Os modelos de oferta da educação em prisões no Brasil e a construção do seu projeto político pedagógico
Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 49-67, jan./abr. 2021 |
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11706
OS MODELOS DE OFERTA DA EDUCAÇÃO EM
PRISÕES NO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DO SEU
PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO
Roberto da Silva
1
Universidade de São Paulo
http://orcid.org/0000-0001-8195-8664
Marineila Aparecida Marques
2
Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo
http://orcid.org/0000-0002-3842-0401
RESUMO:
A aprovação das Diretrizes Nacionais para a Oferta da Educação em Estabelecimentos Penais em 2009
abriu o caminho para a discussão em torno da pertinência de um projeto político pedagógico para o
sistema penitenciário brasileiro, assentado nos dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e
da Lei de Execução Penal. Nesse sentido o projeto político pedagógico – PPP, das prisões possibilita a
salutar complementaridade entre a legislação educacional e penal, favorece a articulação entre políticas
setoriais, potencializa a sinergia entre as ciências pedagógicas e jurídicas e mobiliza distintos campos
prossionais em torno de objetivos comuns. Tomando a Pedagogia Social como a sua inspiração teórica,
o artigo explora a legislação e a produção teórica do GEPÊPRIVAÇÃO (Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade) para discutir os modelos de oferta da Educação
em prisões no Brasil, as potencialidades da Educação para impactar positivamente a Execução \Penal,
aponta os avanços e retrocessos na política criminal e penitenciária e conclui pela potencialização das
prerrogativas que a LDB concede à Educação de Jovens e Adultos para a construção de um Projeto Polí-
tico Pedagógico para a Educação em prisões no Brasil que atenda às determinações da Resolução CNE/
CEB nº 3, de 15 de Junho de 2010.
Palavras Chave: Diretrizes Nacionais. Projeto Político Pedagógico. Educação em Prisões.
ABSTRACT:
THE SUPPLY MODELS OF PRISON EDUCATION IN BRAZIL AND THE
CONSTRUCTION OF ITS POLITICAL PEDAGOGICAL PROJECT
The approval of the National Guidelines for the Offer of Education in Penal Establishments in 2009,
paved the way for the discussion around the pertinence of a political pedagogical project for the Brazil-
ian prison system, based on the provisions of the Law of Directives and Bases of Education and the Penal
Execution Law. In this sense, the political pedagogical project - PPP, of the prisons enables the healthy
complementarity between the educational and penal legislation, favors the articulation between secto-
rial policies, enhances the synergy between the pedagogical and legal sciences and mobilizes different
professional elds around common objectives. Taking Social Pedagogy as its theoretical inspiration, the
article explores the legislation and the theoretical production of GEPÊPRIVAÇÃO (Group of Studies
and Research on Education in Deprivation of Liberty) to discuss the models of education provision in
1 Doutor em Educação (USP). Professor Livre Docente da Pós-Graduação em Educação (USP). Coordenador
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade (GEPÊPRIVAÇÃO).
E-mail: kalil@usp.br
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (USP). Supervisora de Ensino junto
à Diretoria de Ensino da Região Centro Oeste, da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.
E-mail: marineila@usp.br
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prisons in Brazil, the Education’s potential to positively impact Criminal Execution, points out the ad-
vances and setbacks in criminal and penitentiary policy and concludes by strengthening the prerogatives
that LDB grants to Youth and Adult Education for the construction of a Political Pedagogical Project for
Education in prisons in Brazil that meets the provisions of Resolution CNE / CEB nº 3, of June 15, 2010.
Keywords: National Guidelines. Pedagogical Political Project. Education in Prisons.
RESUMEN:
LOS MODELOS DE OFERTA DE EDUCACIÓN PENITENCIARIA
EN BRASIL Y LA CONSTRUCCIÓN DE SU PROYECTO POLÍTICO
PEDAGÓGICO
La aprobación de los Lineamientos Nacionales para la Oferta Educativa en Establecimientos Penales
en 2009, abrió el camino para la discusión en torno a la pertinencia de un proyecto político pedagógico
para el sistema penitenciario brasileño, basado en las disposiciones de la Ley de Directrices y Bases de
Educación y la Ley de Ejecución Penal. En este sentido, el proyecto político pedagógico - PPP, de las
cárceles posibilita la sana complementariedad entre la legislación educativa y penal, favorece la articula-
ción entre políticas sectoriales, potencia la sinergia entre las ciencias pedagógicas y jurídicas y moviliza
diferentes campos profesionales en torno a objetivos comunes. Tomando como inspiración teórica la Pe-
dagogía Social, el artículo explora la legislación y la producción teórica del GEPÊPRIVAÇÃO (Grupo
de Estudios e Investigaciones sobre Educación en Privación de Libertad) para discutir los modelos de
provisión de educación en las cárceles en Brasil, el El potencial de la educación para impactar positiva-
mente la Ejecución Penal, señala los avances y retrocesos en la política penal y penitenciaria y concluye
fortaleciendo las prerrogativas que otorga LDB a la Educación de Jóvenes y Adultos para la construcci-
ón de un Proyecto Político Pedagógico para la Educación en las cárceles. en Brasil que cumple con las
disposiciones de la Resolución CNE / CEB nº 3, de 15 de junio de 2010.
Palabras clave: Lineamientos nacionales. Proyecto Político Pedagógico. Educación en las Cárceles.
Introdução
A conveniência de discutir um projeto político pedagógico para o sistema penitenciário
brasileiro decorre da aprovação das Diretrizes Nacionais para a Oferta da Educação em Estabe-
lecimentos Penais, aprovada pela Resolução Nº 3, de 11 de março de 2009, do CNPCP e homo-
logado pelo Ministério da Educação por meio da Resolução CNE nº 2, de 19 de Maio de 2010.
A implantação das Diretrizes Nacionais para a oferta da Educação em Estabelecimentos
Penais no Brasil é orientada por três eixos que envolvem, de forma articulada, o sistema público
de ensino e a Execução Penal, seja por meio dos ministérios da Educação e da Justiça, seja por
meio das ações entre secretarias da Educação e da Administração Penitenciária ou equivalente
nos estados.
