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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.12204
EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: desaos para o
ensino de Física e Astronomia
Alan Alves-Brito
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
http://orcid.org/0000-0001-5579-2138
RESUMO:
A Educação Escolar Quilombola, como projeto político-pedagógico oriundo de lutas organizadas do
Movimento Social Negro e de uma das mais cruciais políticas públicas do início do século XXI, é um
processo em construção no Brasil que demanda esforços orquestrados de pesquisadores, educadores,
gestores, movimentos sociais e da sociedade, em todas as áreas do conhecimento. Em estilo ensaístico,
o objetivo do presente trabalho é problematizar os desaos e as potencialidades dos ensinos de Física
e de Astronomia na Educação Escolar Quilombola, tensionando o Projeto de Modernidade materiali-
zado na Quarta Revolução Industrial por meio dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da
Organização das Nações Unidas, em que a Física e a Astronomia jogam papel fundamental. Em diálogo
permanente com referenciais teóricos, metodológicos e epistemológicos da educação, apontamos funda-
mentos, pesquisas e novas tendências para que os ensinos de Física e de Astronomia dialoguem com as
experiências quilombolas, fomentando perspectivas interculturais e descolonizadoras da educação em
ciências. As reexões, questionamentos e apontamentos apresentados são gestados a partir de resultados
parciais de projeto de pesquisa realizado no âmbito dos Programas de Pós-Graduação em Física e En-
sino de Física e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Com foco na promoção da equidade racial na educação básica, argumentamos
que os Ensinos de Física e Astronomia tecno-ciências na base do Projeto Cientíco e de Poder Mo-
derno e Contemporâneo podem ajudar a ressignicar, ressemantizar e fortalecer o sujeito quilombola
diferenciado do século XXI, sufocado pela realidade da Quarta Revolução Industrial. É por meio do
diálogo intercultural e interdisciplinar com as comunidades quilombolas que as ciências físicas também
poderão se humanizar, contribuindo fortemente para a democratização do País, reconhecendo Saberes-
-Fazeres que denem identidades potentes, ligadas à ideia de corpo-território e marcos civilizatórios
afrodiaspóricos.
Palavras-chave: Educação escolar quilombola. Ensino de física e de astronomia. Interculturalidade.
Descolonização. Interdisciplinaridade.
ABSTRACT:
QUILOMBOLA SCHOOL EDUCATION: challenges for teaching Physics
and Astronomy
As a political-pedagogical project arising from the Black Social Movement, Quilombola School Educa-
tion is a crucial public policy for this century. Brasil is currently determining the process to access the
knowledge of researchers, educators, managers, social movements and society in general to formulate
this policy. Our goal in this essay is to outline the challenges and potentials of teaching Physics and
Astronomy in a Quilombola School environment while referring to the Modernity Project, materialized
in the Fourth Industrial Revolution through the 17 Sustainable Development Goals of the Organization
of the Nations United. While conscious of the theoretical, methodological and epistemological refer-
1 Doutor em Ciências (UFRGS). Programas de Pós-Graduação em Física e em Ensino de Física (UFRGS),
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos. Brasil. E-mail: alan.brito@ufrgs.br.
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ences in education, we highlight the foundations, researches and new trends so that the teachings can
relate with quilombola experiences which foster intercultural and decolonizing perspectives on science
education. The reections, questions and comments are generated from partial results of an ongoing
research project within the Physics and Teaching Physics Graduate Programs and the Center for Afro-
Brazilian, Indigenous and African Studies at the Federal University of Rio Grande do Sul. With a focus
on promoting racial equity in basic education, we argue that the Teachings of Physics and Astronomy
techno-sciences based on the Scientic and Power Modern and Contemporary Project can assist
to re-signify, resemantize and strengthen the quilombola subjectivity of this century, which has been
completely suffocated in the reality of the Fourth Industrial Revolution. It is through intercultural
and interdisciplinary dialogue with the quilombola communities that the physical sciences will also be
able to humanize themselves, strongly contributing to the democratization of Brasil, while recognizing
knowledges-actions that dene powerful identities and linked to the idea of body-territory and aphro-
diasporic civilizational landmarks.
Keywords: Quilombola school education. Teaching physics and astronomy. Interculturality.
Decolonization. Interdisciplinarity.
RESUMEN:
EDUCACIÓN ESCOLAR QUILOMBOLA: desafíos a la enseñanza de Física
y Astronomía
Como proyecto político-pedagógico surgido del Movimiento Social Negro, la Educación Escolar Qui-
lombola es una política pública crucial para este siglo. Brasil está actualmente determinando el proceso
para acceder al conocimiento de investigadores, educadores, gestores, movimientos sociales y sociedad
en general para formular esta política. Nuestro objetivo en este ensayo es esbozar los desafíos y poten-
cialidades de la enseñanza de Física y Astronomía en un entorno de Escuela Quilombola, reriéndonos
al Proyecto Modernidad, materializado en la Cuarta Revolución Industrial a través de los 17 Objetivos
de Desarrollo Sostenible de la Organización de las Naciones Unidas. Conscientes de los referentes teó-
ricos, metodológicos y epistemológicos en educación, destacamos los fundamentos, investigaciones y
nuevas tendencias para que las enseñanzas se relacionen con experiencias quilombolas que fomenten
perspectivas interculturales y descolonizadoras de la educación cientíca. Las reexiones, preguntas y
comentarios se generan a partir de resultados parciales de un proyecto de investigación en curso dentro
de los Programas de Posgrado en Física y Enseñanza de la Física y el Centro de Estudios Afrobrasileños,
Indígenas y Africanos de la Universidad Federal de Rio Grande do Sul. Con un enfoque en la promo-
ción de la equidad racial en la educación básica, argumentamos que las Enseñanzas de la Física y la
Astronomía — tecnociencias basadas en el Proyecto Cientíco y Poderoso Moderno y Contemporáneo
— pueden ayudar a resignicar, resemantizar y fortalecer la subjetividad quilombola de este siglo, que
ha sido completamente sofocado en la realidad de la Cuarta Revolución Industrial. A través del diálogo
intercultural e interdisciplinario con las comunidades quilombolas, las ciencias físicas podrán también
humanizarse, contribuyendo fuertemente a la democratización de Brasil, reconociendo saberes-acciones
que denen identidades poderosas y vinculadas a la idea de cuerpo-territorio y hitos afrodiaspóricos de
la civilización.
