193
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
QUESTÕES DE GÊNERO NA
APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA
ANTONIO CARLOS DIAS JUNIOR
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Departamento de Ciências Sociais na
Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.
ORCID: 0000-0001-6556-6118. E-mail: acdiasjr@unicamp.br
ALAN CABALLERO
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduado em Pedagogia e
Mestrando na linha de Educação e Ciências Sociais, ambos pela UNICAMP. Grupo
de Estudos e Pesquisa em Políticas Públicas, Educação e Sociedade (GPPES).
ORCID: 0000-0003-1270-0971. E-mail: alanisaac09@gmail.com
194
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
QUESTÕES DE GÊNERO NA APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA
Nossa intenção é problematizar o discurso de gênero que opera concomitantemente o discurso neoliberal
de Aprendizagem ao Longo da Vida - UNESCO em políticas globais e locais, neste caso no Brasil. Para isto
vericamos este discurso por meio de análise documental na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional
(1996), Declaração de Incheon (2015a), Relatório de Monitoramento Global de Educação Para Todos
(2015b) e Base Nacional Comum Curricular (2017). A discussão e resultados apresentam essas políticas
em concordância com uma lógica empreendedora que nda por reiterar binarismos e heterossexismos.
Conclmos que políticas globais entendidas, sobretudo, pelos uxos da performatividade competitiva de
Stephen Ball podem exibir estruturas da performatividade de gênero de Judith Butler.
Palavras-chave: Gênero. Aprendizagem ao Longo da Vida. Performatividade.
CUESTIONES DE GÉNERO EM LA APRENDIZAJE A LO LARGO D¬E LA VIDA
Nuestra intención es problematizar el discurso de género que opera concomitantemente el concepto de
Aprendizaje a lo Largo de la Vida - UNESCO en políticas globales e locales, en este caso en Brasil.
Para esto, vericamos este discurso por medio del análisis documental en la Lei de Diretrices e Base
de la Educación Nacional (1996), Declaración de Incheon (2015a), Relatório de Monitoramento Global
de Educación Para Todos (2015b) y la Base Nacional Comum Curricular. La discusión e resultados
presenta esas políticas en concordancia con una lógica emprendedora que termina por reiterar binarismos
e heterosexismos. Concluyimos que políticas globales comprendidas, además, por los ujos de la
performatividad competitiva de Stephen Ball pueden exibir estruturas de la performatividad de género
de Judith Butler.
Palabras-clave: nero. Aprendizaje a lo Largo de la Vida. Performatividad.
GENDER QUESTIONS IN THE LIFE-LONG LEARNING
We intend to problematize the discourse of gender that operates concomitantly the concept of Life-long
Learning UNESCO in global and local policies, Brazil in this case. For this, we veried this discourse
by documental analisis in Law of Guideline and Basis of National Education (1996), Incheon Declaration
(2015a), Global Monitoring Repport of Education For All (2015b) and the Common National Curricular
Basis (2017). Our discusion and results presents these policies in agreement within a enterprenoural logic
and end up to reiterate binarisms and heteronormativities. We conclude that global policies understood,
mainly, by the ow of the Stephen Ball’s competitive performative may display structures of the Judith
Butler’s gender performative.
Keywords: Gender. Life-long Learning. Performativity.
195
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
QUESTÕES DE GÊNERO NA APRENDIZAGEM AO
LONGO DA VIDA
Introdução
As discussões e resultados deste artigo decorrem do projeto de pesquisa “Corpo e gênero
na escola: o trabalho dos gestores escolares em um campo de disputas” (iniciado em 2018) e foram
apresentados em uma primeira oportunidade na ocina “Questões de gênero e políticas globais
na XII Semana de Educação, em 2018, organizada pelo Centro Acadêmico de Pedagogia (CAP),
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Essa apresentação delineou um percurso
de leitura de algumas políticas locais brasileiras em conjunto com políticas globais, iniciadas
pelo recente acréscimo do conceito de Aprendizagem ao Longo da Vida (ALV) - UNESCO à
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pela Lei nº 13.632/2018, percorrendo a
Declaração de Incheon e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Este percurso pelo texto das políticas estava acompanhado do objetivo de explorar
a aparição das questões de gênero (e sexualidade, exposto adiante) no discurso neoliberal de
ALV na agenda pós-2015. É evidente que essas políticas denotam preocupações, valores e
interesses ao abordar gênero, tanto no próprio texto quanto para a história da política. Nesta
chave, destacamos os contextos da palavra gênero no interior destas políticas, oferecendo
problematizações. Nossa análise caminha no sentido de apontar como a ALV em uma agenda
pós-2015 aborda gênero de forma insuciente para alcançar a equidade de gênero, visto que seus
esforços estão inteiramente voltados para atividades performativas das economias de mercado
na proliferação de conhecimentos necessários para a boa educação no século XXI, de caráter
exível e instável, com destaque para outro efeito paralelo: reiterar as normas de gênero de uma
sociedade heteronormativa pelo silenciamento e invisibilidade de algumas questões de gênero e
sexualidade, as quais, por sua vez, seriam necessárias para eliminar as causas de desigualdades
e violências de gênero identicadas nessas políticas, implicando na presença de estruturas e
estabilidades interiorizadas de populações em economias globalizadas.
Breve apontamento metodológico
Neste artigo seguimos os passos metodológicos da abordagem do ciclo de políticas
(BALL, 1994), de orientação pós-estruturalista, concentrado no estudo de discursos políticos
por meio da trajetória de políticas públicas. Nesta perspectiva, as políticas movimentam-se entre
196
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
diferentes contextos de produção, portanto são inuenciadas, formuladas e implementadas por
uma pluralidade de atores políticos responsáveis por atribuir novos sentidos e práticas às políticas
existentes, exigindo criatividade e (re)tradução nos processos de signicação das políticas
para novos contextos. Para nossos propósitos, concentramos nossos esforços na apresentação
do contexto de inuência para as políticas educacionais, contexto no qual “grupos de interesse
disputam para inuenciar a denição das nalidades sociais da educação e do que signica ser
educado” (MAINARDES, 2006, p.51), destacando-se o conceito de ALV como o discurso de
referência de políticas globais para a atuação em contextos locais.
Utilizamos o método de análise documental por palavras-chave (LUDKE & ANDRÉ,
1986) para selecionar os trechos sujeitos a problematizações de gênero. Assim, selecionamos as
palavras corpo, sexo, gênero, sexualidade, mulher e menina como buscadores para a pesquisa,
pois estão sujeitas a uma multiplicidade de sentidos e, portanto, a diferentes inteligibilidades
(BUTLER, 2005; 2017). Como o uso da linguagem é a tônica da abordagem do ciclo de políticas,
entendemos que as condições de aparição das palavras-chaves nos textos das políticas aliadas
a um contexto de inuência (mobilização do conceito de ALV) tornam-se imprescindíveis para
compreendermos as enunciações prováveis desses signicantes a outros contextos políticos,
denotando a orientação de práticas locais a interesses globais. Por esta rao, concentramos
a discussão na problematização dos termos, tal como aparecem nos documentos, a partir do
conceito de gênero (BUTLER, 2017).
Estado e políticas públicas
Cabe-nos relembrar que a ação de um Estado, ou ainda, sua estatidade, recai sobre suas
políticas (HOFLING, 2001). Também estamos de acordo com Pires (2011, p.7) quando arma: “as
políticas públicas são o principal instrumento à disposição dos governos para enfrentar problemas
associados às desigualdades entre cidadãos, segmentos da população e unidades do território”.
As políticas podem minimizar ou acentuar desigualdades, tensão que está presente na
disposição mais bem-intencionada dos agentes sociais. A exemplo, essa tensão pode ser percebi-
da na sexualização do corpo da mulher negra quando, numa reunião de planejamento familiar no
SUS com uma equipe de três mulheres (duas brancas e uma negra), a justicativa cultural de que
“elas querem é pegar lho, começar cedo, é uma cultura da comunidade, muito difícil” responde
à seguinte pergunta: “será que nosso planejamento familiar não está funcionando?” (MILANEZI,
2011, p.40).
