Por uma educação libertadora e uma didática fundamental com pessoas em privação de liberdade
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10545
POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA E UMA
DIDÁTICA FUNDAMENTAL COM PESSOAS EM
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
1
Jilvania Lima dos Santos Bazzo
2
Universidade Federal de Santa Catarina
http://orcid.org/0000-0002-8000-9130
Rui Dias Florêncio
3
Casa da Criança do Morro da Penitenciária (Florianópolis – SC)
http://orcid.org/0000-0003-1075-8360
RESUMO:
Neste artigo, objetiva-se reetir sobre a educação libertadora no contexto da Socioeducação ou da Edu-
cação em Prisões, fundamentados nas dimensões político-social e humana de uma educação liberta-
dora, com vistas à superação da prática da educação bancária e da violência simbólica, com pessoas
em privação de liberdade. Pretende-se aprofundar a discussão acerca dos aspectos pedagógicos e da
atuação docente na educação com pessoas em privação de liberdade por meio de uma breve articulação
conceitual entre as perspectivas de Paulo Freire (2018), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2013)
acerca da cultura escolar. Como é possível praticar uma educação libertadora, com vistas à superação
da educação bancária e da prática da violência simbólica, com pessoas em privação de liberdade? Para
responder tal problemática, recortamos uma abordagem metodológica fundamentados na perspectiva
multidimensional da Didática apresentada por Candau (2013) e empreendemos uma pesquisa biblio-
gráca a m de pensar a educação com pessoas em privação de liberdade no âmbito político-social e
humano, escolhendo como autores de referência as contribuições de Freire (2018) e Bourdieu e Passeron
(2013). Na sequência, partimos para as contribuições de autores que são referência no âmbito da dimen-
são humana do processo de ensino e aprendizagem, tais como Neill (1995) e Rogers (2004). Ainda que
parciais, os resultados apontam que a prática da ação dialógica com pessoas em privação de liberdade
é uma proposta que permite superar a educação bancária e a violência simbólica, contribuindo para a
emancipação social destas pessoas.
Palavras-chave: Educação. Didática. Violência simbólica. Educação bancária. Educação libertadora.
Ação dialógica. Privação de liberdade.
1 Este artigo faz parte de uma pesquisa intitulada, provisoriamente, “Sonho ou utopia? Em busca de uma
educação libertadora” que vem sendo desenvolvida no âmbito do Doutorado em Educação no Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e está vinculada ao Grupo
de Estudos e Pesquisas em Didática e suas Multidimensões GEPDiM/UFSC. http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogru-
po/520118.
2 Doutora em Educação (UFSC). Professora do Departamento de Metodologia de Ensino (MEN) e do
Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSC). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática e suas
Multidimensões - GEPDIM. E-mail: jilvania.bazzo@ufsc.br
3 Mestre em Reabilitação Psicomotora (Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa).
Psicomotricista na Casa da Criança do Morro da Penitenciária (Florianópolis SC) e na Associação Caminhos
para a Vida (Florianópolis – SC). E-mail: ruidiasorencio@gmail.com
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ABSTRACT:
FOR A LIBERATING EDUCATION AND A FUNDAMENTAL DIDACTIC
WITH PEOPLE IN DEPRIVATION OF LIBERTY
This article aims to reect on liberating education in the context of Socioeducation or Education in
Prisons, based on the political-social and human dimensions of liberating education, with a view to
overcoming the practice of banking education and symbolic violence, with people in deprivation of lib-
erty. It is intended to deepen the discussion about the pedagogical aspects and the teaching performance
in education with people in deprivation of liberty through a brief conceptual articulation between the
perspectives of Paulo Freire (2018), Pierre Bourdieu and Jean-Claude Passeron (2013) about school cul-
ture. How is it possible to practice a liberating education, with a view to overcoming banking education
and the practice of symbolic violence, with people in deprivation of liberty? To answer this problem, we
cut out a methodological approach based on the multidimensional perspective of Didactics presented by
Candau (2013) and we undertake a bibliographic research in order to think about education with people
in deprivation of liberty in the political-social and human scope, choosing as authors of reference the
contributions of Freire (2018) and Bourdieu and Passeron (2013). In the sequence, we start with the con-
tributions of authors who are reference in the scope of the human dimension of the teaching and learning
process, such as Neill (1995) and Rogers (2004). Although partial, the results show that the practice of
dialogical action with people in deprivation of liberty is a proposal that allows to overcome banking
education and symbolic violence, contributing to the social emancipation of these people.
Keywords: Education. Didactic. Symbolic violence. Banking education. Liberating education. Dialogic
action. Deprivation of liberty.
RESUMEN:
POR UNA EDUCACIÓN LIBERADORA Y UNA DIDÁCTICA FUNDA-
MENTAL CON PERSONAS EN PRIVACIÓN DE LIBERTAD
Este artículo tiene como objetivo reexionar sobre la educación liberadora en el contexto de la Socio-
educación o Educación en Prisiones, a partir de las dimensiones político-sociales y humanas de la edu-
cación liberadora, con miras a superar la práctica de la educación bancaria y la violencia simbólica, con
personas en privación de libertad. Se pretende profundizar la discusión sobre los aspectos pedagógicos
y el desempeño docente en educación con personas en privación de libertad a través de una breve articu-
lación conceptual entre las perspectivas de Paulo Freire (2018), Pierre Bourdieu y Jean-Claude Passeron
(2013) sobre la cultura escolar ¿Cómo es posible practicar una educación liberadora, con miras a superar
la educación bancaria y la práctica de la violencia simbólica, con personas privadas de libertad? Para
dar respuesta a esta problemática, recortamos un abordaje metodológico basado en la perspectiva multi-
dimensional de la Didáctica presentada por Candau (2013) y realizamos una investigación bibliográca
con el n de pensar la educación con personas en privación de libertad en el ámbito político-social
y humano, eligiendo como autores de referencia los aportes de Freire (2018) y Bourdieu y Passeron
(2013). En la secuencia, partimos de las aportaciones de autores referentes en el ámbito de la dimensión
humana del proceso de enseñanza y aprendizaje, como Neill (1995) y Rogers (2004). Aunque parcial,
los resultados muestran que la práctica de la acción dialógica con personas en privación de libertad es
una propuesta que permite superar la educación bancaria y la violencia simbólica, contribuyendo a la
emancipación social de estas personas.