O Eixo A (Gestão, Articulação e Mobilização) orienta a formulação, execução e mo-
nitoramento da política pública para a educação nas prisões, inclusive com a participação da
sociedade civil, prática coletiva comum na seara da Educação, mas nova para a administração
penitenciária e a execução penal.
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O Eixo B (Formação e valorização dos prossionais envolvidos na oferta) indica que a
Educação nas prisões deve atender, além das óbvias necessidades dos presos, as necessidades
de formação continuada e permanente de educadores, agentes penitenciários e operadores da
Execução Penal.
O Eixo C (Aspectos pedagógicos) impõe aos estados a obrigatoriedade da criação de
seus próprios projetos políticos pedagógicos, com base nos fundamentos conceituais e legais
da Educação de Jovens e Adultos, bem como os paradigmas da educação popular, calcada nos
princípios da autonomia e da emancipação dos sujeitos do processo educativo.
Como se depreende da análise destes três eixos e do conjunto das Diretrizes, o PPP das
prisões possui uma dimensão orgânica e estruturante para as ações de múltiplos atores (proje-
to); impacta a Execução Penal, os procedimentos disciplinares e a rotina prisional (político); e
organiza as condições de ensino, o tempo, o espaço e o currículo (pedagógico).
Como a mais nova fronteira da Educação, o PPP das prisões possibilita a salutar comple-
mentaridade entre a legislação educacional e legislação penal - LDB (BRASIL, 1996) e Lei de
Execução Penal (BRASIL, 1984) -, favorece a articulação entre políticas setoriais – Educação,
Trabalho, Saúde, Segurança Pública e Serviço Social -, potencializa a sinergia entre duas ciências
– Pedagogia e Direito Penitenciário – e mobiliza distintos campos prossionais – professores e
agentes penitenciários – em torno de objetivos comuns.
Por meio do Decreto 7.626, de 2011, foi promulgado o Plano Estratégico de Educa-
ção no Âmbito do Sistema Prisional, por meio do qual se impôs a todos os estados brasileiros a
obrigatoriedade de construírem o seu Plano Estadual de Educação nas Prisões, de onde emerge,
implícita ou explicitamente o projeto político pedagógico.
O Artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 2, de 19 de maio de 2010 dene que,
As atividades laborais e artístico-culturais deverão ser reconhecidas e valori-
zadas como elementos formativos integrados à oferta de educação, podendo
ser contempladas no projeto político-pedagógico como atividades curricula-
res, desde que devidamente fundamentadas (grifo nosso).
A prática observada no estado de São Paulo para construção do projeto político pedagó-
gico constitui um parâmetro seguido por todos os demais estados brasileiros, ou seja, existe uma
Norma Regimentais Básica para as Escolas Estaduais, que faz uma série de recomendações e dá
orientações para quanto à elaboração di projeto político pedagógico e do regimento escolar, que
deverá ser validado por uma instância do sistema de ensino, tal como uma Diretoria de Ensino.
O Artigo 1º das Normas Regimentais do Estado de São Paulo para as escolas estaduais
As escolas mantidas pelo Poder Público Estadual e administradas pela Se-
cretaria de Estado da Educação, com base nos dispositivos constitucionais
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vigentes, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Estatuto
da Criança e do Adolescente, respeitadas as normas regimentais básicas aqui
estabelecidas, reger-se-ão por regimento próprio a ser elaborado pela uni-
dade escolar (Grifo nosso).
O Artigo 84 da mesma norma reforça que “Incorporam-se a estas normas e ao regimento
de cada escola estadual as determinações supervenientes oriundas de disposições legais ou de
normas baixadas pelos órgãos competentes”.
Isso quer dizer que entre 70 e 80% do projeto pedagógico de uma escola é previamente
prescrito pelo respectivo sistema de ensino, cando entre 20 e 30% para atendimento a especi-
cidades locais e para cumprimento pró-forma dos artigos 14 e15 da LDBN que atribuem relativo
grau de autonomia administrativa, pedagógica e nanceira à unidade escolar.
São mais de 226 mil escolas nos 26 estados e Distrito Federal (INEPDATA, 2019) orga-
nizadas segundo esta mesma lógica e precisamos desta referência para entendermos a forma de
elaboração do Projeto Político Pedagógico para a Educação em Prisões no Brasil.
Sendo o sistema prisional de responsabilidade predominantemente dos estados federados,
a oferta da Educação para as pessoas privadas da liberdade e efetivada por uma diversidade de
modelos em cada estado brasileiro, conforme se verica no quadro a seguir.
Quadro 1.
MODELO DE OFERTA ESTADO CARACTERÍSTICAS
Escola de Referência ou
Escola Vinculadora
Escola Certicadora
Acre, Alagoas, Espírito
Santo, Minas Gerais,
Piauí, Rio Grande do
Norte, São Paulo, Ser-
gipe
Trata-se de uma escola regular, sediada na comunidade, na qual são
lotados os professores que lecionam na prisão e matriculados pre-
sos e presas que queiram estudar. Esta escola faz todos os registros
escolares e emite a documentação escolar necessária.
Escola Penitenciária Amapá, Amazonas,
Pernambuco, Rio de
Janeiro, Tocantins
E o modelo mais antigo existente no Brasil, em que a Escola está si-
tuada dentro da unidade prisional, com toda sua estrutura e equipe.
Por determinação de lei elas tiveram que adotar nomes convencio-
nais para que a documentação escolar, certicados e diplomas não
identiquem a Penitenciária como local de estudos.
Anexos e Extensões Bahia, Goiás, Mara-
nhão, Roraima
Trata-se de uma escola regular que mantem anexos e/ou extensões
em uma ou mais unidade prisionais. Professores, presos e presas
que estudam tem esta escola como referência para efeito de traba-
lho, matrícula e documentação escolar.
CEEJA Ceará, Pará, Paraíba,
Paraná, Rio Grande do
Sul, Rondônia, Santa
Catarina
Professores são vinculados a um Centro de Educação de Jovens
e Adultos, que também recebe a matrícula de presos e presas que
queiram estudar.
