Leitura e Leitores: o que dizem as crianças sobre a leitura feita na escola
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Salvador, v. 5, n. 3, p. 98-121, set./dez. 2020
LEITURA E LEITORES: o que dizem as
crianças sobre a leitura feita na escola
RENATA B. SIQUEIRA FRAUENDORF
UNICAMP. Mestrado em Educação – FE/Unicamp. Doutoranda em Educação pela Faculdade
de Educação – Unicamp – GEPEC. Brasil. ORCID: 0000-0001-5567-3235. E-mail: re.frau@
hotmail.com
HELOÍSA HELENA DIAS MARTINS PROENÇA
UNICAMP. Mestrado em Educação – FE/Unicamp. Doutoranda em Educação pela Faculdade
de Educação – Unicamp – GEPEC. Brasil. ORCID: 0000-0001-7222-0529. E-mail:
heloisamartinsproenca@gmail.com
GUILHERME DO VAL TOLEDO PRADO
Doutor em Linguística Aplicada. Livre-docente em Educação Escolar. Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Coordenador do GEPEC
– Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada. ORCID: 0000-0002-2415-8369.
E-mail: toledo@unicam.br
Renata B. Siqueira Frauendorf, Heloísa Helena Dias Martins Proença e Guilherme do Val Toledo Prado
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LEITURA E LEITORES: o que dizem as crianças sobre a leitura feita na escola
Este texto apresenta uma pesquisa que pretendeu conhecer as relações entre as práticas de leitura propostas
por professoras e o impacto na formação dos alunos enquanto leitores. A investigação realizou-se com
um grupo de crianças, na faixa etária de 4 a 10 anos, pertencentes a escolas da rede pública e privada, em
diferentes municípios brasileiros. Foi desenvolvida por prossionais da educação que fazem parte do grupo
de estudos colaborativo GRUPAD - Grupo de Estudos Alfabetização em Diálogo vinculado ao GEPEC –
Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada – da Faculdade de Educação da Unicamp, no ano
de 2016. A participação e escuta das crianças aconteceu por meio de rodas de conversas, mediadas por
professoras-pesquisadoras, em que no mínimo cinco questões, previamente elaboradas, foram propostas
para disparar a conversa e troca entre os alunos. Nesse processo de elaboração da pesquisa e análise das
narrativas dialogamos, principalmente com autores como: Bakhtin (2003; 2010); Lebrun (2013); Lerner
(2002); Passegi (2014); Petit (2013); Prado (2015). Neste artigo elegemos três perguntas-provocação para
apresentar as reexões tecidas e que indiciam que a presença de situações de leitura realizadas pelo
professor é identicada pelas crianças como parte da rotina escolar, entretanto esse movimento ainda tem
sido insuciente para formar alunos leitores e críticos. Apesar da intencionalidade e planejamento dos
professores para este momento da rotina, os percursos de leitores, da maioria dos alunos participantes da
pesquisa, estão sendo marcados mais por livros lidos do que experiências de leitura literia signicativas.
Palavras-chave: metodologia narrativa; formação de leitores; formação continuada; leitura pelo professor.
READING AND READERS: what children say about reading done at school
This text presents a investigation that aimed to know the relationships between the reading practices proposed
by the teachers and the impact on the students’ training as readers carried out with a group of children, in
the age group of 4 to 10 years, belonging to schools in the network. public and private, in different Brazilian
municipalities. It was developed by education professionals who are part of the collaborative study group
GRUPAD - Group of Studies Literacy in Dialogue linked to GEPEC - Group of Studies and Research in
Continuing Education - of the Faculty of Education at Unicamp, in 2016. The childrens participation and
listening took place through conversation circles, mediated by teacher-researchers, in which at least ve
questions, previously elaborated, were proposed to trigger the conversation and exchange between students.
In this process of research development and analysis of narratives, we dialogue mainly with authors such as:
Bakhtin (2003; 2010); Lebrun (2013); Lerner (2002); Passegi (2014); Petit (2013); Prado (2015). In this article
we have chosen three provocation questions to present the reections made and which already indicate
that the presence of reading situations carried out by the teacher is identied by the children as part of
the school routine, however this movement has still been insufcient to train student readers and critics.
Despite the teachers’ intentionality and planning for this moment in their routine, the paths of readers, of
most students participating in the research, are being marked more by books read than signicant literary
reading experiences.
Keywords: narrative methodology; training of readers; continuing education; reading by the teacher.
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LECTURA Y LECTORES: lo que dicen los niños sobre la lectura realizada en la escuela
Este texto presenta una investigación que tuvo como objetivo conocer la relación entre las prácticas de
lectura propuestas por los maestros y el impacto en la formación de los estudiantes como lectores llevados
a cabo con un grupo de niños, de 4 a 10 años, pertenecientes a escuelas de la red. públicos y privados, en
diferentes municipios brasileños. Fue desarrollado por profesionales de la educación que forman parte
del grupo de estudio colaborativo GRUPAD - Grupo de Estudios de Alfabetización en Diálogo vinculado
a GEPEC - Grupo de Estudios e Investigación en Educación Continua - de la Facultad de Educación
de la Unicamp, en 2016. La participación y escucha de los niños se llevó a cabo a través de círculos
de conversación, mediados por profesores-investigadores, en los que se propusieron al menos cinco
preguntas, previamente elaboradas, para activar la conversación y el intercambio entre los estudiantes.
En este proceso de desarrollo de investigación y análisis de narrativas, dialogamos principalmente con
autores como: Bakhtin (2003; 2010); Lebrun (2013); Lerner (2002); Passegi (2014); Petit (2013); Prado
(2015). En este artículo, elegimos tres preguntas de provocación para presentar las reexiones hechas y
que ya indican que la presencia de situaciones de lectura realizadas por el maestro es identicada por los
niños como parte de la rutina escolar, sin embargo, este movimiento aún ha sido insuciente para capacitar
a los lectores y críticos estudiantes. A pesar de la intencionalidad y planicación de los maestros para
este momento de rutina, los caminos de los lectores, de la mayoría de los estudiantes que participan en la
investigación, esn marcados s por libros leídos que por experiencias signicativas de lectura literaria.