Palabras clave: Educación, Didáctica, Violencia simbólica, Educación bancaria, Educación liberadora,
Acción dialógica, Privación de libertad.
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Introdução
Educação... Quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo.
O mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um
outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o luar da vida dum pobre, como
tem gente que diz. Comparação, no seu, essa palavra vem junto com quê?
Com escola, não vem? Com aquele professor no, de roupa boa, estudado,
livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jei-
to, como deve ser... Do seu mundo vem estudo de escola que muda gente
em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi
isso aqui. - fala de Antônio Cícero de Souza, o Ciço, um camponês de Minas
Gerais com quem Carlos Brandão (1980 apud FREIRE, 1997, p. 36) teve um
diálogo sobre educação.
A modernidade e o ensino escolar se constituem como um contexto marcado pela falta de
sensibilidade para encontrar a “boniteza” que o professor e antropólogo Carlos Brandão (1980
apud FREIRE, 1997) encontrou e transcreveu da fala de Antônio Cícero de Souza
4
. “Boniteza”
essa que, segundo Freire (1997), deve ter a atenção especial de todos e todas as educadoras e
educadores, se comprometendo com a pesquisa epistemológica do “saber de experiência feito”
das classes populares, antes ou concomitantemente com a pesquisa sobre as práticas docentes.
Na ótica de Freire (1997), este saber sobre o qual a etnociência se tem ocupado e que
se debruça acerca do saber da cultura dos grupos populares – sobre como sabem e como siste-
matizam o seu saber – deve ser o ponto de partida para a prática pedagógica democrática, pois
é a partir do conhecimento dos educandos e das educandas que os educadores ou educadoras
haverão de iniciar o seu diálogo pedagógico.
Freire (1997) pondera que a busca pela multiculturalidade não se institui na justaposição
de culturas, nem no poder exacerbado de umas sobre as outras, mas na liberdade conquistada e
no direito assegurado de cada cultura ter o respeito das outras, correndo o risco de ser diferente
e sem medo de o ser. Só assim é possível que as diversas culturas cresçam juntas, sem a tensão
permanente provocada pela soberania de uma sobre as outras. A multiculturalidade trata-se de
uma escolha democrática de um caminho que jamais estará terminado e acabado, pois, neces-
sariamente, se refaz a cada momento.
Freire (1997) entende que a tensão vivida deve ser a do inacabamento que se assume
como razão de ser da própria cultura e de conitos não antagônicos e não aquela anteriormente
4 Trata-se de parte da fala transcrita sobre educação de Antônio Cícero de Souza, o “Ciço”, lavrador do
sul de Minas Gerais, publicada originalmente no prefácio de um livro-coletânea sobre a educação popular, de que
Paulo Freire fez parte, intitulado A questão política da educação popular, e organizado por Carlos Brandão em
1980. (BRANDÃO, 1980).
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causada pelo medo, pela desesperança ou pela injustiça. Portanto, Freire (1997) critica a forma
como a escola ignora e apaga a cultura e o saber popular, impondo de forma autoritária e não
democrática o ensino de um saber que, muitas vezes, está muito longe da realidade dos educan-
dos e das educandas.
Com um pensamento similar, Bourdieu e Passeron (2013) explicam que o trabalho peda-
gógico escolar visa impor a legitimidade da cultura dominante, camuando o poder arbitrário que
é exercido sobre os membros dos grupos ou classes dominadas. Os autores armam que o fato
da cultura das classes dominantes ser aquela que é valorizada pela escola, ao contrário do saber
das classes populares, que é desvalorizado, faz com que a cultura dominante seja considerada
como a única cultura autêntica, ou seja, como cultura universal.
Além disso, um dos efeitos menos percebidos da escolaridade obrigatória é o reconheci-
mento das classes dominadas do saber e do saber-fazer legítimos na sua sociedade, por exemplo,
em matéria de direito, de medicina, de técnica, de entretenimento ou de arte, e a desvalorização
do saber e do saber-fazer que elas efetivamente dominam, por exemplo, o direito consuetudi-
nário, a medicina tradicional, as técnicas artesanais, a língua ou a arte popular (BOURDIEU;
PASSERON, 2013).
Na visão de Bourdieu e Passeron (2013), o trabalho pedagógico tende a condenar os
profetas ou criadores e a estimular uma homogeneização da cultura em detrimento da criação
individual, pois a nalidade da programação escolar é a reprodução cultural e social. Nesta ótica,
a função do ensino é a de legitimar a cultura dominante e valorizar socialmente aqueles que a
possuem, tendo como nalidade a conservação social e a perpetuação das relações de classe e
as estruturas de poder. Estes autores armam que todo o sistema de ensino institucionalizado
tem as suas caraterísticas especícas de estrutura e funcionamento voltadas para a sua função de
reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor, que designam de reprodução
cultural. Desse modo, o sistema escolar contribui para a reprodução das relações entre os grupos
ou classes, num processo que Bourdieu e Passeron (2013) designam de reprodução social.