197
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
Ou ainda em outro exemplo, tomado de Campello: um programa de cisternas, política
de saúde de acesso a saneamento no Nordeste brasileiro, permitiu que em pouco mais de uma
década fossem “construídas 1,2 milhões de cisternas beneciando 4,6 milhões de pessoas”, entre
elas “mulheres que deixaram de carregar água em suas cabeças, liberando tempo livre para outras
atividades”, sendo 73% das cisternas entregues “para famílias cheadas por mulheres” (CAM-
PELLO, 2017, p.28), contribuindo para minimizar desigualdades nas relações de gênero e étnico-
-raciais, efeitos conseguidos também por políticas de habitação, como a urbanização das favelas e
por programas como Minha Casa Minha Vida, capazes de diminuir, entre 2002 e 2015, de 16,1%
para 7,5% o número de famílias nos 5% mais pobres, que “residiam em domicílios precários, sem
paredes de alvenaria, madeira ou revestimento adequado” (CAMPELLO, 2017, p.35)
1
e o aumento
de máquinas de lavar e energia elétrica nos lares.
Podemos citar, ainda, um terceiro exemplo: o fracasso escolar é mais comum para meninos
do que para meninas. Também é mais comum entre os negros do que entre brancos. E, por sua
vez, mais comum para os meninos negros do que para as meninas brancas. Qualquer política de
combate ao fracasso escolar, isto é, interessada em aumentar o uxo escolar, deveria buscar evitar
explicações nas quais o fracasso recaia exclusivamente sobre os próprios alunos, como enunciar
que os jovens “não querem nada” (como se não se esforçam para alcançar seus objetivos) ou são
“problemáticos” (casos de indisciplina, preguiça ou diculdade de aprendizagem) (OLIVEIRA &
CARVALHO, 2011, p.22).
Tomamos estes exemplos para ilustrar o que tomamos por biopoder (FOUCAULT, 2008).
Assim, dado este panorama de políticas públicas com viés de gênero, pretendemos problematizar
como questões de gênero materializam-se no texto de políticas educacionais relacionadas à ALV.
As indicações trazidas por esta empreitada também corroboram para suspeitar o quanto a narrativa
construída pela ALV pode ser generalizada para outras políticas públicas, como aquelas expostas
acima (CAMPELLO, 2017; MILANEZI, 2011; OLIVEIRA & CARVALHO, 2011), pondo em
xeque a própria noção de Pires (2011) de que teriam como objetivo a diminuição das desigualdades,
aumento da justiça social e cidadania, sem ponderar sobre o controle biopolítico que elas exercem
sobre a população (FOUCAULT, 1979).
1 “As casas chegaram a quem mais precisava: 85% das famílias cheadas por mulheres, 46% recebem Bolsa Família,
66,8% são negros (pretos e pardos), 53% têm ensino fundamental incompleto e não tem instrução e 70% têm até R$
800,00 de renda mensal” (CAMPELLO, 2017, p.37).
198
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
Pode-se compreender a biopolítica como a operação conjunta dos poderes disciplinares e
confessionais a serviço de um Estado na intenção de prever, calcular e transformar em estatísticas
o comportamento de uma população, valorizando aspectos biológicos do corpo, sejam eles “a
proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade,
com todas as condições que podem fazê-los variar” (FOUCAULT, 2015, p.150). Esta denição
de biopolítica possui em seu princípio a administração dos corpos pela intervenção sobre a vida
da espécie humana, demonstrando um racismo biologicista em sua base, para o qual o sexo re-
presentou suas possibilidades de dispersão.
As políticas sociais, com efeito, encerram uma nova racionalidade do biopoder pautada
no bem-estar social, orientadas nesse sentido para que elementos indiretamente relacionados à
economia
2
, como a população, tornem-se condições para o funcionamento de um mercado (FOU-
CAULT, 2008). Neste registro, as políticas que recaem sobre o sexo são a razão da disseminação
dos poderes biopolíticos, racistas em seu acontecimento:
Toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação,
da hierarquização social, da propriedade, e uma longa série de intervenções
permanentes no nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida cotidiana,
receberam então cor e justicação em função da preocupação mítica de
proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça (FOUCAULT, 2015,
p.162).
Sangue esse que evoca a hereditariedade e as alianças familiares, pelas quais se constituiu
o dispositivo de sexualidade com função de controlar, regular e interferir sobre a vida de uma
população. A política do sexo apresenta-se como uma política social, sendo esta compreensão
de política adequada para prosseguirmos com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) (1996) e incorrermos na Declaração de Incheon (2015a), no Relatório de Monitoramento
Global de Educação Para Todos (RMG) (2015b) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
(2017), para as quais a ALV é o discurso biopolítico com efeitos performativos na educação.
Apesar da relação entre performatividade e mercado ser uma literatura já consolidada, como de-
monstrada pelos estudos de Stephen Ball no decorrer deste artigo, encontramos em Judith Butler
um importante complemento aos efeitos de mercado instaurados por poderes biopolíticos, ainda
que a correlação entre mercado e gênero seja menos recorrente em sua obra em relação a temas
como Estado e gênero ou política e gênero.
2 O preço pode ser tomado como diretamente relacionado ao mercado (FOUCAULT, 2008).
199
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
Se tal correlação entre mercado, gênero e políticas torna-se viável, ocorre na exata medida
em que o Estado internaliza interesses mercadológicos nos quais as políticas possuem efeitos bio-
políticos, sendo direta sua correlação com o gênero uma vez que requer cções sobre o sexo para
materializar seus efeitos. Postas essas questões introdutórias, problematizaremos a possibilidade
da construção de uma igualdade de gênero
3
pelo conceito de ALV na agenda pós-2015.
Performatividades na política (social) do sexo
A. Aprendizagem ao Longo da Vida e gestão do mercado
Em 6 de março de 2018 foi acrescentado um novo artigo à LDB, no qual podemos ler: “Art.
3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] XVIII – garantia do direito à
educação e à aprendizagem ao longo da vida” (BRASIL, 1996). Este último termo, “aprendizagem
ao longo da vida”, remete à Declaração de Incheon, resultado do Fórum Mundial de Educação
de 2015, dividida em três partes: Preâmbulo, Rumo a 2030: uma nova visão para a educação e
Implementação de nossa agenda conjunta.
A Declaração de Incheon, de 21 de maio de 2015, é antecedida pela Declaração de Jomtien
([1990]1998) e Declaração de Dakar ([2000]2001), sendo a década de 1990 o período de expansão
das políticas neoliberais para a educação, com o incentivo à “livre iniciativa” utilizando o mercado
como “o melhor dos caminhos para gerar Eciência, Justiça e Riqueza” cujos resultados, “nos
limites da liberdade, são a paz e a harmonia internacional” (MORAES, 1998, p.104).
Inserida nesse contexto, a ALV atende à substituição da noção de qualicação pela de com-
petências em virtude da “escola assegurar um tipo de acumulação primitiva de capital humano”
(LAVAL, 2004, p.46) em que os saberes tornam-se conteúdos de um saber-fazer ao contrário de
um saber-memorizável, isto é, os conhecimentos devem ser acompanhados da prática e não apenas
exercícios mentais. Este paradigma utilitarista repousa essencialmente no conhecimento como uma
ferramenta prossional para o mercado, acompanhado da autoaprendizagem contínua e responsa-
bilização do educando pelas suas escolhas no mercado educacional, isto é, por suas competências:
3 Entendemos que paridade de gênero, equidade de gênero e igualdade de gênero não devem ser compreendidos
como sinônimos. Em todo caso, compreendemos que igualdade de gênero não problematiza a identidade como equi-
dade de gênero, que o faz pelo conceito de diferença.
200
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
“aquilo pelo qual o indivíduo é útil na organização produtiva” (LAVAL, 2004, p.55). A educação
torna-se então uma mercadoria descartável que mede a empregabilidade de um prossional.
