O RECAATINGAMENTO EM COMUNIDADES TRADICIONAIS DE FUNDO DE PASTO: UMA ANÁLISE DOCUMENTAL
1Faculdade de Petrolina (Facape)
2,3Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
*Autora para correspondência rosi.rocha@facape.br
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-4106-8085
Resumo: Em 2024 o Recaatingamento desenvolvido pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) completou 15 anos. Ao longo desse período, o referido instituto elaborou materiais em diversos formatos que pudessem subsidiar e/ou relatar as ações desenvolvidas. Assim, este estudo tem o objetivo de analisar os documentos produzidos pelo Irpaa acerca do Recaatingamento. De abordagem qualitativa, a metodologia empregada foi a análise documental. Foram localizados 10 documentos entre cartilhas e relatórios. Como resultados o estudo aponta que algumas estratégias precisaram ser adaptadas ao longo do tempo, bem como alguns desafios. As conclusões apontam a capacidade de articulação institucional por expandir o número de comunidades recaatingueiras.
Palavras-chave: Caatinga; Convivência com o Semiárido; Irpaa; Recuperação de áreas degradadas.
RECRAPPING IN TRADITIONAL PASTURE COMMUNITIES: A DOCUMENTARY ANALYSIS
Abstract: In 2024, the Recaatingamento project developed by the Regional Institute for Appropriate Small-Scale Agriculture (Irpaa) completed 15 years. During this period, the institute has produced materials in various formats that could support and/or report on the actions developed. Thus, this study aims to analyze the documents produced by Irpaa about Recaatingamento. With a qualitative approach, the methodology used was documentary analysis. Ten documents were located, including booklets and reports. The study's results indicate that some strategies needed to be adapted over time, as well as some challenges. The conclusions point to the capacity of institutional articulation to expand the number of recaatingueira communities.
Keywords: Caatinga; Coexistence with the Semiarid Region; Irpaa; Recovery of degraded areas.
RECUPERACIÓN EN COMUNIDADES DE ANTECEDENTES TRADICIONALES: UN ANÁLISIS DOCUMENTAL
Resumen: En 2024, el Recaatamento desarrollado por el Instituto Regional de Pequeña Agricultura Apropiada (Irpaa) cumplió 15 años. A lo largo de este período, el citado instituto creó materiales en diferentes formatos que pudieran sustentar y/o informar sobre las acciones desarrolladas. Por lo tanto, este estudio tiene como objetivo analizar los documentos producidos por Irpaa sobre el Recaitamento. Con un enfoque cualitativo, la metodología utilizada fue el análisis documental. Se localizaron 10 documentos, entre folletos e informes. Como resultado, el estudio señala que algunas estrategias tuvieron que adaptarse con el tiempo, así como algunos desafíos. Las conclusiones apuntan a la capacidad de articulación institucional ampliando el número de comunidades recaatingueiras.
Palabras clave: Caatinga; Convivencia con el Semiárido; Irpaá; Recuperación de zonas degradadas.
INTRODUÇÃO
Realizado no semiárido baiano há mais de dez anos pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), o Recaatingamento é comumente entendido como uma prática de recuperação de áreas degradadas na Caatinga, desenvolvido com Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto (CTFP). Recentemente foi afirmado por Santos (2024) como uma ecometodologia apropriada à Convivência com o Semiárido Brasileiro, por ser mais que uma técnica isolada de reflorestamento e por agregar uma série de fatores que beneficiam o bioma como um todo.
As primeiras comunidades que aderiram ao Recaatingamento se localizam em 07 municípios distintos do estado da Bahia, no Território Sertão do São Francisco (TSSF) sendo eles: Canudos, Casa Nova, Curaçá, Juazeiro, Sento Sé, Sobradinho e Uauá. De acordo com Martins (2022, p. 2):
O Recaatingamento é uma metodologia de mitigação dos efeitos da desertificação e do aquecimento global. Visa a manutenção dos serviços ecossistêmicos associados, como a regulação climática, o sequestro e fixação de carbono e a conservação e recuperação do bioma Caatinga, que é a base da vida, produção e reprodução das comunidades agropastoris e extrativistas do semiárido brasileiro. Essa metodologia é fruto do Projeto Recaatingamento que, desde 2010 tem trabalhado prioritariamente com as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto no semiárido da Bahia, capacitando os produtores (as) a serem protagonistas na conservação e recuperação do ambiente em que vivem.
Sobre isso, Martins, (2022) explica que a estrutura teórico-prática do Recaatingamento se sustenta em cinco linhas de atuação fundamentais à sustentabilidade e à ampliação da capacidade de resiliência das comunidades ou grupos participantes.
De modo geral as estratégias do Recaatingamento desenvolvido pelo Irpaa consistem em firmar uma parceria com uma CTFP, fazer o cercamento de uma área degradada dentro da comunidade para recuperá-la; desenvolver ações concomitantes de educação ambiental contextualizada para convivência com o Semiárido; implementar práticas que possibilitem melhorias socioambientais na comunidade, capacitando-a para que seja protagonista na conservação do ambiente ao passo em que desenvolve mudanças no manejo de rebanho e do fundo de pasto.
São centrais no Recaatingamento as técnicas de contenção de erosão e de técnicas e enriquecimento biológico do solo. Ações de conservação da Caatinga em pé, principalmente pelo plano de manejo da área coletiva. Incentivo a atividades econômicas para além da produção de carne. Ações sociais como abastecimento de água e saneamento; bem como a construção de fogão ecológico (Santos, 2024).
Assim, se no início do Recaatingamento havia 7 comunidades participantes, todas localizadas no TSSF, ao final de 2023 já se somavam 31 comunidades, abrangendo 3 diferentes Territórios de Identidade no estado da Bahia, pois além do TSSF, passaram a fazer parte os territórios Piemonte da Diamantina e Piemonte Norte do Itapicuru.
Desse modo, o conjunto de ações comportadas na metodologia do Recaatingamento converge para percebê-lo dentro de uma filosofia agroecológica que chega às comunidades por meio da Ecopedagogia. As ações são produzidas nas e com as comunidades de modo dialético e dialógico, percebendo suas necessidades enquanto sujeitos de direitos à dignidade. Ou seja, o trabalho de Recaatingamento visa atingir resultados a médio e longo prazo, mas o alcance desses resultados passa necessariamente por uma série de fatores, especialmente no que tange à educação e políticas públicas.
Partindo de tais pressupostos, este artigo analisa documentos que registram o Recaatingamento enquanto experiência pioneira em um bioma ímpar em todo o mundo. Para tanto, o presente trabalho resulta de uma análise documental de abordagem qualitativa com cunho descritivo, a qual teve como objetivo analisar os documentos produzidos pelo Irpaa acerca das experiências do Recaatingamento.
Assim, realizou-se uma pesquisa na base de dados do Irpaa, buscando todos os documentos produzidos pelo instituto acerca do Recaatingamento, sendo aceitos para a análise os documentos diretamente ligados ao Recaatingamento desenvolvido pelo Irpaa, em qualquer período ou idioma. Como metodologia de análise dos dados foi utilizada a Análise Documental embasada em Cellard (2014) e a Análise Interpretativa, com base em Severino (2018).