Palabras clave: metodología narrativa; entrenamiento de lectores; educación continua; Lectura del
profesor.
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LEITURA E LEITORES: o que dizem as crianças sobre a
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Introdução
Elizabeth Catlett
1
O grupo de estudos colaborativo GRUPAD – Grupo de Estudos Alfabetização em Diálogo
2
– vinculado ao GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada – da Faculdade
de Educação da Unicamp, que nasceu em novembro de 2010 a partir da demanda de professoras
recém-formadas e iniciantes na carreira docente, com a necessidade de discutir sobre a prática
escolar com parceiras mais experientes, é constituído atualmente por educadoras
3
no exercício
da docência nos anos iniciais do ensino fundamental e na educação infantil; por prossionais da
coordenação pedagógica escolar; formadoras de professores que atuam nas redes públicas e par-
ticulares de ensino, entre outras prossionais.
Nos encontros realizados quinzenalmente de forma presencial na Faculdade de Educação,
ou por plataforma de vídeo conferência em tempos de distanciamento social - compartilhamos
experiências, ideias e saberes, que muitas vezes transbordam esse espaço e continuam ecoando
por meio de redes sociais como Facebook, Instagram ou no grupo de WhatsApp. Seja por qual
1 No lugar do uso de uma epígrafe convencional, optamos por utilizar uma outra linguagem que a não verbal. Para a escolha
das imagens tomamos como critério cenas que dialogassem com a ideia de leitura subjetiva, leitor empírico e que marcam
sobremaneira nossas reexões durante o processo da pesquisa e encontros do grupo. Todas as imagens são de domínio
público e foram retiradas do site: https://www.artic.edu. Acesso em 06/06/2020. Imagem: La Presa - Elizabeth Catlett..
2 O Grupad é coordenado pelas duas primeiras autoras e supervisionado pelo terceiro autor.
3 Optamos pelo uso no feminino uma vez que o grupo é constituído em sua maioria por prossionais do sexo feminino.
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caminho for, nosso maior desejo é procurar entender melhor o universo prossional que vivencia-
mos, pois, concordamos com a ideia de que ao narrarmos os processos que “nos tocam”, “que nos
provocam tremores”, como diz LARROSA (2014), elegemos aspectos do campo prossional para
potencializar nossas reexões coletivas. Somos testemunhas do quanto esse movimento todo tem
contribuído para a produção colaborativa de saberes entre escola básica e universidade.
Para compreender o contexto da pesquisa realizada consideramos importante fazer uma
breve retrospectiva do percurso trilhado até o ano de 2019. Em 2014 decidimos, em parceria
com as integrantes do grupo na época, nos aprofundar nos estudos da leitura como prática social
(KLEIMAN, 2004; LERNER 2002) e nos propusemos a fazer uma leitura programada
4
do livro O
amor de uma boa mulher (2014), de Alice Munro, edição da Companhia das Letras, objetivando
construir sentidos coletivos sobre os contos lidos ora no coletivo, ora individualmente, bem como
reetir sobre o processo de constituição de leitoras literárias de uma autora totalmente desco-
nhecida para as participantes. Nos pautamos na mesma lógica para o ensino de uma leitura com
compreensão sugerido por Kleiman (2002, p.10), ao armar que “é na interação, isto é, na prática
comunicativa em pequenos grupos, com o professor ou com seus pares, que é criado o contexto
para que aquela criança que não entendeu o texto o entenda”. Embora a autora faça a armação
centrada no processo de aprendizagem das crianças, acreditávamos que o adulto leitor também se
aproveitaria dessa interação num contexto semelhante. Partimos do princípio de que nosso grupo
é constituído por prossionais que atuam em contextos diversos, são parceiras de prossão, com
maior ou menor experiência na prática docente e de leitura e por isso esse tipo de intercâmbio
poderia ser proveitoso. É preciso deixar claro que no grupo a relação que se estabelece não é a de
professora e aluna, nem ocorre de forma hierarquizada, mas sim uma relação entre prossionais
que se revezam na condução e proposição dos encontros.
Aprendemos muito durante essa prática, principalmente com a decisão das participantes em
interromperem a leitura do livro, por não se sentirem atraídas pelos contos. Movimento que nos
ajudou a reetir sobre o que leva um leitor a desistir de um livro, seja pela falta de “interação”
com a autora, falta de interesse pelo tema ou aproximação com o contexto.
4 Leitura programada - a leitura que serve para a ampliação da prociência leitora, sobretudo, no que se refere  exten-
são dos textos trabalhados ou seleção de textos/livros mais complexos. Nela, o professor divide o texto em trechos
que serão lidos um a um, autonomamente e, depois, comentados em classe em discussão coletiva. (BRAKLING 2004.
Disponível: https://www.escrevendoofuturo.org.br/EscrevendoFuturo/arquivos/912/040720121E-_Leitura__Forma-
cao_de_Leitores.pdf acesso em 02/06/20
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Durante os anos de 2015 e 2016, demos continuidade aos estudos da leitura como prática
social, porém mudamos os encaminhamentos e partimos para a produção de narrativas escritas
das nossas experiências pessoais como leitoras. Ao rememorar nossas experiências iniciais de
leitura pudemos contemplá-las e relacioná-las ao vivido naquele momento. Entendemos que esse
movimento retrospectivo e introspectivo (CLANDININ e CONNELLY, 2011) muito tem a nos
ensinar, que ao rememorar nossas histórias vividas como leitoras em contextos e tempos outros,
também produzimos novos conhecimentos contribuindo para nos tornar pessoas e prossionais
mais capacitadas para a prática docente.