Palabras clave: Educación escolar quilombola. Docencia de física y astronomía. Interculturalidad.
Descolonización. Interdisciplinariedad.
Introdução
A agrante complexidade da pandemia de COVID-19 (do inglês: Coronavirus Disease
2019) no Brasil nos mostra que a educação e, particularmente, a educação em ciências, pensadas
como ações humanas e coletivas, são cruciais para, no anseio de proteger e preservar a vida na
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Terra por meio dos processos do fazer-pensar tecnológico-cientíco, nos provocar posiciona-
mentos e deslocamentos teóricos, metodológicos, histórico-losócos, sociais, antropológicos
e ontoepistemológicos, no horizonte do que denimos como realidade e, a partir dela, como
construímos os diálogos e as narrativas utópicas e distópicas contemporâneas.
Constitucionalmente, a educação é um direito inalienável de todas e todos, dever do Es-
tado e da família, numa relação direta e colaborativa da sociedade. As leis brasileiras garantem
o respeito pleno às especicidades étnico-culturais e o fomento à pluralidade de ideias. No caso
do Brasil, País historicamente e socialmente construído sob a égide do racismo
2
, a educação
escolar (mas não apenas ela) entra em cena como importante tecnologia social para desmantelar
estruturas seculares de opressão. A agenda nacional de educação é fortemente baseada na defe-
sa e salvaguarda da dignidade humana e da preservação das identidades, das diferenças. A Lei
10.639/2003, por exemplo, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir, no
currículo ocial da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da temática História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira (BRASIL, 2003), ampliada em 2008 para incluir a História e Cultura dos Povos
Indígenas (BRASIL, 2008).
No entanto, sabemos, o processo de educação e escolarização da população negra no
Brasil é, há séculos, marcado por mecanismos violentos de exclusão e subjugação, no âmbito
das lógicas complexas que delineiam o racismo estrutural, institucional e subjetivo, tecidos
no bojo da colonialidade do ser, do saber e do poder (QUIJANO, 2010). Nesse aspecto, temos
vastamente debatido na literatura especializada nos últimos anos (ALV ES-BRITO, BOOTZ,
MASSONI 2018; ALVES-BRITO, 2020; ALVES-BRITO, MASSONI, GUIMARÃES 2020;
ROSA, ALVES-BRITO, PINHEIRO, 2020; ALVES-BRITO, MASSONI, 2021) sobre como a
Educação e a Divulgação em Ciências no Brasil, sobretudo no caso das ciências físicas (Física
e Astronomia), terão que avançar para repensar seus saberes-fazeres, a m de se aprofundar no
debate racial levando para o chão das salas de aulas (universidades e educação básica) novas ideias
acerca da pertença raça/cor e das radiograas críticas e propositivas sobre como as branquitudes
(BENTO, 2002) e as negritudes (MUNANGA, 2019) se constituem, tensionam e posicionam
as pessoas negras, especialmente as quilombolas
3
, nas estruturas de poder hierarquicamente
racializadas.
Inter(nacionalmente), cada vez mais discussões e problematizações sobre como se
o processo de racialização na ciência e na tecnologia. Em editorial publicado em 19 de maio de
2 Conceito histórico-dinâmico de uma certa sociedade, tratado aqui como um sistema ideológico cultural
e uma prática social que se utiliza do conceito de raça para diferenciar as pessoas.
3 As informações variam entre as diferentes fontes, mas segundo dados da Comissão Pró-Índio de São
Paulo, em 18 de junho de 2021, existem no Brasil 1779 comunidades quilombolas com processos abertos, 136
terras regularizadas e 50 parcialmente tituladas.
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2021, a Revista Britânica Nature, uma das mais conceituadas, faz uma defesa histórica pelo m
do racimo sistêmico, destacando e reconhecendo que a própria ciência contribuiu para colocar
as pessoas negras em desvantagens históricas (EDITORIAL, 2021).
Levando-se em conta que o Brasil foi colonizado em 1500 e, desde então, a desumanização
dos corpos negros tem sido um de seus maiores pilares; que o Ensino de Física e de Astronomia
desenvolve-se no País somente após os anos 60 do século XX (MOREIRA, 2000; LANGHI,
NARDI, 2012); que as pessoas quilombolas foram reconhecidas como sujeitas e sujeitos
políticos de direitos fundamentais com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (GUS-
MAO, SOUZA, 2012) e, mais importante para a discussão que aqui trazemos, que a Educação
Escolar Quilombola (EEQ) é um projeto recente (BRASIL, 2012; DA SILVA, 2013) fruto das
lutas históricas dos Movimentos Sociais Negros Organizados, quando se estabelece no Brasil
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EEQ (DCNEEQ) — é necessário reconhecer que
muito o que avançar para que de fato possamos amadurecer aquilo que entendemos por EEQ
diferenciada
4
, capaz de propor e articular outros marcos civilizadores para o estabelecimento da
democracia no Brasil.
Nos processos históricos de gestação das DCNEEQ
5
, as deliberações da Conferência
Nacional de Educação (CONAE, 2010) orientavam que a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios deveriam:
a) Garantir a elaboração de uma legislação especíca para a educação qui-
lombola, com a participação do movimento negro quilombola, assegurando
o direito à preservação de suas manifestações culturais e à sustentabilidade
de seu território tradicional. b) Assegurar que a alimentação e a infraestru-
tura escolar quilombola respeitem a cultura alimentar do grupo, observando
o cuidado com o meio ambiente e a geograa local. c) Promover a formação
especíca e diferenciada (inicial e continuada) aos/às prossionais das esco-
las quilombolas, propiciando a elaboração de materiais didático-pedagógicos
contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo. d) Garantir a parti-
cipação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referen-
tes à educação, nos três entes federados. e) Instituir um programa especíco
de licenciatura para quilombolas, para garantir a valorização e a preservação
cultural dessas comunidades étnicas. f) Garantir aos professores/as quilombo-
las a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a
sua própria escolarização. g) Instituir o Plano Nacional de Educação Quilom-
4 Educação que reconhece a escola especíca, intercultural (SILVA, SANTIAGO, 2016), capaz de romper
com as lógicas coloniais, folcloristas e subalternizantes dos processos escolares brasileiros, principalmente pelo
viés da raça. É a escola capaz de dialogar com os saberes-fazeres das comunidades quilombolas, vistas como com-
plexos sistemas políticos, sociais e antropológicos e, por isso mesmo, dinâmicos.
