A construção do conhecimento ortográco no contexto das interações adulto-criança
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A CONSTRUÇÃO DO
CONHECIMENTO ORTOGRÁFICO
NO CONTEXTO DAS INTERAÇÕES
ADULTO-CRIANÇA
ELAINE C. R. GOMES VIDAL
Universidade São Judas Tadeu (USJT). Mestre e Doutoranda em Psicologia, Linguagem
e Educação pela Faculdade de Educação da USP. Grupo de Pesquisa Novas Arquiteturas
Pedagógicas. Docente da Universidade São Judas Tadeu. Brasil. ORCID: 0000-0003-0320-217.
E-mail: elainecrgvidal@gmail.com
SILVIA M. GASPARIAN COLELLO
Universidade de São Paulo (USP). Doutora e Livre Docente pela Faculdade de Educação da
USP. Docente da Pós-graduação na FEUSP. Grupos de Pesquisa: NAP e CEMOrOc. Brasil.
ORCID: 000-002-8813-8092. E-mail: silviacolello@usp.br. www.silviacolello.com.br
Elaine C. R. Gomes Vidal e Silvia M. Gasparian Colello
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A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO ORTOGRÁFICO NO CONTEXTO DAS
INTERAÇÕES ADULTO-CRIANÇA
Partindo do problema do desempenho insuciente nas habilidades de escrita de estudantes brasileiros,
o artigo tem o objetivo de apresentar uma pesquisa sobre o papel da interação entre adulto e criança na
construção do conhecimento ortogco. Para tanto, recupera parte de um estudo de caso longitudinal
em curso, realizado com alunos de uma escola privada em Santos/SP, em cinco etapas entre o 2º e o
4º ano do Ensino Fundamental (período em que o escrever corretamente passa a ser um foco especial
de conquista cognitiva e, consequentemente, de ensino). Valendo-se do referencial teórico dos estudos
psicogenéticos e histórico-culturais (a concepção das crianças como sujeitos ativos e protagonistas da
aprendizagem; a língua como prática social e a interação como favorecimento da aprendizagem), o estudo
centrou-se na problematização, feita de modo interativo, sobre as formas de escrever. Realizada a partir
de dois eixos de atividade (ditado de palavras e reescrita de contos), a coleta de dados visou apreender
a compreensão das estratégias infantis ou das reexões empreendidas na busca de referências para a
correção da escrita, chegando, assim, a quatro categorias: a escrita validada pela pauta sonora, a validação
da escrita com base em alguém mais experiente (um “interlocutor autorizado”), o apoio na imagem visual
da palavra e, nalmente, a evocação da norma ortográca. Embora essas categorias estejam sempre
presentes nos diferentes estágios de escolaridade (e de conhecimento), a análise quanti-qualitativa dos
dados evidenciou o predomínio de umas sobre as outras que, em movimentos ascendentes e descendentes,
marcam um percurso de crescente autonomia e consciência metalinguística. A partir da compreensão
sobre os processos cognitivos do conhecimento ortogco – a variedade das estratégias de escrita ou de
validão da escrita e caminhos de progressão –, é possível vislumbrar algumas implicões pedagógicas
que subsidiam a revisão de práticas pedagógicas.
Palavras-chave: Língua escrita. Processos cognitivos. Ortograa. Práticas interativas.
THE CONSTRUCTION OF ORTHOGRAPHIC KNOWLEDGE IN THE CONTEXT OF ADULT-
CHILD INTERACTIONS
Considering the issue of the poor performance of Brazilian students when it comes to writing skills,
this article aims to present a research about the role of the interaction between adults and children in the
construction of orthographic knowledge. In order to do so, it recovers part of an ongoing longitudinal case
study which took place in Santos/SP with students at a private school in 5 stages between the 2nd and 4th
grade of Elementary School (period when writing correctly becomes the focus of cognitive achievement;
therefore, focus of the teaching). Using the theoretical framework of psychogenetic and historical-cultural
studies (the concept of children as active subjects and the student-centered learning; language as social
practice and interaction to benet the learning experience), the study focused on the problematization of
different writing ways. Data collected from two axes of activity (a dictation and from the rewriting of short
stories) aimed to apprehend the understanding of childrens strategies or reections undertaken in the
search for references for the correction of writing, coming, as a consequence, to four different categories:
the writing validated by the sound score, the validation of the writing based on someone more experienced
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(an “authorized interlocutor”), the support in the visual image of the word and, nally, the evocation of
the orthographic rules. Although these categories are always present in the different stages of education
(and knowledge), the quantitative and qualitative analysis of the data showed the predominance of one
over the other which, in upward and downward movements, mark a path of increasing autonomy and
metalinguistic awareness. From the understanding of the cognitive processes of orthographic knowledge -
the variety of writing strategies or writing validation and progression paths - it is possible to glimpse some
pedagogical implications that support the revision of pedagogical practices.
Keywords: Written language. Cognitive processes. Orthography. Interactive practices.
LA CONSTRUCCIÓN DEL CONOCIMIENTO ORTOGRÁFICO EN EL CONTEXTO DE LAS
INTERACCIONES ADULTO-NIÑO
Partiendo del problema del rendimiento insuciente en las habilidades de escritura de los estudiantes
brasileños, el artículo tiene como objetivo presentar una investigación sobre el papel de la interacción
entre adultos y niños en la construcción del conocimiento ortográco. Con este n, recupera parte de un
estudio de caso longitudinal en curso, llevado a cabo con estudiantes de una escuela privada en Santos/
SP, en cinco etapas entre el segundo y cuarto año de educación primaria (período en el que lo acto de
escribir correctamente se convierte en un enfoque especial del logro cognitivo y, en consecuencia, de
la enseñanza). Partiendo del marco teórico de los estudios psicogenéticos e histórico-culturales (la
concepción de los niños como sujetos activos y protagonistas del aprendizaje; el lenguaje como práctica
social y la interacción como un conducto para el aprendizaje), el estudio se centró en la problematización,
hecha de manera interactiva, sobre las formas de escribir. Basado en dos ejes de actividad (dictado de
palabras y reescritura de cuentos), la recopilación de datos tuvo como objetivo comprender la estrategia
de los niños o reexiones emprendidas en la squeda de referencias para la corrección de la escritura,
alcanzando así cuatro categorías: la escritura validada por la sonoridad; la validación de la escritura basada
en alguien más experimentado (un “interlocutor autorizado”), el soporte en la imagen visual de la palabra
y, nalmente, la evocación de la norma ortográca. Aunque estas categorías siempre esn presentes en
las diferentes etapas de la educación (y el conocimiento), el análisis cuantitativo y cualitativo de los datos
mostró el predominio de uno sobre el otro, que en los movimientos ascendentes y descendentes, marcan
un camino de mayor autonomía y conciencia metalingüística. A partir de la comprensión de los procesos
cognitivos del conocimiento ortogco (la variedad de estrategias de escritura o validación de escritura
y caminos de progresión), es posible vislumbrar algunas implicaciones pedagógicas que respaldan la
revisión de las prácticas pedagógicas.
