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Catarina de Almeida Santos, Danielle Xábregas Pamplona Nogueira e Marcello Ferreira
Salvador, v. 5, n. 1, p. 09-16, jan./abr. 2020
A GESTÃO ESCOLAR COMO
SUBSÍDIO AO DIREITO À EDUCAÇÃO:
uma articulação a partir da noção de
função social da escola
CATARINA DE ALMEIDA SANTOS
Departamento de Planejamento e Administração – UNB. ORCID: 0000-0003-1864-4608.
E-mail: catarinasantos@unb.br
DANIELLE XÁBREGAS PAMPLONA NOGUEIRA
Departamento de Planejamento e Administração – UnB. ORCID: 0000-0001-8500-0402.
E-mail: daniellen@unb.br
MARCELLO FERREIRA
Instituto de Física – UnB. ORCID: 0000-0003-4945-3169. E-mail: marcellof@unb.br
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A gestão escolar como subsídio ao direito à educação: uma articulação a partir da noção de função social da escola
Salvador, v. 5, n. 1, p. 09-16, jan./abr. 2020
A GESTÃO ESCOLAR COMO SUBSÍDIO
AO DIREITO À EDUCAÇÃO:
uma articulação a partir da noção de função social da escola
A educação, como saber historicamente acumulado, é também apropriação da cultura de um povo.
Ela é a responsável por fazer com que as novas gerações assimilem “as experiências, os conhecimentos
e os valores legados pelas gerações precedentes, [sendo assim], é fenômeno inerente ao próprio homem
e que o acompanha durante toda a sua história” (PARO, 2008, p. 105).
A sociedade moderna, em sua complexidade, traz consigo o acúmulo de saberes produzidos
historicamente, que se renova com impressionante velocidade e dinamicidade, requerendo a existência
de instituições responsáveis pelo processo educativo. A escola, ressalta Paro (2008), destaca-se entre
elas, tendo como especicidade a transmissão do saber de forma sistemática e organizada.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2009), a educação é um direito humano
universal e deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos e das li-
berdades fundamentais. No Brasil, em caráter estrutural, a Constituição de 1988 consentiu a educação
como um direito social, a que todos, sem distinção, devem ter acesso, delegando ao Estado e à família
garanti-lo, em cooperação com a sociedade, para o alcance da sua tríplice função: o pleno desenvolvi-
mento da pessoa, o seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualicação para o trabalho. Já
operacionalmente, a Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996, art. 1º) dene
a educação numa perspectiva ampliada, asseverando que deva abranger “os processos formativos que
se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
Fazer com que essa perspectiva de educação se concretize sempre careceu – e certamente ainda
carecerá – de muita luta, com ações e campanhas que questionem os modos de ser e de operar das
políticas públicas e das dinâmicas sociais. Como disse Anísio Teixeira, lá em 1935, ao debater os
entraves enfrentados para implementar o que foi aprovado na Constituição de 1934, “a mentalidade
dos fazedores de orçamento, geralmente homens que reputam o ensino obra eminentemente supérua,
criará todos os sosmas para demonstrar a impossibilidade material de se obedecer à Constituição”
(TEIXEIRA, 2007, p. 219). Essa armação, embora quase noventenária, é lamentavelmente ainda atual.
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A gestão da escola
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, como organização complexa (TRAGTENBERG, 2018), é um dos
mais estatutários dispositivos da garantia do acesso à educação. Segundo Paro (2008, p. 18), “a
administração é a utilização racional de recursos para [a] realização de ns determinados”, o que
implica que ela deva mediar recursos e demandas, em vistas do alcance de sua função social.
Sendo a formação o objetivo central da escola, o projeto pedagógico deve ser a razão da ação
administrativo no interior dessa instituição. Nesse sentido, o autor defende que qualquer diretor
escolar deve, antes de tudo, ser um educador; defende, ainda, que gestão administrativa e pedagógica,
no âmbito escolar, sejam indissociáveis, pois, no campo da gestão escolar, toda prática pedagógica
está impregnada do administrativo, assim como o administrativo é potencialmente pedagógico.
No Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 (MANIFESTO, 2006), os pioneiros
já defendiam a formação ampla dos educadores e gestores educacionais. Um educador que traba-
lhe cienticamente nesse terreno, defendia o Manifesto, deve estar decisivamente interessado na
determinação dos ns de educação e imbuído dos meios de realizá-los. Nessa perspectiva, o gestor
precisa ser, antes de tudo, um educador e, como tal, alguém capaz de compreender a realidade para
além dos muros da escola. Assim, para os signatários do Manifesto, dentre eles, Anísio Teixeira,
O físico e o químico não terão necessidade de saber o que está e se passa além
da janela de seu laboratório. Mas o educador, não, ele tem necessidade de uma
cultura múltipla e bem diversa; ele deve ter o conhecimento dos homens e da
sociedade em cada uma de suas fases, para perceber, inclusive a posição que
tem a escola, e a função que representa, na diversidade e pluralidade das forças
sociais que cooperam na obra da civilização (MANIFESTO, 2006).
