Rosemary Lapa Oliveira
171
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
LEITURA E TRABALHO DOCENTE
NA ESCOLA: ontem e hoje
ROSEMARY LAPA OLIVEIRA
Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pós-doutora e Doutora em Educação, Mestre em
Linguística. Professora Titular do Departamento de Educação da UNEB - Campus l Salvador.
Professora do Programa de Pós graduação em Educação e Contemporaneidade. Líder do Grupo
de pesquisa e estudo em leitura e contação de histórias GPELCH/UNEB/PPGEDUC e membro
de grupos de pesquisa FORMACCE-INFÂNCIA/UNEB. ORCID: 0000-0003-1165-8265.
E-mail: rosy.lapa@gmail.com
172
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
LEITURA E TRABALHO DOCENTE NA ESCOLA: ontem e hoje
O presente artigo tem por objetivo provocar uma discussão acerca das ações pedagógicas que envolvem
as aulas de leitura no ensino médio das escolas de educação básica no Brasil, focando-se na produção
de leitura e como, diante das políticas brasileiras sobre a formação docente, os professores continuam
apresentando uma pedagogia da leitura que é obsoleta diante das demandas sociais e não alcança as
expectativas dos textos do Governo Federal sobre a formação para o letramento. O percurso de construção
do texto considerou um breve apanhado histórico, no qual se historicia a relação que a escola vem
mantendo com a leitura, através de evidências documentais e literias, culminando com dados empíricos
de pesquisa realizada em uma escola de ensino médio da capital baiana no momento em que o livro didático
é implantado no ensino médio. Assim, foram trazidos depoimentos de docentes e discentes relatando suas
experiências com o ensino aprendizagem de leitura na escola. Os resultados apontam que, embora tenha
havido uma melhora nos resultados de avaliações externas com relação à leitura, muito esforço ainda
precisará ser dispensado para que a formação do leitor considere a autonomia, a situacionalidade e a
intercriticidade, adjetivos considerados primordiais para a constituição de sujeitos de leitura.
Palavras-chave: Leitura. Políticas Educacionais. Formação Docente. Letramento. Ensino.
LECTURA Y TRABAJO DOCENTE EN LA ESCUELA: ayer y hoy
El presente artículo tiene por objetivo provocar una discusión acerca de las acciones pedagógicas que
involucran las clases de lectura en la enseñanza media de las escuelas de educación básica en Brasil,
enfocándose en la producción de lectura y cómo, frente a las políticas brasileñas sobre la formación
docente , los profesores continúan presentando una pedagogía de la lectura que es obsoleta ante las
demandas sociales y no alcanza las expectativas de los textos del Gobierno Federal sobre la formación para
el letramento. El recorrido de construcción del texto consideró un breve recuento histórico, en el que se
historiza la relación que la escuela viene manteniendo con la lectura, a través de evidencias documentales
y literarias, culminando con datos empíricos de investigación realizada en una escuela de enseñanza media
de la capital baiana en el momento en que el libro didáctico es implantado en la enseñanza media. Así,
se trajeron testimonios de docentes y discentes relatando sus experiencias con la enseñanza aprendizaje
de lectura en la escuela. Los resultados apuntan que, aunque ha habido una mejora en los resultados de
evaluaciones externas con relación a la lectura, mucho esfuerzo aún necesitará ser dispensado para que la
formación del lector considere la autonomía, la situacionalidad y la intercricidad, adjetivos considerados
primordiales para la constitución de sujetos de lectura.
Palabras Clave: Lectura. Políticas Educativas. Formación Docente. Alfabetización. Educación.
Rosemary Lapa Oliveira
173
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
READING AND TEACHING WORK IN SCHOOL: yesterday and today
This article aims to provoke a discussion about the pedagogical actions that involve reading classes in
high school of basic education schools in Brazil. It is focusing on the reading production, and how, in
front of the Brazilian policies on teacher training, teachers continue to show a obsolete reading pedagogy
in the face of social demands and does not reach the expectations of the texts of the Federal Government
on training for literacy. The route of the construction of this text considered a brief historical overview,
in which Historicizing the relationship the school has maintained with reading through documentary and
literary evidence, culminating with empirical research data held in a high school in Salvador/Bahia at the
time the textbook is deployed in high school. Thus, teachers and students were brought testimonials about
their experiences with the reading teaching and learning at school. The results shows that although there
has been an improvement in the results of external evaluations in relation to reading, much effort will
still need to be released so that the reader’s training consider autonomy, situatedness and intercriticality,
adjectives considered overriding for the development of readings subjects..
Keywords: Reading. Educational Policies. Teacher Training. Literacy. Education.
174
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
LEITURA E TRABALHO DOCENTE NA ESCOLA: ontem e hoje
LDBEN nº9394/96, Art. 35. O ensino médio, etapa nal da educação básica,
com duração mínima de três anos, terá como nalidades:
I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino
fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com exibilidade a
novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação
ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV - a compreensão dos fundamentos cientíco-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
Originalmente voltado para a formação prossional, seja preparando para o ensino superior,
seja prossionalizando, o Ensino Médio (EM), nos anos 1960 a 1980, servia a um mundo do traba-
lho de estrutura taylorista-fordista própria das linhas de montagem (MAFRA, 2003), isso, porque,
naquele momento, havia uma dualidade: o educando optava por fazer um curso prossionalizante
ou continuar os estudos preparatórios para os exames vestibulares. Naquele cenário, considerando
o grande desenvolvimento da industrialização no Brasil, a política educacional vigente priorizou a
formação, no EM, de prossionais capazes de utilizar maquinarias e dirigir processos de produção.
Hoje, as relações de trabalho têm mudado e as consequências dessas mudanças podem ser percebidas
na preocupação de órgãos internacionais, e de cada nação de per si, em investir numa educação que
atenda ao novo mercado, cumprindo o que versa a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), um mercado regido pelas novas tecnologias que exigem uma formação não de acúmulo
de conhecimento, mas de “capacidade de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las,
capacidade de aprender, criar, formular, ao invés do simples exercício de memorização” (BRASIL,
2002, p.16), ou seja, utilizar os conhecimentos de forma autônoma e criativa.