Escola Polo Distrito Federal, Mato
Grosso, Mato Grosso
do Sul
Uma única escola (Centro Educacional 01 - DF), (Nova Chance
-MS) e Regina Bettini - MS) centraliza em todo o estado a vincu-
lação institucional de professores e a matrícula de todos os presos e
presas que estejam estudando.
Fonte: Compilação do autor a partir dos Planos Estaduais de Educação em Prisões
3
.
3 Planos Estaduais de Educação em Prisões. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/
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Por imposição da Resolução CNE/CEB nº 2, de 2010, a Educação em prisões deve ser
ofertada por prossionais do quadro regular do magistério, o que inibiu a atuação das fundações
estaduais (FUNAP), que assumiam tais atribuições no Distrito Federal e no Estado de São Paulo.
Nos modelos referenciados acima, cada um apresenta suas vantagens e desvantagens, mas
quando se considera do ponto e vista de um Projeto Político Pedagógico, é possível evidenciar
algumas características.
As escolas de Referência, Vinculadoras e Certicadoras, por exemplo, tem um PPP para
atendimento regular de seus alunos, de seus professores e de sua comunidade, mas ao atender
a população prisional de sua vizinhança tem diculdades em atender às especicidades deste
novo público, proporcionar formação especializada para seus professores e de empregar material
didático pedagógico apropriado para o contexto prisional.
A ausência de um quadro administrativo próprio para atender a prisão, inexistência de
uma direção especíca, de equipe pedagógica, de coordenação e de supervisão duplica o trabalho
administrativo desta unidade escolar, com matrículas, rematrículas, transferências, controle de
ponto e professores, registro de vida escolar e emissão de documentos. Impensável esta mesma
escola lidar com dois PPPs, um para atendimento regular e outro para atendimento do sistema
prisional.
A Escola Penitenciária, modelo mais antigo existente no Brasil, por estar instalada den-
tro de um complexo penitenciário, pode ter secretaria, sala de professores, biblioteca, direção
própria, coordenação pedagógica, supervisão, quadro docente e quadro de apoio administrativo,
podendo exercer bastante autonomia em relação a um PPP.
Em seu desfavor pesa a discussão semântica quanto à propriedade e pertinência do nome
Escola Penitenciária, que pode sugerir uma prática pedagógica orientada para reforçar as praticas
do encarceramento e de tudo o que isso pode signicar, como a estigmatização, a submissão,
o aprender a viver preso, além do fato de que a nomenclatura foi apropriada para se referir a
uma instância de formação de pessoal penitenciário, hoje renomeada em alguns estados para
Academia Penitenciária ou Escola de Administração Penitenciária.
Por força de imposição da legislação, as escolas penitenciárias precisaram alterar a no-
menclatura, adotando nomes convencionais, para que a documentação escolar emitida em favor
de seus alunos não contribuísse no processo de estigmatização com a identicação de Escola
Penitenciária.
MJSP), Disponível em https://www.gov.br/depen/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/educacao-espor-
te-e-cultura/educacao-esporte-e-cultura. Consultado em 30 Out. 2020.
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O modelo de anexos e extensões é a própria expressão do tradicional puxadinho, espaço
provisório e adaptado para sala de aula, sem qualquer infraestrutura de apoio à atividade docente.
A vinculação da Educação Prisional a um centro ou núcleo de Educação de Jovens e
Adultos, quando este destinado exclusivamente à população presa apresenta mais vantagens
do que desvantagens, dada a liberalidade que a LDB permite a esta modalidade de ensino e à
exibilidade que ela pode ter para atender segmentos especícos.
Deste que o centro ou núcleo tenha infraestrutura própria, direção, coordenação, su-
pervisão, quadro docente, equipe de apoio administrativo, é possível ter e executar um PPP de
maneira bastante razoável, proporcionando formação especíca aos seus docentes e desenvol-
vendo material didático apropriado ao contexto prisional, além de poder realizar os exames de
certicação e de aliar à Educação Básica a Educação Técnica e Prossional.
O modelo da Escola Polo, adotada no Distrito Federal, no Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, dada a exclusividade do atendimento à população prisional, apresenta mais vantagens
do que desvantagens na execução de um PPP próprio, pois tendo todos os elementos e insumos
que conformam uma unidade escolar, pode orientar sua vocação integralmente para a Educação
Prisional e tornar-se referência para a área no estado, inclusive para a formação inicial e continu-
ada de seus docentes e no desenvolvimento e material didático pedagógico próprio e especíco
para este contexto.
Sua desvantagem mais saliente está na questão da logística, que faz com que a sede da
escola esteja muito distante das unidades prisionais onde acontece a Educação.
Condicionantes e determinantes do PPP da Educação em prisões
Como a mais nova fronteira da Educação, contemplada no eixo epistemológico da Edu-
cação de Jovens e Adultos tal qual se pratica no Brasil, sob orientação do antigo Parecer CFE
699/72, que atribui à EJA três funções básicas: reparadora, equalizadora e permanente ou
qualicadora, a Educação em Prisões requer uma nova arquitetura pedagógica, com redenição
das atribuições dos prossionais que exercem a custódia da pessoa privada da liberdade e uma
nova concertação entre as várias ciências que atuam no contexto prisional.
Em ensaios anteriores do GEPÊPRIVAÇÃO, Roberto da Silva e Fábio Aparecido Moreira
apontaram que,
Muitos estudos, desde pesquisas acadêmicas, observações diretas por parte de
educadores prossionais, relatórios produzidos por investigações judiciárias e
parlamentares até monitoramentos realizados por entidades de defesa dos di-
reitos humanos, assinalam que os programas educativos em estabelecimentos
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penitenciários são inadequados, de baixa qualidade e de pouca frequência por
um único motivo: incompatibilidade entre os objetivos e metas da Educação e
os objetivos e metas da pena e da prisão. (SILVA, MOREIRA, 2006, p. 12).
O título do artigo acima citado é Objetivos educacionais e objetivos da reabilitação penal:
o diálogo possível, e este diálogo é revisitado agora à luz da Resolução CNE/CEB nº 2, de Maio
de 2010, que no Inciso I do Artigo determina que “é atribuição do órgão responsável pela edu-
cação nos Estados e no Distrito Federal (Secretaria de Educação ou órgão equivalente) e deverá
ser realizada em articulação com os órgãos responsáveis pela sua administração penitenciária”.
