A Educação em prisões: a dimensão política da sua garantia
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.11680
A EDUCAÇÃO EM PRISÕES: A DIMENSÃO
POLÍTICA DA SUA GARANTIA
Maria Alba Guedes Machado Mello
1
Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-3036-0678
Katia Maria de Aguiar Barbosa
2
Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-2292-5667
RESUMO:
Os direitos políticos e sociais em uma sociedade democrática, dentre eles o da Educação, são consagra-
dos mediante políticas públicas expressas em normativas legais e programáticas, e efetivados por insti-
tuições e agentes públicos; no caso da Educação em Prisões, a Educação, a Segurança e a Justiça. Para a
sua garantia é necessário entender os âmbitos de luta política que vão do processo de formulação ao da
efetivação dessas políticas, portanto, a natureza do Estado e da própria Democracia. O presente Editorial
busca apontar estes elementos e a necessária aceitação dos conitos de interesses como mecanismos de
conquistas dos avanços democráticos para a Educação das pessoas em situação de privação e restrição
de liberdade, assim como tratá-los como situações pedagógicas no sentido de dar à educação seu lugar
de desenvolvimento humano e direito subjetivo dos cidadãos.
Palavras-chave: Educação em Prisões. Políticas Públicas. Estratégias Políticas e Pedagógicas.
ABSTRACT:
PRISON EDUCATION: THE POLITICAL DIMENSION OF ITS GUARANTE
Political and social rights in a democratic society, among them that of Education, are enshrined through
public policies expressed in legal and programmatic norms, and enforced by public institutions and
agents; in the case of Education in Prisons, Education, Security and Justice. To ensure this, it is neces-
sary to understand the spheres of political struggle that go from the formulation process to the imple-
mentation of these policies, therefore, the nature of the State and of Democracy itself. This Editorial
seeks to point out these elements and the necessary acceptance of conicts of interest as mechanisms
for the achievement of democratic advances for the education of people in situations of deprivation and
restriction of freedom, as well as treating them as pedagogical situations in the sense of giving education
its place of human development and the subjective right of citizens.
Keywords: Education in Prisons. Public policy. Political and Pedagogical Strategies.
1 Doutora em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Professora Titular (UNEB).
E-mail: mmello@uneb.br
2 Doutoranda em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Professora Adjunto (UNEB).
E-mail: kbarbosa@uneb.br
RESUMEN:
EDUCACIÓN EN LAS CÁRCELES: LA DIMENSIÓN POLÍTICA DE SU
GARANTÍA
Los derechos políticos y sociales en una sociedad democrática, incluida la Educación, están consagrados
a través de políticas públicas expresadas en normas legales y programáticas, y aplicadas por institucio-
nes y agentes públicos; en el caso de Educación Penitenciaria, Educación, Seguridad y Justicia. Para su
garantía, es necesario comprender los ámbitos de la lucha política que van desde el proceso de formula-
ción hasta la implementación de estas políticas, por lo tanto, la naturaleza del Estado y de la Democracia
misma. Esta Editorial busca señalar estos elementos y la necesaria aceptación de los conictos de interés
como mecanismos para la consecución de avances democráticos para la educación de personas en si-
tuaciones de privación y restricción de libertad, así como tratarlos como situaciones pedagógicas en el
sentido de dando a la educación su lugar de desarrollo humano y el derecho subjetivo de los ciudadanos.
Palabras clave: Educación Penitenciaria. Polícas públicas. Estrategias polícas y pedagógicas.
Introdução
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Fernando Pessoa
Na discussão sobre processos educativos para as pessoas em situação de restrição ou
privação de liberdade, a dimensão política é prioritária para fundamentar proposições e reexões.