A escrita de narrativas permitiu, também, a tomada de consciência daquilo que nos constitui
como leitoras, pois como arma Petit (2013, p.107) “a leitura não é uma diversão, é algo que me
constrói”, o que entendemos ser extremamente potente em espaços de formação de professores e
de autoformação:
A noção da identidade literária supõe, pois, uma espécie de equivalência entre
si e os textos: textos de que eu gosto, que me representam, que metaforicamente
falam de mim, que me zeram ser o que sou, que dizem aquilo que eu gostaria
de dizer, que me revelaram a mim mesmo. Essa noção requer e estabelece
a memória de textos que perzeram um percurso – evoca um universo
literário – mas inclui também uma relação com a língua, com a escrita e com a
singularidade do modo de ler [...] (ROUXEL, 2013, p.70).
As reexões provocadas a partir da partilha dessas narrativas continuaram reverberando
entre nós e mobilizaram o desejo das participantes conversarem com estudantes para conhecer o
que eles pensavam sobre a leitura feita pelo professor a m de ampliarmos nossos conhecimentos
incluindo além dos saberes dos adultos e de teóricos, que vinhamos estudando e conhecendo, o
saber produzido pelas próprias crianças.
Por m, toda essa produção das narrativas das experiências literárias das participantes
do GRUPAD resultou num livro, publicado no ano de 2020, intitulado “Formação de leitores:
Narrativas de prossionais da educação” pela editora Pedro e João e organizado pelos mesmos
autores deste artigo.
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Sobre a pesquisa
Édouard Manet
5
A investigação intitulada “O que as crianças nos dizem quando se tornam leitoras?” foi
realizada com um grupo de alunos, na faixa etária de 4 a 10 anos, pertencentes a escolas de redes
públicas e privada de ensino, em diferentes municípios brasileiros. A escolha por essa faixa etária
deu-se por dois motivos: ser o público atendido pela maioria das participantes do grupo e por nos
permitir observar as diferenças e semelhanças das experiências de leitura oferecidas em diferentes
etapas escolares e em diferentes regiões. A participação e escuta dos alunos aconteceu por meio
de rodas de conversas, mediadas por professoras-pesquisadoras, em que no mínimo 4 perguntas-
provocação
6
e a proposta para nalização de uma frase, previamente elaboradas, foram propostas
para disparar a conversa e troca entre seus participantes.
Nesse processo de elaboração da investigação e análise das narrativas dialogamos princi-
palmente com autores como Bakhtin (2003; 2010); Lebrun (2013); Lerner (2002); Passegi (2014);
Petit (2013) e Prado (2015). Neste artigo elegemos duas perguntas- provocação e a nalização da
frase para apresentar as reexões tecidas e nos ajudar a identicar os saberes construídos a partir
da pesquisa em questão.
5 Imagem: Woman Reading. Édouard Manet.
6 Identicamos as perguntas como perguntas-provocação, pois as questões formuladas e utilizadas nas rodas tinham
o objetivo de serem um disparador para as conversas nas rodas e interação entre os participantes. De forma alguma
pretendia-se restringir a conversa a um rol de perguntas e respostas como um questionário a ser mecanicamente res-
pondido.
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Em que se difere e em que se assemelha a narrativa da experiência vivida por uma criança
da educação infantil de um aluno do 5º ano? Em que se difere e em que se assemelha a narrativa
da experiência vivida por uma criança que estuda em uma escola pública ou em uma escola par-
ticular? Essas foram algumas das inquietações que nos perseguiram ao realizar essa investigação.
Para essa pesquisa-formação - compreendendo que nessa metodologia todos os envolvidos
seja investigador, participantes são sujeitos ativos do processo e portanto formam e se formam
(BRAGANÇA 2009)- alguns dos membros do grupo (professoras de escola básica em sua maioria)
convidaram algumas crianças (no máximo 20) para participar de uma roda de conversa sobre leitura,
uma vez que consideramos a roda como uma metodologia de investigação que pode oportunizar a
circulação de informações, a troca entre as crianças, além de instigá-las a dizerem o que pensam
não somente sobre o que foi sugerido, como também, a dizerem outras coisas que relembram no
momento em que dialogam. Segundo Passeggi et al (2014, p. 86), essa metodologia
(...) visa a olhar a infância de modo a levar em conta a alteridade da criança,
legitimando-a como ser capaz de reetir ao narrar suas vivências e, por essa
via, trazer informações importantes sobre as escolas da infância e sobre a
criança-sujeito.
Durante nossos encontros elaboramos coletivamente um roteiro semiestruturado com quatro
perguntas-provocação abertas e a proposta para nalização da seguinte frase: “Um bom leitor é ...”
para orientar o diálogo da roda. As mediadoras
7
iniciaram explicando s crianças o que aconteceria
e a nalidade da proposta. Algumas disseram fazer parte de uma tarefa que precisavam realizar
para a “escola” que frequentavam. De modo geral, todas seguiram o roteiro e foram lançando ou-
tras perguntas-provocação que brotaram da própria interação a partir dos enunciados ditos e não
ditos, a m de incentivar os participantes da roda a expressarem algo em relação s experiências
de leitura vividas na escola e fora dela. As conversas foram gravadas e depois transcritas.
Entre os vários desaos enfrentados, destacamos o processo de elaboração da própria
pesquisa com um grupo inexperiente (em sua maioria) nesse tipo de sistematização, seja ao denir
qual seria o foco do estudo e o público; seja ao formular perguntas-provocação ou mesmo para
escolher a metodologia para construção dos dados; inexperiência também para organizar os regis-
tros, fruto das conversas, na etapa posterior. Durante o processo de escrita das conversas tecidas
7 Nomearemos mediadora porque as rodas foram mediadas por professoras, coordenadoras, todas mulheres, daí a op-
ção pela concordância no feminino.
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durante as rodas, algumas das mediadoras puderam reetir sobre a experiência vivida e constataram
que nem sempre conseguiram lançar as melhores provocações para os alunos. Algumas, inclusive,
se viram presas  ideia de que a pergunta em si deveria ser apenas respondida, o que na opinião
delas empobreceu o momento de interação e diálogo no grupo de alunos. Contudo ouvir, escrever
e reetir sobre os enunciados dos estudantes ajudou a todas a compreenderem o quanto eles podem
nos comunicar sobre os processos de ensino vivenciado e como os alunos aprendem.
