CURRÍCULO E DIFERENÇA: UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE NAS TEORIAS CURRICULARES

 

 

Maurício de Novais Reis1*, Cristiane Batista da Silva Santos2

 

 

1Mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER/UFSB) e doutorando em Educação (PPGE/UESC)

2Doutora em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

*Autor para correspondência E-mail: contato@mauricionovais.com

 

Recebido: 21. 12. 2024    Aceito: 14. 01. 2025

 

 

Resumo: Este artigo discute o currículo, definindo-o conceitualmente e estruturando sistematicamente as teorias curriculares no âmbito de uma reflexão inerente ao processo pedagógico brasileiro, no qual o currículo se articula com a cultura, economia, política e identidade. De caráter pós-estruturalista, este artigo de revisão teórica defende que o currículo não emerge de um processo natural, mas de contextos históricos e culturais discursivamente estabelecidos, nos quais forças antagônicas buscam privilegiar determinadas ideologias em detrimento de outras. Com o objetivo de delinear a evolução do conceito de currículo, este artigo demonstra a necessidade de um currículo congruente à peculiar condição multicultural brasileira, afastando-se dos modelos prêt-à-porter defendidos nas teorias tradicionais e críticas. É nesse contexto que o currículo e a escola são o espaço de encontro de múltiplos discursos, culturas, raças e histórias com seus atravessamentos que colocam a diferença diante do espelho identitário produtor de identidades culturais descentradas, condizentes com a pós-modernidade, principalmente para a realidade de um país multicultural como o Brasil.

 

Palavras-chave: Educação; Currículo; Cultura; Identidade; Diferença.

 

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CURRICULUM AND DIFFERENCE: A REFLECTION ON IDENTITY IN CURRICULUM THEORIES

 

Abstract: This article discusses the curriculum, defining it conceptually and systematically structuring curricular theories within the framework of a reflection inherent to the Brazilian pedagogical process, in which the curriculum is articulated with culture, economy, politics, and identity. With a post-structuralist character, this theoretical article argues that the curriculum does not emerge from a natural process, but from historically and culturally determined discursive contexts, in which antagonistic forces seek to privilege certain ideologies over others. Aiming to outline the evolution of the concept of curriculum, this article demonstrates the need for a curriculum congruent with the Brazilian multicultural condition, moving away from the ready to use models defended in traditional and critical theories. It is in this context that the curriculum and the school are the meeting place of multiple discourses, cultures, races, and histories with their crossings that place difference in front of the identity mirror, producing decentered cultural identities, consistent with postmodernity, especially for the reality of a multicultural country like Brazil.

 

Keywords: Education; Curriculum; Culture; Identity; Difference.

 

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CURRÍCULO Y DIFERENCIA: UNA REFLEXIÓN SOBRE LA IDENTIDAD EN LAS TEORÍAS CURRICULARES

 

 

Resumen: Este artículo discute el currículo, definiéndolo conceptualmente y estructurando sistemáticamente las teorías curriculares en el marco de una reflexión inherente al proceso pedagógico brasileño, en el cual el currículo se articula con la cultura, la economía, la política y la identidad. Con un carácter posestructuralista, este artículo teórico sostiene que el currículo no emerge de un proceso natural, sino de contextos históricos y culturales determinados discursivamente, en los cuales fuerzas antagónicas buscan privilegiar determinadas ideologías en detrimento de otras. Con el objetivo de delinear la evolución del concepto de currículo, este artículo demuestra la necesidad de un currículo congruente con la condición multicultural brasileña, alejándose de los modelos prêt-à-porter defendidos en las teorías tradicionales y críticas. Es en este contexto que el currículo y la escuela son el espacio de encuentro de múltiples discursos, culturas, razas e historias con sus entrecruzamientos que ponen la diferencia frente al espejo identitario productor de identidades culturales descentradas, acordes con la posmodernidad, principalmente para la realidad de un país multicultural como Brasil.

 

Palabras clave: Educación; Currículo; Cultura; Identidad; Diferencia.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Neste artigo discutiremos algumas condições necessárias para a teoria curricular contemporânea, definindo o próprio conceito de currículo e estruturando sistematicamente as teorias curriculares no âmbito de uma reflexão inerente ao processo pedagógico brasileiro, no qual o currículo se articula com a cultura, economia, política e identidade. Partindo da ideia fundamental de que aquilo que se denomina de currículo envolve todo o conjunto de atividades nucleares que são desenvolvidas pela escola (Saviani, 2011), a abordagem puramente técnica cederá espaço a um sobrevoo panorâmico pelas teorias curriculares ao mesmo tempo em que aciona elementos da história cultural brasileira a fim de possibilitar uma compreensão adequada dos processos curriculares empreendidos na educação nacional.

Tomando como pressuposto basilar essa perspectiva conceitual de currículo, a reflexão posposta neste artigo considerará, principalmente, os aspectos culturais e políticos envolvidos discursivamente nos desenvolvimentos das atividades nucleares da escola; assim, será traçado um panorama das teorias curriculares, passando pelas teorias tradicionais e críticas, chegando às teorias pós-críticas de abordagem pós-estruturalista questionadoras da forma como as identidades são construídas pelo currículo. Neste sentido, o currículo tradicional, fortemente mecanicista, cujo objetivo fundamental era produzir sujeitos aptos para a produção industrial no mercado capitalista, homogeneizando-os conforme a necessidade crescente do sistema produtivo, cedeu espaço às teorizações críticas, profundamente questionadoras do modelo tecnicista de escola e sociedade.