A noção da Educação como direito subjetivo para todo cidadão, inclusive os privados de liber-
dade, corroborada com os princípios da Justiça Restaurativa elaboraram uma nova perspectiva
para a Educação nas prisões, a da ressocialização (compreendida, aqui, como desenvolvimento
humano), rompendo, assim, com sua antiga função de modelar, acomodar ou domesticar a so-
ciedade carcerária — no sentido foucaultiano — para torná-la dócil, submetida ao controle e
propósitos do Estado. Foi na esteira do processo de democratização da sociedade brasileira, a
partir da década de 1980, que se inaugurou esse outro sentido, essa nova compreensão política
para a denição e prática da Educação nas prisões: um direito subjetivo e uma possibilidade de
reverter, ou restaurar, nas pessoas privadas de liberdade, a sua humanidade, a sua capacidade de
conviver socialmente dentro das regras democráticas da sociedade que se quer construir.
A trajetória das políticas públicas demonstra ganhos signicativos no avanço da conquista
de direitos quando tomarmos como parâmetro as três últimas décadas em que se viu surgir um
movimento sistemático de discussões, propiciadas pelos embates entre os movimentos sociais,
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organismos internacionais e por agentes estatais — às vezes caminhando em lados opostos —
acentuados nos anos iniciais deste século XXI. O marco legal que estabelece os pilares da po-
lítica pública de educação em prisões concentra-se nas Resoluções CNPCP n. 3/2009 e CNE n.
2/2010 que estabelecem as Diretrizes Nacionais. Na década seguinte, entre 2011 e 2014, foram
realizados outros quatro Seminários Nacionais com a nalidade de propor encaminhamentos
para a formulação da política nacional de educação para o sistema prisional
3
.
No âmbito do governo federal, por meio do Departamento Penitenciário (DEPEN), em
articulação com a extinta Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e In-
clusão (Secadi/MEC), foram iniciadas amplas discussões sobre a política pública de educação
voltada para os sujeitos em situação de restrição e privação de liberdade, que deram início ao
projeto Educando para a Liberdade. Esse projeto contou com apoio da UNESCO e foi funda-
mental para ampliação e consolidação do debate sobre a oferta de educação no sistema prisional
brasileiro. Desse movimento destacamos a realização dos Seminários Nacionais pela Educação
nas Prisões, que aconteceram nos anos de 2006 e 2007, cujos debates resultaram em encaminha-
mentos para subsidiar a formulação de um plano estratégico de educação para as prisões, pelos
Ministérios da Justiça e da Educação.
Há que se enfatizar a relevância desse período no qual outras normativas foram aprova-
das no sentido de consolidar a política, como a Lei 12.433/2011, que prevê a remição da pena
por estudo atribuindo, de certo modo, valor para a educação ao colocá-la no mesmo patamar do
trabalho. A educação como direito já é um tema sensível se tomarmos por referência o número
de pessoas que não acessam a escola no Brasil, como um todo, constatando que o país ainda
não implementou a universalização da educação básica para o conjunto da população brasileira.
No sistema prisional, dados do INFOPEN (2019) informam que apenas 16,54% da população
carcerária está envolvida em alguma atividade educativa, não necessariamente em escola regular.
As unidades escolares inseridas ou vinculadas ao ambientes prisionais caminham ao
lado de todo o aparato da execução penal, compondo o conjunto dos elementos que operam a
execução da pena. Neste sentido, os agentes envolvidos (agentes penitenciários, professores,
assistentes, gestores etc.) realizam atividades que, a priori, comportam em si os aspectos penais e
educacionais, simultaneamente. Traduz, desta forma, um nível de complexidade na forma como
o Estado se impõe nos estabelecimentos penais: através do seu braço repressor, nas práticas da
segurança pública, e através do seu papel ressocializador, por meio de um processo educativo.
Ao instituir o Plano Estratégico de Educação no âmbito prisional, o governo federal, através do
3 Para saber mais, ver JULIÃO, Elionaldo Fernandes (Org.). Políticas de Educação nas Prisões da Amé-
rica do Sul: questões, perspectivas e desaos. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2018.
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Decreto Presidencial n. 7.626/2011, prevê que os Estados estabeleçam seus próprios planos, o
que signica aproximar a política de seus agentes locais, inclusive no sentido de avaliar e refor-
mular, conforme suas especicidades. Mas, em que medida os Estados assumem a garantia do
direito a educação para todos os sujeitos presos?