Compreendemos a ALV como uma atitude voltada ao aprender a aprender, um imperativo
de formação para a vida sem apego à experiência (LAVAL, 2004). Sua intenção performativa
na educação ocorre num currículo imerso em TICs, aprendizagem de línguas, alfabetização e
operações matemáticas A isto se somam estratégias biopolíticas de produção de corpos úteis e
saudáveis esperado por sociedades hetoronormativas em economias de mercado competitivo, as
quais criam, entre outras, narrativas sobre HIV, AIDS, gravidez precoce e violências de gênero,
as quais corroboram com discursos de eciência e produtividade. A performatividade de mercado
constrói uma narrativa que insinua quais sexualidades são necessárias para uma boa educação no
século XXI, que estão inseridas, ainda, em contextos “glocalizados” em que são ressignicadas
para hibridizar tendências e interesses locais às políticas globais.
Devemos ressaltar que a Declaração de Incheon defende a expansão do acesso, inclusão
e equidade, igualdade de gênero, educação de qualidade e oportunidades de educação ao longo
da vida, além de complementar o quarto tópico dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis
4
(ODS 4): “assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Assim, o Art. 3º da LDB (1996) encontra respaldo
em políticas globais.
Na Declaração de Incheon, sobre as oportunidades de educação ao longo da vida temos
o seguinte:
Isso inclui acesso equitativo e mais amplo à educação e à formação técnica
e prossional de qualidade, bem como ao ensino superior e à pesquisa, com
a devida atenção à garantia de qualidade. Além disso, é importante que se
ofereçam percursos de aprendizagem exíveis e também o reconhecimento, a
validação e a certicação do conhecimento, das habilidades e das competências
adquiridos por meio tanto da educação formal quanto da educação informal.
Comprometemo-nos, ainda, a garantir que todos os jovens e adultos,
especialmente as meninas e as mulheres, alcancem níveis de prociência em
habilidades básicas em alfabetização e matemática, que sejam relevantes e
reconhecidos, adquiram habilidades para a vida e tenham oportunidades de
aprendizagem, educação e formação na vida adulta. Também nos empenhamos
4 Que substituíram em 2011 os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
201
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
com o fortalecimento da ciência, da tecnologia e da inovação. Tecnologias de
informação e comunicação (TIC) devem ser aproveitadas para fortalecer os
sistemas de educação, a disseminação do conhecimento, o acesso à informação,
à aprendizagem de qualidade e ecaz e a prestação mais eciente de serviços
(UNESCO, 2015a, p.3-4).
Com atenção especial para meninas e mulheres, Igualdade de gênero parece ser ponto
fulcral para a resolução desta questão, sendo descrita da seguinte forma:
Reconhecemos a importância da igualdade de gênero para alcançar o direito à
educação para todos. Dessa forma, estamos empenhados em apoiar políticas,
planejamentos e ambientes de aprendizagem sensíveis ao gênero; em incorporar
questões de gênero na formação de professores e no currículo; e em eliminar
das escolas a discriminação e a violência de gênero (UNESCO, 2015a, p.2).
Os interesses e direitos defendidos na Declaração de Incheon estão respaldados em pes-
quisas e discussões. No texto são mencionados a Reunião Mundial sobre Educação para Todos
5
,
o Grupo de Trabalho Aberto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
6
e o Relatório de
Monitoramento Global de Educação para Todos 2015, além do que denominam casualmente de
relatórios regionais
7
.
O RMG (2015) é de fácil acesso e apresenta resultados da monitoração (“quase anualmente”)
do “progresso rumo aos objetivos de EPT e aos dois Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM) relativos à educação” (UNESCO, 2015b, p.5), apresentados em seis objetivos, dos quais
focamos no objetivo sobre gênero, e revisão de doze estratégias do Marco de Dakar responsáveis
por acelerar as conquistas dos objetivos do EPT, das quais trataremos as estratégias seis, sete e
oito, respectivamente. O documento em questão “fornece aos formuladores uma fonte ocial para
defender que a educação seja a chave da arquitetura global de desenvolvimento pós-2015”, além
de servir como “ferramenta indispensável para governos, pesquisadores, especialistas, em educação
e desenvolvimento, mídia e estudantes” (UNESCO, 2015b, p.57).
Devemos recordar, utilizando Ball (2011, p.45-46) que “as políticas normalmente não
dizem o que fazer; elas criam circunstâncias nas quais o espectro de opções disponíveis sobre o
5 Nossas pesquisas não encontraram qualquer documento ou discussão que integrasse esta reunião.
6 Nossas pesquisas não encontraram qualquer documento ou discussão que integrasse este grupo de trabalho.
7 Encontramos no Relatório nacional voluntário sobre os objetivos de desenvolvimento sustentável (2017) uma
amostra desse esforço de monitoramento, o qual, em linhas gerais, não difere dos propósitos e questões demonstrados
abaixo.
202
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
que fazer é reduzido ou modicado ou em que metas particulares ou efeitos são estabelecidos”.
O que sabemos é que as políticas que pretendemos analisar corroboram com um novo paradigma
de gestão pública, fazendo do gestor seu “herói cultural” (BALL, 2001) ao incentivar a cultura
corporativa ou empresarial.
Outro ponto relevante, relacionado ao nosso objetivo inicial, é a preocupação de algumas
políticas com a igualdade de gênero e questões de sexualidade (Declaração de Incheon) ou apenas
com abordagens sobre a sexualidade (BNCC, como veremos adiante). A exclusão ou acréscimo
de palavras em textos políticos, como gênero e sexualidade (que podem assim assumir função
conceitual)
8
, não está necessariamente acompanhada de performatividades de gênero, já que exi-
giria na implementação da política a adequação entre a ação da equipe gestora e as intenções do
legislador (BUTLER, 2005).
Neste novo paradigma de gestão pública percebe-se, ainda, o abandono dos propósitos
sociais da educação (substituição do estado provedor pelo estado regulador), crescimento da
competitividade (aumentando a individualização) e novo panoptismo da gestão (da qualidade e
excelência). A “aprendizagem ao longo da vida” ou a “educação sensível ao gênero” funcionam
como a “sociedade de aprendizagem” e “economia baseada no conhecimento” em Ball (2001),
isto é, são signos produzidos neste período de globalização e adotados por diversos Estados-nação,
criando semelhanças em suas políticas e formas de solucionar os problemas sociais, quase sempre
percebidos como problemas de mercado no paradigma gerencialista.
9
“A forma do mercado [livre
e competitivo], gestão [avaliação de desempenho e responsabilização] e performatividade [julga-
mentos, comparações e exposição como forma de controle]” foram “estabelecidos para superar as
velhas tecnologias do prossionalismo e burocracia e claramente opõe-se a elas” (BALL, 2001,
p.105).
8 Relembramos com Reis (2016) que essas exclusões ocorrem pela difusão do termo “ideologia de gênero”, o qual pode
ser encontrado em projetos de lei com o título Escola Sem Partido ou Escola Livre, movimentados nas bancadas legis-
lativas por grupos religiosos defensores de uma noção conservadora de família que não acompanha as novas formações
familiares, e que crescem signicativamente desde meados do século passado em grande parte do mundo ocidental,
acompanhado do crescimento correspondente de movimentos de contracultura pela liberação sexual e liberdade homo-
afetiva (CASTELLS, 2008).
9 O Caminho da Servidão (2013), de Friedrich von Hayek, inaugura, para alguns autores, o neoliberalismo do século
XX a partir de provocações aos partidos socialistas, voltando-se para “os princípios da ‘sociedade aberta’” (MORAES,
1998, p.10) e contra o Estado de bem-estar social keynesiano. No contexto brasileiro, em especíco, encontramos a
pedra de toque de um paradigma social e econômico que representa importante contribuição para compreendermos
os discursos de ódio na atualidade dirigidos aos indivíduos e grupos organizados contrários ao que se convencionou
denominar por “ideologia de gênero” (REIS, 2016).