Uma das primeiras medidas governamentais, no sentido de adaptar-se a essa nova necessidade
do mercado de trabalho, foi tomada a partir da LDBEN – Lei nº 9.394/96, inserindo, pela primeira
vez na história da educação no Brasil, o EM na educação básica, conforme vimos na epígrafe, a
lei obedece ao exposto na Constituição de 1988 que já pronunciava essa concepção, quando, no
Rosemary Lapa Oliveira
175
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
inciso II do Art. 208, garantia como dever do Estado a progressiva extensão da obrigatoriedade e
gratuidade ao ensino médio. Assim, o EM passou a preparar não só para o mercado de trabalho,
o que provocou o fechamento da maioria dos cursos prossionalizantes, mas para a continuação
dos estudos, tornando o EM propedêutico, visando prioritariamente a formação em nível superior,
universitária. No entanto, essa concepção, atualmente, está sendo objeto de revisão, através dos
decretos 2.208/97 e 5.154 que trazem o conceito de ensino médio integrado (BAHIA, 2006), uma
vez que a formação em nível superior não supre a necessidade do mercado de trabalho de mão de
obra técnica qualicada.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), embora sejam alvo
de críticas, por, principalmente, apresentar-se como um documento prescritivo e que dispensou a
participação dos prossionais que atuam em sala de aula, será trazido para discussão porque todas as
ações avaliativas e de interferência pedagógica na escola pública fazem referência ou alusão a esse
documento. Nele, a linguagem é considerada “como a capacidade humana de articular signicados
coletivos e compartilhá-los” (BRASIL, 2002, p. 05) e toma uma dimensão transdisciplinar, tendo
papel importante na nova abordagem pedagógica proposta pela reformulação da LDBEN, a qual
visa desenvolver competências e habilidades que forneçam aos jovens egressos do EM “meios
para progredir no trabalho e nos estudos” (Art.22, Lei nº. 9.394/96).
Inserida nesse contexto, a leitura tem se constituído, nas últimas décadas, uma preocupa-
ção como componente na formação educacional dos jovens egressos do EM e muitas pesquisas
têm sido feitas a esse respeito. Isso porque avaliações internas e externas ao ambiente escolar,
promovidas pelo Governo Federal, têm apontado para uma deciência na competência leitora dos
jovens egressos do EM, seja na forma do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes
(PISA), um programa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
organização não governamental originária da União Européia, cujo objetivo declarado é auxiliar
os governos-membros no desenvolvimento de melhores políticas nas áreas econômicas e sociais,
a qual trienalmente avalia os alunos na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da
escolaridade básica obrigatória na maioria dos países participantes desse projeto; seja do Sistema
de Avaliação do Ensino Básico (SAEB). Nascido no âmbito das discussões internacionais, sur-
gidas no nal da década de 1980, sobre a qualidade de ensino, através de pesquisa desenvolvida
pelo Instituto Internacional de Avaliação da Educação, com sede na Holanda (embrião do PISA).
176
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
Conforme estudo desenvolvido por Batista e Rojo (2003) sabe-se que esses programas são
sistemas de avaliação que visam medir os resultados do ensino básico em termos de construção
de capacidades e competências, conforme evidenciado no site ocial do Inep:
O objetivo do Pisa é produzir indicadores que contribuam para a discussão da
qualidade da educação nos países participantes, de modo a subsidiar políticas
de melhoria do ensino básico. A avaliação procura vericar até que ponto as
escolas de cada país participante estão preparando seus jovens para exercer o
papel de cidadãos na sociedade contemporânea. (http://portal.inep.gov.br/pisa-
programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos Acesso em 25ago2014)
Conforme percebe-se no objetivo declarado acima, esses tipos de avaliações têm o objetivo
de transformar a escola em empresa, sob a inspiração do programa de qualidade total no trabalho,
inclusive prevendo locação de maiores recursos para os estabelecimentos escolares que tiverem
melhores resultados, estabelecendo um ranking. Embora a teoria traga uma proposta de avaliação do
desempenho escolar, na prática, o que se percebe é que esse ranking tira muito seu caráter educativo.
De qualquer modo, os resultados, de um modo geral, têm apontado para problemas nas capa-
cidades e competências leitoras dos jovens brasileiros. Embora os últimos resultados apontem para
aumento das notas, elas ainda não reetem uma situação de leitura muito confortável, colocando
o Brasil em 55º lugar entre os 65 países participantes, conforme site ocial do Inep. Isto signica
dizer, à luz das concepções norteadoras de tais programas que,
Algumas atividades nesse nível requerem ao leitor localizar uma ou mais
informações, que podem precisar de inferências e de condições variadas.
Outras requerem reconhecer a ideia central de um texto, compreender relações
ou construir signicados dentro de um fragmento limitado do texto quando
a informação não é evidente e o leitor deve realizar pequenas inferências.
Atividades nesse nível podem incluir comparações ou contrastes baseados em
um único elemento do texto. Atividades típicas de reexão neste nível exigem
que os leitores realizem comparações ou várias conexões entre o texto e seus
conhecimentos, obtidos pela experiência pessoal ou atitudes.
1
Por esse motivo, a leitura tem se tornado uma preocupação constante tanto nos
meios acadêmicos, quanto nos órgãos de educação do governo brasileiro. Para entender um
1 http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/marcos_referenciais/2013/matriz_avaliacao_leitura.pdf Aces-
so em 25ago2014.
Rosemary Lapa Oliveira
177
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
pouco o que acontece hoje, nas escolas, no que tange à leitura, vejamos, a princípio, o que
nos diz a história, depois o que os documentos ociais falam sobre isso. Permeando estes
discursos, teremos os depoimentos recolhidos em pesquisa de mestrado (CAMPINHO
2008).
Orlandi (1997) defende que signicar é da ordem do humano, constituindo-o.
Para essa autora, há uma injunção à interpretação, ou seja, tudo tem de fazer sentido, seja
ele qualquer que seja, pois o homem se constitui através de sua relação com o simbólico.
