependência. Portanto, de acordo com Mainar-
des (2006b, p. 52), as inuências globais “[...] são sempre recontextualizadas e reinterpretadas
pelos Estados-nação. [...] há uma interação dialética entre global e local. Mostram ainda que a
globalização promove a migração de políticas, mas essa migração não é uma mera transposição
e transferência [...]”.
O contexto de produção do texto
Conforme observa ainda Mainardes (2006b, p. 52), “[...] textos não são, necessariamente,
internamente coerentes e claros, e podem também ser contraditórios. Eles podem usar os termos-
-chave de modo diverso”. Para Shiroma, Garcia e Campos (2019, p. 223), os textos podem ser
“[...] caracterizados por um tom prescritivo, recorrendo-se comumente a argumentos de autoridade
como estratégia para legitimação e difusão de orientações, análises, relatórios [...]”. No entanto,
signicados e sentidos diversos podem ser gerados pelos textos de política, abrindo margem a
interpretações e reinterpretações.
O contexto de produção compreende a materialização do texto da política, de modo a
atentar-se aos conceitos-chave, às inconsistências e ambiguidades presentes no texto. De logo,
adverte-se acerca da “relação simbiótica” entre o contexto de inuência, tratado anteriormente, e
o contexto de produção do texto (MAINARDES, 2006a e b). Enquanto aquele se manifesta nos
bastidores, nos interesses mais estreitos; este busca expressar a política de forma que o grande
público tenha acesso a sua materialidade.
Segundo Mainardes (2006b, p. 52), “[...] os textos políticos, portanto, representam a po-
lítica. Essas representações podem tomar várias formas: textos legais ociais e textos políticos,
comentários formais ou informais sobre os textos ociais, pronunciamentos ociais [...]”.
Em conformidade com estas orientações, na sequência, tomando como marco histórico
a Lei de Execução Penal de 1984 e a Constituição Federal Brasileira de 1988, nos artigos 205,
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200
208, intenta-se problematizar o direito a educação para os privados de liberdade. Observa-se
que as propostas políticas no campo da educação na prisão têm se caracterizado pela fragili-
dade no seu cumprimento. Nas últimas décadas, é possível identicar nos textos normativos e
políticos da área dois discursos: um deles atribui à educação na prisão um direito; o outro, que
defende a segurança interna dos presídios e, portanto, nem todos podem usufruir deste direito.
Esses discursos movimentam-se entre diferentes grupos de interesses e movimentos sociais,
xando-se em argumentos diversos (jurídicos, segurança pública, pedagógicos) para justicar os
posicionamentos. No entanto, segundo Mainardes (2006b, p. 54), [...] “A política como discurso
estabelece limites sobre o que é permitido pensar e tem o efeito de distribuir “vozes”, uma vez
que somente algumas vozes serão ouvidas como legítimas e investidas de autoridade”. [...]
Na disputa pelo espaço de “voz” a ser ouvidas pode-se estabelecer conchavos para pro-
dução de textos. Em si tratando de interesses diversos e correlação de forças o texto produzido
legitima opiniões diferentes e contraditórias que no contexto da prática pode se tornar inoperante
e/ou com pouco resultado prático para os prováveis beneciários, é o que possivelmente possa
está acontecendo com os textos políticos-chave que tratam da educação dos privados de liber-
dade, que não dialogam entre si.
O Organograma textos políticos-chave da educação dos privados de liberdade referen-
cia do contexto macro (nacional) ao contexto micro (projeto executável) a materialização da
produção textual que assegura os direitos a educação pelos privados de liberdade. A partir da
Lei de Execução Penal (LEP) – Lei nº7.210/1984 começa o desdobramento legislativo sobre a
educação dos privados de liberdade, cada documento traz uma especicidade e amiúde reitera
as conquistas possíveis. Desde setembro de 2005, quando foi rmado um Protocolo de Inten-
ções entre os Ministérios da Educação e da Justiça, com o objetivo de conjugar esforços para
a implementação de uma política nacional de educação para jovens e adultos em situação de
privação de liberdade, foram desenvolvidas várias atividades no sentido de estruturar tal polí-
tica, destacando-se entre elas: (1) as Resoluções; (2) a parceria com a UNESCO e o Governo
do Japão; (3) Plano Estratégico de Educação no âmbito do sistema prisional; (4) a inclusão da
educação como uma das metas do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania; (5)
a inclusão da educação nas prisões no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), no Plano
Nacional de Educação (PNE); (6) as matrículas nos estabelecimentos penais no censo escolar;
(7) metas no Plano Estadual de Educação da Bahia; (8) Remição por trabalho, por estudo e pela
leitura; (9) Provimento de execução da remição pela leitura; (10) Projetos políticos-pedagógicos
e projetos didáticos.
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No organograma (abaixo) vemos documentos de referência para organização do sistema
de ensino para atender as unidades prisionais. Documentos que podem subsidiar a formulação
de um projeto político-pedagógico coletivamente construído e projetos didáticos que compo-
rão parte de suas especicidades. Bem como, na elaboração mais ampla, o Plano Estadual de
Educação em Prisões, das diretrizes estaduais para o tema, articulando secretarias e órgãos de
governo, estabelecendo atribuições e organizando condições de oferta, scalização e avaliação
da educação nas prisões.
Figura 2. Organigrama de textos políticos-chave que tratam da educação de privado de liberdade.
Fonte. Elaborado pela autora.
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
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Os textos normativos principais em vigor estão no organograma (acima) e sofrem a in-
uência na sua atuação, em especial quanto à remição de pena.