Contudo, as teorias críticas, ancoradas na dialética socioeconômica, embora denunciassem as ideologias embutidas no processo educacional, passaram a carecer de fundamentos mais consistentes à medida que a sociedade brasileira se tornava mais heterogênea culturalmente. É claro que os instrumentos teórico-metodológicos das teorias críticas do currículo não se esgotaram, uma vez que a dominação econômica do capital persiste; no entanto, com os diversos fluxos, migrações e diásporas que tornaram a nação brasileira ainda menos homogênea racial e culturalmente, surgiu a necessidade de uma nova teorização que contemplasse a reflexão sobre as diferenças. Além do mais, começou a surgir uma reflexão eminentemente brasileira sobre o currículo e a escola, o que contribuiu para a abertura de um pensamento mais voltado às questões educacionais nacionais.

As concepções de currículo são tantas quanto o número de cabeças que se comprometem a refletir acerca do processo educacional. Por isso, pode-se afirmar que educação e currículo possuem implicações indissolúveis e, inevitavelmente, passam pela reflexão sobre o modelo de sociedade que se deseja construir, econômica e culturalmente. Existe uma inquietação constante a respeito dos significados ocultos naquilo que denominamos de currículo, porque sendo uma “inflexão sobre a cultura, [...] é construído social e historicamente” (Silva et al., 2017).

Desde que os estudos curriculares foram iniciados como campo autônomo e especializado de conhecimento pedagógico, no final do século XIX, nos Estados Unidos, as concepções curriculares já corresponderam às noções de “artefato educacional” (Veiga-Neto, 2022), “artefato social” (Goodson, 1997), “artefato social e cultural” (Moreira e Silva, 2005), “prática complexa que reflete valores, poderes e relações sociais” e “experiência vivida” (Reis et al., 2024), “conjunto das atividades desenvolvidas pela escola” (Saviani, 2011) e “repertório de significados” (Lopes e Macedo, 2011).[1]

Partindo das definições acima, analisaremos o conceito de currículo discorrendo sobre os atravessamentos teóricos e epistemológicos que esse conceito sofreu no decurso do tempo; buscaremos, suplementarmente, demonstrar mais detalhadamente as conexões entre currículo e cultura, assim como as reflexões mais atuais que têm animado as discussões sobre as teorias curriculares e, especialmente, sobre a prática cotidiana do currículo nas escolas brasileiras concernente à valorização da diversidade cultural existente no país.

 

 

UMA BREVE REFLEXÃO CONCEITUAL

 

A palavra currículo deriva do vocábulo latino curriculum (Reis e Oliveira, 2023). Entretanto, Sacristán aponta uma dupla origem: o termo currículo refere-se tanto ao percurso traçado quanto à ordenação necessária de eventos para a superação do percurso. Em outras palavras, curriculum e currere se complementam à medida que o vocábulo currículo “refere-se ao percurso traçado e a seus êxitos” (Sacristán, 2013).  Neste sentido, pode-se compreender o vocábulo currículo tanto como o percurso previamente traçado a ser percorrido como o ato contínuo de percorrer, progredindo conforme o movimento empreendido e a regularidade almejada.[2]

A etimologia da palavra indica a sua conceitualização na medida que revela o currículo como elemento organizador do processo pedagógico carregado de intencionalidade, mas também como o próprio percurso a ser atravessado pelo sujeito do conhecimento.[3] Se a expressão curriculum vitae expressa a “carreira de vida” de um indivíduo, revelando os atravessamentos necessários, o currículo escolar expressa não apenas a corrida, mas também o caminho que o indivíduo deverá percorrer para alcançar o conhecimento (Reis e Oliveira, 2023).

O problema é que o currículo não emerge de um processo natural, como se os conhecimentos envolvidos na atividade educativa não guardassem nenhuma relação com o contexto histórico e cultural de determinada sociedade. Não só guardam como há uma intensa disputa no campo curricular, no qual forças antagônicas buscam privilegiar determinadas epistemologias em detrimento de outras. Percebe-se, desta forma, que o currículo guarda implicações inerentes à educação, como processo humanizador, mas também com o próprio desenvolvimento social, considerando que o currículo é – relativamente a conteúdos e práticas – uma porção escolarizada da cultura (Veiga-Neto, 2002).

Neste sentido, o currículo assume um caráter polissêmico e multifacetado (Reis et al., 2024). Sua polissemia está relacionada com as diferentes vozes que se entrecruzam no interior da teoria e da política curriculares. Multifacetado, porque não apenas seus sentidos conceituais, mas, principalmente, os sentidos éticos e estéticos arraigados, desnudam-se em camadas políticas e ideológicas, que revelam as sutis intenções implícitas da organização pedagógica da escola.

Em determinados momentos, o currículo foi enxergado pelo seu viés social, remetendo a reflexões sociológicas acerca do lugar da educação no universo simbólico das coletividades humanas. Tratava-se não somente de uma realidade inerente à escola, mas à sociedade em geral. Caberia, desta forma, à escola, inculcar os valores, as condutas e os “hábitos adequados” (Moreira e Silva, 2005). Todo um campo de pesquisa sociológica abriu-se ao currículo, analisando-o e criticando o seu poder (Silva, 2016), mas também propondo possibilidades de alteração.