203
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
Essas concepções de Estado e de gestão rememoram o poder soberano
10
no qual os efeitos
pretendidos pelo sujeito do poder correspondem às práticas de poder, recorrem a uma perspectiva
jurídica segundo a qual a regra, na condição de regra, age para alterar os comportamentos da po-
pulação (BUTLER, 1997). As políticas de um Estado soberano constroem, assim, uma perspectiva
de poder centrado e não-conitivo.
Quando retornamos à Declaração de Incheon (2015a), seu projeto de implementação prevê
a criação de marcos legais pelos governos com participação da iniciativa privada, bem como o
incentivo ao nanciamento
11
e investimento de países desenvolvidos nos países subdesenvolvi-
dos, sendo o Produto Interno Bruto (PIB) a questão determinante desse esforço econômico para o
cumprimento dos objetivos estabelecidos nas declarações mundiais.
Estas tecnologias políticas são possíveis devido à elaboração de fabricações organizadoras,
que podem ser compreendidas como narrativas capazes de explicar e cooptar corpos a uma ima-
gem ccional ou “fachada calculada” (BALL, 2002, p.16) sem a necessidade de expor os efeitos
reais que essa narrativa gera para os sujeitos e instituições envolvidas. A citacionalidade
12
destas
tecnologias corroboram com os efeitos imaginários que dizem produzir, uma vez que um ato de
fala capaz de enunciá-los faz referência desse discurso a si mesmo, criando precedentes que variam
de acordo com os contextos nos quais são produzidos (BUTLER, 1997).
Para dar um exemplo, as políticas frisam a importância de ambientes democráticos e da
formação de cidadãos quando, na realidade, a produção destas políticas acontece num período
em que a descentralização do Estado ocorre concomitantemente a estratégias de centralização
materializadas em Parcerias Público-Privado (PPP) (BALL, 2004) e de descentração do eu para os
sujeitos dessas políticas, acarretando em cidadãos-consumidores mais que em cidadãos-participantes
(BALL, 2013).
A disjunção entre enunciado e signicado é a condição da possibilidade de
rever o performativo, do performativo como repetição de sua própria instância,
uma repetição que é pela sua vez a reformulação. [...] A citacionalidade da
10 Um Estado biopolítico não nega o poder soberano, é antecedido por ele e pode recorrer à produção de corpos dó-
ceis quando garante o direito à vida (FOUCAULT, 2015).
11 Sobretudo pelo reconhecimento da Parceria Global como canal nanceiro.
12 Butler (1997) utiliza o conceito de citação para referir-se ao discurso de ódio; tomamos a liberdade de reformular
o uso original proposto pela autora.
204
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
performatividade produz esta possibilidade para agência e expropriação ao
mesmo tempo (BUTLER, 1997, p.87, tradução livre).
Com isto, Butler (1997) quer dizer que um Estado possui força discursiva trazida por sua
instância de representação das vontades do povo e do seu reconhecimento a essas vontades como
constituição das representações. Assim, o Estado age performativamente ao constranger ou per-
mitir determinados atos de fala para diminuir as condições de vida precária da população sob sua
responsabilidade. Butler (2018a) também propõe que o Estado é responsável pela precariedade
da vida de minorias sexuais ao patologizar e policiar sexualidades. As políticas oferecem, deste
ponto de vista, atos performativos para um Estado sobre os corpos da população.
Contudo, deve-se ter em mente que a performance de um Estado soberano na atualidade
ocorre com a substituição de um Estado provedor por um Estado avaliador, cuja função é manter
um “Estado forte” e “economia livre”: um Estado regulador de políticas neoliberais, entendidas
aqui como fabricações. Poderíamos, ainda, denominar este cenário de pós-soberano (BUTLER,
1997), já que diferentes centros de poder performam regulações. As exigências de lucro, concor-
rência e competição do mercado devem ser satisfeitas pelo gerencialismo e pela performatividade.
Neste ponto, a educação é requisitada como meio de alcançar os objetivos de mercado; é induzida
e reduzida a uma função estritamente econômica, sem qualquer autonomia para decidir sobre seu
currículo, incluindo temas transversais. A noção de educação é passiva diante de atividades eco-
nômicas, as quais enfatizam a formação do trabalhador (OFFE, 1990).
Estas características podem ser percebidas nas políticas globais quando o foco do currículo
está na alfabetização, na matemática, aprendizagens de línguas e de TICs: elementos básicos para
uma formação do trabalhador pós-moderno, pós-industrial ou plástico, em contraposição à pretensa
autenticidade dos sujeitos.
Por esta razão, concordamos com Ball (2004, p.1108) quando arma não ser mais possível
(..) ver as políticas educacionais apenas do ponto de vista do Estado-Nação:
a educação é um assunto de políticas regional e global e cada vez mais um
assunto de comércio internacional. A educação é, em vários sentidos, uma
oportunidade de negócios.
Este é o viés de análise que apresentamos para interpretar as oportunidades de educação
ao longo da vida presentes na Declaração de Incheon (2015a) são as contingências desta políti-
205
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
ca. As políticas globais passam a representar a “americanização da economia mundial” (BALL,
2004, p.1114). Será o gerencialismo outra tecnologia política capaz de incutir nos trabalhadores
e trabalhadoras os ideais de uma sociedade performativa. O prossionalismo é a meta do “herói
cultural” encarnado no gestor e se organiza por sistemas empresariais, exigências externas, obje-
tivos especícos e apelo à ordem. Neste meandro, a performatividade está orientada por rituais
13
e rotinas
14
: “A base de dados, a reunião de avaliação, a revisão anual, a redação de relatórios e a
candidatura a promoções, inspeções e comparação com pares estão em primeiro plano” (BALL,
2002, p.9), enquanto a ética e a função social da educação são reformulados e desvalorizados.
B. Currículo na Aprendizagem ao Longo da Vida
As tecnologias políticas da performatividade e do gerencialismo aliadas às concepções do
mercado competitivo induzem os prossionais da educação a uma relação particular com os sa-
beres curriculares. Na incerteza e instabilidade de seus resultados prossionais (provocados pela
responsabilização, avaliações de desempenho e comparações entre pares) as escolas são cooptadas
a compor uma sociedade de controle inuente sobre um “currículo moral oculto” (2004, p.1119)
que toma o autogerenciamento dos sujeitos e o incentivo para que sejam empreendedores de si
mesmos como uma oportunidade para relativizar os signicados de público e privado pelos novos
sentidos atribuídos à gestão pelo mercado.
As instâncias do público e do privado são trabalhadas por algumas feministas pelo viés da
visibilidade, como o faz Butler (2018a). Segundo Ball (2005, p.548), “em essência, a performati-
vidade é uma luta pela visibilidade”. Por sua vez, a identidade e a subjetividade constituem visi-
bilidades para Butler, sendo a performatividade um ato de materialização dos corpos, tornando-os
visíveis e passíveis de reconhecimento, consequência que pode ser percebida em Ball (2002; 2005;
2010) quando expõe na performatividade competitiva a fragilização da identidade prossional de
professoras/es preocupados com sua autenticidade e os efeitos do currículo para alunos/as, dos
quais resultam questionamentos, dúvidas e dilemas morais sobre sua atuação no ensino.
Quando estas recentes performatividades de prossionais da educação alteram práticas tra-
dicionais, espera-se modicações na vivência do currículo escolar pelos/as alunos/as, incorrendo
numa performatividade capaz de integrá-los na sociedade de controle para normalizar valores
13 “Pronunciamentos grandiloquentes e eventos espetaculares” (BALL, 2010, p.39).
14 “Registros, reuniões de comitês e força-tarefa, interações” (BALL, 2010, p.39).
206
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
éticos, econômicos e ontológicos que ela propõe. O currículo aliado ao conceito de ALV, exposto
anteriormente, oferece, todavia, compreensões sobre gênero e sexualidade que normatizam iden-
tidades nos domínios de uma heterossexualidade.