Enquanto modalidade de ensino denida para o contexto de privação de liberdade, a Edu-
cação de Jovens e Adultos - EJA no referido processo educativo, como proposta de emancipação
humana, ainda carece de discussão. Cabe reetir, por exemplo, a forma como a escolarização
está posta para os sujeitos em situação de privação de liberdade, nesse contexto interpenetrado
pelas normas da segurança pública e da educação como direito. É essa modalidade que dá conta
das itinerâncias relativas aos sujeitos em situação de privação de liberdade? A prisão que afasta
o sujeito de uma parcela da sociedade, que o impede de conviver socialmente, representa, entre
outros aspectos, o contrário de uma educação emancipadora, cuja nalidade é libertar os sujeitos,
criando as condições possíveis para sua reorganização social.
Precisamos questionar em que medida os avanços apontados neste campo, particularmente
os marcos legais, denem a educação para as pessoas em situação de privação de liberdade como
um direito a ser assegurado, já que no cotidiano dos ambientes em que se dá a execução penal, a
educação ainda é muitas vezes percebida como um benefício. O Plano Estratégico de Educação
no âmbito prisional, como possibilidade de estruturação pelos Estados ao mesmo tempo em que
trouxe para perto o campo da tomada de decisões, também permitiu uma pulverização das prá-
ticas, de modo que o previsto na legislação como direito dos sujeitos em privação de liberdade
demore ainda mais de ser efetivado.
Por isso, é recorrente, na maioria dos debates sobre educação nas prisões, a ênfase na
defasagem entre o direito à educação para as pessoas privadas de liberdade, estabelecido nas
normativas legais, e a sua garantia por meio da execução da política pública. Há uma constante
desvalorização e/ou desqualicação das políticas públicas, que apontam sua inecácia, demons-
trada pelo distanciamento entre a “teoria” e a prática, ou seja, o que está escrito e o que se
na realidade do sistema prisional. A distância entre a norma e a sua consecução conduz à crítica
da norma como se, epistemologicamente, o princípio só pudesse ser validado pela sua ecácia,
desprezando seus valores em si, suas possiblidades, a armação de princípios do que lhe é ine-
rente. Há um senso comum de que se “a lei não pega” de nada vale para a transformação social,
torna-se mera utopia ou mesmo enganação.
Particularmente entre os envolvidos (atores inseridos no sistema prisional, estudiosos
e pesquisadores, etc.) e dedicados à garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade, tal
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defasagem tem conduzido à desesperança, ao cansaço, a um sentimento de caminhar contra a
corrente, à exaustão a que toda resistência vigorosa um dia chega; quiçá este caminho seja re-
sultante da expectativa de que uma vez consagrado na lei, o direito estará garantido... uma inge-
nuidade (no sentido freiriano do termo). Assim, nos enredamos em um círculo vicioso que tem
guiado os debates: ou arma-se que as normativas legais nada valem porque não são aplicadas,
ou elas são entendidas como superpoderosas cuja a simples existência é capaz de transformação
social. O que precisamos salientar é a visão maniqueísta entre o direito e sua garantia, no caso,
a formulação e efetivação das políticas públicas para a Educação nas prisões.
Inicialmente gostaríamos de armar que é necessário compreender que as conquistas
legais devem ser avaliadas e/ou estudadas sobretudo pelos seus méritos, em detrimento da sua
efetividade. Em outras palavras, é necessário entender que a formulação das normativas é um
campo de luta política em que interesses diversos estão em conito, o que é próprio das socieda-
des democráticas. Melhor ainda: quando uma normativa legal consagra direitos, isso revela uma
vitória política das forças democráticas e é assim que precisamos considerá-las. É uma vitória
e um passo na direção da transformação social que fortalece a luta política democrática de uma
maneira geral e para garantia de direitos, de modo especíco. Formular uma normativa num am-
biente democrático, geralmente signica um processo coletivo, com interlocutores privilegiados
4
e, sempre, diversidade de interesses que podem estar concentrados no campo democrático, mas
que não prescrevem aqueles não democráticos e mesmo elitistas.