Embora historicamente seja possível considerar o currículo como um elemento organizador do processo pedagógico, deve-se afastar a perspectiva de que se trate simplesmente de um instrumento organizacional, ideologicamente desinteressado, neutro e técnico. A organização curricular envolve relações de poder, domínio e seleção de conhecimentos. Afinal, não é sem qualquer propósito que determinados conteúdos sejam selecionados como conhecimentos altamente relevantes em detrimento de outros, assim como determinadas representações sejam acolhidas como modelos a serem reproduzidos socialmente e algumas culturas sejam alçadas à condição de universalidade. Outrossim, não é por acaso que alguns grupos humanos sejam excluídos da política curricular (como é o caso, por exemplo, de negros e indígenas), enquanto outros sejam exaltados à condição de superioridade cultural.[4]

Além disso, as teorias curriculares encontram-se posicionadas num campo político em permanente disputa entre as mais variadas facções ideológicas, cujos interesses arrastam os debates e discussões para posições antagônicas. Se existem aqueles que objetivam reproduzir as classificações sociais e raciais impressas no âmbito da sociedade capitalista, certamente outros terão a finalidade de repensar todo o processo sociocultural constitutivo do corpus social. E toda essa querela perpassa, inevitavelmente, o campo curricular da educação básica, território constantemente disputado (Arroyo, 2013).

É neste sentido que a discussão em torno do currículo empreende uma série de dimensões que articulam cultura, conhecimento, política, sociedade e escola. No âmbito cultural, o currículo define os conhecimentos ‘dignos’ de serem transmitidos por meio de recortes seletivos da cultura, reproduzindo aqueles traços considerados indispensáveis às novas gerações (Veiga-Neto, 2002).[5] Da perspectiva do cotidiano escolar, o currículo costuma ser visto como um elemento mais técnico do que cultural; por esta razão costuma ser entendido, superficialmente, como:

 

[...] os conteúdos a serem ensinados e aprendidos;

as experiências de aprendizagens escolares a serem vividas pelos alunos;

os planos pedagógicos elaborados pelos professores, escolas e sistemas educacionais;

os objetivos a serem alcançados por meio do processo de ensino;

os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos diferentes graus da escolarização (Moreira e Candau, 2008).

 

Não obstante o excerto acima não demonstre uma visão completamente equivocada do que venha a ser o currículo, pode-se dizer que essa concepção puramente técnica reduz o currículo à condição de artefato técnico-metodológico, quando na verdade a amplitude do espectro curricular seja imensamente maior. O currículo, assim, refere-se não somente a questões técnicas, mas também éticas, culturais, estéticas, econômicas e políticas, as quais ultrapassam para além dos muros escolares, refletindo na sociedade.[6]

Desta forma, torna-se inequívoco que o currículo concerne não somente à escola, mas a algo mais amplo e complexo: a sociedade, com suas diversas culturas e cosmovisões. A política curricular, quando implementada, possui a função de, muito mais que determinar os conteúdos, experiências de aprendizagem, projetos pedagógicos e processos avaliativos, reinventar maneiras de estar no mundo, articulando culturas, conhecimentos e concepções de vida num determinado conjunto de atores sociais.

Em artigo publicado na Revista Debates em Educação, Joedson dos Santos, Emilia Vieira e Tarcia da Silva (2022) promovem uma análise provocativa das políticas curriculares propostas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e na Base Nacional Comum para a Formação Inicial de  Professores da Educação Básica (BNC-Formação), revelando uma problemática antiga na história da política curricular brasileira: a produção de uma sociedade baseada nas políticas neoliberais que beneficiam os setores privados da sociedade em detrimento das camadas populares a partir de uma política de homogeneização que nega, por exemplo, a identidade negra em favor de uma espécie de elogio à diversidade. Enaltecer a diversidade, inclusive adotando o termo “etnia” no lugar de “raça”, contribui para a substituição do debate sistemático sobre a diferença[7] e remete à superficialização segundo a qual a simples partilha da língua, tradições, territórios e monumentos históricos sejam suficientes para superar as relações de poder permeadas na questão racial. Em outras palavras, quando desconsidera os fatores emergentes da diferença racial, o enaltecimento da diversidade acaba por legitimar uma visão apaziguadora das desigualdades quase nos mesmos moldes daquela instituída pela ideologia da democracia racial.[8]

Porquanto existem diversos elementos no currículo que sejam facilmente percebidos, alguns deles encontram-se ocultos[9] nas malhas do universo simbólico propiciado pela cultura. No tecido social, a política atua, implicitamente, nas costuras culturais que amarram as relações sociais mediante o emprego de elementos ideológicos cuidadosamente selecionados nos discursos. Dessa forma, refletir sobre a articulação entre currículo e cultura não deixa de reverberar naquilo que a política tem, discretamente, operado no campo hegemônico do poder simbólico[10] (Bourdieu, 1989).

É neste sentido que os interesses econômicos despontam, ainda que escamoteados pelo véu da modernidade globalizada defensora da necessidade de um currículo global e eficiente cujos resultados sejam tecnicamente mensuráveis, interferindo nos aspectos culturais e políticos do currículo. Tanto a BNCC quanto a BNC-Formação respondem a determinadas influências econômicas oriundas de uma concepção mercadológica de educação (Caetano, 2020).