Participaram da pesquisa 131 crianças, entre 4 e 10 anos de idade, sendo um grupo de
Educação Infantil e 11 grupos do Ensino Fundamental, distribuídas em 12 rodas de conversa
nos municípios de Ariquemes (RO), Campinas (SP), São José do Rio Preto (SP), Capivari (SP)
e Monte Mor (SP). Entendemos que essa diversidade foi um fator importante na constituição de
nossas reexões e análises, pois constatamos muita semelhança em relação alguns aspectos,
independente da faixa de idade ou contexto vivido pela criança.
As perguntas-provocação que elegemos para o momento da roda, intencionavam produzir um
diálogo pautado nas práticas de leitura que estávamos, de certo modo, habituadas a acompanhar
ou a desenvolver em nossas experiências como educadoras. Optamos por 4 questões e uma uma
frase a ser complementada que, de certo modo, apresentavam uma relação entre si. São elas: 1. Na
sua sala de aula, a professora costuma ler histórias para você? Que histórias você mais gosta de
escutar nesse momento? E o que menos gosta? Por quê? / 2. Na sua opinião por que você acha
importante aprender a ler? / 3. O que você gosta mais no momento da leitura: quando alguém lê
para você ou quando você mesmo(a) lê? Por quê? / 4. Você costuma levar livros de histórias da
escola para casa? / 5. (se a resposta for armativa) Você lê sozinho(a) ou alguém lê para você?
Quem? (se a resposta for negativa) Gostaria de levar livros? Por quê? / Para nalizar, propõe-se
que cada criança da roda pense num complemento para a frase: Um bom leitor é….
Para a discussão que propomos aqui, elegemos as seguintes perguntas-provocação para
tecer algumas reexões: 1. Na sua sala de aula a professora costuma ler histórias para você?
Que histórias você mais gosta de escutar nesse momento? E o que menos gosta? Por quê? / 2.Na
sua opinião por que você acha importante aprender a ler? / Complete a frase: Um bom leitor é...
Fizemos esta escolha por entender que esse conjunto de disparadores está relacionado ao
que pensam as crianças sobre as situações de leitura experienciadas em sala de aula e por revelar
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situações para além daquilo que é programado ou estruturado pela professora como situação di-
dática de leitura, assim como apresentar pistas de como a identidade de leitor vai se constituindo
por meio da relação com a leitura literária e interação com os pares.
O que nos dizem as crianças?
Julia Thecla
8
Em nossa sociedade e nos espaços acadêmicos ainda gera certo estranhamento uma in-
vestigação que toma como principal colaborador as crianças, ainda mais quando o objetivo não
é o de falar delas, mas sim de aprender com elas. Essa inversão da lógica é algo que nos encanta
justamente por legitimar as crianças como produtoras de conhecimento e cultura. Ao escutarmos
o que as crianças dizem e pensam, corremos risco de causar desordem ao que se está estabelecido
em certas escolas e nas formas de pensar a leitura, principalmente,
Quando o propósito que a instituição apresenta é um só – aprender a ler ou,
no máximo, ser avaliado [...] Quando o trabalho é feito com uns poucos livros
que, além do mais, pertencem ao gênero “texto escolar”, se diculta ainda mais
a possibilidade de que apareçam diferentes maneiras de ler. Por outro lado,
permitir o ingresso de uma única modalidade de leitura e de um único tipo de
texto facilita o exercício de uma importante exigência institucional: o controle
rigoroso da aprendizagem. (LERNER, 2002, p.77)
Além disso, concebemos que nós somos sujeitos constituídos pela linguagem ao mesmo
tempo em que a constituímos, e é nesse processo de interação constante, mediado pelas enunciações
de diferentes sujeitos, que vamos construindo a nossa humanidade.
8 Imagem: Books - Julia Thecla.
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Em outras palavras, compreender a linguagem da criança e esta como sujeito
que enuncia e que, ao enunciar, habita o mundo com voz própria é fundamental
para pensar que a linguagem, a língua e a fala não são entidades abstratas, mas
enunciados (concretos), ditos por sujeitos que, por meio deles, se constituem,
nos constituem e também constituem um modo de ser e habitar o mundo. (RÉ,
PAULA e MENDONÇA, 2014, p. 19)
Portanto, entendemos que ao considerar com relevância as palavras ditas e não ditas pelas
crianças, damos a ver esse processo de constituição do sujeito, sem hierarquizações.
O conjunto de enunciados da primeira pergunta-provocação “Na sua sala de aula, a profes-
sora costuma ler histórias para você? Que histórias você mais gosta de escutar nesse momento?
E o que menos gosta? Por quê?”; revelou que a leitura feita em voz alta pelo professor é uma
prática que parece estar incorporada s rotinas das diferentes turmas que participaram das rodas
de conversa, independente da faixa etária, tipo de estabelecimento ou região em que foi realiza-
da. De forma unânime as crianças responderam armativamente a essa pergunta, revelando que
professores costumam ler histórias nas salas de aula. Essa situação nos indica que houve um certo
avanço no trabalho de leitura, se tomarmos como referência os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) que, em 1988 indicava:
A leitura em voz alta feita pelo professor não é uma prática muito comum na
escola. E, quanto mais avançam as séries, mais incomum se torna, o que não
deveria acontecer, pois, muitas vezes, são os alunos maiores que mais precisam
de bons modelos de leitores. (PCN de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª Série, 1998;
p. 19)
A primeira pergunta-provocação nasceu justamente do desejo de saber se a leitura em voz
alta feita pelo professor era algo reconhecido e identicado pelos participantes da roda como uma
prática comum, uma vez que compreendemos que o professor pode desempenhar um papel pre-
ponderante como modelo de leitor para seus alunos. De acordo com Lerner (2002, p. 95),
Para que a instituição escolar cumpra com sua missão de comunicar a
leitura como prática social, parece imprescindível uma vez mais atenuar a
linha divisória que separa as funções dos participantes na situação didática.