Tomados de modo isolado, os efeitos de uma política especíca podem ser
limitados, mas, quando efeitos gerais do conjunto de políticas de diferentes
tipos são considerados, pode-se ter um panorama diferente. Esta divisão apre-
sentada por Ball sugere-nos que a análise de uma política deve envolver o exa-
me (a) das várias facetas e dimensões de uma política e suas implicações (por
exemplo, a análise das mudanças e do impacto em/sobre currículo, pedagogia,
avaliação e organização) e (b) das interfaces da política com outras políticas
setoriais e como conjunto das políticas. Isso sugere ainda a necessidade de que
as políticas locais ou as amostras de pesquisas sejam tomadas apenas como
ponto de partida para a análise de questões mais amplas da política. (MAI-
NARDES, 2006b, p. 54-55)
Assim, para signicar e resignicar uma política pública de educação em prisão, é impor-
tante ampliar o direito a quem tem “voz”; as vozes de presos, de seus familiares e da sociedade
civil organizada que militam na causa do desencarceramento precisam ser ouvidas na elabora-
ção dos textos normativos da educação e torna-se necessário constituir um acompanhamento e
avaliação dos impactos que a participação destes indivíduos na sociedade quando da elaboração
de texto propositivos da política da educação.
O contexto da prática
O contexto da prática é a arena onde o texto (escrito ou não) da política é interpretado,
traduzido e recriado pelos agentes institucionais (MAINARDES, 2006 a, b). É, portanto, um
espaço de lutas e resistências, já que
[...] os prossionais que atuam no contexto da prática [escolas, por exem-
plo] não enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, eles vêm com
suas histórias, experiências, valores e propósitos [...] Políticas serão interpre-
tadas diferentemente uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos
e interesses são diversos. A questão é que os autores dos textos políticos não
podem controlar os signicados de seus textos. Partes podem ser rejeitadas,
selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser
superciais etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa. Inter-
pretações diferentes serão contestadas, uma vez que se relacionam com inte-
resses diversos, uma ou outra interpretação predominará, embora desvios ou
interpretações minoritárias possam ser importantes (BOWE et al., 1992 apud
MAINARDES, 2006b, p. 53).
Nessa perspectiva, o contexto da prática na abordagem do ciclo de políticas não considera
os agentes institucionais como meros receptores e executores da política vigente, mas sim, como
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sujeitos que pensam, vivenciam, recriam e dão novos sentidos à política – o que pode representar
transformações signicativas na proposta original (MAINARDES, 2006 a, b).
Desta forma, neste momento, entra em cena o contexto político da prática da educação
em prisão, exemplicando com o processo de atuação da política de remição pela leitura de-
nido no texto político mas não incorporado no contexto da prática. Ainda, observam-se, nesse
“microprocesso político”, o contexto da prática, relações de poder e saber entre o conjunto penal
e a escola.
Cada um dentro das suas medidas de forças de poder e saber busca assegurar para si o
direito de execução da remição pela leitura de acordo com sua perspectiva e com pouco diálogo.
Em síntese, as contribuições do ciclo de políticas permitiram compreender a natureza
complexa e controvertida da atual política de educação na prisão na perspectiva da remição
pela leitura, forjada no contexto de inuências político-econômicas globais, nacionais e locais,
portanto, enquanto uma construção histórica, fruto das disputas entre os diferentes grupos de
interesse para o estabelecimento das diretrizes e das prioridades para organização da vida do
privado de liberdade.
O contexto dos resultados/efeitos
O quarto contexto do ciclo de políticas – o contexto dos resultados ou efeitos – preocupa-
-se com questões de justiça, igualdade e liberdade individual. A questão aqui é saber quais são
os efeitos da educação para os presos e egressos do sistema penitenciário, em especial a remição
pela leitura.
Os efeitos esperados referem-se a mudanças na prática ou na estrutura do tratamento ao
privado de liberdade quanto ao direito à educação e o cumprimento da expectativa de que os
egressos que estudaram não sejam reincidentes. Os impactos dessas mudanças nos padrões de
acesso social, oportunidade e justiça social se efetivam na política pública que deve funcionar
para minimizar os efeitos do estigma da condenação, carregado pelo egresso, que o impede de
retornar ao normal convívio em sociedade, longe da criminalidade.
A legislação exposta no organograma reete todo um movimento que se intensicou
desde os anos 2000 e culminou com o Marco de Ação de Belém, aprovado na VI CONFINTEA
(Conferência Internacional de Educação de Adultos), realizada no Brasil em 2009, na qual os
estados signatários da ONU armam que não se pode haver exclusão da educação em virtude
de encarceramento e comprometem-se a “oferecer educação de adultos nas prisões, apropriada
para todos os níveis”.
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
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No campo político, o desao continua a ser a concretização das oportunidades de acesso
a serviços educacionais nos diferentes níveis de ensino, coordenando os esforços da União, dos
Estados e do Distrito Federal e articulando as responsabilidades sobre a ação governamental nas
áreas de educação e justiça/segurança pública.
A concretização das oportunidades prevista a partir da Lei de Execução Penal Brasileira
(Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984), mesmo sendo uma das mais completas existentes no mundo,
infelizmente não é colocada em prática no país. Apesar de constar no “Art. 1º A execução penal
tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições
para a harmônica integração social do condenado e do internado.” e no “Art. 25. A assistência
ao egresso consiste: I - na orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade”, o Estado
prefere tratar as penas apenas como um meio de castigar o indivíduo pelo delito realizado. E
há controvérsias jurídicas quanto à integração social, à ressocialização, pois infelizmente esta
não tem sido posta em prática como deve e muito menos produzido os resultados almejados,
ocasionando assim a crise que se encontra o sistema prisional.
O contexto de estratégia política
O último é o contexto de estratégia política. “Este contexto envolve a identicação de um
conjunto de atividades sociais e políticas que seriam necessárias para lidar com os problemas
identicados, principalmente as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política investigada”.