A sociologia educacional de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron é, sobretudo, uma sociologia política na medida em que o currículo apenas reproduz a dominação existente na sociedade, impondo o arbitrário cultural dominante sobre as classes subalternizadas (Bourdieu e Passeron, 1992). Esse arbitrário, configurado pelo poder simbólico embutido no capital cultural desenvolvido ideologicamente pela elite dirigente e vendido como elemento emancipador, produz não somente as barreiras necessárias para a manutenção desse poder nas mãos dessa elite como também “prepara” os estudantes para a sua ulterior função social, a saber, de sujeitos[11] subalternos nos meandros do circuito de consagração social. A violência simbólica engendrada pelo arbitrário cultural não se expressa imperiosamente pelo uso da violência física do Estado, apesar de este inegavelmente possuir horizonte de alcance para isso, uma vez que “implica uma relação de dominação de homens sobre homens apoiada sobre o recurso da violência legítima” (Weber, 2015); pelo contrário, a violência simbólica busca engendrar sutilmente, por meio da sobreposição de representações suprassensíveis, as concepções burguesas.

No fim das contas, o que está em jogo não são apenas os conteúdos que compõem o currículo escolar, mas a produção do cidadão de amanhã. Como uma linha de montagem, a política curricular poderá reproduzir a mesma sociedade desigual, com sua violência – física e simbólica.[12] Ou poderá, determinadas as condições do processo pedagógico constituído, produzir uma nova sociedade, a partir de outra lógica. Portanto, muito mais do que o aspecto meramente técnico ou teórico, o currículo concerne, especialmente, à construção da identidade dos sujeitos; se estes serão “dóceis” e “homogêneos” ou críticos e diferentes (Pires e Cardoso apud Santos et al., 2022), dependerá evidentemente da perspectiva política adotada pelo currículo.

Nesta perspectiva, torna-se necessário ir além das teorias tradicionais e críticas para analisar as relações de poder engendradas pelo currículo na contemporaneidade. Isso porque se nas teorias tradicionais o que estava em jogo era a produção mecanicista de mão-de-obra para o mercado capitalista, e nas teorias críticas estava em jogo denunciar e desnudar os meandros utilizados pelo capital para impor os seus interesses à educação em geral e à escola, em particular, nas teorias pós-críticas não somente as relações de poder serão denunciadas, mas especialmente as relações constitutivas da negação da diferença e da busca de construção de identidades homogeneizadas.[13] É por isso que as teorias pós-críticas se mostram tão relevantes, principalmente na contemporaneidade, após tantos trânsitos e migrações, diásporas forçadas, recrudescimento de racismos, xenofobia e recusa da diferença.

No Brasil, especificamente, não faz sentido um currículo que não reconheça as diferenças constitutivas do povo brasileiro,[14] resultantes de um longo processo de escravização, miscigenação, violência racial e sub-representação de sociedades negras e indígenas nos estamentos da sociedade política e mesmo na sociedade civil. A nação brasileira foi formada pelo Estado, de cima para baixo, e não o contrário. Dado esse contexto histórico, um currículo pluriversal não é apenas necessário, mas imprescindível. Não somente para reconhecer a diferença [racial, cultural, epistêmica], mas para valorizá-la na medida em que “identidade e diferença são, pois, inseparáveis” (Silva, 2014).

É desta maneira, aliás, que a Lei 10.639/2003 produz um sentido especial na teoria e na política curriculares, pois reconhece a existência de uma multiplicidade de formas metafísicas engendradas no seio da nação brasileira que reconfiguram a suposta identidade nacional. Identidade cindida, compartilhada no intercurso das culturas constituintes da autodesignada identidade brasileira; identidade esta que não passa de uma construção do Estado como elemento de unificação de um povo muito diverso cultural e racialmente (Martius, 2010; Freyre, 2013). Não é, pois, dessa identidade que se trata nas teorias pós-críticas, mas de identidades construídas através de uma série de encontros e desencontros culturais, reconhecimentos e desvios, tráfegos e tradições [inventadas] no seio de uma cultura.[15]

 

Não tomaremos o termo cultura como uma simples porção de conhecimentos historicamente construídos e socialmente sancionados – como fizemos anteriormente –, mas buscaremos pensá-lo como um fenômeno mais amplo e onipresente capaz de operar a alma-coletiva de um povo, transformando-se à medida que essa alma-coletiva encontra-se com outra (Guattari; Rolnik, 1996). Assim, resultante de um encontro entre diferentes culturas, brota-se uma cultura hibridizada, isto é, algo novo que não constitui nem uma cultura nem outra, mas formado a partir do encontro entre ambas, ainda que mantendo as condições fronteiriças do entrelugar cultural (Reis et al., 2024).