Após a gestão democrática dos espaços públicos estabelecida pela CF 1988 e pela LDB
1996 para a Educação, ampliou-se de modo inusitado, na história do nosso país, a compreensão
do funcionamento do Estado e suas funções públicas, pelo menos no que diz respeito à partici-
pação. Se quiséssemos ironizar ou satirizar, poderíamos armar que, aí, nalmente proclamou-se
a República, no Brasil, se entendermos como fundamento político da República, a cidadania.
Tomando como exemplo o setor da Educação, vemos que toda escola precisou entender e exe-
cutar um orçamento público, decidir sobre o destino de parte dos seus recursos no âmbito de
um conselho escolar, formular projetos políticos pedagógicos etc. Mesmo que pesem os defeitos
e distorções dessa prática, não se pode negar que foi criado e consolidado um espaço político
para o exercício democrático da cidadania. Isso nos diz que, pelo menos na área da Educação, a
maioria dos seus atores conheceu e conhece o que é uma processo participativo para formulação
de uma política pública.
4 Nos sentido que Habermas dá no seu escrito HABERMAS, J. Soberania popular como procedimento. In.
Novos Estudos Cebrap. São Paulo, 26: 100-113, Março,1990.
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Portanto, podemos assegurar que é possível o entendimento de que a formulação de uma
política pública e sua materialização em uma normativa legal é um campo de luta política em que
interesses diversos se conitam e que seus resultados (a norma estabelecida) reetem consensos
e dissensos. Mais ainda, acreditamos o quanto é signicativo esse processo de formulação e
conquistas tanto para seus atores quanto os beneciados, por isso rearmamos que os méritos
das normativas legais devem ser valorizadas e entendidas como um momento da luta política
que materializa conquistas, independente da sua efetividade.
Entretanto, não podemos desconhecer que as conquistas legais se esvaziam quando não
têm efetividade. Contudo, é preciso compreender por que a norma sempre está (e assim deve
ser) distante da prática. A norma, a lei, é um instrumento de organização e intervenção que visa
a transformação, o que signica dizer que o seu objeto, propriamente dito, é o futuro (imediato,
próximo ou distante); no seu processo de formulação, o que se busca é corrigir, ampliar, mudar
situações do presente, garantindo um futuro melhor. Se uma lei, norma ou regra operacional
simplesmente ratica o que está dado, não tem sentido de ser; ela precisa apontar horizontes,
marcar novas fronteiras. Ela é também um instrumento que assegura a luta pelas melhorias, for-
talece os embates e conitos pelos direitos, e dá peso a reivindicações e ao processo decisório
no fazer, na ação cotidiana pela concretização dos direitos assegurados na lei.
Portanto, o mérito da norma não pode ser avaliado pela sua efetividade, ao contrário,
efetivá-la coloca-se como um outro campo de luta política necessária e imprescindível na socie-
dade democrática. Por isso podemos armar que a crítica às normativas devem ter como foco
seu mérito em detrimento da completa efetividade. Enm, não cabe a crítica de que “na prática
a teoria é outra”; é preciso elevar a conscientização política (no sentido freiriano do termo) ao
entendimento dos vários âmbitos de conquistas de direitos, suas respectivas complementarie-
dades, suas interdependências, suas mútuas necessidades. E, em última instância, aprofundar o
conhecimento sobre a própria natureza do Estado e da Democracia.
A educação em prisões talvez seja o espaço no qual essa defasagem (lei versus execução)
seja mais gritante e até mais desoladora, porque aí atuam, contraditoriamente, a Educação e a
Segurança Pública. As tentativas de inovações educacionais, a persistência dos educadores para
efetivação das garantias legais, além das próprias resistências engendradas pelas tradicionais
visões educacionais, contam com o bloqueio da dura percepção de que a segurança está em pri-
meiro lugar. As proposições e intervenções educativas esbarram quase sempre na hegemônica
visão punitiva do encarceramento e, por isso, acreditamos, não podem ser pensadas sem levar
em conta essa realidade.