5 Conforme amplamente documentado na literatura especializada, o Movimento Negro Quilombola tem
papel fundamental nas articulações políticas de 1988 até 2012, quando as DCNEEQ são nalmente promulgadas.
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bola, visando à valorização plena das culturas das comunidades quilombolas, à
armação e manutenção de sua diversidade étnica. h) Assegurar que a atividade
docente nas escolas quilombolas seja exercida preferencialmente por professores/
as oriundos/as das comunidades quilombolas. (C0NAE, 2010, p. 131-132)
Passada quase uma década desde a elaboração das DCNEEQ, muitos desaos a serem
superados no que tangem a construção identitária da EEQ na zona rural e, especialmente, na cidade,
de forma que a ressemantização das palavras quilombo e quilombola nos traz, do ponto de vista das
ciências físicas, responsabilidades inerentes à construção de um currículo de Ciências da Natureza
emancipador e democrático, capaz de reconhecer a pluralidade cultural do País e, particularmente,
dos quilombos e das pessoas quilombolas.
Apresentamos no presente artigo ensaístico reexões sobre alguns dos desaos e potenciali-
dades colocados aos ensinos da Física e da Astronomia no campo da EEQ, reetindo a experiência
do autor como professor, pesquisador, extensionista e divulgador de ciências em comunidades
quilombolas e/ou coordenando projetos que envolvem diretamente a EEQ. Argumentamos que os
ensinos de Física e de Astronomia são cruciais para o fortalecimento da EEQ diferenciada no País,
face às implicações da Quarta Revolução Industrial, impulsionada e caracterizada principalmente
pela Física e pela Astronomia.
Física e Astronomia 4.0: EEQ e a Quarta Revolução Industrial
Composta majoritariamente por pessoas negras, a educação escolar pública brasi-
leira é um território negro (ALVES-BRITO et al. 2021, submetido), que tem sido alijado do direito
fundamental de olhar para o mundo e para as suas experiências quotidianas pelas lentes do que a
Física e a Astronomia, duas ciências básicas potentes e as principais responsáveis pela proposição
de modelos cosmológicos e pela forma como pensamos e exploramos a matéria em suas profundas
relações com a tecnologia, têm a nos oferecer.
Se, por um lado, o ensino de Física e de Astronomia no Brasil são sabidamente problemáticos
(LANGHI, NARDI, 2012; ALVES-BRITO, 2020; MOREIRA, 2021), requerendo olhares atentos
aos seus processos metodológicos (teóricos, experimentais e observacionais), didáticos-pedagógicos
e históricos-epistemológicos, por outro lado Moreira (2021) acertadamente nos adverte que “en-
sinar e aprender Física envolve conceitos e conceitualização, modelos e modelagem, atividades
experimentais, competências cientícas, situações que façam sentido, aprendizagem signicativa,
dialogicidade e criticidade”.
No caso particular dos ensinos de Física e de Astronomia na EEQ, de forma a caracterizá-
-la como educação diferenciada, uma demanda histórica da população quilombola, é importante
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ressaltar que além de todos os desaos já muito bem apontados por Moreira (2021) — e que são
altamente dramáticos deve-se ainda levar em conta as perspectivas históricas, ontoepistemoló-
gicas, linguísticas, psicológicas, culturais, sócio-antropológicas, políticas e cosmológicas que, em
cojunto, operam nos territórios e na escolarização quilombola, dentro ou fora de suas comunidades.
De acordo com as DCNEEQ, há escolas quilombolas, localizadas em territórios homônimos, e
escolas que atendem estudantes quilombolas. Ambas devem fazer valer, em todos os níveis, as
premissas das DCNEEQ.
É nesse sentido que argumentamos aqui que um dos grandes desaos para os processos
escolares dos corpos negros brasileiros, notadamente no caso da EEQ, é a re-interpretação dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS: Figura 1) da Organização das Nações Uni-
das (ONU) em sua agenda socioambiental, que dão sentido técnico e pedagógico aos valores e
premissas da assim denominada Quarta Revolução Industrial, a qual articula, implicitamente e
explicitamente, a estruturação da educação básica brasileira no âmbito da Resolução CNE/CP
2, de 20 de dezembro de 2019, que dene as Diretrizes Curriculares Nacionais e a Base Nacio-
nal Comum para Formação Inicial de Professores da Educação Básica, bem como a Resolução
CNE/CP1, de 27 de outubro de 2020, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação Continuada de Professores da Educação Básica e Base Nacional Comum para a For-
mação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada), conforme
discutido recentemente em outro trabalho (MASSONI, ALVES-BRITO, CUNHA, 2021).
Figura 1: Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), agenda mundial proposta pela ONU, 2015-
2030.
Fonte: ONU.
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Como agenda socioambiental, podemos armar numa discussão contemporânea, que os
ODS são a essência do Projeto de Modernidade
6
e estão altamente articulados à agenda mundial
de ciência e tecnologia e à própria economia, tendo a Física e a Astronomia como ciências que
jogam papel fundamental. Acontece que, não podemos esquecer, segundo Mignolo (2005), a
Modernidade e o sistema mundo-capitalista só é possível por conta da economia do Atlântico,
baseada na escravização dos corpos negros africanos. Historicamente, é inegável, a Astronomia
e a Física são as grandes ciências básicas nas circunstâncias das duas revoluções que mar-
caram os séculos XVIII e XIX: a Revolução Industrial, de ordem econômica, e a Revolução
Francesa, de ordem política. Sem a Física, a Termodinâmica não seria possível, de forma que
o aprofundamento do capitalismo como produção dominante tampouco poderia existir, vide a
relação direta entre a Termodinâmica e a Revolução Industrial (ALVES-BRITO, 2020). Sem
Astronomia, pensando suas bases práticas responsáveis pela denição de latitude e/ou longitude
pela cartograa celeste, o projeto colonial-dominador de expansão marítima em busca de novos
territórios (rotas comerciais) tampouco seria possível. Mais do que isso, podemos armar que
foi tensionando sistemas de produção e conhecimentos que as Revoluções Industrial e Francesa
criaram novos sujeitos e classes, racialmente hierarquizados. É nessa conjuntura que a escola
também entra. Enquanto a educação escolar surge para forjar corpos e mentes para o sistema
fabril e universitário, negras e negros foram excluídos desses espaços e processos de poder no
mundo, efeito mais sintomático no Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão. É no
âmbito desses processos históricos que a Física e a Astronomia têm sido ligadas, desde então,
a desenvolvimento e inovação, alinhadas à ideia de tecnologia de ponta responsável por pro-
jetos cruciais de racionalização do mundo estabelecendo, inclusive, o conceito de ciência e as
suas metodologias. Ciência e produção tecnológica passam a compartilhar acepções materiais
e simbólicas e a proporem os sentidos do mundo mas, uma vez mais, as pessoas negras foram
excluídas, no Brasil e fora dele, sendo subrepresentadas na Física, na Astronomia e em carreiras
tecnológicas notadamente no mundo ocidental (CZUJKO, IVIE, STITH, 2008; ANTENEODO,
2020; ALVES-BRITO, 2020).