Diante deste imperativo legal os mesmos autores acima referenciados advertem que
Esta incompatibilidade [acima citada] não é de ordem epistemológica, ainda
que se possa armar que a condição de connamento prolongado, a necessida-
de de rápida adaptação a um ambiente hostil marcado pela cultura da violência
e a perda de referenciais de valor sejam capazes de suscitar outras formas de
saberes e de produção de conhecimentos. [...] A incompatibilidade, diria eu, é
de ordem conceitual. Enquanto prevalecer a concepção de prisão como espaço
de connamento, de castigo, de humilhação e de estigmatização social a Edu-
cação não terá lugar na terapia penal, limitando-se a ser, como efetivamente
tem sido, apenas mais um recurso a serviço da administração penitenciária
para ocupar o tempo ocioso de alguns poucos presos e evitar que se envolvam
em confusões.
Isso quer dizer que precisamos dar ecácia ao princípio do regime de colaboração, tão
enfaticamente colocado no artigo 211 da Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, nos Arranjos de Desenvolvimento da Educação
(ADEs), na Resolução CNE/CEB 1, de 23 de janeiro de 2012, na Lei de Consórcios, de 6 de
abril de 2005, no Decreto 6.017, de 17 de janeiro de 2007, no artigo do Plano Nacional
de Educação (PNE) (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014), que dizem: “A União, os Estados,
o Distrito Federal e os municípios atuarão em regime de colaboração, visando ao alcance das
metas e à implementação das estratégias objeto deste Plano.
Ora, a Educação é marcada pela intencionalidade e para isto se serve do espaço, do tem-
po, da progressividade dos conteúdos, do método, da didática, do controle e da avaliação e visa
alcançar seus objetivos em médios e longos prazos e é preciso entender nesta nova arquitetura
pedagógica as atribuições e competências dos entes nomeados na Resolução CNE/CEB que
baliza este estudo.
Neste sentido, a atribuição do município na oferta da Educação em Prisões deveria ser na
oferta da Educação de Jovens e Adultos, especialmente em relação à alfabetização e ao Ciclo I do
Ensino Fundamental e não em relação à Educação Infantil, pois prisão não é lugar para crianças.
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A propósito, é oportuno a Educação se posicionar contrariamente à Lei nº 11.942, de
2009, que alterou a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984) para instituir a creche para abrigar
crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a nalidade de assistir a
criança desamparada cuja responsável estiver presa.” Esta lei é uma clara violação dos artigos
5º e 6º de outra lei –8.069¹90 - o Estatuto da Criança e do Adolescente que assim determina
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, pu-
nido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais.
Art. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os ns sociais a que
ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.
A Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou em 14 de Dezembro de 1990 a Re-
solução nº. 45/110 intitulada Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de
Liberdade, também conhecida como Regras de Tóquio, orientando a todos os países a aplicação
de sanções alternativas à prisão, reservando-se o encarceramento somente para atos de maior
poder ofensivo ou para agentes que apresentem maior grau de periculosidade.
Segundo o espírito desta Resolução, o Brasil deveria encontrar urgentemente outras for-
mas de responsabilização criminal da mulher sentenciada pelo cometimento de crimes que não
seja o encarceramento. A concessão (SIC)da Lei 11.942 para que a mulher possa car com
seus lhos pequenos dentro da prisão durante o cumprimento da sentença agrava o problema
e impõe ao município uma atribuição que distorce suas nalidades originárias.
Relação entre educação e execução penal e seus impactos
Preliminarmente há que se lembrar que segundo o Artigo 3º da Lei nº 7.210 de 11 de
Julho de 1984 “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos
pela sentença ou pela lei”, logo impõe-se ao estado, suas agências e seus agentes a difícil tarefa
de assegurar ao condenado a preservação de todos os seus demais direitos não atingidos pela
sentença.
No meio jurídico ainda não há denições precisas e denitivas quanto à superveniência
de um Direito Penitenciário ou de um Direito Educacional, que nos parece seria o campo ade-
quado para a discussão quanto às intersecções entre o exercício do direito à Educação de pessoas
privadas da liberdade e as regras da execução penal vigentes em estabelecimentos penais.
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Em dezembro de 2019, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 104
que instituiu a Polícia Penal como órgão responsável pela segurança dos estabelecimentos pri-
sionais dos estados. A medida foi comemorada pelos sindicatos dos então denominados Agentes
Penitenciários, mas lamentada pelas organizações de direitos humanos e pela Educação e por
algumas razões bem simples.
Ainda que a categoria prossional e seus órgãos de representação tenham comemorado a
iniciativa, para a Educação em Prisões isso signica um injusticável retrocesso, pois uma coisa é
estender o Direito à Educação a agentes penitenciários civis que, de resto, tem as mesmas origens
sociais e apresentam as mesmas necessidades educacionais dos presos sob sua responsabilidade.
Outra coisa muito diferente é pensar a educabilidade social de pessoas fardadas, armadas, que são
treinadas para obedecer ordens hierárquicas sem questioná-las e que, na nossa prática cotidiana,
é a principal fonte de violação de direitos humanos no Brasil.
Na intersecção entre Educação e Execução Penal, entretanto, pode-se pensar em possíveis
sinergias, interpenetrações e impactos positivos.
A segurança penitenciária, por exemplo, é sinônimo de altas muralhas, fossos no seu en-
torno, cães de vigilância e homens grandes e fortes armados até os dentes, com um só propósito:
evitar a fuga do preso. Para a Educação, segurança advém de uma relação de conança entre as
partes, de reconhecimento da autoridade moral do professor e do desejo de ser conduzido pelos
caminhos do conhecimento, da descoberta e da liberdade.
Reorganização do espaço físico. Nem todas as unidades prisionais possuem instalações
próprias para escola ou alas de aulas, congurando um perímetro educacional. Entretanto, a
possibilidade de se ter alas, raios, pavilhões ou módulos destinados aos presos que estudam
pode se constituir em um diferencial desejável por parte dos presos, menos problemático para a
administração penitenciária e mais humanizado do ponto de vista das relações humanas e sociais
que se estabelecem no cárcere.