(MAINARDES, 2006, p. 99)
No contexto da prática (micro-contexto) no Conjunto Penal de Feira de Santana, o desen-
volvimento do “Projeto Didático Leitura Prazerosa” propõe ações como: leitura de Clarice Lis-
pector; a aproximação com a realidade das mulheres encarceradas e a Unidade Escolar; processo
de escuta sensível; a escrita de contos e crônicas, encenação, conversas informais. São práticas
que podem resultar em descobertas importantes para se compreender a essência da política de
remição pela leitura e seus resultados/efeitos sobre as participantes encarceradas. Por exemplo,
durante a aplicação do projeto didático, em 2019, com a leitura prazerosa e os valores da sensi-
bilidade crítico-criadora, uma diversidade de saberes foram despertados, podendo desencadear
processo de ressocialização leitora, bem como, introduzir no mundo da leitura as principiantes.
As mulheres encarceradas participantes relataram a importância de estarem na aula e pensarem
um pouco sobre si, sobre a vida e sobre a leitura.
Uma política de remição pela leitura não é simplesmente implementada, mas recontex-
tualizada, recriada na sua execução.
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O diálogo com o poder público sobre a educação em prisão perpassa pensar o modelo/
projeto de Estado no momento em que os movimentos sociais estão às margens das decisões
governamentais, que mantem uma estrutura neoliberal em que os pobres não têm acesso com
facilidade aos direitos garantidos em lei.
Com polêmicas jurídicas e sociais sobre a condição de ressocialização, temos uma le-
gislação que prima pelo caráter ressocializador e é nessa perspectiva que o “Projeto Didático
Ressocializador Leitura Prazerosa na Prisão - O Encontro com a Vida: viver, amar, educar” é
ofertado, em cumprimento à lei como uma ação educativa para garantir a implementação da
Lei Federal nº 12.433/2011, que dispõe sobre a remição de parte do tempo de execução da pena
por estudo ou por trabalho.”, da Recomendação nº 44 de 26 de novembro de 2013, do Conselho
Nacional de Justiça que dispõe sobre as atividades educacionais complementares para ns de
remição da pena pelo estudo e estabelece critérios para a admissão pela leitura, da Nota Técnica
Conjunta de nº 125/2012, expedida pelos Ministérios da Justiça e da Educação, em 22 de agosto
de 2012; da Portaria Conjunta de nº 276, de 20 de junho de 2012, do Conselho da Justiça Federal
(CJF) e da Diretoria-Geral do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da
Justiça, que disciplinou o projeto de “remição pela leitura” para os presos de regime fechado
custodiados em penitenciárias federais de segurança máxima. E, provimento nº CGJ -01/2018,
remição pela leitura no âmbito da execução penal do estado da Bahia. O Projeto Didático Res-
socializador “Leitura Prazerosa na Prisão - O Encontro com a Vida: viver, amar, educar” mudará
a realidade? Não, mas poderá contribuir para a discussão sobre o processo de ressocialização e
começar a polemizar o sistema de segurança pública em Feira de Santana – o conjunto penal veio
a pedido da população como garantia de bem estar de ir e vir livremente nos espaços da cidade.
Assim, um dos efeitos cobrados para o cumprimento das políticas é o respeito à cons-
tituição federal de 1988 no que diz respeito, especicamente, a dois princípios o do artigo
inciso III (ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante) e o
do inciso XLIX (é assegurado aos presos a integridade física e moral). E aqui a interpretação
dada é que todos que desejam obter uma educação escolar no presídio e não a tem vivencia o
descumprimento dos princípios.
Considerações nais
Quando se fala da educação em prisões não se está buscando nada mais que assegurar a
universalização da escolarização obrigatória, já que, por lei, deverá ser assegurada a formação
básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais; e o reconheci-
Selma dos Santos e Eduardo José Nunes Fernandes
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mento e respeito à diversidade, por meio da promoção de uma educação antirracista, antissexista
e antihomofóbica. É preciso garantir condições para que as políticas educacionais em prisões,
concebidas, tenham atuação de forma articulada entre os sistemas de ensino e o sistema peni-
tenciário, promovam formação integral, por meio da garantia da universalização, da expansão
e da democratização, com qualidade, da educação básica.
Um desao para a educação em prisão, que também é do Estado brasileiro, é superar os
obstáculos que impediram a implantação universal da educação no sistema prisional, sobretudo
aqueles obstáculos que, reiteradamente, negaram um mesmo sistema público de educação de
qualidade para todos/as.
As políticas educacionais pensadas não se limitam ao Brasil. Elas sofrem as inuências
do contexto transnacional. Precisamos de novas narrativas sobre a educação para validar e arti-
cular o que vem sendo desenvolvido como prática pedagógica nas escolas da prisão, em especial
o uso da leitura como política de remição de pena. Precisamos de uma análise crítica sobre a
leitura e um discurso não utilitarista do ato de ler. Na prática, as políticas de remição pela leitura
requerem maior clareza, operacionalização em todos os contextos prisionais e eliminação de
constrangimentos para os participantes do processo.
Segundo Mainardes (2006b, p. 58), “pode-se armar que a abordagem do ciclo de
políticas oferece instrumentos para uma análise crítica da trajetória de políticas e programas
educacionais”. Então, pensar a educação em prisão e uma prática de remição pela leitura está
para além da legislação. É preciso entender a política, enquanto decisão de como fazer, uma
formulação e organização das práticas educacionais no interior da prisão. Pô-la em prática no
seu projeto de atuação.