Como desdobramento dessas relações viscerais entre ciência, tecnologia e economia,
vivemos em pleno século XXI a denominada Quarta Revolução Industrial e, novamente, temos
nos seus moldes e fronteiras de pensamento um excedente de pessoas negras completamente fora
do sistema de educação e de produção tecnológica e cientíca. Nomeadamente para o que nos
6 Denido não apenas como o conjunto de fatores que levaram à criação das Américas cinco séculos atrás,
mas também como uma corporação de dinâmicas sociais que favorece o surgimento da economia capitalista, atre-
lada ao estabelecimento da ciência e da tecnologia contemporânea no que signicou a Revolução Copernicana.
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interessa aqui, como discutido em Schneegans, Lewis e Straza (2021), os governos mais ricos
do mundo têm promovido políticas agressivas de criação de economias digitais. Forjados no
Projeto de Modernidade e de criação de um sujeito moderno, os países mais ricos têm proposto
a categoria desenvolvimento mais inteligente, impulsionada por tecnologias digitais como inte-
ligência articial e robótica, big data
7
, Internet das coisas
8
e tecnologia blockchain
9
que, em
sinergia com a nanotecnologia, a biotecnologia e as ciências cognitivas, áreas que revolucionam
o presente século, constituem o que tem sido denominado de Quarta Revolução Industrial.
Surge então a pergunta: como conciliar os alicerces da Quarta Revolução Industrial,
que tem nos ensinos de Física e Astronomia referência cientíco-cultural predominante, com o
projeto político diferenciado da EEQ no País? Como o Ensino da Física e da Astronomia podem
articular conhecimentos no chão dos territórios quilombolas, permitindo a criação de outros
mecanismos de comunicação que envolvem a extrapolação de fronteiras interculturais (SILVA,
SANTIAGO, 2016) pouco fomentadas na formação inicial e continuada docente nessas áreas?
De que forma os ODS 2015-2030 poderão ser incorporados à EEQ num diálogo intercultural
com as experiências quilombolas? Será possível fazê-lo? E o que a agenda ONU pode apreen-
der da agenda socioambiental quilombola? Na largada dessas indagações, podemos identicar
caminhos evidentes de contradições, pois, enquanto o projeto negro de escola pública brasileira
está completamente fragilizado em suas estruturas, a EEQ, que já nasce diferenciada, sequer
faz parte dos horizontes cientícos e tecnológicos da agenda de desenvolvimento que se propõe
global.
Objetivamente, como ciência e tecnologia são sinônimos de Modernidade, a Quarta
Revolução Industrial provoca um tensionamento direto entre o sujeito moderno e o sujeito
diferenciado. O ethos da Modernidade está em tensão com o ethos da percepção quilombola
de mundo, desde a denição de quilombo no continente africano (MUNANGA, 1996) até as
signicações e ressemantizações da palavra no nosso País, do quilombo de Palmares aos nos-
sos dias (NASCIMENTO, 2008; NASCIMENTO, 2019). Dessa forma, argumentamos que os
ideais teóricos-práticos da Quarta Revolução Industrial se distanciam e, muitas vezes, entram
7 Tecnologia de fundamental importância em Física e Astronomia, consiste da coleta e análise de um
grande e volumoso conjunto de dados em altíssima velocidade. A Física e a Astrofísica são impensáveis hoje sem
big data, conectada às outras facetas do mundo digital.
8 Ligada à conexão, armazenamento e execução de funções variadas por objetos físicos conectados ao
usuário pela Internet.
9 Tecnologia complexa, mas que está associada ao descentralizamento do armazenamento de dados, de
forma a deixá-los mais seguros.
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em conito direto com o projeto de EEQ diferenciada no que tange, sobretudo, os ensinos de
Física e de Astronomia, por várias razões.
Primeiro, não há como sedimentar, do ponto de vista técnico e pedagógico, os princípios
da Quarta Revolução Industrial com os da EEQ diferenciada, sem que haja ensinos alicerçados e
descolonizados de Física e Astronomia. Para além da atual discussão sobre o ensino de Ciências
da Natureza na educação básica brasileira e sobre como os ensinos de Física e de Astronomia
perdem espaço no Ensino Médio no terreno da BNC-Curricular (MASSONI, ALVES-BRITO,
CUNHA, 2021), é sabido que há um baixo número de professoras e professores licenciados em
Física no Brasil (BELTRÃO et al. 2020) e, mesmo quando existem, ainda lhes carecem formação
intercultural (SILVA, SANTIAGO, 2016) para lidar com as questões especícas quilombolas. Há,
quase sempre no ensino de Física/Astronomia corrente, na universidade ou na educação básica,
demasiada ênfase nos processos matemáticos e formulísticos e pouco dos fenômenos e mesmo
da relação da Física e da Astronomia com a vida das comunidades tradicionais. Em Massoni,
Alves-Brito e Cunha (2021), apontamos que o Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio
de 2021, fortemente amparado na BNC-Curricular, simplesmente não leva em conta, nem em
Física e/ou Astronomia, a contribuição das matrizes africanas e dos povos originários presentes
no Rio Grande do Sul. Soma-se a isso o fato de que, em geral, Física e Matemática são disci-
plinas odiadas pelos estudantes, em todos os contextos em que são mencionadas, vistas como
abstrações sem utilidade prática aparente, que se complexicam no processo de comunicação
com as pessoas, fazendo-as se sentirem à parte da ciência e dos espectros de aprendizagem. Além
disso, as escolas quilombolas brasileiras, em pesquisa quali-quantitativa em curso no Rio Grande
do Sul
10
, quando analisadas em três dimensões condições básicas, estrutura física e prática
pedagógica — estão completamente desassistidas pelo Estado brasileiro quando comparadas às
escolas públicas não quilombolas (ALVES-BRITO et al. 2021, submetido). Esses fatores juntos
aprofundam o abismo que aparta o ethos do sujeito moderno, nos termos aqui discutidos, do
sujeito político quilombola.