CATEGORIAS FUNDANTES
Para o desenvolvimento deste trabalho foram elencados alguns conceitos essenciais de sua estrutura teórico-filosófica. Nesse sentido, faz-se necessário compreendê-los para que sejam interpretadas as categorias de análise, as quais se estruturam em categorias fundantes desse discurso, para, posteriormente, tecer a apresentação dos resultados obtidos na pesquisa e as discussões deles resultantes.
Para tanto, foram eleitas três categorias, as quais são condições sine qua non para a compreensão do Recaatingamento enquanto ecometodologia apropriada à Convivência com o Semiárido Brasileiro.
Caatinga
Fruto de um processo evolutivo de centenas de milhares de anos (Souza, 2020) a Caatinga é um bioma que não só é pouco estudado, como é carente de políticas públicas para a sua conservação. Com mais de 860mil km2 e uma população de 27milhões de habitantes, ela possui menos de 5% unidades de conservação de proteção integral e já teve cerca de 80% de seus ecossistemas originais alterados segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Brasil, 2024).
Já é um lugar-comum afirmar que ela é o único bioma que só existe no Brasil, porém, ainda não foi reconhecida legalmente como patrimônio brasileiro e sequer possui qualquer menção direta na legislação brasileira. Com base em uma pesquisa nos dispositivos legais de proteção ambiental, a Figura 2 aponta quais as legislações foram consultadas, de modo que é possível afirmar que nenhuma delas faz menção direta à proteção da Caatinga.
Figura 1: Linha do tempo das legislações ambientais.
Fonte: autoria própria.
Na verdade, somente no final de 2023 foi aprovado Projeto de Lei (PL nº 4623/2019 e seus apensados) que visa criar uma política para a proteção e uso sustentável da Caatinga, entretanto, este ainda será avaliado em quatro comissões. Ainda assim, entende-se que essa conservação precisa ser pensada com base em uma ecologia do Bem Viver, por meio da qual têm valor todas as suas formas de vida e onde seus bens naturais sejam reconhecidos como valores em si e não como recursos a serem explorados para a satisfação das necessidades humanas (Acosta, 2016).
Acrescenta-se a isso, o fato que é comum usar nominalmente Caatinga no singular, porém este é um bioma diversificado e que apresenta diversas nuances, pois se insere em territórios diversos como a Chapada do Araripe, Chapada Diamantina, Planalto da Borborema, Depressão Sertaneja etc. Assim, como está presente em diferentes localidades e cada localidade apresenta características apropriadas, também é razoável nomear Caatingas, no plural, como o faz Siqueira-Filho (2012).
Por ser diversa enquanto palco das vivências de distintos povos e comunidades tradicionais, vai ao longo de séculos tecendo novas dinâmicas sociais, especialmente porque tanto influencia na produção da existência de suas populações, quanto por ser influenciada por elas. Destarte, se historicamente as populações caatingueiras constituem modos de vida próprios, esses modos se dão em face de uma Ecologia Humana produzida singularmente no território palco da Caatinga, que é o Semiárido Brasileiro. Afirma-se, nesse sentido, que o termo Semiárido não opera exclusivamente como um tipo de clima, mas constitui-se também como território intrínseco das identidades caatingueiras, sendo o Semiárido com maior densidade populacional do mundo (Souza, 2020).
Convivência com o Semiárido
Ao longo de décadas, o Semiárido brasileiro já recebeu diferentes delimitações. Da primeira delimitação que ocorre com a Lei 7.827/89 a qual cunha o conceito de Semiárido no Brasil, até a mais recente em outubro de 2024, alguns estados e seus respectivos municípios foram incluídos ou excluídos dessa lista. Atualmente, a delimitação é composta por 1.477 municípios, considerando todos os estados da região Nordeste do Brasil, mais os estados de Minas Gerais e Espírito Santo que fazem parte da região Sudeste, segundo o Instituto Nacional do Semiárido (2024).
Tais delimitações visam a criação e/ou ampliação de políticas públicas e especialmente recursos advindos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), os quais são destinados a projetos, políticas e ações diversas no que tange à gestão agrária, hídrica ou outras pastas que envolvam as condicionantes desse território.
Isso não significa, entretanto, que tais ações sejam suficientes para o enfrentamento das questões estruturais que enredam as problemáticas do Semiárido Brasileiro. Na verdade, pesquisas a nível internacional têm ao longo do tempo denunciado a dimensão política das grandes fomes que são associadas às secas prolongadas que atingem o Semiárido Brasileiro, a exemplo do trabalho de Cuniff (1970) e Davis (2022).
Essas acabam por endossar a literatura que já se consolidou no Brasil sobre essa temática (Rech, 1989; Silva, 2003; Silva, 2010; Santana & Santos, 2020), as quais denunciam os riscos de um projeto societário embasado na noção de terra arrasada, uma vez que, sendo as estiagens fenômenos cíclicos e previsíveis, sua incidência não deveria ser nenhuma ‘surpresa’ e tampouco dever-se-ia pensar em combatê-la ou nomeá-la como um evento catastrófico. Para Schisteck (2013) uma catástrofe nada mais é que a negligência do Estado, uma vez que não há como impedir forças naturais, mas é possível conviver com tudo isso se, na medida certa, forem aplicadas as políticas públicas e ao mesmo tempo, reestruturada a política agrária vigente.
Desse modo, não há como renunciar à emergência Convivência com o Semiárido respaldada pelo Bem Viver e não pelo discurso do desenvolvimentismo, pois este, por estar embasado em uma geopolítica colonialista e eurocêntrica acaba por hierarquizar as pessoas em desenvolvidos-subdesenvolvidos (Silva, 2010), enquanto aquele pressupõe uma busca fundamental do “[…] equilíbrio entre a Natureza e as necessidades dos seres humanos […]” (Acosta, 2016, p. 126) uma vez que as pessoas também devem ser entendidas dentro dos elementos que compõem a Natureza.
Nessa compreensão estão sistemas desenvolvidos por diversos povos e comunidades tradicionais espalhadas pelo mundo e o Semiárido Brasileiro também é palco dessas vivências através das Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto.
Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto
A partir do processo de colonização, ainda no século XVI o português Martim Afonso de Sousa foi o responsável por promover as primeiras distribuições de sesmarias no Brasil. Esse sistema de distribuição concedeu grandes extensões de terras do atual estado da Bahia a Garcia D’Ávila e Guedes de Brito, dois nomes fundamentais para a formação social no interior desse estado, constituindo-se os domínios das Casas da Torre e da Ponte, respectivamente. Os quais, ao longo de anos instalaram nesses imensos latifúndios, seus grandes currais para a criação de gado.
Ditado pela interiorização da bovinocultura, esse processo de colonização se deu com a expropriação de povos originários, do ecocídio da Caatinga e, posteriormente, devido à soma de grandes secas e negligência política, o genocídio de suas gentes (Davis, 2022).
Com o fim das sesmarias, devido à ausência de pessoas que pudessem herdar diretamente os direitos das Casas da Torre e da Ponte, o Brasil Imperial ficou 28 anos (1822-1850) sem uma legislação própria para o sistema fundiário (Torres, 2013). Esse período favoreceu ao que foi chamado de “livre apossamento” no qual as pessoas, representadas pela figura do vaqueiro, que antes eram responsáveis por cuidar do patrimônio dessas duas casas, passaram a ocupar de forma permanente as terras. Além disso, até a criação da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, outras pessoas também constituíram posse do que ficou conhecido como terras devolutas e passaram a desenvolver, ao longo de séculos, um modelo de relação menos danoso à Caatinga que seu predecessor, constituindo-se aí, o sistema fundo de pasto (Silva, 2017).