Transformar as assistências em Educação. Está denitivamente superado o paradigma
assistencialista inscrito nos artigos 10 e 11 da Lei de Execução Penal e devem ser substituídos
pelo paradigma da Educação patrimonial (I material), em Saúde, para os direitos (III -jurídica),
para a cidadania (V – social) e para os valores (VI – religiosa), reorientando a atuação dos res-
pectivos prossionais e de suas ciências para se colocarem a serviço da reabilitação do preso e
não como meros sucedâneos da Justiça para a elaboração de laudos e pareceres.
Substituição da relação prêmio/castigo pela prevalência de direitos. Tudo na prisão é
barganhável a partir desta relação: onde morar, quando trabalhar, as assistências, saídas tempo-
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rárias, visita íntima, acesso ao telefone, etc; em detrimento do exercício de legítimos direitos. A
Educação não barganha nada e reconhece a cada um seus direitos proporcionalmente aos seus
esforços, empenho e rendimento e não há quem não se felicite a sí próprio por ter vencido etapas
na sua trajetória educacional.
Substituição da exploração da mão de obra pela prossionalização. O baixo nível de esco-
laridade e a baixa qualicação prossional da população prisional no Brasil é uma das razões da
exploração da mão de obra do preso, com remuneração vergonhosa, sem direitos previdenciários
e trabalhistas e em qualquer possibilidade de aproveitamento deste trabalho quando em liberdade.
A Educação é fundamental para a qualicação desta mão de obra seja na tarefa da alfabetização,
da elevação da escolaridade ou da prossionalização propriamente dita e é desejável que o preso
esteja cursando o Ensino Médio, pelo menos, para que a prossionalização seja efetiva e possa
representar a aquisição de uma prossão que possa ser exercida quando em liberdade.
Formação de lideranças positivas. Devemos superar a cultura de que a liderança na prisão
seja exercida pelos mais fortes, mais violentos ou com maior coleção de crimes cometidos, nas
quais prevalece o medo e o temos e não o respeito. A Educação é o meio para desenvolver a
capacidade de análise de situação e de conjuntura, aprimorar a argumentação e fomentar o senso
crítico necessário para a tomada de posturas e de decisões.
Progressão escolar como quesito de avaliação da terapia penal. Qual melhor indicador
de sucesso na contemporaneidade do que a taxa de escolarização de uma pessoa ou de uma
população? Quando se verica a escolaridade inicial no momento da prisão e a escolaridade ao
nal do cumprimento da sentença pode-se ter um indicador preciso quanto ao aproveitamento do
tempo de pena por parte do preso. A continuidade dos estudos em liberdade pode ser, inclusive,
uma das condicionalidades para a progressão de regime, desde que de forma consensual e com
os devidos acompanhamentos.
O projeto político pedagógico para as prisões
No livro Educação na Cidade (2001a), Paulo Freire, falando sobre sua experiência como
secretário da Educação na cidade de São Paulo, apresenta sua concepção de construção de projeto
político pedagógico:
Evidentemente, para nós a reformulação do currículo não pode ser algo feito,
elaborado, pensado por uma dúzia de iluminados cujos resultados nais são
encaminhados em forma de pacotes para serem executados de acordo ainda
com as instruções e guias igualmente elaborados pelos iluminados. (FREIRE,
2001a, p. 24).
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A necessidade de um projeto político pedagógico pode ser entendida como decorrência
direta do processo de maturidade democrática pelo qual o Brasil passou recentemente. Uma ca-
racterística deste processo foi a supressão de modelos referenciais para organizar a vida pessoal,
familiar e social e a consequente valorização do indivíduo e de suas experiências.
Historicamente a religião forneceu os modelos de pai, mãe, lho, assim como os parâ-
metros para julgamento do que é certo ou errado e do que é bom ou mau.
Para a Educação é relativamente tranquilo trabalhar em função destes modelos previa-
mente denidos, mas Freire adverte que “o educador comprometido com a construção de um
projeto político transformador constrói sua docência voltada para a autonomia do educando,
valorizando e respeitando a sua cultura, o seu acervo de conhecimentos e sua individualidade”
(FREIRE, 1977a).
A Educação, mais do que qualquer outra área de conhecimento, aprendeu a trabalhar
com a diversidade, gerando respostas que contemplam quase todo o espectro das necessidades
educacionais diferenciadas (indígena, quilombola, gênero, opção sexual, deciências, estran-
geiros, hospitalizados etc.). Paulo Freire tratou da questão da diferença em Pedagogia da In-
dignação (2000), fazendo a defesa do multiculturalismo, no qual o direito de ser diferente em
uma sociedade dita democrática, enquanto uma liberdade conquistada de cada cultura, também
deve proporcionar um diálogo crítico entre as diversas culturas, com o objetivo de consolidar e
ampliar os processos de emancipação.
Portanto, na ausência de modelos únicos, hegemônicos e culturalmente impostos cabe
à comunidade, juntamente com a escola pública que a atende, denir de comum acordo o perl
do educando a ser formado.
As bases de um PPP coletivamente construído podem ser assim resumidas:
• que tipo de pessoas o Estado, a sociedade e a prisão querem formar?
• quais os recursos físicos, humanos e nanceiros disponibilizados para a escola?
• como serão organizados os processos de ensino/aprendizagem, monitoramento e
avaliação do projeto político pedagógico?
Cada Estado brasileiro possui conjunturas especícas tanto na Educação quanto no seu
sistema penitenciário, mas há documentos de referência que podem subsidiar a formulação dos
respectivos projetos. São eles:
1. Plano Estadual de Educação. Nos Estados em que ele existe é pertinente vericar se
o mesmo faz alguma referência à Educação em prisões.
2. Plano Diretor do Sistema Penitenciário. Dentre suas 22 metas, merece atenção a
Meta 15 (Educação e prossionalização), na qual se faz o detalhamento quanto ao
nível de escolaridade de toda a população prisional no Brasil.
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3. Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário. Desdobramento do
Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, que coloca a atenção à saúde do
preso como atribuição do Sistema Único de Saúde (SUS).
4. Deliberações do Conselho Estadual de Educação sobre a oferta da Educação em
Prisões ou, analogamente, sobre Educação de Jovens e Adultos e Educação Técnica
e Prossional.