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Recebido em: 15 de janeiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Kátia Aparecida da Silva Nunes Mirandas e Clóris Violeta Alves Lopes
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 208-219, jan./abr. 2021
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10606
DIÁLOGOS SOBRE A SOCIOEDUCAÇÃO EM
TEMPOS DE PANDEMIA
Kátia Aparecida da Silva Nunes Miranda
1
Universidade Federal de Mato Grosso
https://orcid.org/0000-0002-2103-4889
Clóris Violeta Alves Lopes
2
Universidade Federal do Delta do Parnaíba
https://orcid.org/0000-0002-2372-1033
RESUMO:
Nosso objetivo com este texto é convidar a uma reexão crítica que visa auxiliar no processo de com-
preensão quanto às práticas socioeducativas, em especial, no atual contexto decorrente da pandemia
causada pelo coronavírus (covid-19), momento em que os jovens em regime de privação de liberdade
se viram desprovidos de qualquer forma de acesso à educação. Para tanto, os estudos foram realizados
sob a ótica dos diálogos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e da discussão sobre as possibilidades metodoló-
gicas de manutenção do processo educativo para esses jovens. Com o intuito de garantir sua sustenta-
ção, buscou-se aporte teórico em estudiosos como Antônio Costa, para debater sobre as concepções de
socioeducação, Paulo Freire e seus ensinamentos sobre dialogicidade, educação cidadã, libertadora e/
ou emancipatória e Elenice Onofre, dentro do viés da educação como inclusão social, utilizando ferra-
mentas da pesquisa bibliográca, em que se procurou correlacionar as teorias defendidas pelos respec-
tivos autores e as práticas vivenciadas, tomando por base o Centro de Atendimento Socioeducativo de
Cuiabá–MT (CASE/MT). A partir das análises reexivas, os resultados apontam a necessidade premente
de aprimorar o entrelaçamento entre as concepções teóricas apresentadas, as normatizações vigentes e as
práticas sociopedagógicas, pois só assim será possível garantir um efetivo processo para a reinserção do
jovem na sociedade, balizada numa prática que busca evitar reincidências, uma vez que as ferramentas
socioeducativas ainda se mostram como o melhor instrumento para auxiliar na emancipação dos jovens
em privação de liberdade e, por conseguinte, atuar na transformação social.
Palavras-chave: Jovens em restrição e privação de liberdade. Socioeducação. Diálogos.
ABSTRACT:
DIALOGUES ABOUT SOCIO-EDUCATION IN PANDEMIC TIMES
Our objective with this text is to invite a critical reection that aims to assist in the process of understanding
socio-educational practices, especially in the current context resulting from the pandemic caused by the
coronavirus (COVID-19), at which time young people in deprivation of liberty regime were devoid of
any form of access to education. For this purpose, the studies were conducted from the perspective of the
dialogues established by the Statute of the Child and Adolescent — ECA, the National System of Socio-
educational Care — SINASE, and the discussion about the methodological possibilities of maintaining
the educational process for these young people. In order to guarantee its support, we sought theoretical
1 Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Doutorado em Educação (UFSCar). Núcleo de Es-
tudos e Pesquisa Emancipatória em Linguagem (Nepel/UFMT) e integrante do Núcleo de Investigação
e Práticas em educação nos espaços de restrição e privação de liberdade (EduCárceres/UFSCar).
E-mail: katia-nmiranda@hotmail.com
2 Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar). Doutorado em Educação (UFSCar); Núcleo de
Investigação e Práticas em educação nos espaços de restrição e privação de liberdade (EduCárceres/UFSCar).
E-mail: cloris-carlos@uol.com.br
Diálogos sobre a socioeducação em tempos de pandemia
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contribution to scholars such as Antônio Costa, to discuss the conceptions of socio-education, Paulo
Freire and his teachings on dialogicity, citizen education, liberating and/or emancipatory and Elenice
Onofre, within the bias of education as social inclusion, using tools of bibliographic research, in which we
sought to correlate the theories defended by the respective authors and the practices experienced, based
on the Socio-educational Care Center of Cuiabá–MT (CASE/MT). Based on reective analyzes, the
results point to the urgent need to improve the intertwining between the theoretical concepts presented,
the current norms and socio-educational practices, because only then will it be possible to guarantee an
effective process for the reintegration of young people into society, based on a practice which seeks to
avoid recidivism, since socio-educational tools are still the best instrument to assist in the emancipation
of young people in deprivation of liberty and, therefore, to act in social transformation.
Keywords: Young people in restriction and deprivation of liberty. Socio-education. Dialogues.
RESUMEN:
DIÁLOGOS SOBRE SOCIO EDUCACIÓN EN TIEMPOS DE PANDEMIA
Nuestro objetivo con este texto es invitar a una reexión crítica que tiene como objetivo ayudar en el
proceso de comprensión de las prácticas socioeducativas, especialmente en el contexto actual derivado
de la pandemia provocada por el coronavirus (covid-19), época en la que los jóvenes en situación de
privación de libertad se encontraron sin ninguna forma de acceso a la educación. Para ello, los estudios
se realizaron desde la perspectiva de los diálogos establecidos por el Estatuto de la Niñez y la Adoles-
cencia (ECA), el Sistema Nacional de Asistencia Social y Educativa (SINASE) y la discusión sobre
las posibilidades metodológicas de mantener el proceso educativo de estos jóvenes. Para garantizar su
apoyo, se buscó un aporte teórico de académicos como Antonio Costa, para debatir los conceptos de
socio educación, Paulo Freire y sus enseñanzas sobre dialogicidad, educación ciudadana, liberadora
y/o emancipadora y Elenice Onofre, dentro del sesgo de la educación como inclusión social, utilizando
herramientas de investigación bibliográca, en las que se intentó correlacionar las teorías defendidas
por los respectivos autores y las prácticas vividas, con base en el Centro de Servicio Socioeducativo
Cuiabá - MT (CASE / MT). A partir de análisis reexivos, los resultados apuntan a la urgente necesidad
de mejorar el entrelazamiento entre los conceptos teóricos presentados, la normativa vigente y las prác-
ticas socio pedagógicas, pues solo así será posible garantizar un proceso efectivo de reinserción de los
jóvenes en la sociedad, a partir de una práctica. que busca evitar la reincidencia, ya que las herramientas
socio educativas siguen siendo el mejor instrumento para ayudar en la emancipación de los jóvenes en
privación de libertad y, por tanto, actuar en la transformación social.