Segundo, as conjunturas culturais dos estudantes quilombolas não são, em geral, levadas
em conta na escola formal
11
. De maneira geral, o ensino de Física/Astronomia é ainda atravessado
10 Projeto de Pesquisa Zumbi-Dandara dos Palmares: desaos estruturais e pedagógicos da EEQ para a
promoção da equidade racial no Brasil do século XXI, idealizado e coordenado pelo autor, com apoio nanceiro
do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT), no âmbito do Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros, Indígenas e Africanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com
o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Instituto de Assessoria das Comunidades Remanescentes de
Quilombos (IACOREQ), Instituto Comunidade Morada da Paz (CoMPaz), escolas e comunidades quilombolas e
secretarias de educação (estadual e municipal) do RS.
11 Termo usado apenas para destacar os aparatos legais, já que, nesse texto, não entendemos a educação
Educação escolar quilombola: desaos para o ensino de física e astronomia
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pelo viés positivista da ciência que, historicamente, não leva em conta as condições culturais
diversas que são importantes para os processos cognitivos e de assimilação de conceitos. Há,
portanto, como arma Moreira (2021), pouca ênfase nos conceitos e na conceituação no ensino de
Física. Para ampliar suas provocações, diríamos que muita carência ainda de problematização
epistemológica sobre como esses conceitos físicos/astronômicos são construídos ou se relacionam
no enquadramento de outras culturas (LIMA, 2013; ALVES-BRITO, BOOTZ, MASSONI, 2018).
Há, também, pouco espaço para a construção e discussão crítica da perspectiva das ciências físicas
como limitadas no tempo e no espaço, colaborativamente construídas, determinadas por aspectos
sócio-culturais, econômicos e políticos. Quais são, por exemplo, as situações técnico-cientícas
que acontecem nos territórios quilombolas e que podem ser exploradas e expandidas nas aulas
de Física e Astronomia? Onde e como elas aparecem nos currículos vigentes? Responder a estas
indagações e implementar mudanças curriculares radicais é crucial para que possamos dialogar
completamente com as bases pedagógicas humanísticas que propõem e discutem a necessidade
de se atribuir sentido ao que se é ensinado. A experiência quilombola é carregada de sentidos.
Terceiro, os modelos físicos e astrofísicos, como representações da realidade, tampouco
são explorados em sala de aula. No caso particular da EEQ, defendemos que as cosmologias
negras de matriz africana e afro-brasileira precisam fazer parte das aulas de Física e Astronomia.
É a partir delas que os estudantes quilombolas existem no mundo e se posicionam, numa relação
direta com a ideia expandida de corpo-território (NASCIMENTO, 2008). O tecido cósmico do
Universo ganha, na perspectiva quilombola, uma conotação mais profunda de relação com o
corpo e com a natureza, já que os corpos negros são, eles mesmos, quilombos. Sendo assim, in-
dagamos: de que forma as modelagens computacionais e matemáticas, tão presentes nos ensinos
de Física e Astronomia, podem ser estudadas nas escolas quilombolas para dar sentido às experi-
ências ancestrais de matriz africana que acontecem nas comunidades? Como poderão, estudantes
quilombolas, criar modelos teóricos-matemáticos-computacionais para resolver os problemas
locais de suas comunidades, fortalecendo e apontando caminhos e estratégias de mobilização
política? O aprofundamento da modelagem, do pensamento computacional-algorítmico como
ferramenta de representação de mundos utópicos/distópicos para as comunidades quilombolas,
é, aqui, visto como uma das potencialidades dos ensinos de Física/Astronomia comprometidos
com a EEQ diferenciada. Mas, antes disso, é preciso garantir que as três tecnologias básicas
que acontecem no chão das escolas — a escrita, a leitura e o domínio das quatro operações ma-
temáticas fundamentais juntamente com as habilidades de comunicação de ideias, não sejam
quilombola, a que acontece nos territórios, como educação informal ou em conotação pejorativa que a binaridade
formal/informal possa signicar.
Alan Alves-Brito
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subestimadas e negadas aos corpos negros quilombolas. A EEQ diferenciada requer, portanto,
processos profundos de ensino, aprendizagem e avaliação para além da Agenda ONU 2015-2030,
neoliberal em essência, focada nos exames padronizados de avaliação (MOREIRA, 2021), base
contemporânea do ensino de Física nas escolas, quilombolas ou não, com enviesamentos raciais,
de gênero, classe, origem geográca e etc.
Quarto, o desenvolvimento das competências cientícas fomentadas e amadurecidas no
chão dos territórios quilombolas desaam o ensino tradicional de Física e Astronomia porque,
como preconiza o Artigo 34 das DCNEEQ, o currículo da EEQ diz respeito:
Aos modos de organização dos tempos e espaços escolares de suas ativida-
des pedagógicas, das interações do ambiente educacional com a sociedade, das
relações de poder presentes no fazer educativo e nas formas de conceber e
construir conhecimentos escolares, constituindo parte importante dos proces-
sos sociopolíticos e culturais de construção de identidades. §1º Os currículos
da Educação Básica na Educação Escolar Quilombola devem ser construídos a
partir de valores e interesses das comunidades quilombolas em relação aos seus
projetos de sociedade e de escola, denidos nos projetos político-pedagógicos
(Brasil, 2012, p. 34).