Bourdieu e Passeron (2014) demonstram como o sistema escolar, que é revestido por
uma aparência de neutralidade e democratização, continua a reproduzir as desigualdades so-
ciais, camuadas pela ilusão da meritocracia. No seu trabalho sobre o sistema de ensino como
reprodutor social ca clara a ligação estreita entre classe e sucesso escolar, mostrando como os
mecanismos de seleção escolar se tornam dispositivos legitimadores da máquina de reprodução,
e excluem aqueles que não são os legítimos “herdeiros” do sistema, pois estão mais longe da
cultura dominante que ele privilegia
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Segundo Bourdieu e Passeron (2013, p. 30), “as contestações mais radicais de um poder
pedagógico se inspiram na utopia autodestrutiva de uma pedagogia sem arbitrário”. Na perspectiva
destes autores, essas utopias visam a garantir o monopólio da imposição legítima, mascarando
a verdade objetiva de toda ação pedagógica. Para tanto, elas mascaram a “violência simbólica”
que reside em toda e qualquer ação pedagógica, pois, “toda ação pedagógica é objetivamente
uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultu-
ral.” (BOURDIEU; PASSERON, 2013, p.26). Neste sentido, a ideia de uma ação pedagógica
culturalmente livre, que não possua arbitrário, nem no que impõe e nem na maneira de fazê-la,
consiste numa espécie de mascarar a verdade objetiva da ação pedagógica.
As abordagens de Bourdieu e Passeron (2013) e Freire (2018) nos provocam a pensar a
seguinte questão: como é possível praticar uma educação libertadora, com vistas à superação da
educação bancária e da prática da violência simbólica, com pessoas em privação de liberdade?
5
Para responder tal problemática, recortamos uma abordagem metodológica fundamentados na
perspectiva multidimensional da Didática apresentada por Candau (2013) e empreendemos uma
pesquisa bibliográca a m de pensar a educação com pessoas em privação de liberdade no âm-
bito político-social e humano, escolhendo como autores de referência as contribuições de Freire
(2018) e Bourdieu e Passeron (2013). Na sequência, partimos para as contribuições de autores
que são referência no âmbito da dimensão humana do processo de ensino e aprendizagem, tais
como Neill (1995) e Rogers (2004), pois apesar de partirem de uma visão liberal de educação
podem nos ajudar a profundar essas dimensões da “Didática Fundamental” (CANDAU, 2013).
Por m, reunimos as contribuições apresentadas numa reexão sobre a prática da educação
libertadora com pessoas em privação de liberdade.
Este trabalho tem como objetivo reetir sobre a educação libertadora no contexto da
Socioeducação ou da Educação em Prisões, fundamentado nas dimensões político-social e hu-
mana de uma educação libertadora, com vistas à superação da prática da educação bancária e da
violência simbólica, com pessoas em privação de liberdade. Consideramos que este artigo pode
ajudar a responder à necessidade apontada nos estudos de se aprofundar a discussão acerca dos
aspectos didático-pedagógicos e da atuação docente na educação com pessoas em privação de
liberdade (FONSECA, 2013; ONOFRE; 2015; DUARTE; PEREIRA, 2017; PESSOA; ALBER-
TO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019; ONOFRE, FERNANDES; GODINHO, 2019).
Importa destacar ainda que a reexão apresentada poderá também servir de fonte para estudos
5 Conforme consta na primeira nota de rodapé, esta questão de pesquisa faz parte de
um trabalho de investigação mais amplo, cujo título ainda provisório é: “Sonho ou utopia? Em
busca de uma educação libertadora.
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e investigações em torno dos conceitos teóricos e metodológicos que envolvem os processos
educativos no âmbito da Socioeducação, ou da Educação em Prisões.
Violência simbólica e educação libertadora: da dimensão político-
social do ato de ensinar
A perspectiva de Bourdieu e Passeron (2013) de que qualquer ação pedagógica consiste
numa violência simbólica, na medida em que se trata de uma imposição de um arbitrário cultural,
parece estar alinhada com uma ideia de cultura
6
como algo estanque, e não como algo dinâmi-
co e vivo, que é constantemente recriado. Trata-se de uma concepção que entende as pessoas
envolvidas nos processos educativos como meras reprodutoras culturais e não leva em conta
a sua agência como produtoras de cultura, notadamente os educandos e educandas. Isto é algo
particularmente característico da visão adultocêntrica do pensamento ocidental, que não enxerga
os educandos e educandas como sujeitos epistêmicos e produtores de cultura, mas como um
“vir a ser” (TASSINARI, 2007). Portanto, os educandos e educandas são vistos como pessoas
que precisam ser educadas para poderem se tornar sujeitos, ou seja, são vistos como objetos
passivos da educação.
Essa análise está de acordo com Bicalho e Paula (2009) que apontam que Bourdieu e
Passeron (2013) na sua concepção de violência simbólica não consideram o sujeito como um
agente da relação, mas como alguém que apenas se resigna. Na compreensão de Bicalho e Pau-
la (2009), eles apresentam uma visão que não abre a possibilidade de uma mudança concreta
no mundo social, e que vê a ordem como algo inquestionável na reprodução da sociedade. No
mesmo sentido, Toscan (2011) aponta que, na sua teoria da violência simbólica, Bourdieu e
Passeron (2013) negam a autonomia e a consciência dos sujeitos nas relações pedagógicas que
são estabelecidas.