Observada a diretriz que determina ser a Educação em prisões obrigação do Estado por
meio da articulação entre as secretarias que cuidam das prisões e da Educação, uma primeira
denição a se fazer é quanto à forma de organização do sistema de ensino para atender as uni-
dades prisionais.
O Mato Grosso do Sul, por exemplo, que iniciou a elaboração coletiva do seu plano
estadual mesmo antes da homologação das Diretrizes Nacionais, atende 21 de suas 44 unidades
prisionais por meio da Escola Estadual Pólo Profª. Regina Lúcia Anffe Nunes Betine, criada em
Dezembro de 2003.
Esta escola está credenciada pelo Conselho Estadual de Educação para oferecer todas
as modalidades da Educação Básica, possui um quadro próprio de 60 professores e cinco coor-
denadores pedagógicos e cada unidade prisional atendida é concebida como uma extensão da
escola. Este é o modelo que podemos chamar de escola vinculadora ou escola pólo.
O Estado de Santa Catarina, não obstante possuir desde 1975 uma denominada Escola
Supletiva Penitenciária, faz o atendimento escolar da população prisional por meio dos seus 36
Centros de Educação de Jovens e Adultos (CEJAs), diretamente subordinados a uma coordena-
doria da Secretaria Estadual de Educação. Não obstante haver uma coordenação única para os
36 CEJAs, resguarda-se a autonomia de cada um na elaboração do seu PPP, caracterizando-se
como um modelo descentralizado de atendimento.
No Mato Grosso existe desde 2009 a Escola Estadual Nova Chance, vinculada à Secretaria
Estadual da Educação, que atende 19 das 60 unidades prisionais do Estado. Esta escola também
se caracteriza como uma escola vinculadora e as unidades prisionais atendidas são concebidas
como salas anexas da escola ocial.
Há ainda a possibilidade de que cada unidade prisional esteja diretamente vinculada à
unidade escolar mais próxima ou que cada unidade prisional tenha sua própria escola, inclusive
dotada das respectivas instituições auxiliares como grêmio, Conselho de Escola e Associação
de Pais e Mestres.
Nos três estados aqui referenciados o Plano Estadual de Educação em Prisões foi con-
cebido como as diretrizes estaduais para o tema, articulando secretarias e órgãos de governo;
criando infraestrutura e logística; organizando as carreiras prossionais; estabelecendo atribuições
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e competências e organizando as condições de oferta, scalização e avaliação da Educação nas
prisões.
O projeto político pedagógico constitui o instrumento operacional por meio do qual a
Escola Regina Betine, os CEJAs e a Escola Nova Chance deniram suas prioridades, objetivos
e metas a serem alcançadas em determinado período de tempo. O modelo da escola vinculadora
ou escola pólo possibilita que o PPP seja único para todo o Estado, abrangendo a totalidade das
unidades prisionais atendidas.
Importante ressaltar que no âmbito de um plano estadual não há uma solução única para
oferta da Educação em prisões.
Quando analisados os dados relativos ao perl de escolarização da população prisional
no Brasil, a alfabetização surge como um desao ético a ser enfrentado pelo Estado e pela socie-
dade, pois inadmissível hoje a existência de analfabetismo entre jovens e adultos em sociedades
contemporâneas. A elevação da escolaridade para cerca de 80% dos presos que não concluíram
o Ensino Fundamental soa como uma ação reparadora face ao fato de ter sido negado a eles o
Direito à Educação na idade apropriada.
Durante o processo de elaboração dos planos estaduais para a Educação em estabeleci-
mentos penais nos estados de Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso, a análise dos
dados de escolarização dos presos apontaram para a necessidade de que a Educação de Jovens e
Adultos a ser oferecida assumisse modelagens diversas para atender às diferentes necessidades
de homens e mulheres presos.
A primeira modelagem, para contemplar os presos que não são alfabetizados ou não
exercitaram o direito constitucional à Educação Básica de nove anos foi, prioritariamente, nos
sentidos de alfabetização e de elevação da escolaridade.
Cruzados os dados de escolaridade e de trabalho, entretanto, cou evidente que são
exatamente estes os presos que mais constantemente optam pelo trabalho em detrimento da
Educação, por razões óbvias. Logo, a proposta de Educação para este contingente teve que,
inexoravelmente, considerar a relação trabalho e Educação, possibilitada pelo conceito de “qua-
licação pelo trabalho” enunciado no Artigo 27, Inciso III, combinado com o Artigo 37, § 2º da
LDB que autoriza, inclusive, o reconhecimento de conhecimentos e habilidades adquiridos por
meios informais.
A segunda modelagem contemplou os que possuem o Ensino Fundamental completo,
portanto exercitaram o direito constitucional à escolarização básica de nove anos, mas devem
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ser estimulados à continuidade dos estudos com vistas à elevação, não apenas da escolaridade,
mas também de suas competências técnicas relacionadas ao trabalho.
Os artigos 35, 36 e 41 da LDB autorizam o atendimento desta demanda por meio do Ensino
Médio, no qual também podem ser aproveitados os conhecimentos e habilidades anteriormente
adquiridos, resultando em certicação de Educação Prossional de Nível Médio com validade
nacional e em uma prossão para o indivíduo quando em liberdade.
Uma terceira modelagem objetivou atender os presos que começaram, mas não conclu-
íram o Ensino Médio e que, não obstante isso, exercem no interior da prisão ofícios indexados
na Classicação Brasileira de Ocupações (CBO). O Artigo 40 da LDB autoriza diferentes articu-
lações da Educação Prossional, inclusive com o próprio ambiente de trabalho. A ênfase, neste
caso, foi estimular a conclusão desta etapa, explorando as possibilidades também previstas nos
artigos 39, 41 e 42 da LDB.
Os presos que possuem o Ensino Médio Completo podem se beneciar da Educação
Prossional, estes sim, no sentido de aprendizagem de uma prossão de nível técnico, como
são os casos dos monitores de Educação (§2º do Artigo 9º das Diretrizes) e do Agente Prisional
de Saúde (Art. da Portaria Interministerial 1777, de 9.9.2003 que institucionaliza o Plano
Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário). Este Plano prevê a qualicação prossional de
pelo menos 5% dos presos como Agentes Prisionais de Saúde, com formação equivalente ao do
Agente Comunitário de Saúde.