Políticas globais não são políticas de identidade, pois se sustentam num discurso biopolítico
de saúde e utilidade dos corpos para a educação, concepção que recobre os currículos formais locais,
como é possível perceber pelo desaparecimento do termo gênero no texto da BNCC. A autogerência
dessas políticas neoliberais é uma concepção distinta de público e privado daquela presente no
bordão “o pessoal é político” do feminismo, pois a primeira não discorre sobre as exclusões que
o público impõe aos cidadãos por não reconhecer valores privados em sua atuação, geralmente
masculinos, além de não fomentar equivalências entre experiências políticas individuais e coletivas.
Em acordo com a agenda pós-2015, a BNCC mantém o tema da sexualidade como exclu-
sividade da disciplina de Biologia, planejado para o 8º ano, isto é, será abordado apenas nos anos
nais do Ensino Fundamental. O conteúdo a ser abordado na sala de aula se refere às transformações
do corpo no período da puberdade, doenças sexualmente transmissíveis e a sexualidade humana
“(biológica, sociocultural, afetiva e ética)” (BRASIL, 2017, p.347).
A BNCC privilegia os termos sexualidade e sexo a gênero, esta última retirada do texto da
política por pressão de grupos religiosos conservadores, privilegiando uma perspectiva heterosse-
xual visto que são os estudos de gênero que denunciam e desconstroem o paradigma heterossexual/
homossexual, presente em políticas anteriores, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRA-
SIL, 1997) a partir da noção de orientação sexual e da menção explícita à homofobia, lesbofobia
e transfobia nas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013).
Num dos trechos mais sensíveis relativos à noção de gênero, transgurado por nós pela
palavra corpo, encontramos, ao nal, a perspectiva da sexualidade reprodutiva após uma longa
descrição ética:
Pretende-se que os estudantes, ao terminarem o Ensino Fundamental, estejam
aptos a compreender a organização e o funcionamento de seu corpo, assim
como a interpretar as modicações físicas e emocionais que acompanham a
adolescência e a reconhecer o impacto que elas podem ter na autoestima e na
segurança de seu próprio corpo. É também fundamental que tenham condições
de assumir o protagonismo na escolha de posicionamentos que representem
207
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
autocuidado com seu corpo e respeito com o corpo do outro na perspectiva do
cuidado integral à saúde física, mental, sexual e reprodutiva (BRASIL, 2017,
p.235).
Ao dessubstancializar as instâncias de atuação política em detrimento ao crescimento eco-
nômico, ao desenvolvimento e ao progresso do Estado-nação, tem-se novamente o setor privado
agindo como agente de constrangimento e coerção de espaços públicos, implicado nas formas de
gerir a vida de seus cidadãos. A educação apresenta-se aqui como um desses elementos de gerên-
cia da vida através de um currículo cujas questões de gênero e sexualidade estão marcadas por
“interesses reprodutivos” (BUTLER, 2018b) ou biologicismos, demonstradas nas preocupações
constantes com o ensino das temáticas sobre DSTs e gravidez precoce para manter os corpos de
alunas/as saudáveis e produtivos - além da proximidade destes temas com o sentimento de vergo-
nha, reavendo a história da palavra queer nos discursos de ódio contra mulheres, homossexuais e
populações negras (BUTLER, 1997; 2005).
Cunha e Lopes (2017, p.30) armam que na BNCC “o conhecimento torna-se também um
objeto a ser mensurado e avaliado, tomado como indicador da ‘boa’ qualidade da educação”, tra-
zendo uma concepção de unidade para tal conhecimento, comprometendo um currículo que possa
vislumbrar conhecimentos atrelados à diferença, caracterizados pela sua imprevisibilidade, falta de
controle e dispersão das regularidades curriculares. Em todo caso, para as autoras a BNCC assume
uma posição totalitária na formulação e elaboração de seu currículo, pois se fecha em si mesma.
C. Qualidade na Aprendizagem ao Longo da Vida
A aproximação das políticas globais com políticas comerciais encontra respaldo no termo
“paridade de gênero” no RMG (2015b), no qual a igualdade de gênero é medida pela quantidade
de matrículas realizadas nas instituições de ensino, sem qualquer questionamento sobre a função
social que essa instituição realiza sobre os valores que transmite ou sobre seus princípios éticos,
assumindo que o aumento de matrículas é sempre favorável ao desenvolvimento educacional.
Delimita-se, então, uma noção de qualidade em educação. Porém, este aumento de matrículas
é essencial para a qualicação do trabalhador (OFFE, 1990) e posterior ingresso no mercado de
trabalho de escala global.
208
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
Em seu Objetivo 5 – Paridade e igualdade de gênero, o RMG (2015b) apresenta progres-
sos no nível primário em 69% dos países, aumento na quantidade de matrículas de meninas em
comparação com os meninos
15
, maior probabilidade das meninas nunca realizarem matrículas em
relação aos meninos (48% contra 37%), maior probabilidade das meninas matriculadas chegarem
às séries nais enquanto os meninos abandonam a escola (26% contra 20%), além de um dado
especíco sobre a África Subsaariana: “Na Guiné e no Níger, em 2010, mais de 70% das meninas
mais pobres nunca frequentaram a educação primária, contra menos de 20% dos meninos mais
ricos” (UNESCO, 2015b, p.7).
As noções de público e privado foram e são constantemente discutidas no feminismo pela
posição subalterna das mulheres no lar e na frequência dos homens aos lugares públicos, prin-
cipalmente no que diz respeito ao trabalho. O impedimento das mulheres circularem livremente
por locais públicos gerou insatisfações demonstradas pelas ondas feministas ao reclamarem seus
direitos políticos como cidadãs (CABALLERO, 2016). O recorte do RMG (2015b) à educação das
meninas da África Subsaariana e do Oriente Médio deve, no entanto, ser entendida por meio dos
interesses econômicos de agências multilaterais em países subdesenvolvidos. Poder-se-ia dizer,
ainda, que são interesses de caráter notadamente econômico, já que o PIB aparece como principal
marcador nessas políticas globais.
16
Por isso Ball (2010, p. 39) arma que a performatividade é mais uxo do que estrutura: “o
uxo de demandas, expectativas e indicadores em constante mudança que nos fazem continuamente
responsáveis e constantemente registrados”, alterando a concepção foucaultiana de panopticismo de
certeza de vigilância para sua incerteza, o que provoca certa esquizofrenia coletiva de professores
que duvidam o tempo todo de suas competências, habilidades e até mesmo de sua formação, como
esperado pelo discurso da ALV.
A performatividade diz respeito ao “direito de aparecer, uma demanda corporal por um
conjunto de vidas mais visíveis” (BUTLER, 2018a, p.32), ou, em outra assertiva, “a performa-
tividade caracteriza primeiro, e acima de tudo, aquela característica dos enunciados linguísticos
15 “O número de países com menos de 90 meninas para cada 100 meninos matriculados na educação primária caiu de
33 para 16” (UNESCO, 2015b, p.7).
16 Com o avanço de governos ultraconservadores (ROLNIK, 2018), esse caráter economicista pode ser adotado ex-
plicitamente por um presidente da república quando os direitos de minorias sexuais são associados à ideia de “coita-
dismo” (GAÚCHAZH, 2019). Sintoma disto é a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Di-
versidade e Inclusão (SECADI), substituída pela Secretaria de Modalidades Especializadas em Educação (SEMESP)
pelo Decreto nº 9.465/2019, em uma estratégia deliberada para reorganizar gastos com políticas de inclusão.
209
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
que no momento de enunciação, faz alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência”
(2018a, p.36). Assim, a performatividade requer os atos de fala para uma articulação entre um
corpo e um gênero.
Para evitar voluntarismos e estruturalismos Butler (2005) põe o corpo em tensão ao propor
a regulação dos gêneros por representações, e a contingência aos erros que acompanham a mate-
rialização desses gêneros. A performatividade nutre-se, assim, de uma imprevisibilidade sobre a
recepção da norma comunicada. Butler (2018a), assim como Ball (2010), reconhece a autossuci-
ência que o neoliberalismo gera nos corpos de indivíduos, rearmando a precariedade na vida de
algumas populações, como as minorias sexuais, ao desalentá-las da possibilidade de formar alianças
pelos valores trazidos por essa doutrina econômica, proporcionando diferentes performatividades
públicas e privadas para os gêneros.