Palabras clave: lenguaje escrito. Procesos cognitivos. Ortografía. Pcticas interactivas.
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A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO ORTOGRÁFICO NO
CONTEXTO DAS INTERAÇÕES ADULTO-CRIANÇA
Introdução
A escola, como instituição social responsável pela transmissão cultural intergeracional,
tem, entre suas principais funções, o ensino da língua escrita. Considerada uma das aprendizagens
primordiais a todo estudante, a escrita constitui-se, a um só tempo, objeto de ensino e instrumento
de aprendizagem (COLELLO, 2012). Anal, além de os alunos precisarem aprender a ler e escrever
para a sua constituição pessoal, social e política, o conhecimento da escrita é uma importante via
de acesso para outros conhecimentos.
Apesar da valorização do ensino da escrita ser uma constante em diferentes períodos da
história da educação, a prática pedagógica foi consubstanciada de diversas formas e com diferentes
ênfases. No fulcro dessa diversicação está o modo como, em diferentes momentos e por diferentes
autores, foi concebida essa aprendizagem, ora mais centrada em aspectos notacionais (o como se
escreve), ora na dimensão discursiva (o como se organiza a linguagem escrita), ambos inerentes
à atividade de escrever. Barcellos (2013), ao analisar a história do ensino de língua no Brasil,
identica três encaminhamentos pedagógicos distintos. O modelo Prescritivo prioriza a norma
culta, levando o aluno a substituir seus padrões linguísticos por produções pautadas em regras de
suposta correção linguística, como no Brasil Colônia (com o propósito de impor aos indígenas um
modo correto de falar), ou no Império (que se valia do modelo europeu de educação). O modelo
Descritivo, vinculado ao surgimento da linguística como ciência no período da República, sem a
pretensão de interferir no comportamento linguístico do sujeito, chama a atenção para os modos de
funcionamento da língua. Finalmente, em meados do século XX, na esteira dos estudos psicogené-
ticos e histórico-culturais, o modelo Produtivo postula o ensino de novas habilidades linguísticas,
ampliando a apropriação da língua, as suas possibilidades de uso, de reexão metalinguística e de
trânsito na cultura escrita. Nessa perspectiva, a exploração dos aspectos notacionais e discursivos
aparecem de modo articulados e equilibrados.
Em que pese a orientação ocial por um ensino produtivo, os indicadores insatisfatórios
obtidos pelos alunos brasileiros em diferentes avaliações (Prova Brasil e PISA, entre outros) de-
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monstram que a aprendizagem da língua está aquém das metas desejáveis, o que se explica por
fatores históricos, políticos, sociais, econômicos e geográcos, com destaque para a dimensão
pedagógica (COLELLO, 2012).
A esse respeito, vale apontar para os descompassos, bastante frequentes, entre o ensino e
a aprendizagem e entre as diretrizes curriculares e a prática pedagógica. No primeiro caso, como
se sabe, o aprendido nem sempre corresponde ao ensinado e este, por sua vez, pode não levar
em conta os saberes já conquistados pelos sujeitos ou as dinâmicas de construção cognitiva. Nas
palavras de Weisz e Sanchez (2001, p. 65):
O processo de aprendizagem não responde necessariamente ao processo
de ensino, como tantos imaginam. Ou seja, não existe um processo único
de “ensino-aprendizagem”, como muitas vezes se diz, mas dois processos
distintos: o de aprendizagem, desenvolvido pelo aluno, e o de ensino, pelo
professor. São dois processos que se comunicam, mas não se confundem:
o sujeito do processo de ensino é o professor, enquanto o do processo de
aprendizagem é o aluno.
O segundo caso - distanciamento entre as diretrizes pautadas pelo modelo Produtivo e as
práticas pedagógicas - parece ser uma constante, tendo em vista que a singularidade das instituições
e a condição histórica e idiossincrática dos professores marcam um estado nebuloso das próprias
concepções de ensino. Em função disso, a análise da escola contemporânea demonstra como os
três modelos Prescritivo, Descritivo e Produtivo - convivem simultaneamente, com diferentes
ênfases e graus de inuência sobre o desenvolvimento do currículo. Em muitos casos, o foco ex-
cessivo na metalinguagem descontextualizada compromete os efetivos propósitos comunicativos,
prejudicando o sentido da aprendizagem, como destaca Geraldi (2006, p. 45):
[...] o mais caótico da situação atual do ensino de língua portuguesa em
escolas de primeiro grau consiste precisamente no ensino, para alunos que
nem sequer dominam a variedade culta, de uma metalinguagem de análise
dessa variedade – com exercícios contínuos de descrição gramatical, estudo de
regras e hipóteses de análise de problemas que mesmo especialistas não estão
seguros de como resolver.
Esse cenário justica o interesse em compreender, ainda mais e melhor, o modo como as
crianças aprendem a leitura e a escrita e, por essa via, repensar os procedimentos de ensino. No
caso da presente pesquisa, entendendo a dimensão notacional como parte integrante do complexo
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desao de produção textual e de formação do usuário competente da escrita, o objetivo é analisar a
construção da ortograa. Apresentando resultados parciais de uma investigação mais ampla
1
, os dados
analisados neste artigo procuram apresentar especicamente o papel da interação entre adultos e crianças
na especicidade dessa trajetória cognitiva. Para tanto, partindo da explicitação da estrutura e metodo-
logia adotadas na pesquisa, faremos uma exposição das categorias de respostas infantis mediadas pela
intervenção da pesquisadora. Na sequência, será apresentada, através de análise quanti-qualitativa, a
progressão dos alunos ao longo de três anos de escolaridade. Finalmente, a título de conclusão, serão
discutidas possíveis implicações pedagógicas decorrentes desses achados.