Dessa forma, as competências básicas focadas em desenvolver senso crítico e questionador
nos estudantes quilombolas, capazes de levá-los a reetir sobre suas próprias demandas técnicas,
cientícas e de movimentação (cosmo)política no mundo, são cruciais. É, portanto, um desao
colocado aos ensinos de Física e Astronomia na EEQ, criar estratégias de reconhecer e construir
outros caminhos metodológicos de experienciação com a ciência. Não há, na EEQ, como abrir
mão, mesmo no ensino das ciências físicas, das metodologias dissidentes e etnográcas, numa
relação dialógica com a História, a Filosoa, a Sociologia e, principalmente, a Antropologia. Os
ensinos de Física e de Astronomia, sobretudo a potência que essa última disciplina ganha no novo
Ensino Fundamental, devem ser capazes de levar estudantes quilombolas a observar cuidadosa-
mente o entorno, propondo perguntas inovadoras, a partir do seu território, de sua comunidade,
numa relação outra com a ideia de validade entre o local/universal. A investigação cientíca, para
eles, só fará sentido se praticada numa outra lógica sujeito-objeto-sujeito-natureza, destituída
de hierarquização da ora, da fauna e da funga, numa perspectiva ativa, integradora e pacíca
de todos os elementos que formam os ecossistemas. As competências de descrever, tão presen-
tes nos processos cientícos, devem incluir não somente as formas, os tamanhos, os números,
mas também os rostos, a vidas das pessoas, as emoções vividas, comunicadas e partilhadas em
comunidade. Física e Astronomia, no projeto de EEQ, devem permitir que estudantes quilom-
bolas ampliem seus horizontes cientícos, suas cosmopercepções, comparando, classicando e
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ordenando os seres vivos e não vivos sensivelmente em outras lógicas taxonômicas, tão presentes
nas experiências quilombolas. Os registros das observações, dos movimentos aparentes do Sol,
da Lua e das estrelas, os pontos cardeais, os calendários, as relações entre os fenômenos físicos,
astronômicos e meteorológicos devem ser feitas por palavras, imagens, sons, tabelas e grácos.
O diálogo e as trocas em comunidade não podem ser perdidos de vista e, as escalas temporais,
vividas de um outro jeito, numa circularidade que usa variadas ferramentas para entender o que
se observa a partir de múltiplos olhares e perspectivas, tensionando continuamente as escalas
temporais lineares da Modernidade. Além disso, os padrões identicados a partir da perspectiva
quilombola estão sempre conectados às teias das estruturas sócio-racializadas, capazes de ajudar os
estudantes e suas comunidades a desenvolver explicações, especulações e ideias provisórias, que
seguem a dinâmica da vida, das lutas e disputas contínuas que acontecem nos territórios todos os
dias. Trata-se portanto de desenvolver competências que sejam capazes de dialogar com as práticas
de escuta, diálogo e afeto, em que mundos (in)visíveis se fazem presentes no chão dos territórios.
Não se trata, tampouco, de focar em conteúdos puramente deste ou daquele tópico de Física e de
Astronomia, mas é compreender como conhecimentos e competências, juntos, garantirão autono-
mia, transformação social e direitos, valorizando a pertença racial e o lugar de existência e resis-
tência no mundo. Somente ensinos de Física e Astronomia humanizados (SANTOS, QUEIROZ,
OLIVEIRA, 2021) serão capazes de se aproximar dessas realidades sem o peso da visão histórica
colonial racista. A perspectiva humanística (quem é, anal, humano?), por incrível que isso possa
parecer, segue sendo um dos maiores desaos para o ensino de ciências físicas no âmbito da EEQ
e dos territórios negros.
Quinto, no espectro da Quarta Revolução Industrial, a articulação das inteligências articiais,
do pensamento computacional, dos laboratórios virtuais e de todo o alcance da cultura digital (com
ônus e bônus) não chegam às escolas quilombolas, de forma que estas são ainda grandes barreiras
para a efetivação da EEQ diferenciada. No caso dos ensinos de Física/Astronomia, ainda mais
grave, já que são ciências vivas, que lideram os avanços cientícos-tecnológicos no mundo e são
responsáveis, em última instância, pela explicação sobre como o Universo se formou e evolui, em
que simulações são cruciais para representar fenômenos ou situações físicas muito complicadas ou
complexas (ALVES-BRITO, CORTESI, 2020). Como discutido em Alves-Brito (2020), estudantes
negros estão completamente alijados do acesso a tecnologias de comunicação, Internet e todos os
desdobramentos dos elementos que a Quarta Revolução Industrial denomina de desenvolvimento
mais inteligente. Os territórios quilombolas, urbanos ou rurais, são, eles mesmos, laboratórios
vivos de experimentação/observação de Física e de Astronomia e, a escola, precisa desenvolver e
ampliar essa abordagem, até mesmo para fazer valer o que de fato é essencial na EEQ: o viés alta-
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mente interdisciplinar que esta exige, para além das fronteiras de um pensamento cientíco
ou corrente losóca e epistemológica, no diálogo permanente com o ser-sendo-comunidade.
Além disso, é importante lembrar que os atuais ecossistemas de mídias digitais baseiam-se em
complexos algoritmos, construídos a partir de padrões de discriminação e racialização, con-
tribuindo para as lógicas neoliberais de sociedade que aprofundam desigualdades no acesso
à comunicação, sobretudo de pessoas negras (NOBLE, 2018; SILVA, 2018). A Inteligência
Articial, base fundamental da Quarta Revolução Industrial, está, assim, atrelada às estruturas
opressoras do sistema de dominação, mantendo privilégios e disparidades entre os grupos racial-
mente hierarquizados, reproduzindo estereótipos descritivos e prescritivos (MOREIRA, 2020),
de forma que essas discussões precisam chegar às escolas quilombolas como parte do projeto
de rearmação positiva dessas identidades. A Física e a Astronomia são ciências que usam cada
dia mais os processos de Inteligência Articial (ALVES-BRITO, CORTESI, 2020), assim que
essas ferramentas e discussões mais profundas de cultura digital a partir do ensino de Física
e de Astronomia potencializam o concreto-abstrato, se chegarem às escolas e às comunidades
quilombolas.
Sexto, e muito importante, não há como fomentar o interesse de estudantes quilombolas
em Física e Astronomia se ambas forem apresentadas destituídas de sentidos, numa perspectiva
cosmofóbica, baseadas no projeto colonizador e epistemicida de Modernidade (SANTOS, 2015),
em que as pessoas negras não estão representadas.
Sétimo, Alves-Brito (2020) traz reexões mais globais acerca da realidade das pessoas
negras na Física e na Astronomia. Levando em conta as questões sistêmicas em jogo, argumen-
tamos que para que mudanças estruturais aconteçam precisaremos repensar urgentemente os
modelos de formação e abordagens pedagógicas de professores, no uxo inicial e continuado,
ultrapassando os limites das caixas de conhecimento que os separam em tecnicismo, prático
e intelectual-crítico (MASSONI, ALVES-BRITO, CUNHA, 2021). No caso da EEQ, o maior
desao é que a formação inicial e continuada de professores de Física/Astronomia alinhe-se
aos valores e marcos civilizatórios afro-brasileiros, uma grande tensão conceitual que passa por
crenças, valores, atitudes e questões mais profundas de cunho losóco e de natureza da ciência,
um debate quente contemporâneo (ROSA, ALVES-BRITO, PINHEIRO, 2020), como ampliado
na seção seguinte.