Separar a gestão pedagógica da gestão administrativa – ou o gestor do educador – é incorrer
no amadorismo pedagógico ou no empirismo grosseiro de que os pioneiros falavam, pois isso im-
plicaria considerar que a escola pudesse ser administrada por quem não entende dos princípios e
das especicidades da educação. Essa instituição escolar se assenta em princípios da democracia,
da autonomia e da liberdade e deve ser plural, imiscuída em cultura e com radical envergadura e
1 Neste texto, por conveniência semântica e pela restrição do escopo dos matizes conceituais que pretendemos acessar,
tomamos gestão escolar e administração escolar como sinônimos. Sabe-se, no entanto, que, no campo dos estudos orga-
nizacionais, a perspectiva de administração escolar é eminentemente técnica e operacional, enquanto a ideia de gestão
escolar vincula-se a uma perspectiva diretiva mais sistêmica, atinente às políticas, às diretrizes educacionais, à gestão
de sistemas de ensino e escolas, considerando a autonomia e a necessidade de processos participativos.
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compromisso social. Seu papel é o de garantir, de forma organizada e sistematizada, a mais difícil
das educações: aquela para viver de forma livre e democrática. Como disse Anísio,
Há educação e educação. Há educação que é treino, que é domesticação. E há
educação que é formação do homem livre e sadio. Há educação para alguns,
há educação para muitos e há educação para todos. A democracia é o regime
da mais difícil das educações, a educação pela qual o homem, todos os homens
e todas as mulheres aprendem a ser livres, bons e capazes (TEIXEIRA, 2009,
p. 107).
Garantir o direito à educação é formar para a democracia, regime que, segundo Teixeira, dela
depende fundamentalmente, pois só há democracia se tivermos uma educação capaz de “fazer do
lho do homem – graças ao seu incomparável poder de aprendizagem – não um bicho ensinado,
mas um homem” (TEIXEIRA, 2009, p. 107).
Assim, pensar a gestão como uma das dimensões do processo educativo, voltada para ga-
rantia do direito à educação, implica em envolver o conjunto dos sujeitos das comunidades escolar
e local na tomada de decisão, em problematizar políticas e diretrizes internas e externas de cunho
não democrático e que não sirvam para o alcance da educação em que todos os homens e todas
as mulheres aprendem a ser livres, bons e capazes.
As demandas externas advindas de tomadores de decisões, que reputam o ensino, espe-
cialmente para a maioria da população, obra eminentemente supérua, costumam ser contrárias
ao alcance dessa educação com referência social, não somente no Brasil, mas em praticamente
todos os países do globo. Daine Ravich
2
(2011), no livro “Vida e morte do grande sistema escolar
americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação”, analisa
os efeitos dos testes padronizados e do modelo de mercado no sistema americano. Para a autora,
os testes, denidos por homens de negócio e não por quem entende de educação, estão colocando
o sistema educativo americano em risco, tendo em vista que não está sendo garantido a formação
dos estudantes, o que vem desencadeando e agudizando processos de segregação e exclusão.
Para Ravitch (2011, p. 251), “os fundamentos de uma boa educação serão encontrados na
sala de aula, em casa, na comunidade e na cultura, mas os reformadores empresariais do nosso
2 Diane Silvers Ravitch: Is a historian of education, an educational policy analyst, and a research professor at New
York University’s Steinhardt School of Culture, Education, and Human Development.
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tempo continuam a procurar por atalhos e respostas rápidas” (RAVITCH, 2011, p. 251). Ainda
segundo a autora,
As nossas escolas não irão melhorar se os políticos que nos governam se
meterem no território pedagógico e tomarem decisões que deveriam ser feitas
por educadores prossionais. O Congresso e os legisladores estaduais não
deveriam dizer aos professores como ensinar, tanto quanto eles não devem
dizer aos cirurgiões como realizar operações. Tampouco o currículo das
escolas deveria ser submetido a negociações políticas entre pessoas que não
possuem conhecimento sobre o ensino. A pedagogia – ou seja, como ensinar
– é domínio prossional dos professores. O currículo – ou seja, o que ensinar-
deveria ser determinado por educadores prossionais e acadêmicos, após a
devida deliberação pública, agindo com a autoridade neles investida pelas
escolas, distritos e Estados (RAVITCH, 2011, p. 251).
Os processos de organização, planejamento e avaliação das diversas atividades que fazem
parte do cotidiano das instituições escolares e da administração educacional e escolar precisam
ser pautados por ações que garantam o direito à educação. A função social da escola vai muito
além de desenvolver capacidades nos estudantes para responder o que os testes mensuram, nota-
damente os progressos dos estudantes em leitura e em matemática, pois esses testes não dão conta
de estabelecer indicadores para o que mais importa na educação: “a habilidade de um estudante
de encontrar explicações alternativas, levantar dúvidas, buscar o conhecimento por conta própria
e pensar de forma diferente” (RAVITCH, 2011, p. 252).