Metodologia da pesquisa e perspectivas de análise
A pesquisa foi desenvolvida em uma escola da rede privada, situada em Santos/SP. A instituição,
cuja comunidade é formada por crianças e famílias de classe média, apresenta-se como escola constru-
tivista. O Projeto Político-Pedagógico pauta-se pelo ensino da língua baseado em práticas sociais de
leitura e escrita, com atividades didáticas elaboradas pela própria equipe pedagógica.
A pesquisa, realizada em cinco etapas com um intervalo de 6 meses entre si (1º semestre do
2o ano; 2º semestre do 2º ano; 1º semestre do 3º ano; 2º semestre do 3º ano e 1º semestre do 4º ano do
Ensino Fundamental), assume caráter longitudinal, estudando um grupo de 12 a 18 sujeitos (dependendo
da variação no número de alunos da turma). A investigação, portanto, ocupou-se de um período escolar
em que as crianças, tendo dominado o sistema alfabético, passam a enfrentar os desaos ortográcos
com maior frequência. A esse respeito, vale lembrar que
Se na história da humanidade os sistemas de escrita alfabética surgiram antes das
normas ortográcas, algo semelhante ocorre no desenvolvimento individual. A
criança inicialmente se apropria do sistema alfabético: num processo gradativo,
descrito pelas pesquisas da psicogênese da escrita, ela aos poucos domina a “base
alfabética”. [...] O que o aprendiz nessa fase ainda não domina, porque desconhece,
é a norma ortográca. Ele pode ter notado algumas incongruências de nosso
sistema alfabético, [...] mas ainda não internalizou as formas escritas que a norma
ortográca convencionou serem as únicas autorizadas. (MORAIS, 2003, p. 20-21)
Para analisar os procedimentos de interação entre adulto e criança, as cinco etapas de coleta
de dados mantiveram os mesmos procedimentos, incidindo sobre dois tipos de atividades realizadas
individualmente, coletados respectivamente em duas sessões na mesma semana:
1 Tese de doutorado, “A aprendizagem da ortograa sob o viés das práticas interativas”, de Elaine Cristina R. Gomes Vidal,
em fase nal de elaboração, a ser apresentada na Faculdade de Educação da USP em 2020. A pesquisa original procura com-
preender a construção do conhecimento ortográco a partir de diferentes etapas de aprendizagem, contextos de produção da
escrita e modos de interação.
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a) Escrita de palavras: ditado individual de uma lista de palavras contextualizadas pela leitura
prévia - feita pela pesquisadora - de um conto de fadas (“A princesa e o grão de ervilha”).
As palavras selecionadas para a lista a ser ditada para as crianças obedeceram ao critério das
categorias de diculdades ortográcas. Entre tantas classicações possíveis, para ns deste trabalho,
optou-se pela classicação proposta por Nóbrega (2013): regularidades diretas (subdivididas em inter-
ferência da fala na escrita; oposição entre consoantes surdas e sonoras e representação de sílabas não
canônicas); regularidades contextuais e irregularidades. Para cada um desses critérios foram selecionadas
três diculdades ortográcas diferentes, elegendo-se uma palavra para cada uma delas. Desta forma,
chegou-se à seguinte seleção de palavras.
Quadro 1 - Critérios de seleção das palavras do conto que foram ditadas
Categoria da diculdade Diculdade ortográca Palavras seleci-
onadas
Regularidade –
Interferência da fala na escrita
1
Troca de – E > - I Príncipe
2
Troca de – L > - U Calcanhar
3
Ditongação em sílabas travadas por /s/
(acréscimo de – I)
Vez
Regularidade –
Oposição surda/sonora
4
P/B Sapatos
5
T/D Tempestade
6
F/V Certicar
Regularidade –
Representação de sílabas não
canônicas
7
Omissão ou substituição da consoante
líquida do ataque
Grão
8
Inversão da consoante líquida do ata-
que ou da consoante da coda
Encontrara
9
Omissão do H em dígrafos Ervilha
Regularidade contextual
10 M antes de P e B Relâmpago
11 R/RR Horrível
12 S/SS Disse
Irregularidade
13 CH/X em contextos arbitrários Colchões
14 G/J em contextos arbitrários Exigente
15 C/Ç/S/SS/SC/XC em contextos
arbitrários
Nascença
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b) Reescrita individual de um texto: reescrita de um texto conhecido, já utilizado na sessão
anterior (contextualizado, portanto, pela leitura prévia da pesquisadora), com o propósito
de ler o texto elaborado para outra turma (consigna dada como garantia de um contexto de
produção e de um destinatário para nortear a escrita).
Em cada sessão, gravada em vídeo e posteriormente transcrita, foram utilizadas três
estratégias para a coleta de dados: observação participante (com interações problematizadoras,
previamente previstas, com o objetivo de gerar reexão sobre a ortograa das palavras), obser-
vação não-participante (com o objetivo de captar os mecanismos de decisão da criança por uma
determinada graa) e análise documental (considerando o processo interlocutivo e a produção
nal).
Para se evitar, por um lado, intervenções em todas as escritas (o que poderia tornar a tarefa
cansativa para as crianças), ou, por outro, que cada intervenção fosse vista pelos alunos como um
indício de que a palavra estava grafada de modo incorreto (o que poderia ocorrer caso fossem
feitas intervenções em todas as situações de erro), optou-se por um procedimento padronizado de
intervenções nas sessões do ditado das cinco etapas de coleta. A cada diculdade ortográca, a
pesquisadora escolheu uma das três palavras da lista para fazer a intervenção. No que diz respeito
ao foco da intervenção, a escolha recaiu prioritariamente, mas não exclusivamente, sobre palavras
que continham erros ortográcos. Nos casos em que mais de uma palavra da mesma categoria
contivesse erro, ou que nenhuma das três os apresentasse, a escolha foi aleatória.
Todas as intervenções foram realizadas após o término do ditado ou da reescrita. Durante
sua produção, a pesquisadora manteve-se o mais “neutra” possível, sempre “devolvendo” à criança
as perguntas que eventualmente surgiram, respondendo, por exemplo: “Com que letra você acha
que é?”; “Escreva do seu melhor jeito” etc.
Na medida do possível, as intervenções apoiaram-se em consignas-padrão (problematiza-
ções) que induziam a criança à reexão sobre a natureza do erro ortográco, conforme o Quadro
a seguir.