Sendo assim, o simbólico de que é constituída a linguagem, é inerente ao ser humano
e, por isso, só sabemos ser pela linguagem. A leitura, sendo constituída de símbolos,
representação simbólica de seres humanos no mundo, faz parte de nosso dia-a-dia de forma
tão intensa que acabamos acreditando ser algo natural e que não necessitaria de qualquer
problematização ou reexão. Assim, tendemos a pensar que formar leitores é fazer com
que nossos alunos e alunas sejam capazes de ler e ponto. E por muito tempo, a escola se
ancorou nessa ideia. Essa certeza, porém, deixa de existir ao se observar o que outros
professores zeram em outros momentos da história do ensino da leitura. Nesse caso,
percebe-se que não se entendia a formação de leitores do mesmo modo que se entende
hoje, pois as nalidades que hoje são atribuídas ao ensino da leitura eram diferentes e,
muitas vezes, quando adotamos certas práticas e metodologias para o aprendizado da
leitura, damos continuidade a antigas concepções de formação de leitores, com as quais
usualmente discordamos.
No nal do século XIX e no início de XX, a expansão da escolarização, no Brasil, deu-se
gradativamente, tornando-se uma das metas do governo republicano, instalado em 1899. Várias
reformas de ensino começaram a ser propostas e novos métodos e teorias educacionais passaram
a ser difundidos. Apesar dessas iniciativas, muitas vezes a escola, em seu cotidiano, continuava
muito semelhante ao que havia sido para as gerações anteriores: espaços mal iluminados, mobi-
liário precário, professores mal remunerados e, muitas vezes, improvisados faziam parte do coti-
178
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
diano escolar. Um cenário ainda presente em várias escolas brasileiras, a despeito das políticas de
formação em serviço implantadas pelo Governo Federal a partir da década de 90 do século XX.
Naquela época, os castigos físicos norteavam a ação escolar e estudantes, todos na mesma
sala, eram agrupados pelo nível de instrução que possuíam. Essa medida era dada pelo livro didático
(LD), através do nível de leitura em que cada um se encontrava. O professor não dava aulas, como
hoje estamos acostumados a pensar, mas tomava a lição de cada um dos alunos, fazendo-os ler em
voz alta. O processo de tomar a lição consistia em o docente escolher e indicar antecipadamente
um trecho de um texto para que o discente zesse a leitura em voz alta diante da turma. Portanto a
leitura, parece, estava ligada à decodicação do código vocabular, à fonética e prosódia. Aprendia-
-se a ler, na escola, para mostrar essa leitura em público.
A oferta de leitura na escola era muito restrita, geralmente ligada ao LD, o qual trazia, modo
geral, apenas textos canônicos, de autores já mortos e, inicialmente, na sua maioria, de autores
portugueses. Os objetos disponíveis para a leitura, não só na escola, mas nas diversas instâncias
sociais, eram raros e poucos eram os lugares onde se podiam adquirir esses objetos, pois bibliote-
cas e livrarias só existiam nas cidades mais populosas. Por conta disso e aliado ao fato de poucas
pessoas frequentarem a escola, havia poucos leitores.
Graciliano Ramos, em Infância, narrativa autobiográca de sua meninice na virada do
século XIX para o século XX, conta que sentia diculdades para entender as lições, e o livro da
escola chegava a lhe provocar náuseas. As horas de leitura eram, para o menino, horas de tortura.
O mesmo menino que, depois de entrar em contato com algumas obras literárias fora da escola,
passou a buscar com ânsia e prazer outros objetos de leitura na pequena cidade em que morava,
no sertão pernambucano. Havia se tornado leitor, a despeito das práticas escolares, simplesmente
por ter acesso aos livros.
Provavelmente a leitura tenha provocado náuseas no pequeno Graciliano por ter uma lin-
guagem fora de seu tempo, pois é tradição entre os compêndios, transcrever os textos conforme
os autores o escreveram em seu tempo, muitas vezes tão atemporal que torna a “linguagem mais
complexa e a leitura difícil” conforme chama atenção um estudante do ensino médio, em depoimen-
to colhido para compor corpus de trabalho de pesquisa de mestrado (CAMPINHO, 2008). Sobre
isso, observa-se que nos livros do EM, por exemplo, é comum o trabalho com textos da poesia
Rosemary Lapa Oliveira
179
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
trovadoresca, do Barroco e do Arcadismo, todos esses com a linguagem de época preservada. In-
dependente de entrar na recente discussão acerca da tradução de textos clássicos para a linguagem
atual, esses textos eram escritos em uma língua que ainda não havia sofrido as regulações que
ocorreram a partir do século XVIII, daí um estranhamento bem maior.
José Lins do Rego, em Doidinho, romance autobiográco que narra sua vivência em um
internato no início do século, registra momentos de angústia ao ler para o seu professor as lições
do livro escolar. Mas, apesar do sofrimento que marcou, no geral, a sua relação com os objetos
de leitura escolares, o futuro escritor confessa a ampliação de horizontes proporcionada por eles,
fazendo-o conhecer outros mundos e a relativizar o seu. Em alguns casos, a leitura também pro-
vocava prazer, apesar das práticas escolares não terem essa intenção e, de modo geral, a relação
entre leitura e prazer ser vista como danosa.
As oportunidades de leitura escolares tinham em vista formar leitores não propriamente para
desenvolver as competências e usos da leitura, mas antes, provavelmente, o que se buscava na
formação de leitores era a transmissão de conteúdos instrutivos, em geograa, história, ciências e
habilidades básicas de leitura e escrita e das regras ortográcas do Português, além da transmissão
de regras e modelos de comportamento vigentes na época.
Aos poucos, a sociedade começou a se tornar mais complexa e as demandas em torno da
escolarização aumentaram signicativamente. Entre as décadas de 1920 e 1950 mais postos de
trabalho surgiram, outros costumes culturais foram adotados: a instrução e a educação passaram a
ser vistas como necessárias ao desenvolvimento econômico e cultural do país e um dos signos da
civilidade. Nesse novo cenário, várias reformas de ensino foram empreendidas, tentando mudar o
triste marco de o Brasil chegar ao século XX com mais de 80% da população analfabeta. Durante
as reformas, a rede pública de ensino expandiu-se enormemente. Novos métodos de ensino foram
discutidos no país, sob a forte inuência do movimento da Escola Nova. Novos modos de ler e
inovadores papéis passaram a ser atribuídos à leitura na escola. A leitura silenciosa, por exemplo,
passou a ser prescrita não só na escola, mas em outras instâncias da sociedade e a cada dia lia-se
menos coletiva e oralmente.