Palabras clave: Juventud en restricción y privación de libertad. Socio educación. Diálogos
Introduzindo o assunto
Para compreender as questões que envolvem a socioeducação, vale destacar que, qual-
quer que seja o tipo de educação, ela é, por natureza, proeminentemente social (COSTA, 2004).
Portanto, o conceito de socioeducação privilegia o aprendizado para o convívio social e
para o exercício da cidadania. Assim, empreendem-se ações para a materialidade de propostas
que implicam uma nova forma de o indivíduo relacionar-se consigo e com o mundo.
Com a Lei n.° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do AdolescenteECA) e a raticação
do Brasil como signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança no mesmo ano, emergem
dispositivos legais que garantem ao público infanto-juvenil, enquanto sujeitos de direito, a pro-
teção integral, de forma que os seus interesses passam a ter prevalência sobre qualquer outro.
Kátia Aparecida da Silva Nunes Mirandas e Clóris Violeta Alves Lopes
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Destaca-se a sua premissa em promover mudanças conceituais e trazer inovações para
a construção de políticas públicas e sociais voltadas para a criança e o jovem, com reexos,
inclusive, para a questão infracional, responsabilizando o jovem que cometeu algum tipo de
infração, o qual passará a responder sob a forma de medidas socioeducativas.
Tal prática ganhou reforço com a Lei n° 12.594/2012 (Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo — SINASE), que dispôs sobre a advertência, obrigação de reparar danos, pres-
tação de serviços, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade ou a internação em
estabelecimento educacional a serem aplicadas ao jovem infrator.
No entanto, tais medidas, para além da sanção, devem contar com práticas de natureza
sociopedagógica (social, pedagógica, educativa) que possibilitem ao jovem a oportunidade de
construir novos valores e perspectivas de vida.
Com o ECA, além de ser apresentada uma nova concepção da infância e da adolescência,
resgatando-se direitos e garantias constitucionais, estabelecem-se medidas socioeducativas a se-
rem aplicadas, o que permite uma reorientação na atenção aos jovens. Assim, quando um jovem
passa a ser atendido, ao mesmo tempo em que se aplica algum tipo de sanção, ofertase, mediante
a socioeducação, a garantia de suas necessidades e direitos.
Portanto, abordar acerca das fragilidades enfrentadas nas políticas públicas destinadas
à socioeducação, questionar a ecácia de seu cumprimento, problematizar a obrigação de es-
tarem orientadas pelos princípios educacionais, pedagógicos, sociais e humanos são meios de
não naturalizar a cultura de encarceramento juvenil que pode estar se tornando uma auspiciosa
máquina para o aprofundamento das violências na vida dos jovens.
No entanto, no contexto atual, com a pandemia causada pelo coronavírus (covid-19) que
afeta o mundo todo, as instituições e a sociedade, de modo geral, têm se confrontado com uma
nova conjuntura, merecendo um destaque especial o campo socioeducativo.
Verica-se, pois, uma grande diculdade em trabalhar pedagogicamente com os jovens
inseridos nesse meio, fazendo-se necessário remodelar urgentemente a forma de convivência
social e institucional para que ocorra uma adequação das práticas a serem desenvolvidas nos
espaços de socioeducação, pautadas no repensar e ressignicar o direito à vida aos casos con-
cretos que o plano fático nos traz.
Nesse contexto, propomos reetir criticamente, com este artigo, acerca do ECA e SINASE,
a partir das políticas públicas destinadas à socioeducação nesse período pandêmico, mostrando,
ainda, quais são as medidas que estão sendo tomadas pelos governos federal e estadual para
mitigar o problema no sistema socioeducativo.
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Para tanto, utilizamos o aporte teórico de Costa (2001, 2004), Freire (2005, 2007) e
Onofre (2013, 2015), por meio da ferramenta metodológica da pesquisa bibliográca, e procura-
mos correlacionar teoria e prática tomando por base o Centro de Atendimento Socioeducativo
de Cuiabá–MT, visando aprofundar a investigação sobre o tema, que possibilita a estruturação
do embasamento teórico utilizado.
O trabalho está dividido em três partes. Na primeira, discutimos sobre a socioeducação,
diálogos e educação nos espaços de privação de liberdade, privilegiando as concepções de
Antônio Costa, Paulo Freire e Elenice Onofre; na sequência, apresenta-se uma reexão sobre a
socioeducação existente no Brasil e em Mato Grosso; em seguida, discorremos sobre a opção
metodológica, amparados na pesquisa bibliográca, e arrematamos com os possíveis caminhos
em tempos de pandemia, a m de delinearmos uma reexão crítica em relação às
políticas pú-
blicas inerentes à socioeducação.
Diálogos e socioeducação: pressupostos teóricos
Os pressupostos teóricos que sustentaram este estudo estão ancorados na concepção da
educação que pretende ser formadora de um sujeito autônomo. Nessa perspectiva, as contribuições
dos autores como Costa (2001, 2004), Freire (2005, 2007) e Onofre (2013, 2015) possibilitam
análises que se entrelaçam na inter-relação dialética entre mundo, ser humano, educação cidadã
e socioeducação.
De acordo com Costa (2004), qualquer que seja o tipo de educação, ela é, por natureza,
proeminentemente social. O conceito de socioeducação privilegia, por assim dizer, o aprendizado
para o convívio social e exercício da cidadania, fazendo-se necessário, pois, que as políticas
públicas sociais estejam constantemente voltadas para a prática e desenvolvimento de ações que
visem materializar propostas que impliquem em uma nova forma de o indivíduo relacionar-se
consigo e com o mundo.
Concebe-se a socioeducação como o educar para o coletivo, no coletivo e com o coletivo
(COSTA, 2004), o que reforça a natureza sociopedagógica existente nos preceitos do ECA, quando
da adoção de um projeto social compartilhado, voltado ao desenvolvimento e fortalecimento da
identidade pessoal, cultural e social do jovem.