Apesar de serem atravessadas por heranças coloniais, é possível afirmar que há nessas comunidades, saberes inerentes à Convivência com o Semiárido. Nesse sentido, as Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto (CTFP) são atualmente reconhecidas como guardiãs da Caatinga (Fortini, 2022), uma vez que desenvolveram assumidamente “um jeito de viver no sertão” (Articulação, 2003).
Embasadas em um sistema produtivo e uma identidade política, é possível diferenciar fundo de pasto e Fundo de Pasto. Uma vez que o primeiro se refere a um sistema agrossilvipastoril em terra comunal, cuja estrutura social se dá a partir de relações de parentesco e/ou compadrio; o segundo é a afirmação da luta por terra e território enquanto comunidades tradicionais da Caatinga (Santos; Santos; Santos, 2023).
Ainda assim, é necessário afirmar que não se pode romantizar a produção em fundo de pasto, porquanto este como qualquer outro sistema produtivo, também é passível de ações inadequadas ao bioma como o superpastejo de caprinos e ovinos, as práticas remanescentes da criação bovina, cuja herança é a queima em larga escala da flora para a rebrota servir como pasto, bem como a caça e extrativismo predatórios, além das queimadas para os roçados.
Com base na existência de algumas dessas práticas, somado à eminência das mudanças climáticas, o Irpaa, elaborou um projeto em parceria com a Petrobras Ambiental e tem atuado desde 2009 para fomentar com as CTFP, práticas contextualizadas com o Semiárido Brasileiro com vistas à conservação da Caatinga, o chamado Recaatingamento.
METODOLOGIA
O conjunto de métodos empregados em uma pesquisa garantem que esta atenda ao rigor da cientificidade necessária ao que se propõe, sem que se distancie da beleza que é produzir conhecimento para efetivamente amparar os sujeitos a quem esse conhecimento se destina (Santos, 1997).
Nesse sentido, buscou-se realizar um estudo com uma estrutura metodológica que possibilite a replicação de todas as suas etapas. O que deve ser levado em conta, todavia, é a característica simbólica que os estudos qualitativos carregam (Deslauriers; Kérisit, 2014). Outrossim, este estudo é de abordagem qualitativa e de cunho descritivo.
Para tanto, cabe descrever que a base de dados do Irpaa foi escolhida: i) por ser esse o instituto que idealizou e realiza o Recaatingamento; ii) por ser o produtor dos materiais didáticos que foram utilizados nas ações do Recaatingamento; iii) por ser diretamente responsável pela elaboração dos relatórios acerca do Recaatingamento que realiza.
Os documentos acessados foram coletados no próprio instituto, de modo presencial em dezembro de 2023, após apresentação da proposta de pesquisa ao presidente do Irpaa e do coordenador do Recaatingamento. Os documentos digitais foram armazenados em um pen drive e para os documentos físicos foram disponibilizadas cópias impressas de cada exemplar.
Para a análise, tanto os documentos em formato digital como físico foram passíveis de inclusão, considerando-se, entretanto, que alguns critérios foram elencados para a inclusão ou exclusão dos resultados da pesquisa. Nesse sentido, os critérios adotados para a inclusão ou exclusão de materiais localizados na busca estão descritos no Quadro 1.
Quadro 1: Critérios para inclusão ou exclusão de documentos
Critérios de Inclusão | Critérios de Exclusão |
CI1: Ser documento completo | CE1: Não ser referente ao Recaatingamento desenvolvido pelo Irpaa |
CI2: Ter acesso aberto/disponível | CE2: Não ser produzido pelo Irpaa ou, pelo menos, em parceria com ele |
Fonte: autoria própria.
Após a aplicação dos critérios de inclusão ou exclusão, seguiu-se a etapa de leitura do título, sumário e introdução. Após essa etapa foram verificadas a relevância do trabalho e coerência com os objetivos do presente estudo e em seguida realizou-se a pré-análise.
Em posse dos arquivos seguiram-se as etapas da análise documental apresentadas por Cellard (2014), o qual recomenda que sejam consideradas: descrição do contexto de elaboração do documento, da autoria do documento, da autenticidade e confiabilidade do texto; a natureza do texto; os conceitos-chave e a lógica interna do texto. Desse modo, foi realizada uma primeira leitura de contato do conteúdo completo.
Posteriormente, foi realizada a leitura analítica/interpretativa com base em Severino (2018) e, dessa vez, com a intenção de localizar os pressupostos da análise documental, entendendo os critérios fundamentais para tal, uma vez que estas constituem-se como forma de garantir que a pesquisa se construirá sobre uma sólida base acadêmica, não incorrendo no erro de debruçar-se sobre um documento cuja procedência não seja autêntica e confiável (Lima Júnior et al. 2021).
RESULTADOS
Tabela 01: Documentos incluídos na análise
Título | Tipo e Formato | Objetivo | Ano | Código |
Manejo sustentável da Caatinga |
Cartilha impressa | Ajudar as pessoas que participaram das capacitações de agentes ambientais a relembrarem os assuntos estudados |
2011 |
D1 |
Educação ambiental no Semiárido Brasileiro: cuidando da Caatinga para preservar a vida |
Cartilha impressa | Atuar como material paradidático na educação ambiental nas escolas das comunidades participantes do Recaatingamento |
2011 |
D2 |
Recaatingamento com comunidades agropastoris e extrativistas: relato da experiência com Recaatingamento com Comunidades de Fundo de Pasto |
Relatório impresso | Relatar o caminho percorrido pelo Projeto Recaatingamento com as comunidades, as ações realizadas, ideias, desafios, resultados e indicar recomendações |
2011 |
D3 |
Relatório digital | Relatar ações desenvolvidas nas áreas de recuperação para financiadores internacionais |
2013 |
D4 | |
Relatório de atividades 2015 | Relatório digital | Sistematizar os resultados alcançados no primeiro semestre e apresentar as propostas de ações para o segundo |
2015 |
D5 |
Recaatingamento em Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto | Relatório digital | Apresentar a importância das ações e resultados do projeto para concorrer ao prêmio SAT promovido pela FAO e IPHAN |
2018 |
D6 |
Experiências de Recaatingamento no Semiárido Brasileiro | Livro-síntese impresso | Sistematizar experiências de Recaatingamento do Irpaa e de outras entidades em municípios de diferentes estados |
2019 |
D7 |
Cerca ecológica em áreas de Recaatingamento | Cartilha impressa | Apresentar a metodologia da cerca mais adequada às áreas de recuperação na Caatinga |
2019 |
D8 |
Relatório de atividades: Projeto Recaatingamento | Relatório digital | Apresentar ações de mobilização das novas comunidades participantes do projeto |
2020 |
D9 |
Relatório | Relatório digital | Projeto Recaatingamento convênio 246/2021 - Relatório técnico final | 2023 | D10 |
Fonte: autoria própria.