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Quadro 2 – Padrão das intervenções feitas na escrita de lista de palavras
Categoria da di-
culdade
Intervenções planejadas
1
Interferência da fala
na escrita
“Você escreveu [palavra X] do jeito que a gente fala. Será que existem
palavras que a gente fala de um jeito e escreve de outro? Essa poderia
ser uma delas?”
2
Oposição surda/
sonora
“Você escreveu [palavra X] assim [mostrar à criança sua própria es-
crita]. Eu vou te mostrar como se escreve uma outra palavra [mostrar à
criança a escrita convencional de uma outra palavra contendo a sílaba
que ela errou, na mesma posição]. Observando essa outra palavra, você
mudaria alguma coisa na sua escrita?
3
Representação de sí-
labas não canônicas
“Se eu disser que nessa palavra está faltando uma letra [nos casos de
omissão; nos casos de substituição, dizer que tem uma letra errada; se
for caso de inversão, dizer que tem letras com a posição trocada e, nos
casos de acréscimo, dizer que tem uma letra a mais], você consegue
descobrir qual é?”
4
Regularidade con-
textual
“Olhando para as letras que vêm antes e depois do [mostrar a letra erra-
da], você mudaria o jeito de escrever a palavra?”
5
Irregularidade “Uma outra criança escreveu essa palavra assim [mostrar a escrita con-
vencional]. É possível escrever assim? Quem você acha que acertou?
Por quê?”
nas sessões de reescrita de textos das cinco etapas, a pesquisadora buscou, no texto da
criança, uma palavra com cada tipo de diculdade ortográca para realizar a intervenção (ainda
que não fossem palavras presentes na lista da primeira entrevista). Mais uma vez, privilegiou-se,
sempre que possível, palavras escritas com erros ortográcos. As intervenções seguiram o mesmo
padrão das consignas propostas nas sessões de ditado. Na escrita textual, porém, outra diculdade
ortográca poderia surgir: problemas na segmentação (hipo ou hipersegmentação). Nesse caso, a
pesquisadora fez intervenções como: “Nesta linha, deveriam existir [X] palavras. Vamos contar
quantas tem? Por que será que tem X [colocar a quantidade] palavras a mais [ou a menos]? O que
você mudaria?
Com esses procedimentos, buscou-se promover reexões pertinentes para a compreensão
sobre os processos infantis de construção do conhecimento ortográco.
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Para ns de análise, buscou-se, nas respostas para as interações com o adulto, estratégias de
referência ou de reexão para a correção linguística, a evolução longitudinal ao longo das cinco
etapas e a comparação entre índices de desempenho nos dois tipos de atividades (palavras ditadas
e reescrita de textos).
Respostas infantis às interações com o adulto
Em uma perspectiva que privilegia a construção do conhecimento, mais do que observar o
resultado nal, importa compreender o percurso que levou até ele. Por trás dos “erros” infantis, é
preciso identicar a lógica que os subsidia. Tal como as hipóteses sobre a escrita que as crianças
desenvolvem antes de se apropriarem da base alfabética, é razoável supor que, antes de se apropria-
rem das normas ortográcas, elas também realizam tentativas lógicas de escrever “corretamente”,
tentativas que, longe de ser aleatórias, têm a sua lógica ou razão de ser.
Do ponto de vista heurístico, é muito mais rentável supor que tudo o que a
criança diz, tudo o que faz, quando fala ou quando se cala, tem motivo.
Busquemos o sentido de suas palavras e de seus silêncios. E, principalmente,
esqueçamos por um momento que nós “já sabemos” as respostas; enm, as
respostas interessam menos que o caminho para se chegar a elas (FERREIRO,
2001, p. 24)
Sob esta óptica, antes de analisar o quanto as interações com a pesquisadora levaram os
alunos a modicar o modo como escreviam, importa considerar as respostas que as crianças deram
às intervenções feitas, o que permitiu o delineamento de quatro categorias a partir de tendências
comuns nas justicativas evocadas pelos alunos.
a) Escrita a partir da pauta sonora
Embora a escrita não seja um código com correspondência biunívoca entre grafemas e fo-
nemas, as crianças recém-alfabetizadas, que vêm de um processo intenso de fonetização da escrita
para compreensão da base alfabética, tendem a buscar uma regularidade nessa relação. Segundo
Nóbrega (2013), é comum que crianças, nessa fase, escrevam operando com o valor de base dos
grafemas, ou seja, atribuindo a cada letra somente aquele fonema que ela representa com maior
frequência. Seguindo essa tendência, as crianças justicaram sua escrita (bem como sua posterior
opção por alterá-la ou não a partir da intervenção realizada) relacionando os grafemas ao modo
como o “escutam”. Em algumas das respostas dessa categoria, essa regularidade foi buscada pelo
critério de valor de base das letras utilizadas. Em outras, embora não utilizassem o valor de base, a
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pauta sonora continuava sendo o fator de maior inuência na decisão sobre o modo de grafar as pa-
lavras, orientando também as reexões metalinguísticas. Eis um exemplo dessa categoria no ditado:
[Maitê escreve “serticar” para “certicar” e a pesquisadora diz que vai escrever outra palavra para
que ela observe e veja se, a partir dela, quer mudar sua escrita. A pesquisadora, então, escreve “ce-
bola”, de modo a abrir outra possibilidade de escrita para o fonema inicial da palavra em questão].
P: E então, eu escrevi cebola assim. Você acha que essa palavra ajuda você a escrever certicar?
M: O que tem a ver “certicar” com “cebola”? “Certicar...” [Fica pensativa por alguns segundos].
Acho que você está pensando que o meu jeito está errado, porque tem som de C no começo. Mas
gato tem som de GA e é com G, não é com H. Então, está diferente do som, mas está certo. E acho
que cebola é assim [escreve SEBOLA], porque do jeito que você escreveu, ca “QUEBOLA”.
1ª etapa de coleta de dados – Ditado de palavras
Como exemplo típico dessa categoria, Maitê demonstra claramente que opera com o valor
de base dos grafemas, utilizando S para o fonema /s/ e atribuindo ao C o fonema /k/. Sua resposta
traz à tona, ainda, uma confusão comumente encontrada na escrita de crianças recém-alfabetizadas,
com utilização do H para representação da sílaba “GA”. Maitê explicita como o princípio acrofônico
interfere nessa decisão, ou seja, como o nome da letra H pode induzir ao erro nesse caso. Por estar
segura da utilização do valor de base, a aluna não aceita modicar sua escrita original.