Toscan (2011) aproxima a perspectiva da violência simbólica de Bourdieu e Passeron
(2013) com a prática da educação bancária descrita por Freire (2018) como aquela baseada em
programas educacionais engessados, que visam “depositar” conteúdos de uma forma impositiva.
Ao fazer a sua crítica à educação bancária, Freire (2018) apresenta uma proposta educacional
alternativa e possível, baseada na sua teoria de ação dialógica, que nos permite reetir sobre
como superar a reprodução da educação bancária e da ação pedagógica como violência simbólica.
6 Salientamos que a concepção de cultura como algo estanque na perspectiva de Bourdieu e Passeron
(2013) se refere à sua utilização neste livro na sua denição de ação pedagógica. Sabemos que corremos o risco de
fazer uma referência ao conceito numa perspectiva diferente daquela que o próprio Bourdieu mobiliza em outros
momentos da sua obra. Reforçamos, porém, que nos referimos aqui especicamente à sua utilização no âmbito da
conceptualização da ação pedagógica e que está devidamente datada.
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Na sua teoria da ação dialógica, Freire (2018) defende que o adulto “socializador” não
deve ser o único a ser visto como agente, recusando a ideia da passividade da recepção dos
valores, princípios e atributos sociais. Para tal, Freire (2018) substitui essa ideia pela noção
de construção de signicados e sentidos na interação e interlocução. Além disso, tal como nos
aponta Glass (2013), a educação libertadora proposta por Freire visa, principalmente, estimular
a criticidade e o poder dos aprendizes de intencionalmente transformarem a si e ao seu mundo.
Conforme as conclusões apresentadas por Glass (2013), a teoria freiriana de prática da
educação libertadora assenta na perspectiva ontológica de que produzimos história e cultura
ao mesmo tempo em que história e cultura nos produzem. Nessa perspectiva é possível pensar
uma pedagogia que auxilia as pessoas a despertarem para a força que cada um tem dentro de
si, e que reside na liberdade e na capacidade que temos de fazer algo novo, que transforma o
mundo material e transcende os sentidos e as práticas histórico-culturais que recebemos. Deste
modo, Freire (2018) arma a nossa existência ontológica de coprodutores do mundo histórico
e cultural onde vivemos.
Na mesma linha de Freire (2018), Oliveira (1999) arma que a coeducação pode acon-
tecer na medida em que as pessoas se reconhecem como seres inacabados, o que não pode ser
visto como uma caraterística de determinadas fases da vida, mas um atributo humano. Lapassade
(1975 apud OLIVEIRA, 1999) arma que esse inacabamento é o que possibilita a própria cultu-
ra, pois é o que nos permite estarmos constantemente nos recriando, qualquer que seja a idade.
O outro é aquele que testemunha o nosso inacabamento e nos ajuda a nos humanizarmos, pelo
que a recriação de si só pode ocorrer no encontro com esse outro. Nesta forma de ver o mundo,
viver é o processo de nos tornarmos o que somos em potencialidade, tal como é proposto por
Fromm (1968 apud OLIVEIRA, 1999).
Por outro lado, a vertente teórica de Bourdieu e Passeron (2013) sobre a temática da
violência simbólica parece estar baseada numa visão de poder
7
no campo educacional como algo
exclusivamente centralizado na gura e no papel de quem educa, pois consideram que a ação
pedagógica é uma imposição de um arbitrário cultural por um poder arbitrário. Pelo contrário,
a educação libertadora parece estar relacionada com uma visão de poder próxima com aquela
descrita em Foucault (2008), ou seja, o poder pertence àqueles que decidem, que tomam para si
a tarefa de escolher, tomar decisões.
Numa visão foucaultiana, poderíamos dizer que o poder, ao contrário das perspectivas
convencionais que armam a sua centralidade e posse, é exercido em múltiplas direções, como se
7 Conforme registramos na nota de rodapé anterior, neste texto o conceito de cultura está circunscrito
na obra publicada por Bourdien e Passeron em 2013 e se refere especicamente à sua mobilização no âmbito da
conceptualização da ação pedagógica. (BOURDIEU; PASSERON, 2013).
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fosse uma rede que se constitui por toda a sociedade. Foucault (2008) concebe o poder exercido
a partir de manobras, técnicas ou disposições que não deixam de serem resistidas, respondidas,
absorvidas, aceitas ou transformadas. As relações têm inerentes a si os seus jogos de poder,
que consistem em enfrentamentos constantes e perpétuos, e aos quais está inerente, também, a
liberdade e o potencial de revolta.
Louro (2011) salienta que as concepções foucaultianas sobre o poder trouxeram ainda
outro contraponto às ideias tradicionais, que consiste em percebê-lo não apenas como coercitivo
e negativo, mas como produtivo e positivo. Assim, o poder passa a ser visto não apenas como
aquele que nega, impede, ou coíbe, mas, também, como aquele que produz, faz ou incita.
Na ressonância desse horizonte epistemológico, Freire (2018) também nos aponta que
a liberdade é uma conquista e não uma doação. Portanto, a liberdade à qual se refere na sua
pedagogia libertadora não é um conceito abstrato, um ponto ideal fora das pessoas ao qual elas
poderiam se alienar. Freire (2018) concebe a liberdade como um movimento de busca permanente,
pois ninguém tem liberdade para ser livre e, por isso mesmo, precisamos estar constantemente
engajados na luta e nesse movimento de conquista. Ser livre signica correr riscos, dar um passo
além na busca do ser mais, sabendo que a busca não se faz sozinho, mas com o outro, pois como
diria Freire (2018, p. 29) “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se
libertam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.