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Entendemos que muitas pessoas que hoje se encontram em situação de privação de liber-
dade, já estavam antes invisibilizados, excluídos socialmente, passando a serem vistos quando
agrados no delito sob uma ótica discriminatória, o que apenas os transporta para um outro grupo
não menos invisibilizado pela sociedade que produz vários e diferentes tipos de “Outros”. Arroyo
(2012, p. 49) nos diz que “essa produção dos outros como inexistentes os torna irrelevantes ou
incompreensíveis, excluídos de forma radical porque permanecem exteriores à própria forma de
aceite da inclusão como sendo outro”. Assim, por serem irrelevantes, o que justicaria pensar
soluções revestidas de gastos e investimentos públicos? “Quando se pensam os outros como
marginais, excluídos, desiguais, inconscientes se reconhece sua existência, é possível a copre-
sença do Nós e do Outro” (idem). Neste caso, ainda que de forma invisibilizada, o Outro está
presente e a ele são destinadas as políticas que podem funcionar, ou não. Silva et. all. (2020)
faz uma importante consideração neste sentido, quando inclui como questão fundamental “a
qualidade da formação de quem faz a mediação entre os objetivos da Educação e os objetivos
da pena e da prisão” (2020, p. 299).
As reexões e estudo sobre o tema tomam como base as condições de encarceramento
e mesmo as especicidades da estrutura e funcionamento do sistema prisional; e muito se tem
avançado nesse campo de pesquisa. Porém, não incluem devidamente como um dado da reali-
dade este falso antagonismo entre segurança e educação, pensada predominantemente como um
elemento de garantia da escolaridade para as pessoas privadas de liberdade e todas as decorrên-
cias necessária para sustentação desse direito subjetivo da cidadania. A Educação, em verdade,
pode mais: pode tornar-se o elemento articulador, capaz de enfrentar e organizar antagonismos
e/ou conitos, se os entendermos como elementos inerentes da luta política na macro e micro
realidade, particularmente da garantia do direito à educação.
E aqui não subjaz uma visão salvacionista ou um otimismo pedagógico referente à Edu-
cação como instituição social. Armamos, apenas que, se a Educação adotar conitos e anta-
gonismos como situações pedagógicas para educar os atores presentes na sociedade carcerária,
será capaz de ultrapassar os limites da escolarização e intervir mais sistemicamente no processo
educativo dos sujeitos e suas relações sociais, ainda que dentro do sistema prisional. Não há
novidade, nisso, basta que retomemos Paulo Freire no seu princípio educativo fundamental:
educar para liberdade é conscientizar.
Talvez a forma como encaramos o conito seja o górdio da nossa práxis como edu-
cadores. No nosso cotidiano, o conito é visto como um obstáculo a ser vencido, que nos causa
indisposição e uma sensação de que ele nos atrapalha, além de despertar o desejo de que desapa-
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reça; isso revela uma idealização de que devemos viver e trabalhar de forma harmônica, buscar
uma uniformidade (ah... como almejamos ter sempre estudantes “no mesmo nível” em sala de
aula!), estarmos sempre conciliados. Em geral, gostamos muito de diversidades de opiniões,
mas não de conitos; mais precisamente, pensamos que opiniões diferentes nos enriquecem e
que conitos (normalmente tensos) nos impede de agirmos produtivamente.
Todavia, como nos ensina Claude Lefort (2011), a natureza da democracia é a sua incons-
tância e indenição; seu o sintoma da vitalidade está justamente nas divergências e na manifes-
tação dos conitos, mesmo porque é esse o mecanismo de ampliação de direitos e transformação
social. Para além da conservação e garantia de direitos, o ambiente democrático permite a criação
de novos direitos, justamente através de conitos. É assim que se fez na história. A declaração
dos direitos humanos possibilitou o seu desdobramento e ampliação em novos direitos como o
das mulheres, das crianças, dos decientes etc. A conservação, a harmonia, a uniformidade são,
na verdade, ideias autoritárias que só contribuem para uma falsa estabilidade, uma negação da
transformação.