Realmente, para comunicar s crianças os comportamentos que são típicos do
leitor, é necessário que o professor os encarne na sala de aula, que proporcione
a oportunidade a seus alunos de participar em atos de leitura que ele mesmo
está realizando, que trave com eles uma relação “de leitor para leitor”.
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Ideia que também é defendida por Lebrun (2013, p.147),
Cabe ao professor [...] tornar-se um professor de leitura que dá o exemplo
de um leitor apaixonado e engajado nas descobertas, nas decepções, nas
hesitações e nos entusiasmos. Assim, a classe se torna um lugar de objetivação
da experiência estética, que corresponde a uma sublimação da subjetividade,
um lugar de negociação de sentidos, um lugar de escuta do outro, um lugar de
tolerância, um lugar de manifestação crítica, um lugar de escuta de si: enm
um lugar de intersubjetividade, onde a leitura se torna um prazer de gourmet
partilhado, que remete ao convívio.
Ainda como parte dessa primeira provocação foi pedido aos estudantes que dissessem o que
mais gostavam e o que menos gostavam no momento da leitura, bem como justicassem a opinião
emitida. Como se tratava de uma roda de conversa, é preciso esclarecer que nem todas as crianças
responderam individualmente, ou verbalizaram suas ideias e que, muitas vezes, os comentários e
falas entre elas eram muito parecidos, tanto por representarem aquilo que se gostaria de dizer, como
também por se apoiarem na fala do colega e talvez se sentirem mais confortáveis ao reproduzi-la,
o que não será alvo de análise nessa produção.
De modo geral, os alunos indicaram que apreciam a experiência de leitura realizada pelo
professor em sala de aula, e ao comentarem o que mais gostavam nesse momento, uma grande
maioria relacionou o gosto temática, s personagens ou simplesmente informando o título da
história. Já uma minoria de crianças conseguiu evocar sensações, sentimentos, relembrar de ele-
mentos do vivido no ato da escuta de histórias.
Ao reetirmos sobre as narrativas produzidas pelas crianças a partir desta provocação pu-
demos perceber que um grande grupo de leitores que, independente da faixa etária, local ou rede
de ensino, revelava ter uma consciência mais inaugural de si como leitor, como que aorando, em
um estágio inicial. A forma de se relacionarem com o texto era mais espontânea, e de certo modo
mais supercial no sentido de indicarem aquilo que está explícito na história como por exemplo:
“o que mais gosto nesse momento é histórias de animais, ou histórias com desenhos, ou histórias
assustadoras, ou ainda histórias com nal feliz”. Outros informavam as personagens ou títulos que
mais gostavam, como: “ o que mais gosto nesse momento é Os Três Porquinhos, ...Chapeuzinho
Vermelho,... Patinho feio,... Bela e a Fera, entre outros. Por m, ainda nesse grupo, alguns alunos
comentaram diante dessa provocação a forma de que gostavam de ouvir histórias, informando que
gostavam quando a leitura em voz alta era realizada com apoio de fantoches, ou quando o professor
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mostrava ilustrações enquanto lia. Entretanto, também tivemos um menor grupo de leitores que
pareciam identicar-se com o texto no plano mais afetivo, partilhando uma experiência vivida de
forma mais subjetiva ou relacionada a uma outra experiência vivida, com uma análise atrelada a
sensibilidade, como podemos observar no seguinte trecho:
Roda 3 – mediadora Raquel
9
Leão: Ah, eu gosto, nois se lembra do conto de fadas, da creche lá, as tias
também liam pra nós, mó legal!
Espantalho: “Uma parte que eu gosto é quando ela e a gente ca imaginando
tudo.”
Roda 4 – mediadora Lygia
Zangado: “...é quando começa a car meio criativo, sabe...começa a car
meio da hora, meio radical, sabe? Aí eu gosto...”
Roda 6 – mediadora Carolina
Beto:Quando a professora começa a ler uma parte muito engraçada e
começa a sorrir com a gente e começa a falar parte do texto.”
Helena: “Que nem a Violeta estava falando também ...eu me sinto dentro da
história, é muito legal.”
Violeta:Também, antes dela começar ela comenta o que vai ocorrer, qual o
título.”
Quando as crianças falam sobre suas preferências na relação com os textos literários, seja de
forma mais supercial ou mais aprofundada, nos possibilita inferir que as relações estabelecidas
com o momento da leitura, tão presente nos cotidianos escolares, contribuem para a formação de
9 Para preservar o nome das mediadoras bem como dos alunos que participaram dessa investigação propusemos s
pesquisadoras que escolhessem um nome de uma escritora de livros que lhes fosse signicativa bem como utilizassem
nomes de personagens de histórias infantis para identicar os alunos. Os nomes escolhidos foram: Cora Coralina,
Ruth Rocha, Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Cecilia Meirelles, Carolina de Jesus, Marina Colasanti, Elena
Ferrante, Hilda Hist, Conceição Evaristo, Clarice Lispector e Eva Furnari. As personagens que identicaram os alunos
que participaram das rodas são referentes a: Turma da Mônica, Sitio do Pica- Pau Amarelo; Os Incríveis, O Pequeno
Príncipe, Amiga Genial, Personagens de desenhos infantis variados, Alice no País das Maravilhas, O Mágico de Oz, Os
Sete Anões, Harry Potter, Crônicas de Narnia. Gostaríamos de agradecer a participação e dedicação de cada uma dessas
mediadoras sem as quais não teria sido possível realizar essa investigação, nem produzir essa riqueza de reexões.
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um sujeito sensível, que aprende e se relaciona com as palavras e textos de forma mais intensa;
sujeitos em múltiplas dimensões que pensam, vivem e sentem a partir das relações que estabele-
cem com o mundo e com as experiências. Como arma Rouxel (2013, p.76) “aquilo que é sentido
e vivido ecoa no coração (o corpo) e no espírito do leitor: não há leitura forte sem ser sensível”.