Física e Astronomia na EEQ: pretagogias e diálogos interculturais
De acordo com Brandão (2006), os valores e marcos civilizatórios afro-brasileiros arti-
culam elementos essenciais que marcam o complexo universo de coisas construído a partir da
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realidade afrodiaspórica. Muitos desses valores, sem deixar por sua vez de reconhecer a heteroge-
neidade dos territórios quilombolas no Brasil, são coletivamente partilhados pelas comunidades:
a ancestralidade, a memória, a ludicidade, o axé (energia vital), a oralidade, a circularidade, a
religiosidade, a corporeidade, a musicalidade e o cooperativismo/comunitarismo. É por meio
deles que as comunidades quilombolas também constroem suas narrativas de mundo. São eles
que dinamizam as potencialidades das vivências quilombolas na construção do currículo e de
como percebem as relações cientícas-tecnológicas. As comunidades tradicionais e quilombolas
sabem e reconhecem, por exemplo, que os efeitos das mudanças climáticas são desastrosos para
o planeta, contribuindo para a formação de tempestades destrutivas, secas, incêndios, morte dos
rios e das orestas e o aparecimento de calamidades e enfermidades. Interpretam o surgimento
de COVID-19 como também uma consequência do antropoceno (ARTAXO, 2014). Rompe-se,
no olhar técnico-cientíco das comunidades quilombolas, implícita ou explicitamente, a relação
etnocêntrica do mundo, numa convivência harmoniosa entre seres vivos e não vivos. É nesse
sentido que a palavra desenvolvimento ganha outras roupagens e signicações nas experiências
quilombolas, sendo estas os focos de tensão com a agenda do sujeito moderno em detrimento à
construção do sujeito político quilombola que a EEQ diferenciada deve ajudar a fomentar. São
dessas sinapses e relações com os marcos civilizatórios afro-brasileiros que a construção do
currículo da EEQ acontece de forma interdisciplinar. A interdisciplinaridade é, portanto, uma
das bases fundamentais das vivências escolares quilombolas, exatamente porque a cosmologia
quilombola não pode ser construída em sua completude sem estabelecer uma relação de cum-
plicidade com a natureza. Consequentemente, os ensinos de Física e de Astronomia não poderão
se abster do diálogo profundo com as experiências culturais dos povos quilombolas construídas
(mas não limitadas) a partir dos marcos civilizatórios apresentados por Brandão (2006).
Enquanto Física e Astronomia fortalecem a tríade ciência-tecnologia-inovação, interpreta-
da como sinônimo de Modernidade altamente ligada à economia, a EEQ nos desaa a olhar para
elementos ainda eclipsados das práticas metodológicas e histórico-losócas e epistemológicas
dessas ciências fundamentais, como pode ser raticado a partir de dois exemplos marcantes.
Primeiro, as implicações éticas da discussão da ideia de desenvolvimento cientíco-
-tecnológico e inovador para justicar a apropriação de terras das comunidades quilombolas de
Alcântara, no Maranhão, onde foi construída na década de 1980 uma Base Espacial de lançamento
de foguetes, que encerra, da forma como tem sido feito, um projeto neocolonial-capitalista nada
intercultural (SEREJO LOPES, 2020). Num trabalho cientíco e de memória impactante, Serejo
Lopes (2020), ele mesmo quilombola em Alcântara, narra também os impactos desse processo
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na formação estudantil e política de pessoas da comunidade e da sua própria família. Além da
ideia profunda de território podemos destacar, em sua narrativa, questões sérias de natureza da
ciência que precisam ser levadas para as salas de aulas de educação em ciências, principalmente
nas aulas de Física e de Astronomia, que estão no centro da tensão de diferentes perspectivas
sobre o que desenvolvimento signica.
Segundo, as sutilezas metodológicas e epistemológicas no trato da EEQ nas ciências
físicas quando analisado o fato de que as cosmologias, as histórias e as culturas dos povos afri-
canos em diáspora, que contribuíram fortemente para a formação da nação brasileira, não são
consideradas nos ensinos de Física e de Astronomia. Não há como abrir mão dessa discussão na
EEQ. Onde estão, por exemplo, as cosmologias Yorubá, Bantu e Fon
12
no currículo das ciências
físicas? Quais são as constelações e as narrativas do céu e dos fenômenos físicos, astronômicos e
meteorológicos dessas culturas? Como o céu e a terra se conectam? Como o céu está conectado
às rotas de fugas de escravizados no Brasil e fora dele? Qual é, por exemplo, a importância da
oralidade como uma tecnologia potente para dar sentido às cosmologias Yorubá, Bantu e Fon,
no círculo da ancestralidade, ligada à música, à memória e à ludicidade? O conjunto de poesias e
mitologias africanas (linguagens) formam a base cosmológica profunda do ser-sendo no mundo
dos Yorubá-Bantu-Fon, todas encontradas na diáspora brasileira, e, como cosmologias, de que
forma poderão entrar nos currículos das ciências físicas?
Mais do que isso, o ensino de Física e de Astronomia num viés intercultural (SILVA,
SANTIAGO, 2016), especicamente no quadro da EEQ, também potencializa as discussões sobre
quais são os pressupostos/barreiras para se aprender ciência e de que forma as crenças, os valores
e as atitudes (psicologia) dos e das aprendizes precisam ser levados em conta. Como explicado
anteriormente, a religiosidade e a espiritualidade são marcos intrínsecos das vivências negras e
quilombolas, de forma que esse também é um ponto de tensão que precisa ser aprofundado em
torno do problema clássico de demarcação da ciência (MASSONI, 2010), principalmente levando-
-se em conta que uma grande maioria de físicos e físicas são céticos (ECKLUND e SCHEITLE,
2007). Não podemos, no entanto, se quisermos ampliar as possibilidades de engajamento da
educação e da divulgação de ciências físicas no contexto quilombola/negro, ter receio de realizar
essa discussão de forma séria, cientíco-losóca e político-pedagógica. Mesmo porque, vale
destacar, Moshfeghyeganeh e Hazari (2021) mostraram recentemente que enquanto as mulheres
continuam subrepresentadas na Física nos Estados Unidos (uma represetação do Ocidente), elas
são maioria em cursos de graduação e pós-graduação em Física nos países de predomínio muçul-
12 Culturas africanas que contribuem fortemente para a formação do País.
Educação escolar quilombola: desaos para o ensino de física e astronomia
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mano. O estudo mostra que a religião das cientistas não é uma barreira para que estas escolham
suas carreiras na Física; alternativamente, elas se dizem estimuladas pelo cenário cultural diverso.