A liberdade, por assim dizer, trata-se do próprio processo de busca, que leva à comunhão
criadora e que permite aos indivíduos serem autenticamente, armando-se como atores da pró-
pria história. Ela exige a disponibilidade para o autoconhecimento e a coragem de decidir ser,
existir nos seus autênticos desejos, armando o seu poder de criar e de transformar o mundo
com os outros, em comunhão, desde que não implique concretamente desejo de morte. Se as-
sim o for, o mais prudente é o afastamento protetor e curador. Não existem pessoas livres, mas
pessoas em processo de libertação, que acontece a partir do momento em que nos engajamos
no estabelecimento de relações autênticas com o outro e conosco próprios. Portanto, é somente
na comunicação, interação e interlocução, que tem sentido a vida humana, pois o pensar de
uma pessoa somente ganha autenticidade no pensar dos outros, mediatizados pelo mundo e em
intercomunicação. (FREIRE, 2018).
Por esta razão, o diálogo é visto como uma exigência existencial, tratando-se do encon-
tro entre pessoas que pronunciam o mundo, sendo essa a base de construção do conhecimento,
enquanto ato de criação. Por isso, Freire (2018) acredita que não há diálogo se não houver um
profundo amor ao mundo e aos outros. O ato de criação é fundado pelo amor que torna possível
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o diálogo, realizado em relação horizontal, cuja base é a conança. Através dessa verdadeira
comunhão é possível gerar a verdadeira colaboração que torna possível a ação libertadora.
Na mesma linha do pensamento pedagógico freiriano, Oliveira (1999) utiliza o termo
“coeducação” para denir o processo através do qual se podem alcançar relações igualitárias,
no qual ocorre uma modicação recíproca dos sujeitos, que surge quando ambos convergem
na busca de relações onde se aceitam as diferenças interindividuais. Aqui não cabe a distinção
entre educador e educando, mas, sim, a denição de uma comunidade de indivíduos que juntos
problematizam o mundo e buscam soluções coletivas para as questões percebidas.
Esta forma de educação implica, então, a superação da contradição educador e educandos,
de tal modo que ambos sejam, simultaneamente, educadores e educandos, professor e estudan-
tes. O método de ensino é visto como uma atitude de desejar ensinar e aprender. Freire (1997)
enfatiza que o/a educando/a precisa se reconhecer como sujeito que é capaz de conhecer e que
quer conhecer em relação com outro sujeito, que também se reconhece como capaz de conhecer,
para que, assim, ambos consigam alcançar o objeto de conhecimento. Ensinar e aprender são,
deste modo, vistos como o processo de conhecer, que implica re-conhecer-se a si mesmo.
Freire (1997) pondera que a grande importância política do ato de ensinar consiste em
permitir que os educandos e educandas se assumam como sujeitos cognoscentes e, à medida em
que vão imergindo nos signicados e atribuindo sentidos, vão se tornando também signicadores
críticos. Nos círculos de cultura propostos pela sua pedagogia, ensina-se mutuamente, portanto,
há aprendizagens em “reciprocidade de consciências” e em diálogo circular, intersubjetivando-
-se em cooperação, colaboração e afetividade. Assim, as pessoas vão assumindo, criticamente,
o dinamismo de sua subjetividade criadora.
Educação libertadora e violência simbólica: da dimensão humana
do ato de ensinar
Somando-se à teoria crítica freiriana, compreendemos que Neill (1995) e Rogers (2004),
que são referências das pedagogias não-diretivas, podem colaborar no aprofundamento das
práticas libertadoras, pois a partir das suas ideias podemos concluir que uma pedagogia que não
se utilize da violência simbólica é aquela em que o educador ou a educadora aceita incondicio-
nalmente o educando ou a educanda como ele ou ela é. Desse modo, é possível não condicionar
a pessoa a ser como nós gostaríamos que ela fosse, ou da maneira como nós próprios, fôssemos
e não conseguimos ser.
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Kohan (2007) arma que quando falamos em formar cidadãos solidários, tolerantes,
respeitosos e democráticos, estamos a armar como nós gostaríamos de ser e não somos. Por-
tanto, quando o educando ou a educanda é aceita pelo educador ou educadora como ele(ela) é,
pode, a partir dessa aceitação, aceitar-se a si mesmo(a) e permitir-se ser autêntico(a). Ou seja,
como poderia um educador ou educadora ensinar um educando ou educanda a aceitar-se a si
mesmo(a) e a ser autêntico(a), se ele(a) não se aceita? A mediação do processo educativo é uma
“atividade de parceria, disposição para estar com o outro; é uma atitude de coração e coragem,
somente homens e mulheres inteligentes, sensíveis e humanos são capazes de desenvolvê-la”
(BAZZO, 2020, p. 280).
Podemos, com o debate, considerar que o exercício de uma educação libertadora consiste
no envolvimento de um processo de crescimento e amadurecimento estabelecido entre pessoas.
Tal processo exige o desenvolvimento conjunto de capacidades para estabelecer relações au-
tênticas, se engajando num percurso de transformação mútua. De acordo com Rogers (2004),,
o estabelecimento de relações autênticas depende da capacidade de não julgar a si próprio nem
ao outro, desenvolvendo a aceitação empática e o acolhimento amoroso.
A empatia consiste na capacidade de se colocar no lugar do outro e é a base para uma
relação sem condicionamentos, na qual se permite que esse outro seja o que verdadeiramente é.
As competências da aceitação incondicional do outro, autenticidade e empatia, que foram de-
nidas por Rogers (2004) apresentam-se como fundamentais na ação pedagógica e terapêutica, e
são a base para a criação de uma relação libertadora, da qual a conança vai se tornando o seu
principal suporte.