De posse dos resultados apresentados, a análise seguiu a linha do tempo dos documentos. Assim, a discussão é realizada do documento mais antigo para o mais recente. Antes, no entanto, são atendidos os critérios metodológicos postos por Cellard (2014) de descrição da autoria, autenticidade e confiabilidade dos documentos.
Autoria, autenticidade e confiabilidade
Como exposto anteriormente, identificar a autoria do texto é algo necessário para a sua análise e interpretação. Cechinel et al. (2016) apontam que a interpretação de um texto está intrinsecamente ligada ao conhecimento da identidade de quem o escreveu, ou seja, compreender e elucidar a identidade de quem elaborou o documento possibilita aferir melhor a sua confiabilidade.
Com base nisso, destaca-se que os documentos coletados para o presente estudo foram elaborados pelo Irpaa, instituição que completou, em abril de 2024, 34 anos de experiência atuando dentre outras coisas, em formações para educação contextualizada, assessoria técnica, discussões por políticas públicas e promoção da justiça social no Semiárido Brasileiro através da Educação Popular.
O Irpaa é uma Organização Não Governamental (ONG) que atua em diversos municípios de todo o Semiárido Brasileiro em parceria com outras instituições nacionais e internacionais para suscitar a Convivência com o Semiárido como política de estado. A exemplo dessas parcerias, é possível citar no Brasil a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), Comissão Pastoral da Terra (CPT), bem como diversos Institutos Federais e Universidades Federais e Estaduais. Há, ainda, instituições em outros países como Misereor e Cáritas Internacional na Alemanha, Horizonte 3000 e Kindermissionswerk na Áustria.
Seu princípio filosófico é sustentado desde sua fundação em 1990 afirmando que “Viver no Semiárido é aprender a conviver!” Isso porque a criação do Irpaa se dá em um contexto histórico de ausência de políticas públicas de Convivência com o Semiárido, porquanto as famílias desse território foram vítimas não só das consequências impostas pelas secas, mas especialmente pela negligência do estado frente a um fenômeno natural, cíclico e previsível.
É nesse contexto que o Irpaa e tem atuado ao longo dessas três décadas, desenvolvendo projetos para reafirmar seus compromissos sociais com o povo do Semiárido Brasileiro e com a Caatinga. Isso requer dizer que o Recaatingamento é mais uma de suas ações para a reafirmação do seu compromisso ético-político.
Nesse sentido, considera-se redundante falar que são garantidas a autenticidade e a confiabilidade dos documentos, uma vez que além de serem produzidos pelo próprio instituto, sem a interferência de terceiros, são validados pelas instituições financiadoras do Recaatingamento a exemplo do Ministério do Meio Ambiente, Petrobras e governo do estado da Bahia. Ademais, especialmente os relatórios elaborados, foram entregues para prestação de contas e ampliação das ações do Recaatingamento, o que garante a confiabilidade dos documentos apresentados ao longo de quase 15 anos, uma vez que novos recursos foram empregados e novas etapas realizadas.
DISCUSSÕES
As discussões tecidas a partir daqui são as próprias análises dos documentos localizados na pesquisa, da mais antiga para a mais recente.
Manejo sustentável da Caatinga (D1)
O contexto de produção da cartilha Manejo sustentável da Caatinga se dá a partir da necessidade de um material pedagógico que pudesse prestar suporte às pessoas que atuariam como agentes ambientais junto às sete primeiras comunidades integrantes do então Projeto Recaatingamento.
Possuindo 67 páginas, essa cartilha foi publicada ainda no ano de 2011, como resultado de discussões internas entre pessoas da equipe técnica e a equipe de agentes ambientais, sendo que cada comunidade tinha uma pessoa representante, as quais iriam atuar mobilizando e animando internamente suas respectivas comunidades. Nesse sentido, de acordo com D1 (p. 6) “[…] foram realizados vários momentos de estudos e práticas com as comunidades rurais, utilizando uma metodologia participativa com temas contextualizados […]” servindo como memória escrita desses estudos nas formações iniciais para ajudar as pessoas da equipe de agentes ambientais a multiplicarem esses saberes. Além disso, passou a ser um suporte para as novas equipes das comunidades que aderiram ao Recaatingamento posteriormente.
Por ser um material pedagógico, a cartilha tem uma leitura fluida e conta com muitos recursos visuais, demonstrando não ter como primeira intenção uma natureza estritamente científica, mas em ter efetividade ao ser assimilada pelas pessoas que as utilizariam, o que torna sua natureza com maior preocupação em aplicabilidade e dialogicidade, característica comum na educação popular (Paiva, 1973).
Assim a cartilha em análise é também um documento norteador na qual as pessoas que puderam participar das ações formativas iniciais consigam rememorar “[…] os assuntos estudados e será uma importante ferramenta para trabalhar com mais pessoas de comunidades que ainda não foram contempladas pelo projeto” (IRPAA, 2011, p. 06).
Nesse sentido, a lógica interna do texto se constitui a partir da preocupação em demonstrar a importância das potencialidades da Caatinga e a necessidade do desenvolvimento de um plano de manejo como uma das ações fundamentais do Recaatingamento enquanto caminho para a conservação da Caatinga, especialmente a partir de um lema com o intuito de demonstrar o valor da Caatinga em pé ao afirmar que “[…] a Caatinga em pé vale mais que a Caatinga no chão!” (IRPAA, 2011, p. 05). Nesse sentido há uma preocupação com a leitura semiótica, especialmente porque entre as comunidades há pessoas não alfabetizadas.
Desse modo, as imagens funcionam como recursos potenciais para uma melhor assimilação e contribui para a representatividade dos bens naturais da Caatinga. Além disso, a cartilha também promove discussões sobre as imagens apresentadas, sempre com três questionamentos orientadores a partir do que foi ilustrado nos desenhos, são eles: O que a gente vê? O que significa? O que aprendemos com isto?
Tais questionamentos se pretendem apenas iniciais, como forma de ponto de partida para discussões mais próximas da realidade de cada comunidade, visando, sobretudo, garantir que haja uma reflexão e tomada de atitude quanto à elaboração do plano de manejo das comunidades considerando, principalmente, seus conceitos-chave: preceitos bíblicos sobre terra, água e direito agrário; planejamento no contexto da comunidade; mudanças climáticas e ações antrópicas; estudos edafoclimáticos sobre o Semiárido, a Caatinga e os impactos do superpastejo; Recaatingamento, Educação Ambiental e Fundo de Pasto.
No entanto, observou-se que no quesito diversidade de gênero a cartilha traz a presença de homens e mulheres, mas não de forma paritária, uma vez que a cartilha utiliza os desenhos como composição estético-pedagógica para a abordagem e ilustração dos temas suscitados e nesses desenhos (dos que são possíveis a identificação do gênero) temos ao total 78 pessoas representadas e, destas, 27 feminino e 51 masculino.
Além do mais, um elemento importante de ser observado é a disposição das mulheres. Nas ilustrações de maior destaque há uma prevalência de homens não só pela quantidade, mas pela postura em que são colocadas, pois as mulheres aparecem de costas ou de lado, de modo que seus rostos não são identificados ou são identificados somente parcialmente, ao contrário do que acontece com os homens.
Desse modo, nas ilustrações com maior destaque na cartilha, em que as mulheres poderiam ganhar mais notoriedade em face da ausência de paridade, elas são ilustradas de costas ou de lado, de modo que a identificação dos seus rostos fique prejudicada.