Há um processo de constituição do sujeito na vida que passa pela forma como vai se rela-
cionando com o universo sócio cultural e a leitura é uma das práticas que compõe esse processo.
Pelas palavras das crianças podemos perceber o quanto os processos de interação são balizadores
das compreensões que desenvolvem também nos momentos de ensino e de aprendizagem da lei-
tura, pois “a palavra está presente em todo ato de compreensão e em todo ato de interpretação”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 101). Com relação segunda parte da questão, respondida
pelas crianças, sobre “o que não gostam no momento da leitura”, novamente é possível agrupar
os enunciados dos alunos por assunto/tema e repetem-se histórias que dão medo e de terror; e
personagens como Saci Pererê, Mula Sem Cabeça mais relacionados as lendas brasileiras. Porém,
nos chamou atenção a quantidade de comentários - em torno de 20% - que indicaram que o baru-
lho dos colegas, as conversas paralelas durante a leitura, assim como a interrupção da leitura da
história ocasionada pela entrada de outras pessoas em sala, ou para a professora chamar atenção
dos alunos, como aspectos que dizem não gostar no momento da leitura:
Roda 3 – mediadora Raquel
Homem de Lata: “Quando os outros alunos cam fazendo barulho e não dá
pra gente ouvir.”
Roda 1 – mediadora Cora
Narizinho: “Quando os outros cam teimando e a professora precisa parar
para chamar a atenção deles. Eu esqueço da parte em que parou e dá aquele
nó!”
Essa revelação do desgosto da leitura relacionada a manutenção da disciplina durante a roda
é de fato algo muito presente em algumas salas de aula, pois é comum professores interromperem
as leituras para chamar atenção dos alunos. Muitas vezes gasta-se uma energia muito grande em
garantir um silêncio absoluto na sala e pouco se escuta o que os alunos estão querendo dizer ao se
agitarem durante o momento da leitura.
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Novos questionamentos brotaram dessa reexão em nossos encontros do grupo colaborativo:
Seria a história desinteressante? Seria o ato de leitura realizado de forma burocrática, no plano inte-
lectual apenas, sem emoção e envolvimento por parte daquele que lê? Os ouvintes podem interagir
com aquilo que é lido durante a leitura ou somente ao nal quando têm autorização, geralmente, para
responder a um questionário ou no caso dos menores para fazer um desenho?
Esse foi mais um momento em que as falas das crianças nos deslocaram, pois muitas de nós,
professoras, coordenadoras, formadoras, nos enxergamos nesse lugar em que a manutenção da dis-
ciplina ganha a dimensão maior do que a própria experiência de leitura, aspecto que entendemos
merecer atenção e reexão dos formadores, professores da graduação, quando pensamos em docentes
como mediadores de leitura.
Se compreendemos que a literatura só é concretizada na leitura e que a leitura pressupõe intera-
ção entre texto e leitor, e também a utuação de impressões singulares das crianças e jovens durante
a leitura (REZENDE, 2013), talvez o que tem existido em muitas salas de aula - apesar de ser uma
prática presente na rotina– são apenas textos lidos e não verdadeiras experiências de e com a leitura
(BELLEMIN-NOËL (2001) apud LANGLADE (2003)).
Na sequência, trazemos a segunda pergunta-provação - , “Na sua opinião, por que você acha
importante aprender a ler?” - para ampliar as discussões propostas nesse artigo. Essa pergunta-
-provocação também nos possibilitou constatações importantes e produziu muitos sentidos para as
mediadoras das rodas de conversa, porque em suas representações sobre a importância da leitura
imaginaram que a maioria dos alunos diriam, que a leitura era importante para dialogar com outros
mundos possíveis, bem como acessar ideias e informações de tempos outros. Porém, descobrimos,
em diálogo com as ideias que os alunos revelaram nas rodas, que aproximadamente 35% dos parti-
cipantes disseram que aprender a ler se fazia necessário para conseguir emprego e ganhar dinheiro,
como é possível observar nos seguintes enunciados:
Roda 2 - mediadora Ruth
Magali: “... senão saber ler nem escrever a gente não vai conseguir o emprego.”
Roda 5 – mediadora Cecília
Serpente:“A gente tem que aprende a ler, pra depois, levar corrículos pro
trabalho pra poder saber é... escrever lá no papel e também saber entregar o
dinheiro certinho.”
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Considerando o contexto de crise sócio econômica de nosso país é totalmente compreensível
que essa resposta apareça com maior frequência, o que nos permite imaginar que os alunos têm
ouvido os adultos e presenciado situações em que esse problema se coloca como uma preocupação
em seu cotidiano. Entretanto, esse discurso também pode ser revelador do tipo de experiências de
leitura que eles participam, seja na escola ou em casa. Uma prática de leitura mais utilitarista, que
para ser validada pelo sistema escolar deve estar a serviço de algo, ou ainda que funcione como
pretexto, contrariando a ideia de ler por prazer; ou de uma prática de leitura mais subjetiva e sen-
sível. Uma escolha metodológica que coloca a leitura como moeda de troca num mundo marcado
por relações mercadológicas.
Enm, os alunos podem estar construindo uma imagem de leitura muito distante ao que
responde Umberto Eco quando questionado: “Para que serve esse bem imaterial que é a literatura?
[...] não deve servir para nada”. (2003, p.10). Numa sociedade capitalista em que tudo deve servir
para algo, em que as ações são determinadas visando o lucro, a resposta de Eco sobre a literatura
ainda é algo a ser perseguido por nós e pela escola. Sempre é preciso lembrar que “o texto literário
é arte, não é pedagogia. Dialoga com a subjetividade, não com a técnica” (LOIS, 2010, p. 35).
Nessa mesma linha, alguns alunos relacionaram a importância de ler para adquirir e compreender
informação, com aproximadamente 19% das opiniões; para aprender a escrever, com aproximada-
mente 11%; ou relacionaram ideia de passar nas provas, com aproximadamente 6% das respostas.