Neill (1995) considera que a libertação do outro consiste na sua aprovação, pois é apenas
quando se sente aprovado na sua autenticidade, que se sente livre para ser o que é, tornando-se,
assim, um ser social. O autor arma que o amor cura, ou seja, a aprovação e a liberdade que se
oferecem ao outro de ser el a si próprio. A aceitação do outro como ele é permite que ele acei-
te, de forma livre e sem receio, os sentimentos positivos que os outros nutrem em relação a si.
Isso faz com que a pessoa não apenas aprenda a se aceitar, como comece a gostar de si
própria, o que não se trata de ser arrogante, mas de se sentir bem na sua própria pele. Desse modo,
a pessoa desenvolve uma alegria de viver que é espontânea e livre, contagiando os que vivem
ao seu redor e transparecendo um sentimento de plenitude e autorealização. (ROGERS, 2004).
Este processo de aceitação é fundamental para o desenvolvimento da pessoa, seja qual
for a fase da vida em que se encontre. Em relação à pessoa em situação de privação de liberdade,
é importante escutar a sua criança interna, saber sobre suas necessidades e o que ela precisa. O
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trabalho educativo haverá de iniciar com esses fundamentos: a pessoa é a mais importante, sua
história de vida.
Como já vimos, o processo de libertação avança se o educando ou a educanda se sente
aprovado(a) na sua autenticidade. Porém, o adulto educador ou educadora está, muitas vezes,
mergulhado(a) nas suas próprias fragilidades, pois as desaprovações que sofreu ao longo da sua
vida fazem com que não consiga aprovar a si próprio. Consequentemente, não consegue aprovar o
outro, encontrando-se demasiadamente autocentrado e sem conseguir reconhecê-lo e valorizá-lo.
Envolver-se no processo de aceitar o outro implica envolver-se no processo de aceitar
a si mesmo(a), para assim poder entrar em relações de reciprocidade, que Buber (2009) dene
como a relação “Eu-Tu”. Portanto, para o educador ou a educadora auxiliar o educando ou a
educanda no seu processo de libertação ele ou ela deve também estar envolvido no seu próprio
processo de libertação.
O amor, que signica conar, respeitar e aceitar o eu do outro, é a ferramenta educacional
e terapêutica mais poderosa. Ele é a cura. Ele consiste em permitir a liberdade e aprovação para
ser o que se é. O único condicionamento que as nossas emoções deveriam receber deveria ser
o condicionamento do amor. Neste sentido, podemos encontrar uma ponte entre Neill (1995),
Rogers (2004), Buber (2009), Freire (1997) e João dos Santos (n/d apud BRANCO, 2000),
criador da “Pedagogia Terapêutica”, para quem a arte de educar, de curar e de amar são na sua
base idênticas, e consistem, essencialmente, em colocar o seu próprio funcionamento neutral ao
serviço do funcionamento dos outros.
Isto não signica que uma educação libertadora não implica a integração de limites, tendo
em vista que a liberdade consiste em fazermos o que quisermos, desde que não se interra com a
liberdade alheia. Portanto, não tem problema dar limites, desde que isso não seja feito de uma
posição moralista, ou seja, julgando e culpabilizando as ações do outro. O importante é saber
como dar limite sem culpabilizar. (NEILL, 1995).
Freire (2018) arma que não exercer autoritarismo não signica ter uma posição libe-
ralista, que levaria os outros a licenciosidades. A teoria dialógica freiriana nega o autoritarismo
da mesma forma que nega a licenciosidade, armando, assim, a autoridade e a liberdade. Da
mesma maneira, Neill (1995) assegura que numa educação disciplinada o educando(a) não tem
direitos, enquanto que numa educação licenciosa ele(a) tem todos os direitos.
Freire (2018, p.103) arma que “se não liberdade sem autoridade, não também
esta sem aquela”, portanto, o que está na base da autoridade autêntica é a liberdade que em
certo momento se faz autoridade. Não se tratam de realidades antagônicas, nem separáveis
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uma da outra, pois toda hipertroa de uma provoca a atroa da outra. A verdadeira pedagogia,
destaca Freire (2018), é aquela em que dois seres fazem juntos o aprendizado da autoridade e
da liberdade verdadeiras, que ambos, como um só corpo, buscam instaurar ao transformarem a
realidade que os mediatiza.
A busca do Ser-Mais, ou da aprendizagem da relação EU-TU
Segundo Freire (2018), os seres humanos vivem permanentemente uma relação dialética
entre os condicionamentos e a sua liberdade. As barreiras que os seres humanos encontram e
que restringem as suas liberdades, Freire (2018) chamou de “situações-limite”. Para enfrentar
essas “situações-limite”, os seres humanos devem tomar distância, objetivando aquilo que os
limita, que ele nomeou como “percebido-destacado”. No momento em que os seres humanos
tomam consciência dos seus limites e percebem esses obstáculos à sua libertação, iniciam a sua
ação libertadora, realizando aquilo que Álvaro Vieira Pinto (n/d apud FREIRE, 2018) designa
de “atos-limites”, que são aqueles que se dirigem à superação dos limites da realidade.
Freire (2018) ressalta que, no momento em que a percepção crítica se inaugura, se gera
um clima de esperança e conança que leva os seres humanos a se empenharem na superação
dessas situações que os limitam. Essa superação, envolta na crença, no sonho possível e na utopia
que virão, faz os seres humanos partirem em busca do que ele designou de “inédito-viável”, que
é algo não conhecido ou vivido, e que ao se tornar realidade permite com que os seres humanos
concretizem a sua vocação de Ser-Mais.