 

Desde as primeiras décadas do século XX, mas especialmente a partir dos anos 1930, buscou-se escrever uma história brasileira, como forma de produção de uma identidade nacional unificada, intimamente vinculada aos símbolos considerados indispensáveis para um país que pretende entrar na modernidade, mesmo que essa história silenciasse diversas manifestações culturais representadas por indivíduos subalternizados. Foi nesse contexto que o Brasil passou a ser explicado como o “paraíso das raças”, ou seja, o país em que as raças conviviam harmoniosamente, sem conflitos.[16] Freyre ([1933] 2013) incluiu em seus escritos as contribuições dos negros e indígenas, porém sem conferir a essas contribuições o caráter dinamizador da cultura que foi conferido às contribuições europeias. Temos, assim, um país cuja identidade nacional consolidou-se sobre os alicerces da miscigenação, mas que culturalmente filiava-se às bases greco-latinas, ou seja, europeias, como fator de civilização.[17]

Nesta perspectiva, ocorreu a negação – senão total, pelo menos parcialmente – das culturas subalternizadas em favor de um corpus cultural predominantemente eurocentrado.[18] Além disso, as relações de poder operaram para impor a cultura colonizadora como superior, transferindo esses traços ideológicos inclusive para o currículo escolar. Não fossem as diversas lutas políticas empreendidas pelos movimentos negro e indígena, o currículo estaria ainda cumprindo a função de disseminação e reprodução desse ideário eurocêntrico, excluindo por completo as contribuições culturais do povo negro.[19]

 

Se as relações de poder se materializam na vida social, no contexto de nação multicultural localizada no polo passivo da subalternidade, essas mesmas relações manifestar-se-ão nas ideologias integrantes do currículo; manifestar-se-ão nos documentos que regulamentam a educação formal e a escolarização obrigatória, a saber: nas diretrizes curriculares [o que se ensina], no Projeto Político Pedagógico [no posicionamento político das instituições frente ao conhecimento, à diversidade e à diferença], nas orientações didáticas [porque e a quem se ensina] e no processo pedagógico stricto sensu em sala de aula [o que os estudantes precisam conhecer] (Reis et al., 2024).

 

Configurações desta natureza reforçam a necessidade não só de uma teoria curricular, mas de uma política de currículo que considere os diversos encontros, trânsitos e diásporas na formação da identidade contemporânea, cuja representação social torna-se cada vez mais importante na medida em que as culturas se interconectam pela multiplicidade de maneiras de construir a identidade e a diferença. No que concerne a considerar os trânsitos e diásporas decorrentes do processo migratório mundial envolve ultrapassar o modelo teórico curricular puramente fundamentado na categoria classe, recorrendo a categorias implicadas no contexto multicultural que envolve as relações no mundo globalizado, pós-moderno.

Os termos “multicultural” e “multiculturalismo”, neste contexto, evocam respectivamente duas significações que precisam ser cuidadosamente delineadas. O primeiro concerne a uma realidade cultural abrangente e imposta desde a origem da nação brasileira, cujo amparo encontra-se na condição diversificada de manifestações culturais existentes neste território subjetivo compartilhado. Relaciona-se com a multiplicidade de manifestações culturais divergentes, sendo algumas mais valorizadas pela cultura oficial e pela identidade nacional que outras; mas todas partilham o mesmo terreno concreto da convivência nacional – convivência nem sempre harmoniosa. Na qualidade de elementos que convivem, ainda que conflituosamente, essas culturas encontram meios de sobreviver na medida em que compartilham do mesmo terreno e partilham referências que, em contato com outras manifestações, modificam-se, formulando o descentramento das identidades culturais desses diferentes ‘Brasis’. O segundo relaciona-se, obviamente, com um paradigma de pensamento que se desdobra em aspectos políticos, tanto de resistência social como de governança política (Hall, 2003).

Considerando os sentidos acima expostos, o currículo e a escola são o espaço por excelência de encontro das múltiplas culturas, raças e histórias; de cruzamentos, conflitos, tensões e atravessamentos que colocam a diferença diante do espelho produtor de identidades híbridas e descentradas condizentes com a pós-modernidade (Hall, 2006). Afinal, as relações culturais são construídas na história e, consequentemente, não são relações idílicas, mas atravessadas pelo poder, pela hierarquização social que marca determinados preconceitos em relação a determinados grupos (Candau, 2013). As identidades constituídas em resultado dessas relações [de saber e poder] são constituídas precisamente nas fronteiras do poder, no entrelugar da hegemonia desse poder simbólico. Em outras palavras, as identidades construídas na relação com o poder o são justamente nos limites impostos pela hierarquização. Neste sentido, apenas exaltar a diversidade, como se o convívio social fosse harmonioso não impede a existência de conflitos; pelo contrário, a diversidade não deve ser encarada simplesmente como uma coexistência concordante. Se o currículo focalizar exageradamente a diversidade, poderá deixar de perceber as relações de poder materializadas no chão da escola, cegando-se para a realidade concreta da desigualdade emergente quando as diferenças são hierarquizadas. Por isso, não se deve descartar o currículo como estruturado nas mesmas bases da cultura, estando a cultura, por sua vez, consistente com a produção de sentido dentro de um sistema de significação (Lopes e Macedo, 2011).

Nesta perspectiva, um olhar analítico levará em consideração a singularidade de cada grupo sociocultural inserido nesse universo multicultural que é o Brasil. Entretanto, observará criticamente as “relações de força” estabelecidas entre esses grupos, percebendo no interior da multiplicidade a dominação e o controle existentes (Lopes e Macedo, 2011). Que existe diversidade onde convive uma variedade de culturas, disso não restam dúvidas; mas é preciso perceber as relações intermediárias entre esses variados grupos. É nas hiâncias que residem as relações de poder; ou melhor, é nas hiâncias e desencontros que a hierarquização se faz presente. Se a teoria e, consequentemente, a política [que também é a prática] curricular não perceberem esses meandros quase invisíveis, todo o esforço de uma formação intercultural estará perdida.