Constata-se, portanto, que os dizeres das crianças, majoritariamente, vinculam a importância de
ler ao contexto escolar como podemos observar no enunciado de Lila ao dizer que a leitura serve
“ ...para a gente poder passar de ano, ir para a faculdade…” (Roda 8 – mediadora Elena).
Obviamente que adquirir e compreender informações, aprender a escrever ou sair-se bem
nas provas são aspectos importantes e que merecem reexão e discussões mais aprofundadas
porque são valorizados em nossa sociedade, porém, quando os alunos (ou até mesmo os adultos)
atribuem a importância da leitura a esses pontos apenas, reduzem uma prática social a situações
mais empobrecidas de sentido, quelas em que o texto se coisica e que o valor atribuído parece
ser tão somente o de acumular conhecimentos (ROUXEL, 2013). A experiência de leitura acaba
por assumir um caráter de obrigação ou, simplesmente, para se agradar aos adultos, como arma
Petit (2013).
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Contudo, leitores que participaram de diferentes rodas que parecem experimentar o
texto como algo que permite pensar o mundo e construir a si mesmo. Ao contrário do grupo ante-
rior, são alunos que demonstram estar imersos numa cultura literária ativa, uma “cultura para si”
(ROUXEL, 2013). Esses alunos relacionaram a importância de ler ao fato de ser algo que permite
situações como ser feliz, se distrair ou imaginar, alargar horizontes e podemos identicar alguns
desses aspectos nos seguintes enunciados:
Roda 09 – mediadora Hilda:
Minerva: “...quando a gente fala com as pessoas a gente pode consegui falar
de um jeito com as pessoas, tem a mente mais aberta e a gente pode conseguir
oportunidades melhores na vida.”
Roda 3 – mediadora Raquel:
Mágico de Oz: “Ah, porque aí a gente pode...imagina do jeito que a gente
gosta, a gente pode, aí a gente já...já sabe as coisas, aí a gente pode, a gente
pode...pode aprender lendo o livro.”
Leituras na infância como essas podem se tornar uma verdadeira relação de amizade, “na
leitura, a amizade é de repente levada  sua pureza primitiva. Com os livros, não há amabilidade.
Esses amigos, se passamos a noite com eles, será porque realmente temos vontade de fazê-lo”
(PROUST, p. 42). Ao ler, cada leitor constrói uma relação com a obra lida, mediada por suas sen-
sações, emoções, vivências e aprendizados, que não podem ser medidos quantitativamente, mas
ampliam os saberes desse sujeito, tanto como leitor, como pessoa que aprende e se desenvolve na
cultura.
O último conjunto de enunciados que vamos analisar nesse artigo é sobre como os alunos
completaram a frase “Um bom leitor é...”. A nalidade desse nosso encaminhamento nas rodas
de conversa era abrir uma outra possibilidade de interlocução, não mais mobilizada por pergun-
tas, mas por uma ideia-provocação. A proposta pretendia convidar os alunos a pensarem no que
caracterizava um bom leitor conforme suas representações e conhecimento de mundo. Tínhamos
algumas ideias do que diriam, como por exemplo, relacionarem a qualidade de leitor ao sujeito
que rápido, que muito; ou ainda, que não gagueja, que entende o texto todo. Imagens de leitor
muito provavelmente formuladas a partir da própria identidade literária construída por cada uma
de nós. Alguns alunos nos surpreenderam e foram muito mais longe do que poderíamos cogitar.
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Para alguns dos participantes das Rodas mediadas por Elena e Clarice, a principal qualidade
do leitor está relacionada ao que sabem e a postura que assumem como estudantes:
Roda 8 – Mediadora Elena:
Marisa:ser estudioso.”
Nino:ser inteligente”.
Nicola: “ ser muito inteligente imaginando o mundo da imaginação.”
Antônio:criar.”
Roda 11 - Mediadora Clarice:
Edmundo:O tia, leitor é uma pessoa que ele sabe di tudo ... e sabi que a
pessoa lê.”
Já nas Rodas mediadas por Ruth e Conceição, a qualidade do leitor apareceu mais relacionada
ao gênero feminino e a maioria indicou que ser um bom leitor é ser igual mãe, professora,
tia, irmã. Percepção também partilhada pela antropóloga Michèle Petit, em conferência realizada
em 2000, quando arma que:
Em muitos lugares do mundo as mulheres têm desempenhado um papel
preponderante como agentes do desenvolvimento cultural, junto com alguns
homens que talvez tenham se integrado, tenham aceitado seu lado feminino,
sem temer perder sua identidade. (PETIT 2013, p.36)
Entendemos que a questão do gênero feminino, atrelada qualidade do leitor, é um tema que
merece uma discussão mais aprofundada o que não será foco nessa produção. Porém, mais uma
vez fomos deslocadas de nossas certezas e verdades diante dos enunciados dos alunos. Reexões
como: por que relacionar a qualidade de leitor a professora? Será que eles não têm outra referência
de leitor fora da escola? O que signica pais e irmãos pouco serem apontados como bons leitores?
Enm, consideramos relevante a incidência de enunciados das crianças que trazem a leitura como
prática feminina, preponderantemente, diante da qualicação de um bom leitor, como podemos
perceber nos seguintes enunciados:
Roda 2 – Mediadora Ruth
Marina: Você!
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Ruth: Hamm... Um bom leitor sou eu? A professora?
Marina: É.
Chico Bento: Você!
Ruth: Mas eu novamente!? A professora... Vai mais uma vez... Um bom leitor
é...
Chico Bento: A minha mãe!
Roda 10 – Mediadora Conceição
Alice: Meu pai, minha mãe e a professora, porque eles sabem ler muito sem
errar uma palavra e um bom leitor tem que ser muito inteligente igual vocês
três.
Coelho Branco: A professora porque ela lê a gente escuta e a gente vai lendo.
Rainha de Copas: É minha mãe, porque ela sempre lia para mim e eu aprendi.
Duquesa: Minha irmã que é uma boa leitora para mim, porque ela me ajuda
a lê.