Logo, alimentar a democracia signica aceitar o conito como mecanismo de mudança
e transformação. Sem isso, a democracia está ameaçada pois as desigualdades sociais, a exclu-
são política e social inerente à sociedade democrática liberal só podem ser superadas mediante
conitos. O desaparecimento do conito aponta perigosamente para o estabelecimento do
autoritarismo, ao tempo em que a luta por direitos gera uma constante ampliação de direitos ou
também retrocessos. Qual o amálgama que a garantia dos direitos para as pessoas privadas de
liberdade poderia ter que não a Educação? Que outro saber poderia tratar conitos como situa-
ções pedagógicas capazes de educar politicamente? Que outra instituição social estaria melhor
capacitada para tal função?
A Educação no Brasil é constitucionalmente um direito subjetivo de cidadãos e cidadãos,
portanto, um dever do Estado. Essa conquista, estabelecida na CF 1988, é resultante de uma luta
política de educadores desde a década de 1930, marcada mais precisamente pelo Manifesto dos
Pioneiros de 1932. Então, para sermos efetivos atores da Educação, armando-a como função
pública, como dever do Estado, não podemos prescindir da compreensão sobre as características
desse Estado se quisermos levar à consecução as suas políticas públicas. Vale ressaltar que é
facilmente perceptível tanto no Estado como na sociedade brasileiras a prevalência de relações
autoritárias, cujas raízes remontam aos tempos coloniais: relações clientelistas de mando e obe-
diência, na qual o público e o privado tornam-se indistintos; o prestígio social ou o tráco de
inuência substituindo o critério dos direitos civis para o acesso aos bens sociais; personalização
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do mando político; uso da coisa pública para interesses privados ou particulares; negociações
políticas com base em concessão de privilégios pessoais ou de grupos; além dos desmandos e
impunidades são características das relações políticas que se mantêm presentes, em toda a nossa
história, e persistem nos tempos atuais.
Isso se revela tanto na relação entre Estado e sociedade civil, como entre as próprias
instâncias do poder federativo e ainda no interior de uma mesma unidade federativa, quando
na sua composição administrativa (secretarias e demais órgãos) a distribuição de cargos se faz
em nome de uma governabilidade com base em alianças políticas das mais diversas matizes. É
importante atentarmos para esta matriz autoritária e colonial do Estado brasileiro, pois isso nos
diz respeito, afeta diretamente a gestão da educação e tensiona ainda mais os conitos, parti-
cularmente aqueles entre a Educação e a Segurança Pública. Só para citar um único exemplo,
quantas vezes a escola teve que fazer rearranjos para cumprimento dos obrigatórios 200 dias
letivos dentro do calendário escolar porque as condições de segurança não permitiram o fun-
cionamento ‘normal’ das aulas?
O não reconhecimento ou a negação dos diretos humanos é tacitamente aceita nas esfe-
ras sociais quando se refere ao sujeito em situação de privação de liberdade, seja com relação à
educação, seja qualquer outro direito, ainda que a nalidade da pena de prisão inclui prover os
meios para que o sujeito a ela submetido estabeleça a estrutura necessária para a manutenção da
vida extramuros, sua convivência social e familiar, bem como sua qualicação prossional. A isso
chamamos de especicidade que necessita ser contemplada por quem faz educação em prisões:
ter condições de atuar na intersecção entre os objetivos da pena e os da educação, mesmo tendo
em conta que, no modelo punitivista amplamente praticado no Brasil, a pena tem perdido a sua
nalidade original de ressocialização do sujeito, passando a ser quase puramente uma estratégia
de punição, de imposição do poder do Estado sobre os sujeitos.