A ALV participa dessas performances se apresentada como uma “microtecnologia de si”:
atua sobre corpos e subjetividades (BALL, 2013). Seu efeito é a descentração do eu pela reeduca-
ção constante (pedagogização do conhecimento), na qual a experiência é descartável e não mais
cumulativa, promovendo a culpa, a incerteza e a instabilidade como sentimentos morais obrigató-
rios para atingir-se o indivíduo empreendedor (BALL, 2010; 2013). Disto resulta uma ontologia
do sujeito plástico em que mulheres são participantes ativas na educação dos lhos no esforço de
converter capital econômico em capital cultural, uma vez que o capital familiar não é suciente
para atender ao mercado em constante mudança.
17
Outro fator relevante é perceber como a feminização do magistério brasileiro atribui às pro-
fessoras mulheres uma relação direta entre cuidado materno e educação, principalmente na Educa-
ção Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental (VIANNA, 2018). Conforme a autora, quanto
mais próximo do Ensino Superior maior a tendência à masculinização do corpo de professores; os
gestores homens, porém, são numerosos em todos os níveis de ensino e seu acesso a essa carreira é
facilitada pela relação entre administração e burocracia com atributos masculinos, tais como razão,
objetividade e controle sobre as próprias emoções, o que traz alguma impessoalidade ao cargo.
17 Nesse esforço de reconversão, Ball (2013, p.149) observa que “empresas no Reino Unido, como a Companhias
do país, oferecem seminários noturnos por £45 por pessoa sobre tópicos como “Criando meninos” e “Criando meni-
nas””.
210
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
Ao compreender “os atos constitutivos não apenas como constitutivos da identidade do
ator, mas também como uma convincente ilusão, um objeto de crença” (BUTLER, 2018b, p.3,
itálico no original), a autora assume que a totalização de um discurso intensica nossa crença nele
para inscrevê-lo num corpo. A identidade de gênero é crença na estabilidade do eu pela repetição
estilizada de atos constitutivos. Assim, o encontro da política com seus “heróis culturais” provoca
uma relocalização desse discurso para o exercício prático de estilização dos atos de alunos/as.
Nestas condições, o gênero é vigiado e supervisionado por um princípio biopolítico inerente
aos direitos humanos. Porém, tal vigilância e supervisão se dão diferentemente na micropolítica
cotidiana, resultando numa tradução imperfeita entre o gênero nas políticas e as políticas estili-
zantes ou, para dizer de outra maneira, há uma imprecisão contingente entre as políticas do corpo
e as políticas no corpo. Corpos reproduzem situações históricas ao dramatizarem as biopolíticas
no próprio corpo, denotando diferentes contextos, estratégias e práticas para a corporalização das
políticas.
Neste sentido, se em Ball (2010; 2013) percebemos a performatividade agindo no sentido da
dessocialização das relações prossionais e educativas para um incentivo ao autointeresse, atitudes
egoístas e competições em várias esferas ao longo da vida
18
; em Butler (2018a) encontramos a per-
formatividade na materialização do corpo (e, portanto, do sexo) como uma resposta aos processos
de identicação, cujas lógicas entre o público e privado não se referem necessariamente às lógicas
de mercado, porém, quando vistas pela ótica do Estado, o gênero apresenta-se como matéria de
economia simbólica de produção de corpos sexuados em direção a uma economia de mercado.
Selecionamos as seguintes estratégias do RMG (2015b) para o combate à desigualdade de
gênero: estratégias integradas para a equidade de gênero - cujo destaque no texto recai sobre
as ações da ONU para Educação de Meninas; Ações para combater o HIV e a Aids - no qual as
abordagens mais amplas são creditadas aos “esforços globais pós-Dakar” (UNESCO, 2015, p.8)
para desenvolver uma “educação completa em sexualidade” num período de urgência; e Ambientes
escolares seguros, saudáveis, inclusivos e homogeneamente equipados –, menciona mais uma vez
18 A crise das relações sociais “autênticas”, como enuncia Ball (2005; 2010), está recongurada numa nova sociali-
zação que tem como princípio a plasticidade. Assim, para evitar uma naturalização conceitual sobre o termo sociali-
zação, assumimos a dessocialização como a desmontagem de antigos valores para a socialização (autenticidade), que
passam por uma nova conguração de socialização (plasticidade) que caracteriza a antiga socialização como dessoci-
alização porque não atende aos requisitos desta nova cultura de mercado.
211
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
o Marco de Dakar como uma contribuição para o alcance de “objetivos relacionados à equidade
de gênero e à boa qualidade da educação” (UNESCO, 2015b, p.10), também reconhecendo que “o
trabalho em âmbito global pouco contribuiu para ajudar os países a estabelecer ambientes saudáveis
de aprendizagem”, dada a “falta de foco” de algumas questões amplas (UNESCO, 2015b, p.10).
As recomendações para o pós-2015 são:
1. As escolas deveriam ser seguras, inclusivas e sensíveis a questões gênero,
com ensino e aprendizagem que empoderem os alunos e promovam
relações positivas de gênero.
2. Os recursos deveriam ser priorizados às comunidades em que as
desigualdades de gênero sejam mais evidentes (UNESCO, 2015b, p.34).
Como o documento não determina o que compreende por gênero, lançamos mão de artifícios
interpretativos, como a categoria sexo, para compreender que os sujeitos de direitos são constan-
temente tratados como meninos ou meninas, professoras ou professores e mulheres ou homens.
Nesta chave, gênero é sinônimo de sexo e não menciona sexualidade senão como uma doença
(vírus do HIV ou a AIDS).
O documento também não diferencia igualdade de gênero e paridade de gênero, salvo neste
seguinte trecho:
A igualdade de gênero é mais complexa do que a paridade de gênero
e mais difícil de ser mensurada, pois requer que se explore a qualidade das
experiências de meninas e meninos na sala de aula e na comunidade escolar,
suas conquistas nas instituições educacionais e suas aspirações para o futuro
(UNESCO, 2015b, p.35).
Portanto, o documento privilegia a abordagem quantitativa, insuciente para combater as
desigualdades de gênero (CABALLERO, 2016), uma vez que não menciona homossexualidades
e transexualidades ou mesmo as representações masculinas e femininas na educação e na escola,
responsáveis pelo cerceamento das meninas na esfera privada do lar e de tantos casamentos pre-
coces nas tradições familiares da África Subsaariana ou do Oriente Médio, comprometendo sua
noção de qualidade na educação.
Outro fator importante para a teoria política de Butler (2005; 2017) diz respeito à abjeção,
isto é, como a exclusão de representações de corpos que compõem as identidades dominantes é
212
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
necessária para criar fronteiras de visibilidade. Ao adotar certas representações, o que permite às
políticas globais agir sobre a população representada, a linha imaginária de separação entre os corpos
representados e não representáveis pode comprometer os objetivos de inclusão estabelecidos pela
política. A noção de público e privado trazido pelas políticas globais, lidas num período de forte
presença de atividades neoliberais na educação (mas não apenas nela), dilui as fronteiras entre o
público e o privado para estabelecer suas próprias representações como verdadeiras.
Se um programa político se propuser a transformar radicalmente a situação
social das mulheres, mas antes não levar em conta a construção social da
categoria “mulher” e se ser mulher, por denição, implica uma situação de
opressão – ele é inútil (BUTLER, 2018b, p.7).
Categorias como “mulher” ou “meninas” apresentam-se como universalismos nas políticas
mencionados anteriormente, diferindo apenas na nacionalidade, geograa e políticas destinadas
a diferentes grupos de mulheres que, aparentemente, possuem em comum uma essência não
questionada nestas políticas que as interpreta mulheres (BUTLER, 2017). A invariabilidade desta
categoria impõe um sentido de união e consistência a “mulheres”, por exemplo, necessária para
dar sentido às políticas a partir de contextos citacionais.