[Laura escreve “diverdade” para “de verdade”. A pesquisadora mostra à aluna a linha que contém
esse erro, onde se lê: “para saber ce era uma princesa diverdade”]
P: Nesta linha, deveriam existir 8 palavras. Vamos contar quantas tem? [Contam juntas e encontram
7]. Por que será que tem uma palavra a menos? O que você mudaria?
L: Para saber... é separado, porque é para saber alguma coisa, entendeu? É separado. Se era... podia
ser junto? [Escreve “ceera”]. Mas ia ser estranho, ia car dois “E” juntos. E a gente fala “se era”,
a gente fala assim, dá pra ouvir. Uma é sozinho mesmo, porque é um número. Princesa também
é sozinho. Uma princesa. E “diverdade” é sozinho também, não pode ser junto com princesa. Eu
não sei porque tinham que ser oito, porque se a gente prestar atenção em como a gente fala, dá
pra perceber que são sete mesmo.
1ª etapa de coleta – Reescrita de texto
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Na reescrita de textos individuais, essa categoria de respostas também apareceu. Um exemplo
é o caso de Laura que, tendo cometido um erro de segmentação, justica-o com base na sonoridade.
Como se trata de outra natureza de diculdade ortográca (segmentação), Laura utiliza
também outros critérios para justicar sua escrita: a semântica (“uma é sozinho porque é um nú-
mero”); a recusa à repetição de letras, provavelmente um resquício de hipóteses anteriores à escrita
alfabética, quando as crianças não admitem duas letras iguais lado a lado (“ia car estranho, ia
car dois E juntos”). Note-se, porém, que é a pauta sonora que predomina em suas justicativas
(“a gente fala assim”; “dá pra ouvir”; “se a gente prestar atenção em como a gente fala”).
b) Escrita validada por um “interlocutor autorizado”
Na segunda categoria de respostas, encontram-se os casos em que as crianças, para justi-
carem as suas escritas, baseiam-se predominantemente na escrita de outra pessoa (supostamente
“interlocutores autorizados”, que se constituem como referências para a própria escrita, geralmente
a professora, mas também a pesquisadora, a mãe ou uma criança mais adiantada), tanto para ex-
plicarem suas opções originais, como para justicarem as decisões de modicação. A escrita de
Elias é um exemplo representativo dessa categoria:
[Elias escreve “tenpestade” para “tempestade”].
P: Você escreveu tenpestade assim [indica a escrita de Elias]. Eu vou escrever aqui a palavra
“tempo” [escreve “tempo” de modo convencional]. Você acha que a palavra “tempo” ajuda você
a escrever “tempestade”?
E: Bom, elas começam igual, e eu escrevi o começo de um jeito, e você escreveu de outro. Eu
pus o N aqui e você pôs o M. Como você já sabe escrever certo e eu ainda estou aprendendo, é
melhor eu arrumar a minha. [Escreve “tempestade”].
5ª etapa de coleta de dados - Ditado de palavras
Elias identicou a diferença entre a sua escrita e a da pesquisadora e, mesmo sem fazer nenhu-
ma reexão metalinguística ou menção às normas linguísticas e ortográcas, optou por endossar o
modo de escrita da pesquisadora, que lhe pareceu mais experiente para orientar sua própria escrita.
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No exemplo abaixo, Aline, valendo-se de uma justicativa semelhante à de seu colega
Elias, recorreu à autoridade da professora como critério de correção da escrita:
[Aline escreve “esigente” para “exigente”].
P: Uma outra criança escreveu essa palavra assim [pesquisadora escreve “exigente” do modo
convencional]. É possível escrever assim? Quem você acha que acertou? Por quê?
A: Uma criança? Mas era uma criança maior ou menor?
P: Do seu tamanho.
Ah... Então não vou mudar, porque minha professora ensinou que só escreve o X quando faz
“XÁ”, sabe? Deixa assim mesmo, eu nem conheço essa criança! E a professora sabe mais, né?
3ª etapa de coleta de dados - Ditado de palavras
Em suas respostas, Aline buscou informações sobre o autor da escrita que lhe foi apresentada,
de forma a decidir se essa “outra criança” era um locutor autorizado ou não. Com a resposta da
pesquisadora, que tentou eliminar o critério de “tamanho” (supostamente atrelado à idade e ao grau
conhecimento), ela preferiu garantir-se na interlocutora supostamente mais autorizada: a professora.
A justicativa com base no que a docente “ensina” pareceu-lhe, denitivamente, mais conável.
Nas produções textuais, outros exemplos dessa categoria surgiram. Um deles é o caso de
Milena:
[Milena escreve “gão” para “grão”].
P: Se eu disser que nessa palavra está faltando uma letra, você consegue descobrir qual é?
M: Faltando? Ah é, está faltando o R. [Escreve “grão”]. É uma palavra um pouco difícil, mas a
minha professora já me explicou que é assim que se escreve, eu que esqueci.
3ª etapa de coleta de dados – Reescrita de texto
Nas sessões anteriores, tanto nas escritas de listas quanto de textos, Milena escrevera “grão”
de modo convencional. Portanto, é possível supor que seu “erro” tenha, de fato, sido uma distra-
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ção, e não um desconhecimento da norma ortográca. De qualquer forma, para justicar a escrita
convencional, ela utiliza a validação da professora, reconhecida como interlocutora autorizada.
c) Escrita baseada em “imagem visual” da palavra
A terceira categoria reúne casos em que as crianças justicaram suas escritas com base na
“imagem visual” que já tinham das palavras. Em alguns casos, alegavam já terem visto a palavra em
outro contexto ou suporte textual (em um livro, um cartaz, uma placa etc.); em outros, escreviam
a palavra de duas maneiras e decidiam a partir da observação, alegando que, “vendo” a palavra,
um dos modos lhes parecia “melhor” que o outro. Ao contrário da primeira categoria de repostas,
nos quais predominavam os verbos “ouvir” e “escutar”, nessa, predominaram os verbos “ver”,
“enxergar” e “olhar”: assim como na primeira categoria, as crianças pediam muitas vezes para a
pesquisadora repetir a palavra, para que pudessem discriminar melhor os sons, nesta, elas escreveram
muitas vezes as palavras, para que pudessem vê-la. A seguir, um exemplo de resposta desse tipo:
[Elias escreve “principi” para “príncipe”].