Com a progressiva introdução da leitura silenciosa e rápida, da busca do signicado do texto,
em detrimento da memorização do texto e de seus conteúdos, antes valorizados, com o progressivo
180
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
abandono da doutrinação moral e ideológica e a progressiva introdução de novos gêneros de textos
e de impressos nas salas de aula, essas práticas e objetos de leitura restritos foram gradualmente
sendo ampliados. No entanto, o que se via era ainda uma canonização do texto e do autor, “uma
concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de
suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto – lógico – do pensamento do autor
(...)” (KOCH, 2003, p. 16). Essa concepção preconiza um leitor passivo ao qual cabe captar a
representação mental, juntamente com as intenções do produtor do texto.
O saldo positivo, até aqui, é que o público leitor cresceu e se diversicou. Mas, apesar de
todo esse movimento na produção intelectual sobre a leitura escolar, o dia-a-dia da maioria das
escolas continuava sem muitas inovações: os alunos continuavam temerosos em ler as lições, ain-
da tomadas em voz alta, e a angústia e o tédio continuavam a marcar a sua relação com a leitura
prescrita pela escola.
Em muitas escolas, alguns objetos de leitura chegaram a ser proibidos - como as histórias
em quadrinhos, que fascinaram crianças e jovens dos anos 1930 e 1940. No entanto, a despeito da
proibição, da censura, havia - e ainda hoje há - uma grande circulação de objetos de leitura entre
os alunos, independente do que a escola prescreve.
Entre as décadas de 1950 e 1970, cada vez mais se desenvolviam métodos alternativos de
ensino: surgiram as escolas experimentais e a ideia de um ensino centrado no aluno e nas suas
necessidades. A rede pública de ensino se expandia de modo muito rápido: cada vez mais as
camadas populares ingressavam na escola. Porém, muitas escolas continuaram a adotar antigos
comportamentos e métodos, tornando desagradáveis e temidos os momentos em que as práticas
de leitura se davam. Nesse período, aumentaram também os meios de acesso à leitura: bibliotecas
populares, inclusive ambulantes, foram criadas em muitas cidades do país e o número de livrarias
também aumentou signicativamente.
A partir década de 1970, há uma necessidade de atualização do conteúdo, cada vez mais
rápida, por conta do desenvolvimento de pesquisas que modicam o conhecimento pedagógico
e do ritmo da vida social que se modicou muito com a popularização da mídia jornalística pela
televisão. Com uma produção cada vez maior e mais diversicada, as obras destinadas aos leitores
Rosemary Lapa Oliveira
181
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
e leitoras infanto-juvenis passam a fazer parte, ao lado dos livros de leitura, das atividades de leitura
escolar: esse tipo de literatura também se escolariza. A escolarização do texto é aqui entendida
como o controle exercido pela escola sobre o que e como se deve ler. Nesse sentido, o texto sai de
seu contexto de circulação e se presta a objetivos meramente didáticos, desconsiderando-se sua
estética e características de gênero.
Mais recentemente, e a cada dia de maneira mais intensa, procura-se tornar presentes, nas
escolas, os usos sociais da língua escrita, na diversidade dos modos de ler e na diversidade dos
gêneros e dos portadores ou suportes de textos. O livro didático é colocado em xeque pelo emprego
do jornal, do livro, da revista e de todo um conjunto de textos cuja presença era proibida na escola:
quadrinhos, rótulos, listas, quadros e tabelas, placas, publicidade. Ao lado disso, livros e artigos
têm surgido, buscando auxiliar as professoras na tarefa de tornar seus alunos e alunas, leitores e
leitoras. Cada vez mais fala-se na alegria de ler, no prazer provocado pela leitura.
Estudos e pesquisas que procuram analisar o cotidiano da escola - em seu passado e em seu
presente - mostram que, a despeito de todos esses fatores de mudança e transformação, as práticas
escolares ainda hoje tendem a restringir fortemente a oferta de leitura e a formação de leitores.
Esses estudos indicam que os professores e as professoras - mesmo numa época de diversicação
da produção editorial brasileira - tendem a selecionar textos que evidenciem uma forte preocupação
com a formação moral e ideológica de seus alunos ou com o aprendizado das regras de correspon-
dência entre letra e fonema e de ortograa, usando o texto como pretexto. Esses mesmos estudos
mostram também que muitas professoras orientam seus alunos a lerem os textos, buscando, ao nal
de sua leitura, descobrir qual teria sido a lição da história, seu principal ensinamento ou exemplo,
evidenciando uma concepção de língua e linguagem como código transparente e possuidor de
uma interpretação única que é a correta, entendendo interpretação como sinônimo de leitura. Por
m, esses estudos mostram que o prazer da leitura é algo ainda muito distante da maior parte das
escolas e que os alunos tendem a ver suas aulas de leitura de maneira não muito diferente da de
Graciliano Ramos: “horas de tortura e aborrecimento” (RAMOS, 1981, p. 155).
Na virada do século XX para o século XXI, vários documentos produzidos sob orientação
do Governo brasileiro estabeleceram diretrizes sobre o fazer pedagógico referente à língua e à
linguagem, trazendo uma concepção interacional de leitura, na qual o texto é considerado um
182
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
lugar de trocas e o autor e leitor passam a ser interlocutores que se constituem e são constituídos
no ato de ler. Nessa perspectiva, a leitura é uma atividade interativa e de construção de sentidos na
interação texto-sujeitos. Portanto, as orientações para a aula de leitura, atualmente, preconizam o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico e, para isso, é necessário que
o leitor interaja com o texto, sendo autônomo, intercrítico e situacionado (OLIVEIRA, 2015).