Educação ambiental no Semiárido Brasileiro: cuidando da Caatinga para preservar a vida (D2)
O segundo documento desta análise é também uma cartilha publicada em 2011, no entanto, com a finalidade de ser um material paradidático às professoras das comunidades integrantes do Recaatingamento. Ele possui 62 páginas e sua produção se dá no contexto da elaboração dos materiais para as comunidades, na observância de que as escolas também precisavam partilhar das ações educativas que eram desenvolvidas com as pessoas adultas, mas, mais que adaptadas, elas precisavam ser adequadas às crianças que, como pessoas, também são usufrutuárias do bioma Caatinga.
Nesse sentido, o documento é de natureza informativa, cuja constituição se dá a partir de alguns gêneros e tipologias textuais como música, poema, tabela, cartum. Além disso, o material é povoado de imagens que especialmente são fotografias com registros das escolas, professoras e crianças das próprias comunidades.
A lógica interna do texto é construída a partir da necessidade de autorreconhecimento das crianças nesse material, no qual o instituto priorizou abordar “[…] discussões sobre temas que fazem parte da vida dos educadores, educandos e suas comunidades” (Irpaa, 2011, p. 4) o que não significa dizer que esteja descolado de uma realidade mais ampla ou global.
Na verdade, o documento conecta as realidades das comunidades e suas crianças com questões da localidade e com cenários nacionais e mundiais. Desse modo, são abordadas as condições pedológicas, a fauna, a flora e a importância da Caatinga para o sistema fundo de pasto; a importância da água para a vida humana no mundo, no Brasil e no Semiárido Brasileiro. Além disso, a presença de fotografias das próprias crianças e das professoras das comunidades, se apresenta como possibilidades de reconhecimento de si e de suas gentes nos materiais, o que dificilmente acontece com as crianças do Semiárido, e, para isso:
[…] os livros didáticos contextualizados tornam-se uma possibilidade de subsidiar essa prática nesse contexto específico de seu território; de igual forma, defendemos que para outros territórios, outros materiais que construam novas dizibilidades e visibilidades sobre as diversidades específicas precisam ser construídos […] mas ao mesmo tempo possibilitando que as professoras e professores vejam, nesses materiais, possibilidades de conciliar as demandas de ordem das macropolíticas às questões locais (Santos, 2018, p. 217).
A partir disso, os conceitos-chave do D2 são conceitos guarda-chuva com temáticas da Educação Ambiental que se desdobram em questões relacionadas à produção, como agricultura, pecuária e questões agrárias no Brasil; o acesso à água como necessidade e como direito; lixo e poluição; desenvolvimento sustentável; mudanças climáticas; convivência com o Semiárido e o Recaatingamento.
Ademais é possível inferir que o documento traz outra possibilidade de leitura imagética acerca da Caatinga, a qual geralmente é divulgada de forma pejorativa, mas no documento há uma representatividade, ainda que sucinta, de uma diversidade de cores presentes no bioma.
Diferentemente do que se apresenta na mídia como animais magros, ou até mesmo mortos, o documento traz diversas tonalidades e possibilidades de existência no bioma, demanda necessária e já exposta por diversas pesquisas que se consolidaram nos últimos 20 anos como os trabalhos de Carvalho (2006); Menezes; Araújo (2007); Sena (2014), Silva, Silva e Reis (2023).
Some-se a isso o fato de as explicações virem carregadas de informações importantes, como o processo evolutivo dessas espécies; os hábitos alimentares e períodos reprodutivos; as ameaças de extinção, como da Arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). O documento, no entanto, não apresenta a causa da ameaça a essa espécie.
Recaatingamento com comunidades agropastoris e extrativistas: relato da experiência com Recaatingamento com Comunidades de Fundo de Pasto (D3)
O terceiro documento, por sua vez, é um relatório dos primeiros anos do desenvolvimento do Recaatingamento. O contexto de sua produção e publicação é o final do ano de 2011, cerca de dois anos e meio após o início das ações nas comunidades, em face da necessidade de prestar contas à entidade patrocinadora, que é, nessa primeira etapa, a Petrobrás. Todavia, não foca de modo incisivo em ser um relatório técnico, demonstrando certa preocupação com as informações técnicas e com a intuitividade da compreensão do conjunto de práticas realizadas ao logo do projeto.
De natureza descritiva e informativa, o documento apresenta, ao longo de suas 80 páginas, as ações de forma detalhada com uma riqueza de informações das práticas empregadas, das pessoas participantes, dos desafios enfrentados e perspectivas futuras. Depreende-se que isso se dá em face do relatório ser um documento institucional, mas não privado, pois foi pensado para ser “[…] uma referência para o IRPAA ou para outras instituições que pretendem realizar trabalhos ou projetos de recuperação das áreas degradadas da caatinga” (Irpaa, 2011, p. 5).
A lógica interna do texto é permeada pela apresentação das comunidades e como o Recaatingamento se desenvolveu nelas, desde as ações formativas até as práticas de campo como práticas de fenação e silagem, plantação e enxertia de mudas, destacando sempre a filosofia de “[…] realizar o Recaatingamento com as comunidades e não para as comunidades […]” (Irpaa, 2011, p.11).
Já os conceitos-chave são delimitados conforme o agrupamento de ações, metas e resultados do Recaatingamento, considerando a plantação de mudas das plantas arbóreas e xerófilas nativas da Caatinga; caracterização histórica, política e produtiva das CTFP; as estratégias de Educação Ambiental e convivência com o Semiárido; recomendações para a replicabilidade do projeto.
Há ainda a apresentação de uma perspectiva emancipatória das comunidades através dos cursos de formação, especialmente do curso de formação de Juristas leigos e do Seminário Regional das Comunidades de Fundo de Pasto. Estes trazem a tônica de ações integradas ao Recaatingamento, apontando para características mais amplas dessa ecometodologia, para além da recuperação de áreas degradadas, a exemplo no disposto na página 59, ao afirmar que o objetivo do seminário foi “[…] discutir o artigo 178 da constituição baiana que proíbe a titulação definitiva das áreas coletivas de Fundo de Pasto, permitindo apenas a cessão de uso por tempo determinado” (Irpaa, 2011, p. 59).
Ademais, a proposição de formação jurídica é fundamental para essas comunidades, sobretudo no que tange ao contexto das disputas agrárias que atravessam as CTFP, especialmente a partir do final do século XX e se arrasta ao longo dos anos no século XXI (Ferraro Júnior, Bursztyn, Drummond, 2017). Nesse sentido o curso de formação foi realizado em parceria com a Associação dos Advogados/as dos Trabalhadores/as Rurais (AATR).
Para diversas ações realizadas, D3 cita que mesmo com o aporte financeiro garantido pela Petrobrás, através do programa Petrobrás Ambiental, houve a necessidade de estabelecer parcerias com instituições públicas, como o Centro de Referência Para Recuperação de Áreas Degradadas (CRAD) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), a Embrapa e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb). De modo geral, o documento possui uma qualidade imagética, de diagramação e organização das ideias de forma bem elaborada, sempre utilizando a identidade visual do Recaatingamento.