Os tensionamentos entre a e as teorias cientícas estão dados séculos, e, se por um lado,
o racismo cientíco retirou os corpos negros da ciência, desistituindo-os de inteligência, a fé,
mais ainda se de matriz africana, como discute Conceição (2016), também é frequentemente
associada a baixa inteligência, o que amplia maior cuidado na relação Física/Astronomia (Ciên-
cia Moderna e Contemporânea) com os Saberes-Fazeres tradicionais quilombolas, que também
estão/podem estar conectados a religiosidades e espiritualidades. Sabemos que a discussão das
crenças religiosas é um grande tabu nas ciências físicas, ainda que, historicamente, grandes no-
mes dessas ciências, como Isaac Newton (1643-1727) e Albert Einstein (1879-1955), professam
suas religiosidades, as quais, designadamente, não os impediram de criar teorias cientícas e,
algumas delas, revolucionárias.
É nesse sentido que defendemos que as pretagogias
13
precisarão cada vez mais fazer
parte dos currículos e dos espaços escolares, sobretudo no caso das ciências físicas. Elas são
referenciais teóricos-metodológicos fundamentais, de base africana, para a formação de profes-
soras e professores (SILVA, 2013). São capazes de por meio da valorização da ancestralidade,
da tradição oral, do corpo como fonte primordial de saberes que não estão desconectados do
espírito, da religiosidade e do território constituído pelo espaço-tempo —, devolver humanidade
aos corpos negros e quilombolas, alterando fortemente os processos pedagógicos e mediando
conitos raciais no chão das escolas. As pretagogias dialogam o tempo inteiro com as experiên-
cias comunitárias e, por isso mesmo, sua agenda de desenvolvimento não hierarquiza saberes e
fazeres. A promoção do ensino e da aprendizagem de Física e de Astronomia na esfera da esco-
larização quilombola só fará sentido se aspectos historiográcos, epistemológicos, linguísticos,
psicológicos, políticos e cosmológicos estiverem no horizonte de elaboração e consideração
do papel da ciência para fortalecer o/a sujeito/a que é moderno/a, contemporâneo/a, político/a
e quilombola. A potência dessa abordagem está na elaboração e efetivação de uma agenda de
desenvolvimento que levará em conta a pluralidade de experiências e expressões sensoriais que
são gestadas nos territórios quilombolas, difícil de serem vistas pelas lentes desfocadas de uma
estética Moderna que se pretende homogeneizadora, em dimensões industriais. A Física e a As-
tronomia precisarão, assim, reconhecer e alcançar os públicos quilombolas, sempre colocados
do lado da (in)diferença neocolonial e capitalista, e, nesse aspecto, as pretagogias são essenciais.
13 Neologismo criado pelas pedagogas Sandra Petit e Geranilde C. Silva, aqui usado para dar conta de
variadas estratégias metodológicas para o ensino e a aprendizagem em sala de aula, tendo como base os saberes-
fazeres africanos e afro-brasileiros.
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Por m, o currículo das ciências físicas deve estar em consonância não apenas com
os conteúdos do conhecimento cientíco escolar comum à educação básica, mas deve incluir
representações e conhecimentos da comunidade na qual ele se materializa. Os conhecimentos
tradicionais, em que céu e terra, etnicidade, identidade, território, cultura, corpo, cosmopercepção,
oralidade e escrita, localidade e universalidade estão articulados, precisam ser representados e
vivenciados como parte da dinâmica de ensino-aprendizagem, a partir do princípio de que a EEQ
tem muito a contribuir (e a dizer) para o Projeto de Modernidade materializado na Agenda da
Quarta Revolução Industrial, e não somente uma via de mão única, sem jamais perder de vista
o aprofundamento e o fortalecimento da experiência comunitária.
Considerações nais
O objetivo do presente artigo foi levantar reexões sobre quais são os desaos e poten-
cialidades dos ensinos de Física e de Astronomia no domínio da EEQ, sobretudo para se fazer
diferenciada nas circunstâncias hegemônicas do que propõe o currículo escolar pautado nos
ideais da Quarta Revolução Industrial, consequência do Projeto de Modernidade. Resultados
preliminares de pesquisa quantitativa-qualitativa em curso no Rio Grande do Sul já apontam
que os desaos estruturais e pedagógicos da EEQ, desassistida, sem Internet, laboratórios, bi-
bliotecas e/ou apoio técnico-pedagógico, são muitos. Argumentamos que a formação inicial e
continuada de professores de Física e de Astronomia precisará dar conta dos valores civilizatórios
presentes nos espaços quilombolas como lugares de luta, resistência e ressignicação política.
O currículo em Ciências da Natureza, na perspectiva das ciências físicas, precisa descolonizar a
ciência, rompendo com as lógica racistas naturalizadas, sobretudo no que diz respeito às tensões
em torno das questões de localidade/universalidade, da oralidade/escrita e do papel das sinapses
psicológicas que desembocam nos processos de ensino e aprendizagem e que estão, por sua vez,
ligadas às atitudes, às crenças e aos valores quilombolas, sedimentadas em experiências ances-
trais, carregadas de valores simbólicos que o mundo físico, sozinho, não dá conta. O diálogo
intercultural e interdisciplinar nas ciências físicas é urgente. Trata-se, portanto, de se criar, no
seio dos ensinos de Física e de Astronomia, estratégias para valorizar e fortalecer a identidade
quilombola, potencializando os saberes e fazeres tradicionais no ensino dessas duas ciências
básicas fundamentais. Há, nesse processo, questões intrínsecas de natureza da ciência que pre-
cisam ser levadas em conta para que possamos avançar, com as pessoas quilombolas, e mover
estruturas seculares de dominação e poder, altamente baseadas na categoria “raça”, conceito
gestado no Projeto Cientíco e de Poder Moderno e Contemporâneo.
Educação escolar quilombola: desaos para o ensino de física e astronomia
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.2, p. 60-80, mai./ago. 2021 |
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Recebido: 25 de maio de 2021
Publicado: 14 de julho de 2021
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