Esses adjetivos: autônomo, intercrítico e situacionado, sendo ligados à situação de leitura
são, segundo Oliveira (2015), inerentes a uma pedagogia do enleituramento a qual visa a formação
cidadã através de textos que circulam socialmente, ampliando conhecimento de mundo e de gêneros
textuais, colaborando para que o leitor perceba nuances implícitas na tecitura textual que fará com
que se torne cidadão intercrítico, ou seja, o que considera as possibilidades, não anulando o outro,
como nos ensina Macedo (2010), autônomo, o qual, em Freire (2009), é processo de elaboração/
criação constante de práticas e situacionado, no sentido atribuído a essa palavra a Análise de Dis-
curso, entendendo que o contexto interfere na compreensão do sujeito, mas não é determinante,
no sentido do determinismo ideológico do início do século XX. Enm, torne-se leitor autônomo,
intercrítico e situacionado, adjetivos inerentes à ideia de letramento, a qual vamos nominar neste
texto, por falta de vocábulo melhor, leitura pedagógica.
Para um melhor entendimento das considerações feitas doravante, faz-se necessário esta-
belecer denições sobre leitura individual e leitura pedagógica. Por falta de uma designação mais
adequada, tomaremos a denição de leitura pedagógica, aquela que é conduzida pedagogicamente
no ambiente escolar, pois cabe principalmente à escola desenvolver as capacidades e habilidades
concernentes à produção de leitura, à formação do leitor crítico e independente. Já a leitura indi-
vidual é aquela em que o leitor interage com a leitura por razões outras que não as pedagógicas
do ambiente escolar. A leitura pedagógica é tomada, aqui, como produção de leitura, ou seja, ob-
servação, análise, reexão, planicação, tomada de decisão e, nalmente, ação. Ela costuma ser
concebida em dois estágios: leitura decifratória, ou de decodicação, aquela em que a atenção e
o esforço do leitor se dissipam principalmente na decifração, no esforço de decodicar o código
escrito e a leitura crítica, em que se emprega pequeno esforço na decifração e que supõe um leitor
crítico. Ambas as leituras visam – ou deveriam visar – o letramento, que faz do leitor um agente
ativo do que lê.
Rosemary Lapa Oliveira
183
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Nas práticas de sala de aula, atualmente, percebem-se situações diversas como as descritas
por alunos em entrevistas colhidas em setembro de 2005 para compor o corpus de trabalho de
pesquisa de Campinho (2008). Nesse trabalho, foram ouvidas professoras de Língua Portuguesa
de uma escola pública de ensino médio, situada no centro da Capital baiana, no sentido de saber
a sua opinião sobre o uso do livro didático distribuído pelo Governo Federal, introduzido pela
primeira vez no ensino médio brasileiro. Além disso, foram ouvidos também estudantes desses
docentes, no sentido de perceber como era feita a aula de leitura por esses prossionais. Os relatos
dos sujeitos da referida pesquisa são trazidos abaixo em alguns momentos, tendo sido preservada
a sua identidade, sendo identicados por PROFESSOR ou ALUNO.
Ela chega, ela senta, aí faz tipo uma... coloca os alunos ao redor dela, aí lê e
manda as outras pessoas lerem, entendeu? Aí os assuntos que ela passa de dever
de casa, não coloca no caderno não, que ela não cobra a gente no caderno, ela
responde, entendeu? Ela mesma vai falando e respondendo, tudo com a gente.
É esse o trabalho dela (ALUNO 6).
Tanto nesse depoimento em particular como em outros colhidos nessa mesma turma, nota-
-se a falta de referência a um trabalho pedagógico voltado para a produção de leitura que vise a
um leitor intercrítico, autônomo e situacionado, conforme descrito acima. A leitura explorada pela
professora parece ser a decifratória, de decodicação do signo linguístico o que não cabe a uma
turma de EM e se distancia do que preconizam os documentos ociais que regulam a educação
brasileira. O texto entra no planejamento da aula sem considerar a sua textualidade, possibilidade de
análise, de reexão, de planicação, o que em nada contribui para a formação de um leitor cidadão.
Ela sempre bota a gente pra ler, quer dizer, quem quiser ler, né. mas ela sempre
bota a gente pra ler. fala as páginas que é pra ler, se a gente quiser ler a gente
lê, e assim... explica tudo, os pontos parágrafos, coisa assim que é pra gente
ler, coisa assim (ALUNO 8)
Mais uma vez, temos um exemplo de concepção de leitura decifratória com uma informação
a mais: pode-se inferir que a professora desse estudante demonstra que se preocupa com outros
aspectos de leitura como postura, prosódia, uma vez que pede para que os alunos leiam. No entanto,
é importante considerar que esse tipo de leitura está muito aquém do que se espera de alunos egres-
sos do ensino fundamental. Pelo depoimento, observa-se que uma leitura pedagógica de atribuição
de sentidos ao texto, de desenvolvimento de habilidades de análise, observação, reexão, enm,
desenvolvimento de senso crítico e formação de cidadão não fazem parte da prioridade dessa aula,
184
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
pois a professora “explica tudo” e o tudo que ela ensina está mais ligado à prescrição gramatical
que ao uso prático da linguagem. O mesmo não se percebe neste outro depoimento:
a professora passa os textos, né, ela discute muito com a gente, deixa tudo
bem claro na nossa mente, é super bom mesmo, reforça mesmo a nossa leitura,
assim quem tem preguiça de ler (risos) aí vai lendo... eu gosto dos textos
também, é fácil (ALUNO 10)
Pode-se inferir que essa professora promove um trabalho que leva à leitura crítica, através
de debate sobre o texto com seus alunos, promovendo reexão, tentando favorecer um ambiente
para o desenvolvimento de habilidades de leitura crítica. O que é mais condizente com um trabalho
voltado para o EM, mas que ainda está aquém do esperado para esse ciclo escolar, o qual, segundo
orienta a matriz de avaliação de leitura do PISA/INEP, deveria ser:
realização de múltiplas inferências, comparações e contrastes com precisão
e detalhamento, demonstrando uma compreensão completa e detalhada de
um ou mais textos que podem envolver integração de informação entre esses,
lidando com ideias desconhecidas, na presença de informações concorrentes,
gerando categorias abstratas de interpretação (BRASIL, 2001, p. s.n.).