Na visão de Freire (2018), esta superação pode acontecer na ação sobre a realidade
concreta, na medida em que a partir do momento em que forem superadas essas situações, com
a transformação da realidade, novas situações surgirão, solicitando novos “atos-limite”. O cons-
tante enfrentamento com a realidade vai delineando a dimensão histórica do ser humano, que
vai sendo operada de transformação em transformação, num movimento de permanente devir.
Fica evidente que, na teoria dialógica freiriana, não pode haver um sujeito que domina
pela conquista e um objeto dominado. Ao contrário, existem sujeitos que se encontram para a
pronúncia do mundo e para a sua transformação. Na teoria da ação antidialógica, que Freire
(2018) procura combater, a conquista implica a transformação do outro em quase “coisa”, pois o
eu dominador transforma o tu dominado num mero “isto”. Em contraposição, o eu dialógico
sabe que é exatamente o tu que o constitui e, ao ser constituído por um tu, esse tu se constitui,
também, como um eu, pois enxerga no seu eu um tu. “Desta forma, o eu e o tu passam a ser,
na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu.” (FREIRE, 2018, p. 96).
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Resumindo, Freire (1997) não coloca o centro da sua perspectiva educativa nem no edu-
cando, nem no educador, nem no conteúdo, nem no método, mas nas relações humanas atraves-
sadas pelos seus vários componentes. Nesta linha de pensamento, ele se aproxima das ideias de
Buber (2009), cujo existencialismo se baseia numa fenomenologia da relação, mostrando que o
amor não é algo possuído pelo eu como se fosse um sentimento, mas como algo que acontece
entre dois seres humanos, situando-se além do eu e aquém do tu, ou seja, na esfera entre os dois.
O encontro com o tu é algo que exige que o eu se coloque disponível através de um ato do seu
ser, que é o ato de voltar-se ao outro, sendo, portanto, o seu ato essencial/vigoroso. A realiza-
ção do eu acontece na relação com o tu, na medida em que “toda verdadeira vida é encontro”
(BUBER, 2009, p. 49).
Na compreensão de Buber (2009), a relação Eu-Tu é a origem primordial do ser humano,
na medida em que cada um se torna eu na relação com o tu. Portanto, a relação Eu-Tu dá-se
ao nível do ato puro, da ação sem arbitrariedade. Nessa abordagem, somente quando as pessoas
entram, verdadeiramente, em relação é que se tornam livres e, portanto, criadoras. Deste modo, o
ser humano é tanto mais uma pessoa, quanto mais intenso é o seu eu. A armação do seu eu, ou
seja, o que a pessoa quer dizer quando se diz, decide o seu lugar e para onde leva o seu caminho.
A educação libertadora com pessoas em privação de liberdade
A partir das perspectivas teóricas apresentadas, podemos armar que Bourdieu e
Passeron (2013) e Freire (2018) convergem na crítica que fazem à deslegitimação do saber e da
cultura popular operada pelo ensino escolar, que os primeiros descrevem através do conceito
de violência simbólica e o segundo do conceito de educação bancária. A contribuição desses
autores, que abarca principalmente a dimensão político-social e humana do processo de ensino e
aprendizagem, juntamentamente com a colaboração de outros autores para aprofundar a discussão
desse processo, tais como Neil (1995) e Rogers (2004), permite-nos reetir sobre como realizar
uma educação libertadora, indo além da prática da educação bancária e da violência simbólica,
com pessoas em privação de liberdade.
Glass (2013) destaca que o atual contexto global de políticas neoliberais produzem práticas
educacionais baseadas em testagem, classicação e seleção, e vêm se reproduzindo no modelo de
educação bancária criticado por Freire (2018). Neste cenário, as pessoas que participam desses
processos educacionais continuam sendo envolvidas num sistema de reprodução da violência
simbólica, tal como foi descrito por Bourdieu e Passeron (2018).
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A esse cenário se acrescenta o fato de que o modelo educativo que se coloca em prática
no contexto de privação de liberdade é similar ao do ensino regular, mesmo se tratando de uma
realidade tipicamente não formal, o que parece dicultar um trabalho pedagógico que leve em
conta a realidade objetiva e concreta dos educandos e educandas. (FONSECA, 2013; DUARTE;
PEREIRA, 2017).
Além disso, apesar de haver um reconhecimento de que a educação de jovens e adultos
deve ser diferenciada, trazendo como missão a valorização do saber popular e o desenvolvimento
de reexões críticas sobre a sua realidade, existe, ainda, uma contradição entre o plano jurídico do
direito à educação básica e a sua negação pelas políticas públicas. Mais ainda, mesmo que esses
compromissos aparecem nesses documentos legais, falta uma reexão mais aprofundada sobre
como colocá-los em prática, além da consolidação das condições objetivas para tal (PESSOA;
ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019).
Dito isto, percebemos a importância de reetirmos sobre a teoria da ação dialógica frei-
riana como proposta que visa contrapor o presente cenário educacional marcado pela educação
bancária, nomeadamente no contexto da educação de pessoas em privação de liberdade. Isto
porque, a perspectiva freiriana nos permite reetir que é possível realizar uma educação liber-
tadora, indo além dos processos educativos marcados pela violência simbólica. No âmbito da
sociologia da educação, Bourdieu e Passeron (2013) nos apresentam um contributo importante
para entendermos a reprodução cultural e social que acontece no processo de ensino e aprendi-
zagem. Por outro lado, na sua proposta losóca, social e política para a educação, Freire (2018)
nos permite avançar numa perspectiva de superação dessa reprodução, por meio da ação dialógica
que ocorre de modo horizontal, colaborativo e cooperativo. Portanto, a pedagogia libertadora
consiste numa possível resposta à cultura de violência dos sistemas de ensino, atendendo à ne-
cessidade de se realizar uma educação baseada nos direitos humanos, que deve ser discutida e
colocada em prática dentro das unidades prisionais (DUARTE; PEREIRA, 2017).