A reprodução da categoria de gênero atua em uma grande escala política
quando, por exemplo, as mulheres ingressam pela primeira vez em uma
prossão ou conquistam determinados direitos, ou quando são reconcebidas
pelo discurso jurídico e político de uma maneira signicativamente nova.
Mas a reprodução mais cotidiana da identidade genericada se por
meio de diferentes formas de atuação dos corpos em relação a expectativas
profundamente arraigadas ou sedimentadas de existência genericada. Em
outras palavras, uma sedimentação de normas de gênero produz o fenômeno
peculiar de um sexo natural, ou de uma verdadeira mulher, ou de uma série
de cções sociais prevalentes e imperativas, uma sedimentação que, ao longo
do tempo, produz um conjunto de estilos corporais que, de maneira reicada,
tomam a forma de uma conguração natural de corpos em sexos que existem
em uma relação binária uns com os outros (BUTLER, 2018b, p.8).
A conservação de um ideal de família nuclear é um fator de manutenção dessas naturaliza-
ções, ideal que pode ser reconstruído em políticas públicas. Na perspectiva foucaultiana, poder-
-se-ia com auxílio da história investigar como a burguesia no Ocidente, por conveniência, adota
o racismo biologicista no dispositivo de aliança no período vitoriano como alternativa para os
213
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
costumes sexuais: crianças onanistas, mulheres histéricas, pederastas e homossexuais serão alvos
da psiquiatria, da pedagogia e do direito (FOUCAULT, 2015).
Este dispositivo de sexualidade reproduz-se nas políticas quando não é mencionado como
questão, como faz o RMG (2015b, p.35): o “acesso pleno e equitativo de meninas e uma edu-
cação básica de boa qualidade” está resumido, portanto, no aumento do número de matrículas,
desempenho escolar, aprendizagem de línguas e contato com novas tecnologias. Por esta razão a
quinta recomendação (Mudar o foco da paridade para alcançar a igualdade de gênero) refere-se
aos materiais didáticos, programas de treinamento para professores e gestores e currículos “sen-
síveis
19
a questões de gênero” e que devem “incluir o ensino de saúde reprodutiva e sexualidade”
(UNESCO, 2015b, pp.39 e 53).
Nas políticas globais da agenda pós-2015, o reconhecimento parece existir apenas para
gêneros e sexualidades binárias, àquelas que não escapam da inteligibilidade da representação sus-
citada por uma estética normativa de pares complementares (BUTLER, 2005). A visibilidade está
compreendida no direito ao reconhecimento
20
, porém a competitividade de mercado está atrelada
ao não reconhecimento de alguns competidores; já para o gênero, “falar sobre o que é viver uma
vida humana já é admitir que modos humanos de viver estão atados a modos de vida não humanos
(BUTLER, 2018a, p.51).
21
É no enquadramento dos corpos a gêneros “humanizados” ou “huma-
nizantes” que as políticas globais podem ser lidas como biopolíticas, cujos aspectos totalitários
encontram-se em políticas nacionais, visto que o global se atualiza no local.
Conclusões
Nossa análise buscou captar duas formas de perceber performatividades na interpretação das
políticas globais de uma agenda pós-2015, como demonstrado pela Declaração de Incheon (2015a),
pelo RMG (2015b), pela BNCC (2017) e pela LDB (1996) - reatualizada no cenário global pela
Lei nº 13.632/2018. A atualização destas ideias está sujeita à imprevisibilidade de suas condições
de implementação nas escolas, levada adiante pelos “heróis culturais” destas políticas: os gestores
19 Cuja natureza dessa sensibilidade não é mencionada em momento algum,.
20 Para uma discussão sobre os efeitos psicológicos do processo de reconhecimento, ver Butler (2016).
21 Questão que nos coloca diante de como fazer (ou estranhar) um currículo queer em contextos de globalização
(LOURO, 2008).
214
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
escolares. As políticas curriculares deslocam-se no espaço, provocando ruídos em seus signos
globalizados: sua signicação é acompanhada de dessignicação e falta de sentido, que se com-
pletam nas relações geopolíticas que a política mobiliza e nas reconexões de uma globalização
em que tudo não está interligado com tudo.
As políticas globais não são políticas de identidades, no sentido de Butler (2017), porém,
para falar como Massey e Keynes (2004, p. 9) “o espaço [do qual decorre e onde ocorrem essas
políticas] é, desde o início, parcela integrante da constituição daquelas subjetividades políticas”,
o que nos permite ler as políticas globais como políticas locais, sendo as experiências globais tra-
duções de localidades políticas em redes de subjetividades. As políticas curriculares, como outras
políticas públicas (CAMPELLO, 2017; OLIVEIRA & CARVALHO, 2011; MILANEZI, 2011;
PIRES, 2011)
22
, podem fazer da identidade um princípio de ação política para o cumprimento de
direitos fundamentais pautados em espaços ao invés de tempos (como o progresso, o desenvolvi-
mento, o moderno, o avanço) quando público e privado não impedem as “assembleias de corpos”
(BUTLER, 2018a), situações em que abjeção e normalidade são produzidos simultaneamente.
O local, particularidade do global que pode compô-lo ou não (e mesmo quando isto ocorre
não se igualam), é alvo de um corpo temporalizado pela ideia de desenvolvimento normal, de ciclos
na história da humanidade e de natureza comportamental. As performatividades de Ball (2001)
e Butler (2017) contribuem para denunciar a produção e normatização dos corpos que recorrem
ao pensamento jurídico do direito soberano para instaurar normas nos territórios (FOUCAULT,
2015), para as quais a racionalidade, a objetividade e a cognição (ideais masculinizados) presen-
tes no conceito exível de ALV na agenda pós-2015 para a educação apresenta-se também pela
lógica da binaridade e do heterossexismo ao não contraporem o “modelo expressivo do gênero”,
responsável por estruturar crenças de um eu estável, individual e pré-discursivo no lugar de
representá-las como estruturas de ontologias insucientes para retratar as cções performativas
do gênero (BUTLER, 2018b).
22 Duvidamos das políticas para duvidar do papel do Estado ao iniciar nosso processo investigativo. Não podemos,
porém, armar rigorosamente se outras políticas que não aquelas aqui apresentadas ou políticas educacionais, de for-
ma geral, tenham função biopolítica. Cada caso deve ser investigado em suas particularidades históricas e geográcas
para que nuances de tradução das políticas possam ser percebidas, como buscamos proceder aqui na “glocalização”
do gênero em políticas.
215
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
Finalmente, salientamos que políticas globais (experiências locais globalizados) entendidas,
sobretudo, pelos uxos da performatividade competitiva
23
(BALL, 2005) podem exibir estruturas
da performatividade de gênero (BUTLER, 2017) que nos permitem lê-las como políticas sociais
do sexo, isto é, estratégias biopolíticas para controlar e regular a população através de seu gênero,
confrontando suas liberdades individuais em virtude do mercado e/ou sacralização do Estado,
ambas correntes nas políticas educacionais do Brasil.
Agradecimentos
Agradecemos à CAPES pela concessão da bolsa que tornou possível a elaboração deste
artigo, fruto de reexões da pesquisa de mestrado em andamento no PPGE/Unicamp: “Corpo e
gênero na escola: o trabalho dos gestores escolares num campo de disputas”. Também agradecemos
as leituras e correções generosas de Mirele Corrêa e Hugo Romano Mariano.
REFERÊNCIAS
BALL, Stephen. Aprendizagem ao longo da vida, subjetividade e a sociedade totalmente peda-
gogizada. Educação, Porto Alegre, v.36, n.2, p.144-155, maio-ago. 2013.
__________. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo
sem Fronteiras, v.1, n.2, p.99-116, jul.-dez., 2001.
__________. Education reform: a critical and post-structural approach. Buckingham; Philadel-
phia, PA: Open University Prees, 1994.