As atividades de Reetir e Avaliar requerem que o leitor delineie hipóteses ou que avalie
de forma crítica um texto complexo ou tópico desconhecido, levando em consideração múltiplos
critérios e perspectivas, e aplicando interpretações sosticadas para além do texto. Uma condição
presente para exercícios de acessar e recuperar nesse nível é a precisão de análise e atenção re-
nada para encontrar detalhes pouco perceptíveis nos textos. Mas esses procedimentos não foram
encontrados na pesquisa acima apontada.
Nos depoimentos acima, com alunos de diferentes professoras, podemos perceber quão di-
versicado é o trabalho de leitura na escola. Enquanto alguns estão ainda presos à decodicação e
textos canônicos, notadamente os dois primeiros, outros já trazem textos do cotidiano e provocam
inferências, análises, uma leitura que leva à reexão e autonomia, embora ainda longe do que se
espera para um egresso do ensino fundamental.
A despeito de toda a preocupação relativa à leitura, visível através de projetos
incentivados e subsidiados por instâncias governamentais, pouco se sabe sobre que tipo
Rosemary Lapa Oliveira
185
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
de leitura é feita na escola. Que concepção de leitura as professoras têm? Nos depoimentos
colhidos entre professoras e alunos, foi percebida uma incongruência entre o que a
professora diz que faz e entre o que os alunos e as alunas dizem que a professora faz,
ressaltando, nessa desavença, uma concepção de leitura que versa em sentido diferente
daquelas preconizadas pelas políticas públicas de educação no nosso país. As quais dizem
que:
As competências e habilidades propostas pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) permitem inferir que o ensino de
Língua Portuguesa, hoje, busca desenvolver no aluno seu potencial crítico,
sua percepção das múltiplas possibilidades de expressão linguística, sua
capacitação como leitor efetivo dos mais diversos textos representativos de
nossa cultura. Para além da memorização mecânica de regras gramaticais
ou das características de determinado movimento literário, o aluno deve ter
meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser
mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara, na
família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho (BRASIL, 2002, p. 55)
Portanto, podemos dizer que as orientações governamentais versam sobre um leitor autônomo,
intercrítico e situacionado, capaz de atribuir sentidos aos textos e de dialogar com eles de forma
crítica, conforme já explicitado anteriormente. Dessa forma, tais orientações determinam uma
concepção de texto que, por conta de uma formação docente nem sempre guiada por uma lógica
do letramento; por conta da situação social do docente, situação global do discente, entre outros
tantos tangíveis e intangíveis fatores, está longe daquela praticada pelas professoras e impõem
um fazer em sala de aula para o qual docentes talvez não estejam preparados. No entanto, nota-se
o silenciamento de docentes diante do dizer acadêmico institucionalizado através do discurso da
autoridade, reorganizando o seu dizer para se aproximar do desejável pelas autoridades:
PROFESSORA 1: (...) você sabe que leitura e escrita são interligadas: não
adianta apenas saber ler. Tem que haver criticidade ao ver o mundo, o seu
mundo, o mundo lá fora, relacionar, entender os problemas e também ler
por prazer, então como trabalhar esse prazer? O aluno hoje em dia, com a
competição, com a internet, com a coisa fácil, não têm o prazer do livro,
preferem até ler livros, quem tem acesso, através dos computadores. Então
eu pergunto: será que poderão levar esses livros em ônibus pra ler ou em
momentos vagos?
186
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
Nesse depoimento, ainda parte da pesquisa anteriormente mencionada, nota-se um discurso
em defesa do livro, como se a leitura fosse apenas a da literatura, uma ideia, por sinal, que faz parte
da cultura escolar e já é tradição ali, conforme vimos no histórico feito anteriormente. A professora
relaciona a ideia de criticidade, o “ver o mundo, o seu mundo lá fora” com o livro. Num mudo tão
globalizado, a leitura escolar não pode se restringir e não se restringe ao livro, é necessário fazer
a leitura de textos do cotidiano: físicos e virtuais.
Na pesquisa de Campinho (2008), ainda há um outro sujeito de pesquisa que aparece de
forma muito importante, pois posiciona-se como observador quase apagado da cena sala de aula,
por ser estudante de graduação em situação de estágio. Esses sujeitos, por vezes fazem registro
de que os alunos têm diculdade em ler, no sentido de decodicar o escrito, outras em que a
diculdade reside em atribuir sentidos ao texto. Nesse caso, em particular, foi notada a diculdade
em decodicar a linguagem usada no texto, pois esse se insere na escola romântica, tão longe da
realidade linguística atual, tão longe da realidade cotidiana do aluno, sem conhecimento prévio
de tal estilo de linguagem.
Uma estagiária que participou da referida pesquisa relata a seguinte fala de um aluno, após
a leitura feita com diculdade por ele: “É difícil ler poesias como esta, porque as pessoas da
época eram muito inteligentes”. Pode-se perceber, nessa fala, a forte inuência de uma ideologia
imposta às classes mais baixas da sociedade de que os seus conhecimentos são desprezíveis e de
que há um modelo de inteligência associada aos cânones. A observadora relata que a professora
contestou a fala de seu aluno e debateu o assunto, um procedimento que aponta para um modo
de ver o ensino-aprendizagem na sala de aula que valorize o diálogo, o debate, a construção do
conhecimento, considerando os dois sujeitos nesse processo: aquele que aprende ao ensinar e o
que ensina ao aprender, conforme nos ensinou Freire (1996, p. 23), porém não há referência sobre
uma interpretação do texto que leve à crítica social, ao diálogo do leitor com o texto, produzindo
leitura e atribuição de sentidos. Sendo assim, percebemos que, de modo geral, as professoras têm
explicitada a ideia da leitura que extrapola a decifração do código, que preconiza um leitor autô-
nomo, um leitor de mundo:
PROFESSORA 3: O mais importante para mim é o trabalho com leitura,
interpretação e produção de textos, pois através do domínio dessas habilidades
o indivíduo se torna capaz de fazer uma leitura do mundo de forma eciente,
além de construir o seu conhecimento.