Entretanto, apesar de ter passado por uma revisão ortográfica, uma questão importante ao longo do documento é a presença de alguns erros ortográficos, os quais em momentos pontuais podem dificultar a interpretação como, por exemplo, concordância, pontuação, emprego de pronomes e especialmente a acentuação de palavras e ausência de preposições ou conectivos em algumas frases.
Também não há uma apresentação dos nomes científicos das plantas, uma vez que os nomes vulgares variam a depender do estado ou território de identidade; além disso não apresentou o georreferenciamento das comunidades, apesar de ter informado que isso foi realizado ao longo das ações desenvolvidas. Outro elemento que seria melhor aproveitado é o uso das figuras, as quais não possuem título ou legenda quando inseridas no texto.
Notícias do Recaatingamento (D4)
Com apenas 03 páginas e datado de 05 de julho de 2013, Notícias do Recaatingamento se inicia de forma controversa, pois no primeiro parágrafo assinala que “O projeto Recaatingamento está entrando no seu sétimo ano de implantação” (Irpaa, 2013, p. 02) e no mesmo parágrafo, no entanto, informa que o projeto possui apenas 03 anos. Conforme os dados apresentados na análise de D1, D2 e D3, é possível considerar que em 2013 o Recaatingamento completaria 04 anos, o que certamente favorece ao entendimento de que 03 anos, a depender do mês em que ele se inicia, é a afirmação mais adequada.
D4 foi elaborado no contexto da prestação de contas a financiadores internacionais, instituições com menores exigências que as nacionais, fato que explica a natureza mais informal e sucinta do documento, o que não retira, todavia, seu caráter obrigatório.
De modo geral o relatório busca informar que o Recaatingamento funciona bem, ainda que afirme “Nesses três anos de projeto a chuva média anual foi de 150mm, pluviosidade inferior à necessidade de qualquer planta para a germinação e desenvolvimento. A maioria das mudas e estacas plantadas morreram […]” (Irpaa, 2013, p. 02) além de apontar que por conta da baixa pluviometricidade da época “[…] as sementes das árvores não germinam por não ter umidade suficiente para o seu desenvolvimento. As sementes têm uma dormência natural que só é quebrada em anos de chuva de 500mm” (Ibidem p. 3).
Um elemento importante de ser observado é a menção que se faz à estiagem, fato que não foi citado no relatório anterior. E apesar de uma afirmação adequada quanto às perdas do plantio de mudas e estacas na estiagem, não mostra muita coerência ao afirmar:
Estamos chegando à conclusão que o plantio de estacas e mudas se mostrará eficiente somente nos anos de “la niña”, quando temos chuva a cima (sic) da média. Como não é possível prever as chuvas com muita antecedência continuaremos fazendo o plantio de mudas e estacas e principalmente a dispersão de coquetel de sementes nativas […] (Irpaa, 2013, p. 2).
Além disso, D4 aponta que as cercas precisam de ajustes quanto a “[…] o distanciamento dos fios e a instalação das baterias e painel solar […]” (Irpaa, 2013, p. 2) mas indica que as soluções já estão sendo planejadas para tais demandas. Ou seja, ele é permeado por uma linha tênue entre afirmar que algumas ações foram eficazes e um pedido de subsídio para as que foram inexatas. Tais informações, no entanto, podem ser mais acertadas através de novas pesquisas.
Nesse sentido, a lógica interna do texto transita entre apresentar os desafios e discorrer sobre medidas para o bom andamento das ações já realizadas no Recaatingamento. Os conceitos-chave são as práticas desenvolvidas, os desafios enfrentados, as medidas necessárias e explanações acerca da influência da estiagem sobre o replantio de mudas.
Um elemento importante, no entanto, é a perspectiva que emerge do Recaatingamento como algo maior que um projeto e a afirmação dele enquanto “[…] uma metodologia de recuperação de áreas degradadas no Semiárido que precisa ser difundida e implementada” (idem).
O documento finaliza indicando a necessidade de adequações quando da necessidade de perceber as herbáceas e arbustivas enquanto potenciais espécies para o princípio de recuperação das áreas, sinalizando que as ações para tal consistirão em dispersão de sementes nas áreas isoladas.
Relatório de atividades 2015 (D5)
O quinto documento analisado é o relatório produzido em 2015 o qual contém 14 páginas, sendo 09 para o texto escrito e 05 para a apresentação das fotos de ações realizadas nas comunidades. Diferentemente dos documentos anteriores, D5 apresenta as fotos em uma sessão separada e não ao longo dos textos.
Sua produção acontece em face da necessidade de relatar as novas CTFP que aderiram ao Recaatingamento e as atividades nelas desenvolvidas. Além dos municípios já participantes, passaram a fazer parte das ações, Pilão Arcado, Remanso e Campo Alegre de Lurdes, também no TSSF, ampliando de 07 para 10 municípios e indicando ainda a pretensão de inserir mais uma comunidade além dessas.
De natureza informativa, o documento traz algumas preocupações antes ausentes em D3 e D4, que é o desânimo de algumas comunidades em relação às ações empreendidas em face da estiagem que se prolonga e a redução da mobilização das associações. Esse fato se dá em face do contexto de uma estiagem que se prolongou no Semiárido, de 2012 a 2017, conforme estudo de Santana & Santos (2020) publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Entretanto, isso não parece ser fator determinante para o desanimar o trabalho da equipe do Recaatingamento uma vez que lhes pareceu razoável não pressionar tanto as comunidades para a realização das atividades para que estas não se sentissem obrigadas a tal, pois “A alegação da pouca disponibilidade de mão de obra na época de estiagem nos fez ir mais devagar para não pressionar a comunidade e competir com as demais atividades” (Irpaa, 2015, p. 6).
Em linhas gerais, a lógica interna do documento é apresentar os percursos e percalços do trabalho de manutenção das comunidades mais antigas. Isto porque enfrentavam dificuldades não só com a estiagem, como desanimavam do cuidado com a área isolada para a recuperação e, consequentemente tendo mais trabalho com os animais de médio porte (caprinos e ovinos) e o gado que, pela escassez de vegetação em área aberta, adentrava as áreas isoladas, ainda que as cercas estivessem eletrificadas.
Além disso, D5 aponta a perda da madeira das cercas que haviam degenerado; a necessidade de troca das baterias de 2 cercas eletrificadas e a preocupação com uma das comunidades que havia abandonado as atividades na área de recuperação após um conflito interno na associação.
Por outro lado, o documento aponta a garantia da assistência técnica nas comunidades para a Assessoria Técnica e Extensão Rural (ATER) por meio da qual o Irpaa possibilitou assessoria na produção e armazenamento de forragem; cita ainda a motivação da juventude nos municípios para a participação nas atividades; informa a participação em um grupo de discussão para o desenvolvimento de um manual sobre recuperação de áreas degradadas em parceria com o estado da Bahia e o governo federal; aponta perspectivas futuras da equipe técnica desenvolver a irrigação de salvação através do plantio de espécies arbóreas nas áreas recaatingadas com a implantação de barreiro trincheira para a captação de água da chuva e a utilização desta para a manutenção das espécies que seriam plantadas, com vistas a se tornar uma tecnologia social.
Os conceitos-chave do documento são atividades desenvolvidas, planejamento de ações para mobilizar as comunidades antigas, garantia de assistência técnica a todas as comunidades em face da estiagem prolongada, necessidade de implantação dos planos de manejo e o delineamento dos resultados esperados.