Para Costa (2004), a socioeducação divide-se em duas grandes modalidades:
uma, de caráter protetivo, voltada para as crianças, jovens e adultos em cir-
cunstâncias especialmente difíceis, em razão da ameaça ou violação de seus
direitos, por ação ou omissão da família, da sociedade, do Estado ou, até mes-
mo, da sua própria conduta, que os leva a se envolverem em situações que
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implicam em risco pessoal e social; e outra, especicamente voltada para o
trabalho social e educativo, destinada aos jovens em cumprimento de medida
socioeducativa.
A socioeducação está alicerçada no pressuposto da formação integral do ser humano,
contemplando todas as dimensões do ser. Essa educação, para além da formação escolar e
prossional, está profundamente ligada a uma nova forma de pensar e dialogar com o jovem.
Trata-se de um movimento emancipador do sujeito que, para Costa (2004), está articulado
com um projeto de socioeducação que deve ser aliado à educação geral e prossional. No entanto,
para que isso ocorra, as ações educativas devem exercer uma inuência edicante sobre a vida
do jovem, criando condições para que ele cumpra tarefas bem peculiares dessa fase da vida.
A partir de Freire (2007), entende-se a socioeducação pelo diálogo estabelecido entre
educador e educando, fundamental para a problematização das situações reais vividas pelo jovem,
que o leva a perceber o problema originário e a buscar por mudanças. Para tanto, essa relação
dialógica deve oportunizar a educação como prática de humanização, independentemente do
espaço no qual o jovem se encontre.
Freire (2005) refere-se à importância da dialogicidade, posto que, de acordo com o autor,
o diálogo entre educador e educando deve ser considerado como elemento fundamental para a
problematização de situações reais vividas pelo aluno.
No entendimento de Freire (2005), problematizar consiste em abordar questões que
emergem de situações que fazem parte da vivência dos educandos; é desencadear uma análise
crítica sobre a ‘realidade problema’ para que o educando perceba a questão e reconheça a ne-
cessidade de mudanças.
Conforme Freire (2005), o diálogo é a forma mais segura para a educação e libertação
de todos os homens e mulheres — opressores e oprimidos —, apontando que, a partir da arte do
diálogo e da contraposição de opiniões, é possível alcançar novas ideias. Em sua teoria, ca claro
que o diálogo consiste em uma relação horizontal entre as pessoas envolvidas em uma relação.
Assim, com o propósito de vencer a situação de desumanização dos indivíduos, torna-se
fundamental o processo de educação de tal maneira que possam tomar consciência de sua con-
dição de seres desumanizados e buscar alcançar sua humanização. Sob esse viés, apresenta-se
o processo de conscientização e diálogo por meio do qual os seres humanos poderão tornar-se
sujeitos no processo educativo, tal como na construção de sua humanidade.
Onofre (2015) também aponta para a necessidade de encontrar meios que auxiliem a
desenvolver atividades para os jovens em restrição e privação de liberdade, observando que, en-
quanto se trabalha o princípio fundamental da educação por essência transformadora e libertadora,
estabelece-se a cultura de privação de liberdade, levando à adaptação e à privação de liberdade.
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Para Onofre (2013), as políticas de inclusão em espaços de privação de liberdade pro-
vocam algumas inquietações. Uma delas é a de promover a problematização das questões dos
invisíveis no paradigma da segurança, característico desse espaço.
Nesse sentido, o que se propõe é ver a educação no espaço de privação de liberdade
pela perspectiva dos direitos humanos, porque ela constitui um valor em si mesma, sendo um
conjunto de ferramentas e de capacidades que ampliam as possibilidades de implementação de
projetos que contribuam para a inclusão social, cultural e econômica das pessoas aprisionadas
(ONOFRE, 2013, p. 52)
Segundo Onofre (2013), o Estado tem a competência e responsabilidade de promover
práticas de fortalecimento e controle de políticas públicas no sentido de que os direitos humanos
básicos sejam garantidos, com igualdade para todos os indivíduos, incluindo-se aqueles que se
encontram em privação de liberdade (ONOFRE, 2013, p. 52).
Nesse sentido, Onofre (2015) aponta que tais políticas devem estar evidenciadas no
cotidiano dos espaços de privação de liberdade, fazendo dessas instituições espaços educativos
e tendo a educação como alicerce desse processo. Para tanto, pensar o universo da educação
signica ir além da educação escolar, somando-se a ela as experiências educativas que ocorrem
no cotidiano das pessoas, por meio do relacionamento com outros indivíduos e com o seu am-
biente (ONOFRE, 2013).
Nessa perspectiva, alinhando-se com a concepção de Costa, Freire e Onofre, os autores
sugerem o engajamento em ações práticas para que, de fato, haja transformação social, indi-
cando possibilidades de aplicação dessa mudança na socioeducação, edicadas com base no
desvelamento dos problemas sociais e originadas das práticas sociais com o objetivo de buscar
solução e superação.
Reexões acerca da socieducação em tempos de pandemia: con-
texto brasileiro e mato-grossense
Com a pandemia mundial causada pelo coronavírus (covid-19), as instituições e a so-
ciedade, de modo geral, têm se deparado com um novo cenário educacional. Na socioeducação,
verica-se uma grande diculdade em trabalhar pedagogicamente com os jovens inseridos
nesse meio, buscando novas abordagens para a convivência social e institucional, adequando
as metodologias e práticas a serem adotadas nos locais que contam com jovens em situação de
privação de liberdade. Tais premissas devem buscar sustentação no ato de repensar os direitos
inerentes aos jovens em face da atual situação pandêmica.
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Conforme levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 2019,
o Brasil contava com 18.086 jovens em situação de privação de liberdade, distribuídos em 330
unidades de socioeducação.