O que Ravitch, assim como muitos outros educadores, coloca na agenda de debate na
atualidade é o que Teixeira já apontava, em 1935, ao reetir e apontar os problemas da educação
brasileira à época. Para esse autor, o primeiro erro no campo da educação seroa tomar as causas
pelos efeitos e os efeitos pelas causas. Assim, armou que,
Desde que se iniciou a civilização democrática e industrial dos nossos tempos,
os índices de alfabetização foram-se tonando extraordinariamente signicativos
do estado de progresso de um povo, por isso que a generalização da leitura e da
escrita se tornou indispensável a generalização de modos especiais de vida e de
trabalho. Pois bem. Como não somos muito favorecidos por aqueles índices,
facilmente nos convencemos de que o necessário é conquistá-los de qualquer
jeito, para nos tornarmos de pronto civilizados. Ora, a verdade é bem outra.
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Precisamos é daquela civilização, para que os índices, de longe, surjam por si
mesmos (TEIXEIRA, 2007, p. 41).
A defesa de Teixeira (2007, p. 84), de Ravitch e que é também a nossa, é a de que é preciso
ter na escola muito mais “do que o ensino a toque de caixa de leitura, escrita e contas”. É preciso
fazer com que nossos estudantes tenham oportunidades de ter uma vida melhor.
O que devem desejar os educandos brasileiros é que a escola não falhe a sua
missão; é que a escola forme a inteligência e forme o caráter. Mas, para tanto,
urge que preparemos o ambiente, que o prédio escolar e as suas instalações
atendam, pelo menos, aos padrões médios da vida civilizada, e que o magistério
tenha a educação, a visão e o preparo necessários a quem não vai apenas ser a
máquina de ensinar intensivamente a ler, a escrever e a contar, mas o mestre
da arte difícil de bem viver (TEIXEIRA, 2007, p. 85).
A tríplice função da educação, denida no art. 205 de Constituição de 1988, nos coloca
o desao de olhar para o estudante como sujeito e garantir seu desenvolvimento a partir da sua
especicidade, dentro da pluralidade. Que a escola não o apague, não o anule, não o uniformize
ou o invisibilize, garantindo as condições para que suas potencialidades intelectuais, afetivas e
psicomotoras sejam desenvolvidas.
Ao mesmo tempo, sendo ele um sujeito social, a formação para a cidadania, parte constitu-
tiva do direito a educação, não é a formatação das mentes, o controle dos corpos para que sejam
economicamente úteis e socialmente dóceis, nem a obediência pela imposição do medo, mas a
construção do respeito. Isso só é viável quando se convive com o diverso, quando não se anulam
as diferenças e quando se debate com respeito as questões postas na sociedade, como as questões
de gênero, raça e sexualidade. Não é possível formar para a cidadania quando se elimina da escola
a formação que combata o racismo, o machismo, sexíssimo, feminicídio, a homofobia, o patriarca-
do e todas as formas de violência e discriminação. Essas preocupações devem integrar o leme da
gestão escolar e operar para que jamais entremos em um mundo distópico como esse, que escolhe
entre formar para a racionalidade substantiva ou formar para a racionalidade técnica. São inúmeros
os cidadãos – e, infelizmente, também os líderes políticos – que ignoram a relação entre ciência,
tecnologia e sociedade. Espera-se que mais deles não sejam constituídos pela indiferença ou pela
ação deliberadamente neoliberal da escola. Nada poderia substituir o ambiente escolar tradicional;
trata-se de um valor civilizatório, uma conquista moderna, cuja perda se faria lamentar profunda-
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mente, pois já não podemos reconhecer em nosso meio tantos daqueles espaços comunitários que
cumpriam o papel de socialização de crianças, no sentido mais elevado de transmissão de práticas
de tolerância e de construção de acordos.
A formação para o trabalho, terceira haste do tripé, não é a formação para conformação
ao modus operandi da atual forma de organização social, em que as relações sociais se dão pela
exploração de uma parte da população sobre a outra. A formação para o trabalho, constitutiva do
direito à educação, precisa ser para a transformação das relações de trabalho em que os trabalha-
dores sejam sujeitos e não objetos ou meios de produção. A educação deve contribuir, como aponta
Vitor Paro (2008), para a transformação social a medida em que servir de instrumento dos grupos
sociais dominados, em seu esforço de superação da sociedade de classe. Esta é a indução, a tessi-
tura e a conformação social que somente se pode viabilizar por meio de uma escola democrática,
plural, defensora dos direitos humanos e das garantias de liberdade e cônscia do seu papel singular
de regulação entre do projeto político do Estado ao indivíduo e o projeto desse mesmo indivíduo
em si e para si. A gestão escolar é, pois, a vereda entre o que se está determinado para a educação
escolar como função social e dimensão para a garantia do direito à educação.
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O MANIFESTO dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Revista HISTEDBR On-line, Campi-
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PARO, V. H. Administração escolar: introdução crítica. 15. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
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RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padroniza-
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TEIXEIRA, A. S. Educação não é um privilégio. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
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TRAGTENBERG, M. A Escola cmo Organização Complexa. Educ. Soc., Campinas, v. 39, n.
142, p. 183-202, jan. 2018.
Enviado em: 30 de março de 2020.
Inserido em: 20 de abril de 2020.
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