Rosemary Lapa Oliveira
187
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
PROFESSORA 4: A leitura era trabalhada através de textos extraídos de livros,
jornais, revistas, etc. Os textos eram lidos, discutidos pelos grupos. Os próprios
alunos elaboravam questões de interpretação que eram apresentadas aos
demais para a obtenção de respostas que levassem a vários questionamentos
e culminassem com a conclusão do trabalho proposto. Em outros momentos,
eram levados textos para que fossem pesquisadas palavras com o objetivo
de enriquecer o vocabulário e as questões eram previamente elaboradas por
mim, direcionando o trabalho a ser conduzido. Uma outra alternativa era a
distribuição de textos para que cada grupo de alunos expressasse sua opinião
acerca do assunto neles tratados para elaborar, posteriormente, seus próprios
textos.
No entanto, o que se evidencia nos relatos dos alunos é uma prática destoante da realidade
apresentada pelas professoras, na qual a leitura é parafrástica, ou seja, a que se caracteriza pelo
reconhecimento (reprodução/ reformulação do sentido dado pelo texto-fonte) para a produção
de um texto-derivado (ORLANDI, 2001) e/ou de decodicação. Para os alunos consultados, a
concepção de leitura corresponde à decodicação do código gráco, isto é, para eles ler é saber
decifrar as palavras e os sinais grácos, tanto as marcas de prosódia, quanto as marcas estilísticas
de pausa e entonação, que as acompanham.
(...) a professora de português, o trabalho dela eu gosto, entendeu. É bom
porque ela incentiva as pessoas a trabalhar junto, que ela incentiva as pessoas
a ler, entendeu, na sala de aula, para tirar também a vergonha que as pessoa
têm. (ALUNO 6)
(...) ela sempre bota a gente pra ler, quer dizer, quem quiser ler, ler, né. mas
ela sempre bota a gente pra ler. Fala a página que é pra ler se a gente quiser ler
a gente lê, e assim... explica tudo, os pontos parágrafo, coisa assim que é pra
gente ler, coisa assim.(ALUNO 8)
Para efeitos de análise, podemos inferir que se o aluno não se reporta a um estudo de leitura
que promova o diálogo e o pensamento crítico e divergente, é porque ele não existe. Em outros
depoimentos, evidencia-se o silenciamento que, com relação ao texto, as professoras impõem aos
seus alunos:
Ela chega, ela senta, aí coloca os alunos em redor dela, aí lê e manda as outras
pessoas leem, entendeu? Aí os assuntos que ela passa de dever de casa, num
coloca no caderno não, que ela não cobra a gente no caderno, ela responde,
188
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
entendeu? Ela mesma vai falando e respondendo, tudo com a gente. É esse o
trabalho dela. (ALUNO 6)
A professora não oferece possibilidades de promoção da autonomia, intercrítica e situcio-
nalidade, tão importantes para a formação do cidadão atuante socialmente, pelo contrário, silencia
outros sentidos atribuíveis à leitura quando “Ela mesma vai falando e respondendo”. Além de
silenciar a sua própria leitura ao engajar-se na leitura proposta no LD, como podemos perceber na
análise que seu aluno faz da aula:
Ela chega... pede boa noite, é claro, fala: “hoje vamos trabalhar com o Barroco,
abra o livro em tal página”, aí começa a leitura, ela explica, pergunta as dúvida
da gente, se a gente tem dúvida em alguma coisa, explica... é isso (ALUNO 7)
Portanto, diante do exposto, podemos dizer que a leitura na escola caminha entre o que se
diz, ou seja, o desejável perante as possibilidades que alunos egressos de, no mínimo, dez anos de
aulas de leitura deveriam apresentar, ou o previsto entre as orientações governamentais e o que
se faz, ou seja, o que a professora consegue desenvolver em sala de aula, levando em conta as
suas próprias limitações e as limitações dos alunos e alunas. Assim, a produção de leitura não se
consubstancia enquanto atividade visceral da aula de Língua Portuguesa.
Conforme o exposto, vimos uma tendência de apagamento da voz do professor, atrás de
políticas paternalistas de apresentar normas e procedimentos, além do próprio planejamento da
aula, através do LD. Geralmente as pesquisas desenvolvidas em ambiente escolar apontam para
uma formação do docente que tem se apresentado equivocada e que não dá conta da formação do
leitor intercrítico, autônomo e situacionado. No entanto, se esse é o problema que se aponta, por
que não investir em reformas nos currículos de graduação, nos programas de formação continuada
e num plano de carreira atraente, ao invés de investir num “amparo” através do LD? Uma possível
leitura que se faz desses todos discursos é de descrença por esse prossional. Em AD discute-se
que a prática cientíca não está segmentada da prática política e vice-versa. Ambas são determi-
nadas pelas condições sócio-históricas e ideológicas de uma dada formação social. Nessa visão, o
discurso dos cientistas da linguagem, que assinam as orientações governamentais, nada mais é do
que o discurso do poder impondo metas e objetivos a serem alcançados, industrializando a escola,
um espaço que deveria ser o da construção de conhecimento.
Rosemary Lapa Oliveira
189
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Aos alunos, é reservado espaço ainda mais silencioso do que o do professor. Enquanto esse
ainda é chamado para dar a sua opinião, àquele só resta calar e aceitar. Até na pesquisa de Campinho
(2008) a voz do aluno é trazida de forma muito apagada, ainda que não seja objetivo da pesquisa
feita tal discussão. A literatura ligada à crítica à educação é carente dessa análise. Orlandi (2001)
adota a posição de que somos sujeitos simbólicos vivendo espaços histórico-sociais. Hall (2005)
apresenta os estágios através dos quais uma versão particular do “sujeito humano” emergiu na idade
moderna: a princípio como sujeito centrado, com um sentimento estável de sua própria identidade
e lugar na ordem das coisas; seguido do sujeito sociológico, interativo, para uma concepção de
descentramento do sujeito na modernidade tardia.
Trazendo essa perspectiva para o viés do estudo da Leitura e trabalho docente na escola:
ontem e hoje, pode-se chegar às perguntas: A escola tem fomentado a formação do cidadão atuante
socialmente? As aulas de leitura tem feito seu papel de ampliação de conhecimento de mundo?