Referido estudo destacou que essas unidades totalizavam 16.161 vagas, mostrando a
distorção entre o número de jovens e de vagas, que evidencia o principal impacto da pandemia
no sistema socioeducativo — a superlotação.
Consequentemente, essa distorção diculta o atendimento às recomendações da Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde (MS) para prevenção da covid-19,
que compreende, basicamente, o distanciamento físico, a não aglomeração de pessoas e rotinas
constantes de higienização. Registra-se, ainda, que o não cumprimento de tais medidas pode
levar mais pessoas a óbito em decorrência da doença.
A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 227, garante ao jovem a proteção integral,
que deve ocorrer com a adoção de providências no âmbito dos três poderes (Executivo, Legisla-
tivo e Judiciário) e com prioridade absoluta, com vistas à importância do pleno desenvolvimento
dos indivíduos, motivo pelo qual os ditames constitucionais servem de amparo e dão especial
relevância à temática, complementada pelo ECA e SINASE.
A hipótese fática atual deve servir como fundamento para fortalecer a proteção ao
jovem em situação e privação de liberdade, e não como reforço para o caráter punitivo e
segregação do jovem. A privação de liberdade com a aplicação de medida não pode se traduzir
em mero punitivismo estatal e deve sempre visar à reinserção social.
O Conselho Nacional de Justiça, diante disso, editou a Recomendação n.º 62/2020, cuja
normativa tenta dar um novo prisma de aplicação, com um (re)pensar crítico que se afasta do
mero punitivismo e privação de liberdade em sede infracional.
Destarte, a Resolução n.º 75/2020, da Secretaria da Justiça, Família e Trabalho, que dis-
ciplina as disposições do Decreto Estadual n.º 4.230/2020, com a nalidade de instituir e adotar
medidas e providências como Plano de Contingência de Prevenção ao contágio pelo vírus da
covid-19, em seu artigo 17, inciso VI, determina que os adolescentes que se encontram em
cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade podem, durante o período de
contingenciamento, permanecer em suas casas diante da grave situação que se alastra pelo
país com a disseminação do vírus, como medida de prevenção e segurança.
Já o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), em
consonância com a Resolução n.º 313 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 19 de março
de 2020, que estabeleceu critérios para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários,
com o objetivo de prevenir o contágio pela covid–19 e garantir o acesso à justiça durante o perí-
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odo emergencial, recomendou a observação da resolução em comento, destacando em seu item
13 a possibilidade de revisão das medidas socioeducativas imputadas e sua progressão para o
meio aberto, a suspensão das medidas junto aos grupos de riscos, dentre outros aspectos, como
garantir a comunicabilidade dos adolescentes com suas famílias por meio remoto; a prática de
medidas socioeducativas por meios digitais; a higienização do ambiente, bem como o controle e
informação ao Estado sobre o cumprimento das medidas apontadas pela Resolução n.° 62/2020
do CNJ (BRASIL, 2020b).
Asseveramos que a posição do CNJ e do CONANDA é efetivamente uma predileção
por medidas restritivas (meio aberto) ou por cumprimento de medida domiciliar, isso porque é
reconhecido que o sistema socioeducativo no Brasil sofre com superlotação e estruturas precárias.
Mesmo que em alguns estados brasileiros não haja superlotação, é importante destacar
que o sistema socioeducativo não tem condições de evitar a propagação do coronavírus, dada a
arquitetura das unidades socioeducativas que conta com alojamentos próximos uns dos outros,
quase sempre sem ventilação e iluminação.
Nessa mesma direção, em âmbito estadual, no que tange ao sistema educacional de
Mato Grosso, medidas sobre reorganização dos calendários escolares e realização de atividades
pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da covid-19 foram tomadas, afe-
tando todas as modalidades, desde as de ensino: ensino médio, Educação de Jovens e Adultos
(EJA), educação especial, educação do campo, quilombola e indígena, de povos tradicionais,
até as especializadas, como o sistema socioeducativo, sistema penitenciário, classes e ambientes
hospitalares, educação integral e atendimento aos imigrantes.
Por meio da proposta no Parecer n.° 5/2020-CNE/CP, de 28 de abril de 2020, pelo Conse-
lho Nacional de Educação, tanto o Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso (CEE-MT)
quanto a Secretaria de Estado de Educação do estado (SEDUC/MT), resguardadas as especici-
dades locais, tomaram medidas no sentido de mitigar localmente a proposta de parecer emitida
pelo Conselho Nacional de Educação.
Assim, o sistema socioeducativo permanece sem aulas on-line e com material impresso,
semanalmente, para todos os jovens. Essa medida tem o objetivo de regulamentar normas a se-
rem adotadas pelas instituições pertencentes ao Sistema Estadual de Ensino, enquanto perdurar
a situação de pandemia pelo novo coronavírus (covid-19).
Nesse sentido, a Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP–MT), instituição
responsável pela execução da medida socioeducativa em meio fechado no estado de Mato Gros-
so, mantém restringido o acesso de pessoas com sintomas de gripe e daquelas consideradas do
grupo de risco.
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Também estão mantidas as suspensões de: transferências de jovens entre Centros de
Atendimento Socioeducativo e interestaduais, salvo casos excepcionais, devidamente autorizados
pelo superintendente de Administração Socioeducativa; atividades religiosas, assim como aquelas
que necessitam do acesso de pessoas externas para a promoção de projetos sociais; assistência
cultural, realização de cursos e outras atividades coletivas que possam provocar a aglomeração
de pessoas, resguardando, assim, tanto os adolescentes quanto os servidores.
Está proibido o recebimento de jovens oriundos de outros estados e países, assim como
não é possível, no momento, o recebimento de alimentos e posterior entrega aos jovens. Outra
limitação imposta refere-se à deliberação de que as unidades devem seguir a determinação de
suspender as atividades presenciais escolares.