Somente o uso destes dois dispositivos possibilita formar, de imediato, 25 mil presos
para ajudar a enfrentar os graves problemas de saúde no sistema penitenciário. Usada a analogia
e a mesma proporção para formação de presos como monitores de Educação seriam outros 25
mil auxiliares para os prossionais da Educação. Dadas as características que fazem com que a
Saúde e a Educação possuam alto valor agregado na reabilitação e que os presos possuem, de
modo geral, uma boa representação social destas prossões, mesmo quando exercida por outros
presos, estas são duas prossões sociais de nível técnico capazes de impactar positivamente a
cultura prisional, inclusive na formação de lideranças positivas dentre a população prisional.
Estas possibilidades estão regulamentadas no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos
(MEC, 2004) e as Diretrizes Nacionais fazem menção à “preparação especial” (formação pe-
dagógica) que devem receber os presos para atuação no apoio aos prossionais da Educação,
servindo a mesma orientação em relação aos prossionais da saúde.
Silva, Oliveira e Moreira apresentaram no artigo intitulado Ciência, trabalho d Educação
no sistema prisional brasileiro (2016)
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Todos os prossionais designados para prestar as assistências e os serviços estipulados
pela Lei de Execução Penal, com exceção da assistência religiosa, são funcionários do Estado,
inclusive os professores e instrutores de ofícios na Educação Técnica e Prossional. Essa con-
junção de conhecimentos e de prossionais de diversas áreas de atuação em um mesmo campo
de trabalho possibilita congurar o que Thomas Kuhn, no livro A Estrutura das Revoluções
Cientícas, denomina comunidade cientíca, com a seguinte denição:
Uma comunidade cientíca é formada pelos praticantes de uma especialidade
cientíca. Estes foram submetidos a uma iniciação prossional e a uma educa-
ção similares, numa extensão sem paralelo na maioria das outras disciplinas.
Neste processo, absorveram a mesma literatura técnica e retiraram dela muitas
das mesmas lições. (KUHN, 1998, p. 220).
O tamanho e a complexidade do sistema penitenciário brasileiro apontam para alguns
desaos que não podem ser enfrentados apenas pela Execução Penal. Como reverter a tradição
punitivista da pena e da prisão para concebê-las em sua dimensão educacional e pedagógica?
Como descontruir a “pedagogia do crime” que impera no interior das prisões? Como fazer
para que todos os prossionais que trabalham na prisão assumam as tarefas de Educação e de
reabilitação do preso para o convício social? E, nalmente, como fzer pra que todas as ações e
atividades desenvolvidas na prisão durante o cumprimento da sentença se constituam em meios
de avaliação quanto à ecácia da terapia penal?
Conclusão
Como se depreende dos objetivos deste artigo, a Educação pode impactar e inuenciar
positivamente a Execução Penal, desde que cumpridas as determinações da Resolução CEB/CNE
nº 2 de que a Educação seja atribuição conjunta das secretarias de Educação e da Administração
Penitenciária e que estas criem as estruturas necessárias para viabilizar, de parte a parte, a infra-
estrutura, a reforma dos regimentos internos, a elaboração de um projeto político pedagógico e
a qualicação técnica e prossional de todos os atores envolvidos.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN), por meio da Resolução 9, de 18 de Novembro de 2011,
haviam aprovado uma ambiciosa proposta intitulada Programa arquitetônico: Módulo base –
Projeto Referência, com orçamento aprovado e projetos de arquitetura e de engenharia já em
estado adiantado, como proposta para dotar as unidades prisionais brasileiras de módulos de
Educação e de Trabalho, inclusive com construções novas, que
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Em 12 de Abril de 2018, possivelmente por pressões dos governadores de estados, o
mesmo CNPCP editou a Resolução 2 autorizando a a exibilização das Diretrizes Básicas
para Arquitetura Penal antes aprovadas, deixando a critério dos estados construírem ou não os
módulos de Educação e de Trabalho, o que signicou o esvaziamento da proposta original.
Na tese de doutoramento intitulada A ecácia sociopedagógica da pena e privação da
liberdade (SILVA, 2001) descrevi em minucias a pedagogia do crime, seus elementos consti-
tuintes e suas formas de reprodução dentro da prisão, destacando que,
Com a proposta de deslindar os elementos constitutivos de uma suposta peda-
gogia do crime, à Pedagogia e ao pedagogo importam entender a sistemática
de interação entre os internos, que faz com que o indivíduo construa, incorpo-
re e rearme continuamente uma identidade negativa, e os mecanismos subli-
minares que fazem da prática delituosa mais como um recurso de armação
da personalidade negativa do que como um recurso de prática da delinquência
propriamente dita (SILVA, 2001, p. 25).
Retomando os três eixos orientadores das Diretrizes Nacionais para a oferta da Educação
em Estabelecimentos Penais 1. Gestão, Articulação e Mobilização; 2. Formação e valorização
dos prossionais envolvidos na oferta; 3. Aspectos pedagógicos - não restam dúvidas de que a
cultura prisional precisa ser enfrentada de forma sistêmica em todas as suas dimensões.
A ecácia da pena de privação da liberdade é analisada em função dos objeti-
vos propostos em lei, orientando-se por dois fatores que se revelaram prepon-
derantes após a tabulação dos dados: a) à vulnerabilidade pessoal e social de
quem é a ela submetido, sobretudo diante dos efeitos deletérios da pedagogia
do crime e; b) ao modelo de administração penitenciária, sustentada por um
tripé cujos elementos estruturais são: 1) a permissividade para ocorrência do
tráco de drogas; 2) a permissividade para a corrupção entre alguns poucos
funcionários, como forma de amenizar o rigor e os riscos do trabalho e os
baixos salários pagos e; 3) a compra e venda de privilégios na relação entre
presos e alguns funcionários, todos propiciando a existência, manutenção e re-
produção de uma cultura prisional que norteia a natureza das relações internas
entre presos e entre presos e funcionários. (SILVA, 2001, p. 05)
Pelas razões e argumentos expostos neste artigo e diante da revogação da Resolução
CNPCP nº 9, e a falta de infraestrutura escolar nas unidades prisionais brasileiras, chegamos à
conclusão que dentre os modelos adotados pelos estados brasileiros para a oferta da Educação em
prisões, a Escola Penitenciária é a que oferece melhores condições para ter um Projeto Político
Pedagógico próprio e especíco para a população prisional.