A educação, seja escolar ou não, gura aqui como uma parte da formação que seja capaz
de contribuir para a organização do pensamento autônomo, crítico e reexivo, para a observação
e compreensão dos problemas e desaos que lhes são postos. Desta forma, estando em situação
de privação de liberdade, educação para a emancipação deve ser um valor intrínseco. Em que
pese a importância de alguns dispositivos que alteram positivamente a formação dos apenados,
como a remição da pena pela leitura, entre outros dispositivos que possibilitam ao preso algum
rudimento de trabalho educativo, é necessário não perdermos de vista que o direito à educação
é o que deve ser garantido, por estar previsto desde a Lei de Execução Penal, de 1984.
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Ao mesmo tempo, essa realidade deve nos alertar para a necessidade de traçarmos estraté-
gias capazes de garantir o lugar da Educação no sistema prisional no sentido de identicar
aliados, construir alianças, organizar coletivos, desenvolver ações pedagógicas (com atenção
nos conitos), enm construirmos um projeto político e pedagógico, que abrace a educação
para além da oferta escolaridade. Desta forma, é necessário pensar de modo estruturante o que
se pretende como possibilidade de trazer para o sistema prisional uma proposta educativa que
seja ampla, desencaixada de modelos preestabelecidos, exível, condizente com as diferenças,
exigências e variabilidades do sistema. Que seja capaz de atender determinadas demandas que
não são possíveis apenas através da Educação de Jovens e Adultos tal como ela se realiza atu-
almente nas prisões.
Tais mudanças devem passar pela (re)avaliação da política pública de educação para o
sistema prisional, tendo em conta que na política os diferentes atores, estatais ou não, podem
demandar na forma e no conteúdo, no sentido dos ajustes necessários para uma educação no
sistema prisional que seja capaz de reconhecer que a escola não é o único meio onde a educação
se realiza e, neste caso especíco, apesar do esforço dos professores que atuam em prisões, dos
gestores e demais sujeitos dos movimentos organizados, os resultados até o momento apresenta-
dos
5
autorizam repensar a questão. E isso não é uma utopia (ainda) haja vista que os mecanismos
de transformação da escola em espaço de articulação da vida real já estão dados. O colegiado
escolar pode e deve contar com a participação de outros atores exteriores à comunidade escolar,
a exemplo dos agentes penitenciários, no mínimo; o currículo pode e deve incluir as ações cultu-
rais (inclusive as religiosas tão presentes na vida das pessoas privadas de liberdade); a dinâmica
curricular pode e deve ser independente da seriação e conferir outros tempos de escolarização; o
trabalho (do qual se alega ‘roubar o tempo de escola) pode e deve constituir como uma prática
pedagógica de produção de conhecimento. Enm, são alguns exemplos para inspirar as propo-
sições da educação ofertada nas prisões a se transformar em um espaço de fazer político além
do pedagógico.
Paulo Freire considerava ingenuidade achar que as classes dominantes proporcionariam
uma escola que fosse capaz de formar consciência das classes dominadas. Adorno (1995), no
mesmo sentido, sugere que a educação não pode ser utilizada para instrumento de ajustamento
de condutas, mas uma formação política. Isso requer da escola que ela forme o sujeito numa
intersecção entre o mundo do trabalho e o mundo da vida, com tudo o que lhe cabe, tendo em
5 Sobre os dados do sistema penitenciário brasileiro, ver INFOPEN - Sistema de informações estatísticas
do sistema penitenciário brasileiro. http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informa-
coes-penitenciarias
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vista a sua emancipação. O fazer político, óbvio, acontece através as relações de poder. Então,
vale lembrar o conceito que nos legou Norberto Bobbio: o poder é uma relação, uma díade
mando-obediência. Em palavras mais simples, se não há a obediência, o poder não se constitui,
não se efetiva. E, gostaríamos de lembrar, não há transgressão, mais impossível de obediência
irrestrita do que o ato de educar.
Referência
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Recebido em: 01 de março de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
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