P: Você escreveu “principi” do jeito que a gente fala. Será que existem palavras que a gente fala
de um jeito e escreve de outro? Essa poderia ser uma delas?
E: Ah, existem muitas... [Olhando para a sua escrita, coça a cabeça, ca pensativo], Sabe, a
gente está estudando a Bela Adormecida, e eu já vi o nome do príncipe Phillip... Eu preciso
me lembrar. Ah não, esqueci do E, lá nos contos de fada tem o E e eu coloquei o I! Vou mudar!
[Escreve “principe”].
1ª etapa de coleta de dados - Ditado de palavras
Neste caso, Elias citou explicitamente o contexto de onde tirou a “informação visual”
que subsidia a sua resposta. Mencionou o estudo de um conto visto na escola, buscou um dos
personagens como referência e, com base nisso, modicou sua resposta, aproximando-se da es-
crita convencional (deixando apenas de colocar o acento). A atitude reexiva até que ele pudesse
fazer sua opção gráca e a expressão de seu rosto ante a descoberta de uma base segura de escrita
indicam que, de fato, ele buscava uma referência em “algo” já visto.
Ao citarem outros portadores, outras crianças não se limitaram à esfera escolar, recorrendo
também a referências de escritas vistas fora da escola. Erick usa essa estratégia para justicar sua
escrita de ervilha:
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[Erick escreve “ervilha” de modo convencional, mas, mesmo assim a pesquisadora testa a sua
convicção sobre a ortograa da palavra].
P: Se eu disser que nessa palavra tem uma letra errada, você consegue descobrir qual é?
E: Não, eu sei que não tem nenhuma letra errada, porque eu como ervilha, e na lata vem escrito
assim, eu sempre vejo, eu enxergo bem e eu me lembrei.
4ª etapa de coleta de dados - Ditado de palavras
Em sua justicativa, Erick recuperou um suporte textual de seu cotidiano, recorrendo à sua
memória visual para decidir a graa da palavra. Mostrou-se seguro da escrita desde o início e,
apesar de já ter conseguido explicitar a norma ortográca de outros termos, aqui, ainda se valeu
da referência visual.
Além da busca por lembranças de imagens visuais de escritas já vistas, alguns alunos uti-
lizaram, nessa categoria, outro recurso: escreveram a palavra de duas formas diferentes, numa
tentativa de lembrar qual delas lhes parecia mais familiar. Thiago é um desses exemplos:
[Thiago escreve “relanpago” para “relâmpago”].
P: Olhando para as letras que vêm antes e depois do N, você mudaria o jeito de escrever a palavra?
T: Eu quero me lembrar do livro de ciências, quando a gente estudou a diferença de trovão e
relâmpago... [Escreve “trovao” e “relanpago”. Logo abaixo, escreve “trovao” e “relampago”.
Demora-se observando as duas escritas]. É, acho que assim ca melhor! [Escreve “relampago”].
2ª etapa de coleta de dados - Ditado de palavras
Neste caso, Thiago sentiu a necessidade contextualizar a escrita e visualizar novamente as
palavras para resgatar a imagem visual. Ele citou o suporte e o contexto onde a viu (livro didático
de Ciências, no estudo de trovões e relâmpagos) e, para decidir, colocou ao lado da palavra “re-
lâmpago” a palavra “trovão”, provavelmente na tentativa de criar um contexto similar àquele em
que vira a palavra pela primeira vez.
d) Escrita orientada pela norma ortográca
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A última categoria de respostas é justamente aquela em que as crianças justicaram sua
escrita original - e também sua decisão pela mudança ou permanência após as intervenções - com
base na norma ortográca. Lançando mão de reexões metalinguísticas, elas citaram a existência
de regras, ainda que não soubessem explicá-las detalhadamente. A justicativa dada por Ricardo
ilustra esta categoria:
[Ricardo escreve “moça” convencionalmente, mas, mesmo assim, a pesquisadora resolveu testar
a sua convicção sobre a ortograa da palavra].
P: Uma outra criança escreveu essa palavra assim [pesquisadora escreve “mosa”]. É possível
escrever assim? Quem você acha que acertou? Por quê?
R: Não, ela não pode escrever assim, porque senão ia ser que nem “casa”, sabe? A gente não lê
/casa/, lê “casa” [contrapondo os fonemas /s/ e /z/]. Então, se ela escreveu assim, a gente ia ler
“moza”, tem que ser o C com a cobrinha mesmo.
P: E se a criança escrevesse “mossa”, podia ser?
R: Podia, mas ia ser estranho... É só ela comprar um leite condensado, que ela já ia saber (risos)!
3ª etapa de coleta de dados – Reescrita de texto
Em sua resposta, Ricardo demonstrou que a imagem visual da palavra também foi um recurso
utilizado por ele, já que citou o leite condensado (cuja marca líder - “Moça”- vem estampada em
tamanho grande no rótulo). Entretanto, esse critério não foi a principal base de sua resposta. Sem
explicitar em termos técnicos, ele conseguiu explicar com muita clareza a norma ortográca para
leitura de S entre vogais, quando o grafema assume o valor do fonema /z/.
Outro exemplo dessa categoria foi a justicativa de Erick, na situação a seguir:
[Erick escreve “tempestade horivel” e a pesquisadora mostra a ele sua escrita].
P: Olhando para as letras que vêm antes e depois do R, você mudaria o jeito de escrever a palavra?
E: Ah, lembrei! Já aprendi isso! Não é “horível”, é “horrível” [contrapondo os fonemas /r/ e /R/].
Se puser um R no meio, ca “horível”, eu tinha escrito “horível”... A gente até colocou isso
no caderno de combinados ortográcos.
4ª etapa de coleta de dados – Reescrita de texto
A construção do conhecimento ortográco no contexto das interações adulto-criança
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Erick havia escrito a palavra “horrível” de modo convencional no ditado de palavras, mas
omitiu um R ao redigir o vocábulo em seu texto. Isso indica que, provavelmente, não se tratava
do desconhecimento do modo convencional de se escrever. Outro indício de que ele conhecia a
palavra foi o fato de ter colocado o H inicial, irregularidade que, em tese, é mais difícil para as
crianças do que a regularidade contextual de uso de dois R entre vogais. Ao identicar seu erro,
ele foi claro ao lembrar da regra: “no meio ca horível” (embora não tenha mencionado o fato de
estar entre vogais, parece perceber isso de modo intuitivo). O menino mencionou ainda o estudo já
realizado (“Já aprendi isso”) e citou, inclusive, o “caderno de combinados ortográcos” (estratégia
metodológica adotada pela escola para o ensino de ortograa).