Mas o que é interculturalidade? Catherine Walsh (apud Candau, 2013) a define como:

 

 

É neste contexto que o conceito de interculturalidade abre uma avenida para as teorias do currículo, produzindo um novo caminho para as práticas curriculares. Não somente os percursos formativos se abrem para a possibilidade de uma nova compreensão do lugar do conhecimento e das múltiplas culturas no processo educativo, como também novas possibilidades de movimento mostram-se eficazes para se construir uma nova sociedade. Contudo, se são encontradas dificuldades na possibilidade de reformulação curricular, esta ocorre porque existem forças discursivas que continuam operando sobre a escola e a sociedade, impondo seus valores e ideologias e definindo sentidos. Essas forças discursivas, embora suprassensíveis, contêm a mesma matriz significante disseminada durante o colonialismo. Funcionam por intermédio do mesmo poder simbólico, já discutido anteriormente, com o seu arbitrário cultural dominante, que constrói a compreensão da realidade a partir dos fundamentos ideológicos dos grupos ou culturas dominantes. Agora, todavia, o paradigma de dominação encontra-se representado pela colonialidade. Na verdade, essa força discursiva jamais abandonou a realidade educacional brasileira, tendo estado vigente pelo menos desde a década de 1930, quando a identidade nacional passou a ser pensada na condição de uma presumida diversidade representada pelo mito ideologicamente construído da democracia racial como uma ficção fundacional amparada na coexistência pacífica das três raças. A reprodução social do currículo determinada no nível do poder simbólico demonstra que o currículo há muito tempo vem sofrendo investidas ideológicas disfarçadas de segmentos da cultura.

Desta forma, a subjetividade construída através da produção cultural de significantes leva o sujeito a identificar-se passivamente com o discurso do Outro, introjetando seus valores socioculturais. Fanon (2008) já denunciava essa realidade quando, no século passado, carregava de potência anticolonial a sua caneta revolucionária. A denúncia fanoniana demonstrou a relevância fundamental da linguagem como instrumento de transmissão ideológica e produção de realidades simbólicas. Se “falar é existir absolutamente para o outro” (Fanon, 2008), isso significa que a construção de sentidos, no interior da colonialidade, manifesta-se através do uso do poder simbólico embutido nas tecituras do discurso hegemônico construtor de identidades. É neste sentido que a cultura molda o currículo e o currículo, por sua vez, molda a identidade.[20]

Uma abordagem intercultural pluriversalista do currículo torna reveladores os traços conectivos das diferentes culturas na medida em que “é a linguagem que institui a diferença” (Lopes e Macedo, 2011), estabelecendo as relações identitárias entre o “eu” e o “outro”, entre identidade e diferença, como nascedouro da imaginária singularidade radical erigida sobre os alicerces do poder discursivo representado pela significação constitutiva do universo simbólico da cultura.

 

 

CONCLUSÃO

 

O campo de investigação do currículo sofreu diversas modificações no decurso do tempo. A chamada Sociologia da Educação tinha o propósito de “planejar “cientificamente” as atividades pedagógicas” (Moreira e Silva, 2005); surgia, assim, a teoria tradicional do currículo, cujo objetivo era ajustar a “máquina” escolar para o sistema de produção capitalista, que começava a operar a todo vapor. As preocupações desses pensadores do currículo tradicional – dentre eles, Bobbitt – estavam conectadas majoritariamente às questões de ensino-aprendizagem, avaliação, metodologia e didática, organização e racionalização, planejamento e eficiência pedagógica.

Como a escola bobbittiana tinha a fábrica como modelo e a administração científica tayloriana como inspiração teórica, a sua teoria curricular não apenas descreveu esse fenômeno denominado de currículo como também procurou contribuir para a sua eficiência pedagógica. Silva (2016) afirma que do ponto de vista estrito da noção de teoria, Bobbitt teria descrito o que é verdadeiramente o “currículo”.

Posteriormente, com as mudanças sociais ocorridas no seio do capitalismo e com o avanço das teorias marxistas, surgiram as teorias críticas do currículo com o objetivo de denunciar as relações de poder, a hegemonia da ideologia burguesa e a reprodução cultural vigente nas escolas. Para os pensadores críticos do currículo – dentre os quais, Bourdieu –, a escola e o currículo funcionam como uma espécie de aparelho reprodutor das desigualdades de classe, no qual o arbitrário cultural dominante é imposto sobre as classes dominadas com a finalidade de perpetuar a organização social capitalista com suas desigualdades decorrentes.