Além disso, foi mantido o atendimento psicossocial individualizado aos adolescentes
privados de liberdade apenas em casos emergenciais ou urgentes, respeitando as recomenda-
ções do Ministério da Saúde quanto à prevenção do contágio pelo coronavírus, especialmente,
a distância mínima e o ambiente ventilado.
Retomando as normativas do CNJ, verica-se que elas recomendam aos CASEs que man-
tenham as atividades educacionais, físicas, lúdicas, de lazer, recreativas, bem como incentivem
a leitura, os trabalhos manuais, os lmes, os jogos, entre outros, em menor número de adoles-
centes, obedecendo às recomendações do Ministério da Saúde quanto ao combate da covid-19.
Assim, necessário se faz encontrar soluções que garantam a continuidade e inclusão de
novas práticas para atender ao processo socioeducacional desses jovens em situação de privação
de liberdade.
Opções metodológicas
Optou-se pela abordagem qualitativa, por meio de uma pesquisa bibliográca, que tem
o documento como objeto de investigação. Assim, a pesquisa foi desenvolvida com base em
material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos cientícos, normativas, de-
cretos e recomendações (GIL, 2008).
Nesse sentido, a pesquisa bibliográca é realizada buscando efetuar o levantamento de
um saber disponível sobre teorias e concepções, com o intuito de analisar, produzir ou explicar
um objeto que está sendo investigado. Assim sendo, esse estudo, por meio da pesquisa biblio-
gráca, analisou as principais teorias e autores da temática abordada com diferentes nalidades
(CHIARA et al., 2008), entre elas, ações sociopedagógicas e o compromisso ético-político com
a sociedade em prol da construção de outro mundo possível.
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Possíveis caminhos
Seguindo as diretrizes instituídas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), levando em
consideração as recomendações expedidas pelos órgãos públicos e pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), de caráter preventivo, assegurando a saúde dos jovens e de seus familiares,
preconizadas no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), em observância à proteção
integral do jovem, seja por questão humanitária ou em decorrência do princípio da homogenei-
dade, tem-se um novo olhar sob a aplicação e execução das medidas socioeducativas em tempos
de pandemia.
Segundo a Recomendação n.º 62/2020 do CNJ, as instituições devem elaborar planos de
contingência explicitando as rotinas e os protocolos que devem ser adotados. Tal plano limita-se
basicamente a descrever os aspectos da pandemia, as características da covid-19 e elencar quais
equipamentos de proteção devem ser utilizados.
Logo, visualiza-se um novo aspecto na aplicabilidade da medida socioedu-
cativa de privação de liberdade, uma vez que a situação trazida pelo cená-
rio atual pandêmico conduz a uma nova percepção das instituições e de suas
ações sociais, bem como obriga os prossionais envolvidos com a educação a
achar mecanismos que possam ser adequados à nova realidade vivenciada, por
meio da introdução de disposições normativas que possibilitem e ampliem os
recursos metodológicos utilizados para lidar com as adversidades e superar os
tensionamentos decorrentes da situação atual.
Para tanto, é preciso ofertar atividades culturais e educacionais aos jovens em situação
de privação de liberdade, por meio de recursos, ainda que on-line, garantindo a continuidade
das ações socioeducativas a esses jovens, despertando neles a reexão de quais são os papéis
disponíveis a eles neste conturbado período, quais papéis estão efetivamente experimentando
e o que querem assumir como compromisso para suas vidas no futuro, com a nalidade de que
façam escolhas de forma consciente e atuante, sem se sentirem excluídos mesmo em tempos
tão difíceis.
O direito à educação, saúde e convivência familiar no sistema socioeducativo durante a
pandemia deve ser respeitado e garantido, para além dos principais desaos já enfrentados em
relação à articulação em rede para o fortalecimento das medidas em meio aberto e quanto ao
uso de equipamentos de proteção individual pelos funcionários e jovens.
A partir dessa compreensão, verica-se que é papel do Estado atuar para o resgate da
cidadania do jovem em situação de privação de liberdade.
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Considerações
Vivemos um momento em que se faz imprescindível a desconstrução das experiências
danosas, reinventando-as. Repensar o sistema socioeducativo é preciso e necessário, entretanto,
isso não signica a sua extinção ou agravamento.
Não se pode pensar em uma sanção severa, por meio da privação de liberdade, para
resolver o problema da criminalidade e violência em nosso país. A proposta não é incentivar a
defesa do endurecimento do ECA, por exemplo, mas, sim, manter viva uma reexão constante
acerca da capacidade sociopedagógica que possui esse sistema.
Esse dever de desconstrução da punição e não aceitação é um ato de resistência e luta
pela garantia dos direitos desses jovens. É crucial, porém, para a construção de políticas públicas
sólidas e ecazes ao atendimento socioeducativo, que se efetivem ações conjuntas envolvendo
diversos atores como: Poder Executivo (federal, estadual e municipal), Poder Judiciário, Mi-
nistério Público e a sociedade civil, dando abertura ao princípio da incompletude institucional.
Dessa forma, em tempos de pandemia, tão importante quanto a responsabilização do
jovem transgressor, é assegurar-lhe os direitos e garantias fundamentais, desde a fase de investi-
gação/apuração dos fatos, com o devido respeito ao processo legal e condições especiais da área
infanto-juvenil, até o nal da execução da medida. Para tanto, é essencial garantir a ecácia dos
direitos do jovem que permaneceu em privação de liberdade durante todo o período da pandemia.
A socioeducação decorre da perspectiva de que o desenvolvimento humano deve se dar
de forma integral, contemplando todas as dimensões do ser. É a opção por uma educação que vai
além do processo escolar e prossional, trata-se de uma educação humanizadora, libertadora e
emancipadora, que valoriza os sujeitos como construtores de seus conhecimentos, prevalecendo
entre os pares uma relação dialógica. Essa ideia está intimamente associada a uma nova forma
de pensar e abordar o trabalho com os jovens.
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Recebido em: 16 de janeiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
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