Por m, alguns alunos indicam perceber a leitura como uma possibilidade de transformação
de si. Parecem reconhecer-se como um “leitor ativo, ora implicado, ora distanciado;(...) “um leitor
singular fazendo parte integrante de uma comunidade de leitores em formação” (LEBRUN, 2013,
p.138), como podemos observar nos fragmentos a seguir:
Roda 6 – Mediadora Carolina:
Helena: Aquele que aprende e sempre tem interesse.
Violeta: Aquele que sempre consegue entender a história.
Edna: Consegue meditar na história e ver o que está acontecendo.
Toninho: Consegue ser um bom ouvinte.
Roda 1- Medidora Cora:
Emília: Quem lê muito.
Narizinho: Ser bom leitor é por exemplo, ler e acalmar a outra pessoa, um
bebê, uma criança.
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Algumas considerações nais
Fernand Léger
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No decorrer deste texto procuramos tecer algumas reexões alimentadas pelas discussões
e sentidos atribuídos s diferentes leituras realizadas ao longo dos encontros do Grupad , bem
como aos diálogos estabelecidos com as diferentes conversas produzidas no interior de cada roda
de conversa realizada junto as crianças a partir das perguntas-provocação.
Entendemos que pudemos aprender muito ao ouvir e compreender os dizeres dos alunos,
assim como construir um conhecimento importante, mais robusto, sobre a importância da leitura
literária dentro da escola, para a vida do sujeito e, acima de tudo, como um direito, tal como nos
ensina Antônio Candido (1995).
Nossa posição enquanto um grupo de estudos colaborativo sobre a língua materna é a defesa
de uma concepção de leitura como prática social, o que essa investigação e os estudos realizados até
o presente momento vieram a corroborar. Compartilhamos da ideia de Ferreiro (2002, p.27) de que,
Há crianças que ingressam na língua escrita por meio da magia ( uma magia
cognitivamente desaante) e crianças que entram na língua escrita pelo treino
de “ habilidades básicas”. Em geral, as primeiras se tornam leitoras; as outras
têm um destino incerto.
Em nosso campo de atuação – formação continuada de professores/formadores – quando
nos propomos a discutir com os prossionais essa temática é comum ouvir a queixa deles de que
10 Reclining Woman - Fernand Léger
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sabem muito de leitura, e que querem algo mais importante para a vida escolar dos alunos. Sem
falar que, segundo a percepção de alguns, a leitura literária ainda é considerada como algo de menor
relevância, um passatempo, pretexto. Reverter essa lógica, tantas vezes colocada em prática pelos
docentes e formadores, é preciso!
Após essa costura entre dizeres, percepções reexões, chegamos a uma primeira consta-
tação: a de que avançamos sim, quando pensamos na presença de situações de leitura como parte
da rotina dos alunos, pois eles reconhecem essa ação realizada cotidianamente em sala. Também
parece que temos feito algo no sentido de despertar o gosto dos alunos pelas histórias lidas por
eles ou pelos professores, bem como temos conseguido abrir brechas, mesmo que diminutas, para
a presença de uma dimensão mais subjetiva da leitura, principalmente na educação infantil e pri-
meiras séries dos anos iniciais de ensino fundamental.
Por outro lado, foi possível reetir e observar a partir dos enunciados dos alunos aqui com-
partilhados, que isso tem sido insuciente quando desejamos formar leitores críticos, competentes.
Leitores que possam discutir com os textos, replicá-los e colocar-se em relação com outros textos e
discursos (ROJO, 2004). Leitores implicados que se apropriam dos textos, leitores subjetivos que
se constituem de boas experiências de leitura desde a infância, alimentando uma cultura literária e,
consequentemente, forjando uma identidade literária tão profunda capaz de transformar a si mesmo.
Em comum acordo com Petit, avaliamos que “a leitura pode ser, em qualquer idade, um
atalho privilegiado para elaborar ou manter um espaço próprio, um espaço íntimo, privado”.
(PETIT 2013, p.41). Ao escutar o que dizem a maioria dos leitores que participaram das rodas,
independentemente da idade, local em que moram, tipo de escola que frequentam, constatamos
que, apesar das boas intenções e de boas práticas de muitas das professoras, os percursos de leitura
estão sendo mais marcados por livros lidos do que por experiências de leitura literária efetivamente.
Esse grupo de leitor revela que ainda prevalece a cultura da cobrança, da avaliação, e do aprender
a ler em seu sentido mais limitado.
Se nos contextos de formação continuada o discurso da relevância da importância da lei-
tura e o jargão do despertar o gosto pela leitura se mostram tão apropriados por prossionais
da educação infantil e do ensino fundamental, perguntamo-nos, então, por que na prática estamos
tão distantes disso?
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A possibilidade de escutar os dizeres dos alunos nos ensinou e muito. Foi importante
compreender que, esse leitor que se aproxima mais do conhecimento empírico, que tece impressões
alargadas ao que ouve ou lê, estuda nas mesmas escolas, tem os mesmos professores, participou da
mesma roda de outros alunos, que estão mais distantes dessa relação estética e ética com a leitura.
Ainda consideramos importante ressaltar que os sujeitos se formam nas interações que
estabelecem na vida e na cultura e essas relações são mediadas pela linguagem, pela palavra. “Todos
os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (BAKHTIN, 2003, p.
261), e todos nós enunciamos de forma única e irrepetível enunciados concretos que dizem sobre
quem somos e como nos relacionamos no mundo e na cultura. Assim, é de fundamental importância
uma investigação em educação que efetivamente compreenda que as crianças podem contribuir
com suas ideias, percepções, aprendizagens e compreensões de como essas relações ocorrem.
Finalizamos esse artigo com novos questionamentos: o que será que acontece no percurso
de formação de leitor literário desse grupo menor de alunos que faz com que se aproximem
mais da perspectiva de leitores subjetivos? Eles podem nos ensinar a ver o leitor como instância
da literatura? E por m, de que literatura se alimenta esse leitor?
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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.