Mais recentemente, outras mudanças ocorreram no mundo. As migrações, os fluxos e trânsitos tornaram as sociedades menos homogêneas e, portanto, constituídas de uma multiplicidade de culturas que convivem – quase nunca harmoniosamente – no mesmo terreno geoepistêmico. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, as sociedades tornaram-se múltiplas racial e culturalmente, o que acarreta desafios, inclusive, à atuação do Estado no tocante às políticas educacionais. No Brasil, a diversidade racial e cultural vem desde o período colonial, o que acabou por produzir diversas teorias raciais como elementos para a construção de uma identidade nacional baseada numa cultura comum. Na década de 1930, Gilberto Freyre ([1933] 2013) publicou sua obra mais importante: Casa-grande & Senzala. A referida obra descreve o Brasil como um “paraíso das raças”, já que segundo o pernambucano, havia uma convivência pacífica e harmoniosa entre os estratos raciais. Aliás, o mito da democracia racial, como ideologia nacional dominante, surge a partir dessa teoria freyreana.

Todavia, os fluxos e diásporas tornaram necessária uma nova teorização concernente ao campo do currículo, demonstrando principalmente a multiculturalidade presente num mundo cosmopolita. Esses novos pensadores do currículo, denominados de pós-críticos, passaram a dirigir o seu olhar para elementos como identidade, diferença, subjetividade, representação e discurso. Considerando a realidade racial brasileira, essa teoria tornou-se incontornável para a construção de um currículo pluriversal.

Embora não invalidem completamente as elucubrações críticas, as teorias pós-críticas partem majoritariamente do terreno da linguagem como construtora de sentido. Assim, para o pós-estruturalismo, a cultura produz o currículo e este, por sua vez, produz a identidade.  Na perspectiva de Lopes e Macedo (2011), “o currículo age como cultura e a cultura é a própria produção de sentidos dentro de um sistema de significações”.

Assim, pensar o sujeito inserido na cultura e no currículo implica analisar não somente as relações de poder, mas também de saber; porque o sujeito, nas teorizações pós-críticas, não é um simples utilizador da linguagem, mas mais do que isso, é “algo inventado por ela” na medida em que participa de uma (ou mais de uma) cultura, tendo constantemente a sua identidade descentrada, isto é, deslocada para fora do centro por meio dos antagonismos entre as diversas culturas, que são – repita-se – sistemas de significação e construção da identidade (Lopes e Macedo, 2011).

Conclui-se, portanto, que o conceito de currículo formulado neste artigo teve a finalidade de provocar uma reflexão sobre a amplitude do processo educacional; essa amplitude inclui os aspectos políticos, econômicos e culturais que se desdobram em ideologias [políticas, raciais, sociais etc.] que antagonizam com a finalidade de defender os interesses de cada grupo. E por isso, este artigo defende a interculturalidade crítica como elemento fundamental do currículo pluriversalista na contemporaneidade. Contudo, todo esse processo não ocorre apenas nos metros quadrados da sala de aula, na relação interpessoal entre professor e estudantes. Pelo contrário, começa na definição curricular que o Estado propicia aos sistemas de ensino; e essa definição realizada pelo Estado – como é o caso da BNCC e BNC-Formação – diz muito sobre de que lado o Estado está nessa disputa, haja vista que defender a diversidade não é condição suficiente para a valorização da diferença – afinal o mito da democracia racial supostamente defendia a diversidade racial e cultural brasileira, mas sem o verdadeiro caráter problematizador das relações de poder.

 

 

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Revista Ouricuri, Juazeiro, Bahia, v.15, n.1. 2025, p.03 - 21. jan./jun., Publicação contínua http://www.revistas.uneb.br/index.php/ouricuri | ISSN 2317-0131


[1] Nossos agradecimentos à Profª Drª Elis Cristina Fiamengue pelas recomendações de leituras que possibilitaram a construção deste artigo.

[2] Fazendo uma analogia com a maratona, o currículo não somente representa o percurso previamente determinado para a competição, mas também os movimentos progressivos que o maratonista precisará desenvolver para alcançar a linha de chegada.

[3] Para informações adicionais sobre as tipologias que poderão ser de ajuda na compreensão do conceito ampliado de currículo como percurso e como movimento, leia o artigo O currículo entre a pluriversalidade e o epistemicídio: uma reflexão introdutória, no qual Reis e Oliveira (2023) traçam considerações sobre “currículo prescrito”, “currículo planejado”, “currículo organizado”, “currículo em ação” e “currículo avaliado”.

[4] Essa questão tem suscitado muitos debates, especialmente entre aqueles que negam a universalidade dos saberes burgueses europeus e os adeptos da Pedagogia Histórico-Crítica. Saviani (2011) explica que dizer que um saber é universal significa apenas reconhecer a sua aderência conceitual e epistemológica com a objetividade, baseando-se em leis que regem a existência de determinado fenômeno. Outrossim, se “o saber escolar, em nossa sociedade, é dominado pela burguesia, nem por isso cabe concluir que ele é intrinsecamente burguês.” Por outro lado, a inclusão da história e cultura afrobrasileira no currículo oficial só ocorreu mediante fortes cobranças dos movimentos negros e de intelectuais negros comprometidos com um currículo pluriversal. Essa obrigatoriedade deu-se apenas a partir da Lei n. 10.639/2003. Assim, se os saberes universais não são necessariamente burgueses, esses saberes mostraram-se hegemônicos no currículo, deixando no almoxarifado do esquecimento a cultura negra, tão presente na história brasileira desde a fundação deste país.

[5] No campo propriamente epistemológico, o currículo também é pensado a partir de diversas teorias originadas de diferentes perspectivas teóricas (cf. Silva, 2001; Silva, 2016).