D5 traz fotos das ações desenvolvidas com seus devidos títulos e indica as comunidades de onde emanam esses registros, todavia as fotos estão ao final do documento e não ao longo do texto. Por fim, uma problemática encontrada ao longo do texto consiste na falta de uma revisão ortográfica.
A comunidade […], está muito desanimada. A cerca está desativada e a associação não consegue mobilizar os sácios (sic) para a reforma da cerca.
NA (sic) comunidade […] existe um conflita (sic) da comunidade com um dos proprietários da área recaatingada. No ano passado o proprietário da área, cedida à associação, colocou os animais dentro da área. Até o momento ainda não se chegou a uma definição de como vai se dá (sic) a continuação da manutenção dessa área (Irpaa, 2015, p. 5).
Assim, por mais que não se pretenda acadêmico/científico, trata-se de um documento institucional e que, portanto, deve passar pelo rigor de uma revisão, especialmente porque esses relatórios são enviados às instituições que financiam os projetos.
Recaatingamento em Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto (D6)
O documento em análise consiste no relatório do ano de 2018. Com um total de 12 páginas, seu contexto de elaboração se dá frente à intenção de concorrer ao prêmio de Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT), promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em parceria com outras instituições públicas nacionais e internacionais.
De natureza descritiva, o relatório tem uma boa apresentação estética, as fotografias estão dispostas de modo a dialogar com o texto de maneira organizada e a linguagem é utilizada na terceira pessoa e são apresentadas as coordenadas geográficas das comunidades. A lógica interna consiste em apresentar as comunidades de Fundo de Pasto como prestadoras de serviços ambientais, uma vez que são responsáveis pela maior parcela de Caatinga conservada no Semiárido.
O documento apresenta outros resultados já alcançados a partir das ações, informando que há um “Resgate das tradições de trabalhos comunitários; Participação e envolvimento das escolas, com inserção do tema comunidades tradicionais e conservação da caatinga nos currículos” (Irpaa, 2018, p. 9) fato que contribui para pensar o Recaatingamento para além do cercamento de uma área e fortalece a ideia de que a recuperação de áreas degradadas passa especialmente pela mudança na mentalidade de suas gentes.
Os conceitos chave se estruturam a partir da afirmação das tradições das comunidades, as contribuições que o Recaatingamento tem levado, a participação das crianças, das mulheres e da juventude nas ações, o desafio que é a instalação efetiva dos planos de manejo. Este último é um tópico importante, pois mesmo concorrendo a um prêmio pelas boas práticas, o qual seria destinado às comunidades e não à instituição, o documento não se exime de apresentar elementos desafiadores e que ainda não conseguiu efetivar.
Importante ressaltar o apontamento de D6 sobre a previsão dos resultados das ações do Recaatingamento, informando que estes serão colhidos em uma média de 15 anos, elemento que não havia aparecido ao longo dos documentos anteriores.
Experiências de Recaatingamento no Semiárido Brasileiro (D7)
Publicado no ano de 2019, o livro-síntese é um documento que surge em um contexto simbólico para o Irpaa, que é o alcance dos 10 anos de Recaatingamento sendo desenvolvido nas comunidades. À época, já eram 11 comunidades Recaatingueiras, contemplando todos os municípios do TSSF.
Com isso, apesar do aumento de apenas mais 4 comunidades, tendo em vista que o número inicial era 7, a soma total de áreas em recuperação aumentou mais que o dobro, quando comparados os hectares, uma vez que em 2009 eram 417,2ha e em 2019 eram 895,5ha.
Com uma estética bem elaborada e excelente acabamento, as exatas 100 páginas do documento trazem uma boa disposição das ilustrações de modo geral ao longo dos textos – uma vez que utiliza fotografias, gráficos e mapas – e é um recurso bem diagramado e atraente que pode ser amplamente utilizado seja em formações técnicas ou no ambiente escolar.
Sua natureza é descritiva e sua lógica interna caminha no sentido de apresentar outras experiências de Recaatingamento diferentes das realizadas pelo Irpaa, cada uma com suas particularidade. Assim, é possível afirmar que há Recaatingamentos e a experiência do Irpaa é uma delas. Além disso, o documento aponta não só outras experiências institucionais, como individuais em áreas de famílias Recaatingueiras que tiveram a iniciativa de fazê-lo.
Um ponto que merece significativa atenção é o fato dessas experiências surgirem da observação comum de que a Caatinga está sistematicamente degradada a níveis alarmantes em diversos estados da região Nordeste, pelo grande capital, seja de forma furtiva, seja com o apoio do poder público ao longo de décadas em favor das indústrias, pois segundo uma das famílias Recaatingueiras, havia uma “[…] retirada clandestina de cerca de 150 a 200 caminhões de lenha toda semana. Estima-se que cada hectare de Caatinga fornece apenas três caminhões de lenha […]” (Irpaa, 2019, p. 35) ou seja, para esse contingente de lenha, uma parcela significativa de Caatinga foi ao chão.
Considerando tais elementos, os conceitos-chave do documento se articulam em torno da apresentação do valor da Caatinga em pé para os sistemas agrossilvipastoris e para todas as formas de vida, seja dos animais, das pessoas, do solo etc.; a reafirmação da necessidade dos Recaatingamentos conforme a necessidade local.
Duas problemáticas que se apresentam como pano de fundo, no entanto, são: i) a questão hídrica, que interfere diretamente nas ações de plantio de mudas e dispersão de sementes, pois sem quantidade suficiente de água/umidade, as mudas morrem e as sementes não brotam; ii) a aplicação concreta dos planos de manejo, pois sem o manejo adequado da criação, sempre haverá uma degradação crescente, por atingir e/ou ultrapassar a capacidade de suporte do bioma.
Há, entretanto, na última experiência relatada, questões que extrapolam significativamente todas as ações relatadas ao longo do documento. Entretanto, cabe observar que D7 não relata se essa experiência foi realizada pelo Irpaa ou por outra instituição, pois quando “Unidade de recuperação de áreas degradadas/URAD” é evocada como última experiencia, apresenta-se um conjunto de ações de cunho socioambiental que vão desde o trabalho de recuperação das margens do Riacho Bazuá até a construção de 30 fogões ecológicos para melhorar a qualidade de vida das pessoas e da Caatinga, pois ao tempo em que reduz a exposição das pessoas à fumaça, especialmente das mulheres por serem estas as que socialmente são designadas às atividades de âmbito doméstico (Cruz, 2022), também reduz o uso de lenha, cuja madeira é proveniente da Caatinga.
Ainda é relatada no documento que “Foram construídos 17 banheiros e 13 reformados, tendo como objetivo principal dar dignidade as famílias onde realizam suas necessidades fisiológicas no meio do mato […]” (Irpaa, 2019, p. 96). Houve ainda ações no âmbito econômico-produtivo, incentivando o desenvolvimento de ações não extrativistas com a doação de 13 kits para a criação de abelhas, contendo “[…] (10 caixas para abelha apis, 10 colmeias, 01 fumegador, 01 indumentária completa) e uma casa de beneficiamento de mel sendo uma importante iniciativa para geração de renda das famílias bem como a polinização de espécies da Caatinga” (Irpaa, 2019, p. 96).