Por que o professor, a professora, em vários momentos, escolhe calar-se e repetir os discursos de
outrem? Acreditamos que as respostas a essas perguntas podem ser buscadas nas cenas relatadas,
bem como no seu contexto. Acreditamos, ainda, que proporcionar aos estudantes possibilidades de
leitura autônoma, intercrítica e situacionada podem fazer com que a escola se torne mais atrativa
aos jovens que verão ali o lugar de sua formação para o enfrentamento de situações diversas em
sua vida pessoal, prossional e ecológica, conforme se espera da educação na atualidade.
Então, como exigir dos alunos a capacidade leitora de analisar, raciocinar e reetir ativamente
sobre seus conhecimentos e experiências, enfocando competências que serão relevantes para suas
vidas futuras, como propõem o PISA, ou que demonstrem habilidades de leitura de textos argu-
mentativos mais complexos, relacionem tese e argumentos em textos longos, estabeleçam relação
de causa e consequência, identiquem efeitos de ironia ou humor em textos variados, efeitos de
sentidos decorrentes do uso de uma palavra, expressão e da pontuação, além de reconhecerem
marcas linguísticas do código de um grupo social como espera a Prova Brasil, se, em sala de aula,
o estudo do texto não conduz à consecução desses objetivos? Se na escola os estudantes são leva-
dos a apagar a sua constituição leitora, pois é pouco requisitada? Se a voz do professor é apagada
da cena político-educacional e esse prossional é alijado de atuar ativamente nas decisões que
concernem ao ensino?
190
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
Aos alunos da escola pública, sejam eles do ensino noturno ou do diurno, deve ser possível o
desenvolvimento da cidadania e a constituição como sujeito ativo e crítico. Dessa forma, talvez, os
resultados apresentados por programas tão amplos e centralizados de avaliação não apresentassem
resultados tão aquém do esperado.
Repensar a estrutura em que se ancora a educação básica, através de amplos debates em que
se ouvisse a voz dos professores, das professoras que efetivamente atuam em sala de aula, alunos
e alunas, pais e demais segmentos da comunidade escolar seria bastante salutar. É preciso repensar
as práticas pedagógicas e ideológicas, ligadas à educação dentro de cada comunidade escolar.
Por outro lado, não se pode deixar de enfatizar a importância no investimento nos pros-
sionais da educação em suas formações iniciais e continuadas, da necessidade de se fazer um
plano de carreira que valorize o prossional que procura sempre mais e mais conhecimentos para
exercer seu trabalho, ou seja, docentes que se mobilizem no sentido de incentivar a autonomia, a
intercrítica e a situcionalidade em seus estudantes. Além de se voltar para a pesquisa, como vem
assinalando as reexões feitas por Fiorin (2005), Moita Lopes (2006), André (2004), entre outros.
Muito de história poderíamos ter e quanto teríamos aprendido se, conforme orientação de
Lopes e Cavalcanti (1991) a sala de aula tivesse sido um local não só de ensino, mas também de
pesquisa. Certamente, teríamos agora um avanço tecnológico, educacional, didático, metodológico
e humano, ainda, maior.
REFERÊNCIAS
BAHIA. SEC. Orientações curriculares para o Ensino Médio 2006. Disponível em http://por-
tal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf. Acesso em 15 abr 2019
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. ROJO, Roxane (Orgs). Livro didático de língua portu-
guesa, letramento e cultura escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.
BRASIL, MEC/INEP Relatório Nacional PISA 2000. Brasília, DF: dez. 2001.
BRASIL, MEC/SEMTEC. Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio. Brasília, DF:
2002.
Rosemary Lapa Oliveira
191
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
CAMPINHO, Rosemary Lapa de Oliveira. A introdução do livro didático nas aulas de leitura no
ensino médio da rede pública de ensino: um estudo de cunho etnográco. Dissertação (mestra-
do) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2008.
CAVALCANTI, Marilda C. LOPES, Luiz Paulo da Mota. Implementação de Pesquisa na Sala
de Aula de Línguas no Contexto Brasileiro. In: Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas,
n.17 / jun 1991, p.133-144.
FIORIN. José Luiz. Formação do Prossional em Letras. Exposição oral do autor em aula
inaugural do 1º semestre letivo de 2005 da Faculdade de Letras da UFBA, cujo tema foi A refor-
ma Universitária, realizada em 23 de março de 2005, UFBA-BA.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
GOVERNO FEDERAL. MEC SAEB. Metodologia. Disponível em < http://www.inep.gov.br/
basica/saeb/metodologia/matrizes.htm Acesso em 20 jun 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Gua-
racira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
INEP. Resultados do SAEB 2003 Brasil e Bahia. Brasília – DF, junho 2004 http://www.fnde.
gov.br/home/index.jsp?arquivo=/ld_ensinomedio/ld_ensinomedio.html
JURADO, Shirley G de O G. Leitura e letramento escolar no ensino médio: um Estudo ex-
ploratório. 2003. 150 p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada. PUC-SP.
KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2003
KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 9. ed. Campinas, SP: Pon-
tes, 2004
MAFRA, Núbio Delanne Ferraz. Leituras à Revelia da Escola. Londrina – PR: Eduel, 2003
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA – FNDE. Disponível em http://www.fnde.gov.
br/home/index.jsp?arquivo=/ld_ensinomedio/ld_ensinomedio.html Acesso em 22 nov. 2004.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA – FNDE. Disponível em www.fnde.gov.br.
Acesso em 22 nov. 2004.
192
Salvador, v.5, n.1 p.171-192, jan/abr. 2020
Leitura e trabalho docente na escola: ontem e hoje
MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.) Por uma linguística aplicada Indisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.
OLIVEIRA, Rosemary Lapa. A Pedagogia da Rebeldia e o Enleituramento: a constituição do
sujeito leitor. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2015
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4.ed. Campi-
nas, SP: Editora da UNICAMP, 1997
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. Campi-
nas, SP: Pontes, 2001.
RAMOS, Graciliano. Infância. 23ed. São Paulo: Record, 1986.
REGO, José Lins do. Doidinho. 16ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
Recebido em: 15 de abril de 2019.
Avaliado em: 20 de julho de 2019.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.