Tendo explicitado as categorias encontradas para as justicativas de opções ortográcas,
passamos ao estudo dos índices dessas ocorrências ao longo das cinco etapas de investigação.
Percurso das justicativas na progressão do conhecimento ortográco
A cada etapa, foram obtidas 10 respostas por criança para a intervenção da pesquisadora
nas respectivas diculdades ortográcas (cinco para a sessão de ditado de palavras e cinco para
a sessão de reescrita do texto). Como a quantidade de alunos participantes foi diferente a cada
etapa, converteu-se o resultado nal em índices percentuais, de forma a observar a evolução de
cada categoria longitudinalmente:
Quadro 3 – Percentuais de respostas por categoria a cada etapa
Escrita a partir da
pauta sonora
Escrita validada
por interlocutor
autorizado
Escrita baseada na
imagem visual
Escrita orienta-
da pela norma
ortográca
1ª etapa
53% 30,80% 9,20% 6,70%
2ª etapa
38,50% 34,20% 18,50% 8,50%
3ª etapa
21,10% 27,80% 29,40% 21,70%
4ª etapa
12,20% 17,20% 36,70% 33,90%
5ª etapa
7,80% 10% 25,50% 56,60%
A evolução de cada categoria de respostas, observada de forma longitudinal, apresenta um
percurso linear que, tanto na vertente ascendente como na descendente, e, ainda, nas relações entre
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si, parecem bastante compreensíveis na progressão do conhecimento. Aquela em que as crianças
justicam sua escrita a partir da pauta sonora apresenta um decréscimo conforme elas avançam
na escolaridade: a cada etapa de coleta de dados, a quantidade de respostas dessa categoria dimi-
nui. Já os casos em que a escrita é justicada pelos ensinamentos ou exemplos de um interlocutor
autorizado apresentam crescimento da primeira para a segunda etapa e, então, passam a decrescer
também. Por sua vez, as respostas que se pautam na imagem visual que os alunos têm da palavra
apresentam movimento ascendente da primeira à quarta etapa de coleta, diminuindo na quinta.
Finalmente, as respostas que justicam a forma de grafar através da explicitação da norma ortográ-
ca apresentam crescimento progressivo ao longo de todas as etapas pesquisa. O gráco a seguir
torna ainda mais explícitos esses percursos.
Gráco 1 – Evolução longitudinal das categorias de respostas
O gráco demonstra, de forma inequívoca, o movimento da distribuição das quatro cate-
gorias. Nos dois extremos, estão os maiores índices percentuais encontrados: 53% das crianças
baseavam-se na pauta sonora para justicar suas graas na primeira etapa, enquanto 56,6% delas
utilizavam a norma ortográca para explicar suas opções de escrita, na última. Em consonância
A construção do conhecimento ortográco no contexto das interações adulto-criança
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com essas tendências, parece compreensível que a terceira etapa de coleta de dados, metade do
percurso estudado, tenha trazido uma distribuição mais equitativa entre as categorias de respostas.
Embora nas duas primeiras etapas a maior parte das crianças tenha respondido às interven-
ções com base na pauta sonora, a diferença percentual registrada nos dois momentos marca uma
redução na segunda etapa. Observe-se também que a diferença entre essa categoria e a segunda
maior (escrita validada por um interlocutor autorizado) diminuiu signicativamente, chegando
quase a uma equivalência na segunda etapa.
Da segunda para a terceira etapa (passagem do 2º para o 3º ano do Ensino Fundamental),
registrou-se a mudança da categoria que, a princípio, tinha maior incidência. Na terceira e quarta
etapas, enquanto as crianças cursavam o 3º ano, predominaram as respostas baseadas na ima-
gem visual que os alunos tinham das palavras. Essa categoria aumentou durante esse período,
passando de uma quase equivalência com a dos interlocutores autorizados na terceira etapa, mas
distanciando-se dela na quarta, justamente em função da progressão do conhecimento, que foi se
tornando mais autônomo.
A próxima mudança de ano escolar das crianças coincide, mais uma vez, com a mudança
na categoria de respostas predominante: na quinta etapa coleta de dados, quando os alunos já se
encontravam no 4º ano do Ensino Fundamental, passam a prevalecer as respostas em que os alunos
explicitaram as normas ortográcas, uma evidência do crescimento da consciência metalinguística.
Em uma outra possível conguração de análise dos dados, vale destacar a diferença nos
índices de acertos nos dois eixos estudados - sempre (em todas as etapas) maior no ditado do que
nas reescritas de texto. Essa diferença justica-se porque, como se sabe, a produção textual, em
relação à escrita de palavras isoladas, amplia as frentes de elaboração para as quais os sujeitos
devem estar atentos, o que aumenta a complexidade da tarefa. Enquanto no ditado o aspecto
notacional é a principal fonte de atenção, na redação, o sujeito deve se preocupar também com a
integridade do conteúdo, o o condutor da narrativa, a organização e coesão do texto, a adaptação
ao interlocutor de modo a garantir a sua inteligibilidade etc. Mesmo assim, vale registrar que a
diferença do índice de acertos no ditado e na reescrita foi menor nos dois períodos extremos da
coleta: na primeira etapa porque a escrita, em si, ainda representava uma grande diculdade para
os alunos (apresentando, portanto, mais erros nas duas atividades); e, pela lógica inversa, na 5ª
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etapa, justamente porque nesse momento o escrever estava mais estabilizado (portanto, com menos
erros nas duas atividades).
A análise desses percursos parece demonstrar que a progressão dos alunos não se dá somente
na mudança nas graas, quando se aproximam paulatinamente da escrita convencional, mas também
no modo como pensam para elaborar e justicar suas escritas, aproximando-se gradativamente dos
modos mais convencionais e de reexões mais autônomas e conscientes. Assim, mesmo com a pre-
sença e dispersão de categorias evocadas em cada etapa da pesquisa, ca delineado um continuum no
processo de aprendizagem com base no que prevalece em cada etapa da escolaridade.