A proposta educacional de Freire (2018) apresenta um caminho de superação das relações
pedagógicas centradas no educador ou educadora, ou nos conteúdos a serem “depositados” no
educando ou educanda. Em contraposição, o autor defende que o centro dos processos educativos
deve estar nas interações e interlocuções que se estabelecem no decorrer do próprio processo.
Ou seja, naquilo que acontece a partir da ação dialógica. Portanto, para alcançar uma educação
libertadora na qual não exista violência simbólica com pessoas em privação de liberdade é neces-
sário colocar em prática os princípios da ação dialógica propostos por Freire (2018), alcançando
relações pedagógicas que Buber (2009) dene como relação Eu-Tu.
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Importa destacar que não signica que o conhecimento do conhecido terá prioridade sob o
conhecimento do desconhecido. Em “Pedagogia da Esperança”, Freire (1997) rebate as críticas à
sua obra que o acusam de defender uma educação que se que apenas pelo “saber de experiência
feito” e que não permita o acesso ao conhecimento ciêntico. Para tal, ele esclarece que na sua
ótica é direito dos educandos e educandas conhecer o conhecido e conhecer o desconhecido.
Portanto, na sua visão, tanto os conhecimentos universais quantos aqueles particulares e saberes
singulares são potências criadoras e direito de todos e cada um de ter acesso e apreendê-los.
Os resultados desse estudo nos possibilitam reetir acerca das práticas pedagógicas liber-
tadoras em contexto de privação de liberdade, na medida em que a ação dialógica não depende
de condições externas aos sujeitos, mas da sua disposição para se envolverem num processo de
libertação conjunta. Essa ação deve partir da disponibilidade dos educadores e educadoras para
conhecerem a realidade particular dos educandos e educandas, valorizando o seu “saber de expe-
riência feito” (ONOFRE, 2015; PESSOA; ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019).
Ademais, tomando como ponto de partida os sujeitos e suas histórias de vida, podemos
avançar para uma discussão no sentido da importância de ajudar as pessoas, envolvidas no pro-
cesso de ensino e aprendizagem no contexto da Educação em Prisões ou Espaços Socioeduca-
tivos, a compreenderem as situações, os contextos e os limites do sistema político-econômico e
social no qual estão inseridas e através do qual elas se zeram homens e mulheres privadas de
sua liberdade, contribuindo assim para a sua emancipação social. (ONOFRE, 2015; PESSOA;
ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA, 2019).
Para tal, é fundamental estimular os educadores e educadoras a conhecerem e a con-
siderarem a realidade sociocultural e a cultura carcerária, como ponto de partida para as suas
problematizações e intervenções pedagógicas. Por m, destacamos a importância de aprofundar
a reexão sobre a necessidade da exibilização curricular e da criação de propostas curriculares
que respondam às necessidades especícas das pessoas em privação de liberdade. (ONOFRE;
2015; DUARTE; PEREIRA, 2017; PESSOA; ALBERTO; LEITE, DOS SANTOS; ROCHA,
2019; ONOFRE, FERNANDES; GODINHO, 2019).
Considerações nais
Neste artigo, procuramos aprofundar a teorização sobre os conceitos de educação liber-
tadora e violência simbólica, trazendo as perspectivas de Freire (2018) e Bourdieu e Passeron
(2013), e estabelecendo interlocuções entre eles e outros autores que colaboraram para pensar-
mos a educação de pessoas em privação de liberdade. A partir desssas contribuições, pudemos
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reetir sobre a possibilidade da prática de uma educação libertadora, destacando principalmente
os aspectos teóricos e metodológicos da proposta que Freire (2018) nos apresenta para superar
a educação bancária e a ação não dialógica.
Acreditamos que a exposição crítica apresentada, embora em construção – pelos moti-
vos já explicitados nas notas de rodapé –, pode contribuir para o debate em torno dos processos
educativos com pessoas em privação de liberdade. As pessoas que se encontram na condição de
suspensão do direito de ir e vir não devem ser privadas do direito de se envolverem em processos
educativos libertadores, considerando que a experiência de práticas dialógicas, conforme discutido
anteriormente, pode ajudar no processo de compreensão do seu estado de ser cidadão de direito
e de poder – isto porque aprenderão a olhar para o sistema de uma forma crítica, percebendo as
suas estratégias mortíferas e também suas fragilidades.
Consideramos pertinente reetir sobre a importância de colocar a ação dialógica em prática
no contexto de pessoas em privação de liberdade, ajudando-as a entenderem as situações-limite
que enfrentam e os percebidos-destacados que as condicionam, para que todos juntos e cada um
ou cada uma se engajem em processos coletivos de libertação que conduzam ao inédito-viável.
Finalmente, devemos ter em consideração que, tal como nos aponta Freire (2018), a li-
berdade trata-se do próprio processo de busca, e é algo que não pode ser doado nem tirado. Ela
é uma conquista que cada pessoa deve fazer ao se engajar no movimento de se tornar autora da
sua própria história, em comunhão, colaboração, cooperação e parceria na aventura de ser-sendo
humano, verdadeiramente humano.
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Recebido em: 28 de fevereiro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
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