[6] Não é incomum depararmo-nos com uma concepção de currículo como um simples artefato técnico organizador do cotidiano escolar (cf. Lopes e Macedo, 2011). Essa tecnicidade através da qual o currículo é muitas vezes enxergado não passa de uma lente ideológica que mascara os interesses embutidos em determinadas práticas [políticas] curriculares. Uma vez concebido como um artefato técnico, as verdadeiras intenções ficam escamoteadas sob a superfície da ideologia e os indivíduos não conseguem perceber as relações de poder e as lutas socioculturais engendradas no seu interior.

[7] Discutiremos adiante os conceitos de diferença e diversidade, articulando-os com os campos do currículo e da cultura.

[8] O mito da democracia racial será retomado adiante para uma análise mais detalhada.

[9] A noção de “currículo oculto” não representa necessariamente uma teoria sistematizada no campo curricular, embora estivesse implícita na teoria curricular de Bowles e Gintis, designando com maior ênfase as relações sociais em detrimento dos conteúdos explícitos, assim como na teoria althusseriana de ideologia (Silva, 2016).

[10] O poder simbólico, na teoria sociológica de Bourdieu, apresenta-se como o poder de construção da realidade social por meio da manipulação dos sistemas simbólicos. Nas palavras do sociólogo, o poder simbólico é “um poder de construção da realidade que tende a estabelecer [...] o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)” (Bourdieu, 1989).

[11] Curiosamente, na língua portuguesa a palavra “sujeito” possui semântica contraditória: em determinado momento, o sujeito é ativo, portanto, agente da ação, em outro é passivo, isto é, sofre a ação, dependendo do verbo que o acompanha. “Ser sujeito de” difere semanticamente de “estar sujeito a”. No caso em análise, o indivíduo está sujeito à imposição do arbitrário cultural dominante e do poder simbólico que esse arbitrário representa.

[12] A expressão “linha de montagem” remete ao fordismo, modelo inspirado na administração científica industrial tayloriana que buscava maior eficiência produtiva. Adepto da teoria curricular tradicional, Bobbitt queria transferir o modelo taylorista de produção para a escola (Silva, 2016).

[13] Exprimindo desta forma, fica a impressão de que as teorias curriculares teriam evoluído linearmente da tradicional para a crítica e da crítica para a pós-crítica. Todavia, Lopes (2013) rejeita essa ideia, propondo a noção de hibridismo teórico, isto é, as teorias vãos se constituindo através dos pontos de contato, das articulações e aproximações à medida que buscam responder a problemas do contexto sociocultural vigente em cada época.

[14] Em artigo provocativo e elucidativo, Assis Leão da Silva e Clesivaldo da Silva (2021) demonstram que a Base Nacional Comum Curricular contempla as relações étnico-raciais apenas para atender a determinações jurídicas, sem apresentar, porém, elementos para uma educação antirracista.

[15] Clifford Geertz compreende a cultura como um sistema simbólico criado pelos seres humanos com a finalidade de produzir um sentido para a própria existência e para a existência do mundo à sua volta. Assim, na concepção do antropólogo, “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (Geertz, 2008).

[16] Em contraposição à situação estadunidense, que naquele período enfrentava uma violenta segregação racial, a convivência racial supostamente harmoniosa no Brasil não chegava a representar uma democracia racial. Aliás, a expressão democracia racial só seria utilizada por Freyre na década de 1960, embora a noção estivesse presente na sua clássica obra Casa-grande & senzala, publicada originalmente em 1933.

[17] Freyre dedica um capítulo inteiro para comentar as contribuições dos indígenas à cultura brasileira e dois capítulos nos quais comenta as contribuições negras. Não obstante relate acerca da cultura desses povos, seu interesse parece encontrar-se ligado primariamente à questão da miscigenação racial na formação do que designou de família brasileira.

[18] Na década de 1930, sob o pretexto de evitar a deformação étnica do país, o Estado brasileiro passou a determinar quais imigrantes eram indesejáveis. Dentre estes estavam: negros, judeus e japoneses (Carneiro, 2018). Todavia, contraditoriamente, foi também naquela década (1937) que a prática da capoeira foi legalizada no Brasil, após Getúlio Vargas ter ficado impressionado com uma apresentação que assistiu (Trombini e Galindo, 2024).

[19] A Lei 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afrobrasileira. Cinco anos depois, a Lei 11.645/2008 incluiu a obrigatoriedade dos estudos sobre a história indígena em todas as escolas do país.

[20] Desde a década de 1930 diversos intelectuais negros passaram a se organizar, vindo a disputar espaço na imprensa brasileira. A Frente Negra Brasileira (1930), propagava a necessidade de “unificar, educar e orientar a população negra para sair da condição de “inferioridade” a que estava submetida” (Silva, 2009). Em 1936, por exemplo, a FNB registrou-se como partido político, mas acabou sendo fechada pela ditadura do Estado Novo (Santos, 2009). Esses intelectuais negros ocupavam a imprensa publicando artigos em jornais; e, no campo propriamente político, Abdias Nascimento tornou-se deputado federal e depois senador, levando para o Congresso Nacional as pautas do povo negro. Desta forma, os progressos na teoria e na política curriculares, ocorridos apenas recentemente, dependeram de todas essas articulações nos campos político, ideológico e cultural, que culminaram na aprovação da lei 10.639/2003.