__________. Performatividade, privatização e o pós-estado do bem-estar. Educação & Socie-
dade, Campinas, v.25, n.89, p.1105-1126, set.-dez. 2004.
__________. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade
performativa. Educação & Realidade, n.35, n.2, p.37-55, maio-ago. 2010.
__________. Prossionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, v.35,
n.126, p.539-564, set.-dez. 2005.
23 Para diferenciar a performatividade evocada por Stephan Ball daquela elaborada por Judith Butler (e evitar con-
fusões) utilizamos “performatividade competitiva” em contraposição à “performatividade de gênero”, caso contrário
deveríamos utilizar “cultura da performatividade” para explicar o processo de subjetivação que decorre dos encontros
entre educação e mercado, porém, a “performatividade de gênero”, a nosso ver, poderia ser classicada como uma
“cultura da performatividade” em sentido abrangente ao subjetivar as identidades sexuais.
216
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
__________. Reformar escolas/reformar professores e os terrores da performatividade. Revista
Portuguesa de Educação, Braga (Portugal), v.15, n.2, p.3-23, 2002.
__________. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal
das políticas educacionais e da pesquisa em política educacionail. In: Políticas educacionais:
questões e dilemas. Stephen Ball e Jefferson Mainardes (Orgs.). São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Decreto nº 9.465, de 2 de Janeiro de 2019. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro
Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Conança do Ministério da Educação,
remaneja cargos em comissão e funções de conança e transforma cargos em comissão do Gru-
po-Direção e Assessoramento Superiores – DAS e Funções Comissionadas do Poder Executivo –
FCPE. Publicado em: 02/01/2010. Edição
__________. Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação da Educação. Brasília:
UNESCO, PNUD, UNFPA, UNHCR, UNICEF, ONU Mulheres, Banco Mundial, ILO, 2016.
__________. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Câmara dos Deputados,
Edições Câmara, 1996.
__________. Lei nº 13.632, de 6 de Março de 2018. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de
1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a educação e aprendi-
zagem ao longo da vida. Presidência da República. Casa Civil. Subchea para Assuntos Jurídicos.
2018.
__________. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum cur-
ricular. Brasília, DF, 2017.
__________. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Conselho Nacional da Educação. Diretrizes
Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
__________. Secretaria de Governo da Presidência da República, Ministério do Planejamento,
Desenvolvimento e Gestão. Relatório Nacional Voluntário sobre os Objetivos de Desenvolvimen-
to Sustentável, 2017.
__________. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralida-
de cultural, orientação sexual. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BUTLER, Judith. Anseio de reconhecimento. Equatorial, v.3, n.5, p.185-207, 2016.
__________. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de
assembleia. Tradução: Fernando Siqueira Miguens; revisão técnica: Carla Rodrigues. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2018..
217
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
__________. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”.
Buenos Aires: Paidós, 2005.
__________. Excitable speech: a politics of the performative. New York & London: Routledge,
1997.
__________. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomeno-
logia e teoria feminista. Cadernos de leituras, n.78, jul. 2018b.
__________. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2017.
CABALLERO, Alan Isaac Mendes Caballero. A desigualdade entre os sexos pelas perspecti-
vas de Pierre Bourdieu e Simone de Beauvoir. Trabalho de Conclusão de Curso (Monograa).
Campinas, SP: [s.n.], 2016. 128 p.
CAMPELLO, Tereza. Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que cam para trás.
Brasil: Clacso Flacso, Agenda Igualdade, 2017.
CASTELLS, Manuel. O m do patriarcalismo: movimentos sociais, família e sexualida-
de na era da informação. In: O poder da identidade: volume II. Tradução: Klaus Brandini
Gerhardt. São Paulo: Paz & Terra, 2008.
CUNHA, Érika Virgílio Rodrigues da Cunha; LOPES, Alice Casimiro. Base Nacional Comum
Curricular no Brasil: Regularidade na Dispersão. Investigação Qualitativa, v.2, n.2, p.23-35,
2017.
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. 2. Ed. Paz e Terra: São
Paulo, 2015.
__________. Microfísica do poder. Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro, RJ:
Graal, 1979.
__________. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979).
Tradução: Eduardo Brandão; revisão da tradução: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
GAÚCHAZH. Governo Bolsonaro extinguirá secretaria do MEC voltada a promover di-
versidade. Educação e Trabalho, Mudança na Educação, 02/01/2019. Disponível em: <https://
gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2019/01/governo-bolsonaro-extinguira-
secretaria-do-mec-voltada-a-promover-diversidade-cjqfd5a060ox301pis9vbergc.html >. Acesso
em: 20/02/2019.
218
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Questões de gênero na aprendizagem ao longo da vida
HAYEK, Friedrich A. von. O caminho da servidão. São Paulo, SP: Vide Editorial: Instituto
Liberal, 2013.
HOFLING, Heloísa de Mattos. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos CEDES, vol.21,
n.55, pp.30-41, 2001.
LAVAL, Christian. A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino públi-
co. Tradução: Maria Luiz M. Carvalho e Silva. Londrina: Editora Planta, 2004.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições,
v.19, n.2, 17-23, 2008.
LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso. Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. São Paulo, SP: EDU, 1986.
MAINARDES, Jefferson. Uma abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para
a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, Campinas, v.27, n.94, p.47-69,
jan.-abr. 2006.
MASSEY, Doreen; KEYNES, Milton. Filosoa e política da espacialidade: algumas conside-
rações. GEOgraphia, ano 6, n.12, 2004.
MILANEZI, Jaciane. Silêncio: reagindo à saúde da população negra em burocracias do
SUS. In: Boletim de Análise Político-Institucional/ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada -
n.1, Brasília: Ipea, 2011.
MORAES, Reginaldo. Liberalismo e neoliberalismo – uma introdução comparativa. Primei-
ra Versão, Campinas, n.73, p.1-30, 1998.
OFEE, Claus. Sistema educacional, sistema ocupacional e política de educação: contribui-
ção à determinação das funções sociais do sistema educacional. Educação & Sociedade,
n.35, p.9-59, abr. 1990.
OLIVEIRA, Marina Meira de; CARVALHO, Cynthia Paes de. A implementação de uma polí-
tica educacional de combate ao fracasso escolar: percepções e ações de agentes implemen-
tadores de uma escola municipal no Rio de Janeiro. In: Boletim de Análise Político-Instituci-
onal/ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - n.1, Brasília: Ipea, 2011
PIRES, Roberto. Implementando desigualdades? Introdução a uma agenda de pesquisa sobre
agentes estatais, representações sociais e (re)produção de desigualdades. In: Boletim de Análise
Político-Institucional/ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - n.1, Brasília: Ipea, 2011.
219
Salvador, v.5, n.1 p.193-219, jan/abr. 2020
Antonio Carlos Dias Junior e Alan Caballero
REIS, Toni. Gênero e LGBTfobia na educação. In: A ideologia do movimento Escola Sem
Partido: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação
(Org.). São Paulo: Ação Educativa, 2016.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições,
2018.
UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Bási-
cas de Aprendizagem, Jomtien, 1990. Brasília: UNESCO. 1998.
__________. Declaração de Incheon - Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade
inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. Fórum Mundial de Educação:
UNESCO, Ministério da Educação da República da Coréia, UNDP, UNFPA, UNICEF, ONU
Mulheres, UNHCR, Banco Mundial, 2015a.
__________. Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos 2000-2015: progres-
sos e desaos. Relatório Conciso. Coordenação e revisão: Setor de Educação da Representação
da UNESCO no Brasil. Tradução: Marina Mendes. 2015b.
__________. Educação para Todos: o compromisso de Dakar. Brasília: UNESCO, CONSED,
Ação Educativa, 2001.
VIANNA, Cláudia. Políticas de educação, gênero e diversidade sexual: breve história de
lutas, danos e resistências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
Recebido em: 01 de outubro de 2020.
Avaliado em: 20 de março de 2020.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.