Considerações: dos processos de aprendizagem às implicações pedagógicas
Ainda que de forma não exaustiva, a análise dos dados permite algumas conclusões sobre a
construção da ortograa que, como não poderia deixar de ser, remetem a importantes implicações
pedagógicas, funcionando como subsídios para se repensar as práticas de ensino. De fato, ao com-
preender o percurso trilhado pelas crianças em seu processo de aprendizagem da ortograa e suas
estratégias na busca de referências ou de procedimentos reexivos, o professor pode assumir uma
postura investigativa, a m de identicar não apenas o índice de escritas convencionais registrado
por seus alunos, mas também - e principalmente - interferir produtivamente na progressão desse
conhecimento. Assim, considerando as relações entre processos cognitivos e diretrizes pedagógicas,
alguns pontos merecem destaque.
Em primeiro lugar, vale defender a construção do conhecimento ortográco como um esforço
travado com base em diferentes caminhos de elaboração. Trata-se de um processo que, mais uma vez
- se considerarmos os estudos de tantos outros aspectos da psicogênese da língua escrita comprovam
a inadequação de princípios ainda arraigados na cultura escolar: “a aprendizagem como um percurso
linear, xo e cumulativo”; “a aprendizagem como como consequência direta do ensino”; “o ensino
projetado a priori e calcado na lógica do adulto, isto é, incapaz de considerar o ponto de vista do
sujeito-aprendiz e a sua dinâmica de construção cognitiva”; e “o ensino planejado de modo inexível,
dosado em etapas do mais fácil para o mais difícil”. De fato, quando se coloca a criança no centro da
aprendizagem e, no caso especíco deste estudo, quando se compreende seus “tateios cognitivos” na
busca pela escrita convencional, evidencia-se a complexidade do papel do professor, entendendo a
intervenção pedagógica como prática exível, diversicada, investigativa e construtiva também na
perspectiva docente. O desao do professor não é simplesmente ensinar (como quem apenas transmite
A construção do conhecimento ortográco no contexto das interações adulto-criança
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conhecimentos), mas principalmente, em conjunto com seus alunos, colocar-se como um produtor
ativo do trabalho em sala de aula.
Nos referidos caminhos de construção do conhecimento ortográco, observa-se, em segundo
lugar, uma tendência de progressiva reexão, autonomia e abstração linguística. A criança recém-al-
fabética, que tende a se apegar mais à discriminação auditiva buscando a relação direta fonema-gra-
fema, passa por referências heterônomas (a palavra segundo interlocutores autorizados ou registrada
por outros sob a forma de imagem visual), chegando a critérios de compreensão da língua para lidar
com a ortograa de modo mais autônomo. A compreensão desse percurso (um verdadeiro continuum
de progressiva aproximação com o convencional) traz ao professor o desao de lidar com diferentes
critérios de interação, valorizando-os não como etapas sucessivas e previsíveis de ensino, mas como
caminhos que se sobrepõem (ainda que com diferentes ênfases) na problematização da língua. Assim,
não se pode dizer que exista uma interação adulto-criança melhor ou pior; o que existe é a interlocução
inteligente, pensada em diferentes vias, para diferentes alunos e em contextos especícos.
Em terceiro lugar, vale dizer que a progressão da aprendizagem da ortograa não se manifesta
apenas pelo aumento do índice de “acertos” na escrita. Conforme avançam, as crianças não apenas
escrevem mais vezes de forma convencional, como também alteram e ampliam a maneira como
explicam, justicam ou validam o modo de grafar as palavras. Ao longo dessa trajetória, ainda que a
escrita não convencional seja baseada em critérios nem sempre ecientes, o simples fato de a criança
buscar outros critérios e de ampliar referências pessoais de validação é, em si, um indício e, ao
mesmo tempo, um componente de evolução na medida em que comprova a ampliação de caminhos
reexivos. Assim, justica-se, na escola, a pertinência de revisão dos mecanismos de acompanha-
mento e de avaliação dos estudantes, podendo considerar, para além dos acertos e erros, aspectos nem
sempre valorizados pelos professores (como são os casos dos processos de elaboração cognitiva ou
das descoberta de estratégias que, bem ou mal, sustentam uma opção de escrita).
O quarto aspecto de destaque nos obriga a reconhecer que a assimilação da ortograa não
pode ser entendida pala dicotomia estável de “conhecer e aplicar” e “não conhecer e não aplicar”.
Isso signica que escrever convencionalmente em um contexto (por exemplo, em um ditado) não
garante a correção em todos os contextos (ditados, produções de textos de autoria, reescritas etc.). Na
tentativa de explicar essa oscilação, mais uma vez, é preciso considerar o ponto de vista do sujeito:
um “escritor” que opera em diferentes planos de reexão, em diferentes contextos de produção, sem-
pre buscando atender aos apelos do propósito da escrita ou da prática comunicativa. Como frentes
de processamento cognitivo, os diferentes conhecimentos sobre a escrita levam algum tempo para
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se estabilizarem, e se articularem em produções cada vez mais ecientes. Isso traz ao professor
a necessidade de propor atividades diversicadas a m de estimular/provocar/desaar o aluno a
partir de diferentes demandas e apelos da cultura escrita.
Com base nos aspectos mencionados, ca evidente que, no contexto da sala de aula, par-
tindo da perspectiva dos sujeitos - suas estratégias de busca e de validação da base ortográca,
seus esforços para a ampliação das alternativas reexivas, seus caminhos de progressão rumo a
comportamentos mais autônomos do escrever - justica uma escola capaz de lidar com a comple-
xidade inerente à língua, visando não apenas a aquisição e apropriação da escrita mas, sobretudo,
a constituição do sujeito-autor e o fortalecimento da postura reexiva em face do conhecimento.
REFERÊNCIAS
COLELLO, Silvia Mattos. Gasparian. A escola que (não) ensina a escrever. São Paulo: Sum-
mus, 2012.
FERREIRO, Emilia. Atualidade de Jean Piaget. Porto Alegre: Artmed: 2001.
GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Assoeste, 2006.
MORAIS, Artur Gomes. Ortograa: ensinar e aprender. São Paulo: Ática, 2003.
NÓBREGA. Maria José. Ortograa. São Paulo: Melhoramentos, 2013.
WEISZ, Telma; SANCHEZ, Ana. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. SP:
Ática, 2001.
Recebido em: 20 de julho de 2020.
Inserido em: 15 de outubro de 2020.
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