Por Escola Penitenciário estamos nos referindo a uma unidade escolar com identidade
jurídica própria, dotada de direção e de equipe pedagógica próprias, com o respectivo quadro
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docente que, usando as prerrogativas dos artigos 37, 39, 81 da LDB, possa construir coletivamente
o seu próprio projeto político pedagógico, considerando, como é característico deste instrumento,
todos os serviços e os recursos físicos, materiais, humanos e nanceiros existentes na prisão.
Diferentemente de outras políticas públicas em que se privilegia o atendimento do cidadão
por meio de órgãos e serviços públicos existentes na comunidade local, a oferta de Educação
para pessoas privadas da liberdade constitui uma das poucas exceções que justica a oferta deste
direito dentro da própria unidade prisional, por força da restrição do direito de ir e vir previsto
na sentença de condenação.
É esta conjuntura que levou o GEPÊPRIVAÇÃO a rearmar seu posicionamento expresso
no livro Didática no Cárcere II (SILVA, 2018, p. 17), que qualquer proposta educacional para
as prisões brasileiras deve levar em consideração estes fatores:
• deciências de infraestrutura (sala, carteiras, lousas, equipamentos etc.);
• falta de material didático especíco e restrições ao uso de materiais convencionais
de uso comum
• salas com pessoas de diferentes idades
• grande defasagem na relação idade/série
• classes multisseriadas
• excessiva rotatividade dos alunos
• rígidos sistemas disciplinares que impedem livre movimentação dos alunos
• rígidos sistemas de segurança que dicultam o acesso e movimentação de profes-
sores
• diculdade de acesso a recursos de TIC (Tecnologias da Informação e da Comuni-
cação)
• precariedade de estímulos sensoriais (visual, auditivo, tátil, gustativo e olfativo)
Os diferenciais deste PPP são as possibilidades de incorporação do conceito de comunida-
de cientíca tal qual enunciado por Thomas Khun (KHUN, 1998) para agregar todas as ciências
e seus respectivos prossionais em torno de objetivos comuns e de articular a educação escolar
com a educação não escolar e as demais atividades de trabalho, esporte, arte, cultura, saúde e as
assistências jurídica, psicológica, social e religiosa em um mesmo projeto, além de desenvolver
seu próprio material didático pedagógico e proporcionar formação de seus professores segundo
os pressupostos teóricos e metodológicos do seu PPP.
A opção por este modelo tem a ver também com o aproveitamento do potencial que
oferecem os artigos 37, 38 e 81 da LDB.
Art. 37 - § [...] oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as
características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho.
§ [...] o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações
integradas e complementares entre si.
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§ 3º [...] articular-se, preferencialmente, com a educação prossional.
Art. 38 - § Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos por
meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames.
Art. 81 - Art. 81. É permitida a organização de cursos ou instituições de ensino
experimentais, desde que obedecidas as disposições desta Lei.
Por analogia, o Conselho da Comunidade e o Patronato, previstos no Artigo 61, VI e VII
da Lei de Execução Penal são instituições auxiliares do estabelecimento penitenciário e podem
cumprir as funções determinadas no Artigo 14, II da LDB para efeito de cumprimento do pre-
ceito da gestão democrática previsto no Artigo 15 da mesma Lei, inclusive para execução dos
programas suplementares a que se refere o Artigo 4º, VII da LDB e administração de seus pró-
prios recursos nanceiros, como Caixa Escolar, conforme dispõe o Artigo 12, II da mesma LDB.
Como se depreende das análises aqui realizadas, o atendimento às especicidades da
Educação no sistema prisional brasileiro não cabe na estrutura e na forma de organização e de
funcionamento de uma escola regular tal qual as que atendem a rede pública de ensino para
atendimento à comunidade livre.
Finalmente considera-se que professores e professores devam ter dedicação exclusiva
a esta modalidade de ensino, como uma especialidade na carreira do magistério, seleção por
meio de concurso público e direito às prerrogativas relativas ao trabalho perigoso e insalubre, de
acordo com o previsto no Artigo 7º, XXIII na Constituição Federal que determina que seja pago
“adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”.
Referências
BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei Federal nº 7.210, de 11.7.1984.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9394, de 20.12.1996.
Cne. Resolução CNE/CEB nº 2, de 20 de maio de 2010. Institui as Diretrizes nacionais para
a oferta de Educação para jovens e adultos em estabelecimentos penais.
Cnpcp. Resolução Nº 3, de 11 de março de 2009. Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária. Dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação nos estabe-
lecimentos penais.
CNPCP. Resolução Nº 9, de 18 de Novembro de 2011. Institui as Diretrizes Básicas para
Arquitetura Penal. D.O.U de 21 de Novembro de 2011, Nº 222, Seção 1, pág. 79).
CNPCP. Resolução Nº 2, de 12 de Abril de 2018. Dispõe sobre a exibilização das Diretrizes
Básicas para Arquitetura Penal. DOU de 7 de maio de 2018, Nº 86, Seção I, p. 79.
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. 5ª edição. São Paulo: Cortez, 2001a.
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KHUN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Cientícas. 5ª. ed. São Paulo: Perspectiva,
1998.
MEC. Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Brasília/DF: MEC/SECAD, 2004.
ONU. Resolução nº. 45/110, de 14 de Dezembro de 1990. Institui as Regras Mínimas para
a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade.
SILVA, Roberto da. A ecácia sociopedagógica da pena de privação da liberdade. Tese de
Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo). São
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SILVA, Roberto da; MOREIRA, Fábio Aparecido. Objetivos educacionais e objetivos da
reabilitação penal: o diálogo possível. IN: Dossiê Questões Penitenciárias. Revista Sociolo-
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SILVA, Roberto da. Didática no Cárcere II. São Paulo: Giostri, 2018.
Recebido em: 11 de janeiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.