Em D7 também se apresentam outras experiências de Recaatingamento, indicando que essa não é uma metodologia desenvolvida exclusivamente pelo Irpaa, mas que o instituto possui estratégias próprias de realizá-lo.
Cerca ecológica em áreas de Recaatingamento (D8)
Ainda em 2019 o Irpaa publicou uma cartilha intitulada Cerca ecológica em áreas de Recaatingamento. Contendo 40 páginas, o documento é publicado ainda no período de 10 anos de atuação nas comunidades Recaatingueiras.
Com sua natureza instrucional, a lógica interna do documento é apresentar a ideia de um modelo melhor de cerca para a aplicação não só nas áreas de Recaatingamento como em outras demandas que exijam esse recurso, uma vez que o hábito tradicional das comunidades era produzir cercas (a exemplo dos tipos faxina e tesoura) que exigiam uma quantidade extraordinária de madeira e esta era retirada da Caatinga de maneira insalubre ao bioma, porquanto as comunidades partiam da noção de que seus bens naturais eram inesgotáveis.
Na articulação dos conceitos-chave está a importância de diferenciar Recaatingamento e reflorestamento; caracterização da relação entre os fundos de pasto, a questão fundiária no semiárido e o papel do Recaatingamento; as ameaças às comunidades. Além disso, busca demarcar a diferença entre o primeiro modelo de cerca adotado, uma vez que o inicial demandava ajustes frequentes, como descrito em D4.
Para tanto, argumenta sobre a pegada ambiental da nova cerca, especialmente considerando a baixa necessidade de manutenção. Reconhece que apesar da cerca eletrificada ser bastante utilizada em outras regiões do Brasil e em outros países, essa tecnologia não deu certo na Caatinga, uma vez que ela exige um monitoramento frequente “[…] por exemplo, em épocas de chuva, caminhadas quase diárias para eliminar curtos-circuitos, causados pelo rápido crescimento da vegetação. Além de ser sujeita a falhas por relâmpagos e furtos de componentes” (Irpaa, 2019, p. 9).
Divulgada apenas por meio digital, a cartilha explica os recursos e técnicas necessárias para a produção da nova cerca com boa qualidade didática, porém em termos de diagramação o material tem um desempenho abaixo da expectativa, sobretudo porque ao longo dessas 3 décadas o Irpaa já desenvolveu algumas dezenas de cartilhas. Ainda sob esse aspecto, algumas caixas de texto têm uma resolução de baixa qualidade, o que dificulta a leitura em alguns momentos, sendo necessário ampliar.
O documento atende ao que se propõe, mesmo que no emprego da língua portuguesa, peque algumas vezes, talvez por tentar utilizar uma linguagem simples acaba incorrendo no erro da escrita parecer descuidada.
Pelas imagens dispostas ao longo do documento, depreende-se que essa experiência já está em execução nas comunidades, pois foram citadas as práticas de produção em dois municípios. Porém, em nenhuma das fotografias utilizadas há presença de mulheres. Isso pode estar ligado ao fato de que apesar de já existir um caminho sendo trilhado em direção à divisão igualitária no trabalho, em comunidades tradicionais ainda é muito comum as mulheres ficarem em casa nos afazeres domésticos enquanto os homens se dedicam às práticas de campo.
Relatório de atividades: Projeto Recaatingamento (D9)
Como relato das atividades realizadas no ano de 2020, D9 possui um relatório de 56 páginas, nas quais constam nas três primeiras uma apresentação do Recaatingamento, descrição de atividades realizadas e algumas elucubrações sobre atividades não realizadas. As páginas seguintes compõem um apêndice de 53 páginas, apresentando as novas comunidades Recaatingueiras.
Seu contexto de produção se dá em um período extremamente aterrador para o planeta, que foi a pandemia de Covid-19, infecção respiratória grave que ceifou a vida de quase 7milhões de pessoas ao redor do mundo e só no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde[1], até janeiro de 2024, atingiu-se o número de 708mil mortes.
Nesse sentido, o relatório apresenta a importância do Recaatingamento, a contribuição de suas ações para as CTFP, para o bioma Caatinga e para a Natureza em geral; faz algumas prospecções em relação ao que pode ser alcançado com as ações nas novas comunidades e contextualiza ações já desenvolvidas.
O documento aponta ainda algumas dificuldades em realizar determinadas ações com as comunidades em face de discordâncias das comunidades sobre as áreas a serem recuperadas, uma vez que nas ações iniciais as comunidades haviam sinalizado determinada quantidade de hectares e no ato da demarcação mudaram de ideia. Essas mudanças se davam devido a distintos fatores em diferentes comunidades, pois se em uma havia problemas em relação à localização, em outra havia problema em relação ao tamanho da área, uma vez que ficariam isoladas sem que os animais pudessem ter acesso.
Conforme o documento, essas problemáticas foram resolvidas com diálogo e pensando formas de compensar as famílias pela redução em suas áreas de produção, para tanto houve a sugestão de incluir tecnologias sociais no projeto, fato que colaborou para o aceite das comunidades quanto ao “[…] isolamento de parte das áreas de beira de riacho. A tecnologia social compensa a ‘perda temporária’ da área isolada” (Irpaa, 2020, p. 3). Além disso, aponta que a equipe técnica buscou informar sobre a importância da recuperação dessas beiras de riacho como ações potenciais para futuramente oferecer alimento de qualidade para os animais, mantendo-se, entretanto, a atenção ao uso dessas áreas, de forma a considerar a capacidade de suporte.
Como o relatório discorre apenas sobre as atividades realizadas de janeiro a abril de 2020, D9 indica a distribuição dos materiais para a confecção das cercas ecológicas, seguindo o modelo previsto em D8; porém, em face da pandemia de Covid-19, o material precisou ser devolvido às lojas para não perder sua qualidade, especialmente por se tratar de cimento e madeira. Desse modo, o documento informa “Por conta da quarentena as atividades de campo estão paradas. No início de abril o Irpaa determinou o cancelamento de atividades de campo […]”.
Por fim, segue com a apresentação das novas comunidades que passaram a integrar as ações do Recaatingamento. dessa vez, há um detalhamento minucioso, daí a quantidade de páginas no apêndice, pois são citados os nomes das lideranças das comunidades, bem como da presidência da associação, georreferenciamento, histórico da origem da comunidade e suas características sociais e ambientais, o tamanho da área que será isolada e tamanho do fundo de pasto a ser feito o plano de manejo, quando retomadas as atividades.
As comunidades são identificadas tanto pela descrição como pelas fotografias, as quais exibem as primeiras ações de diálogo e do desenho do mapa ambiental realizado com a mediação da equipe técnica. Além disso, há imagens de satélite das áreas do fundo de pasto de cada uma delas. No total, das 20 novas comunidades que aderiram ao Recaatingamento, as áreas disponibilizadas para a recuperação somam 1.072,19ha o que garante uma média de 55ha por comunidade.
Por fim, observa-se que há uma presença significativa de mulheres e, mais ainda, uma forte marca intergeracional entre as pessoas participantes nas primeiras ações, além das características fenotípicas de pessoas pretas e pardas se destacarem entre esses rostos. Isso porque dentre as 20 novas comunidades, 03 são também comunidades quilombolas. Esse é um elemento importante para pensar políticas públicas para essas populações considerando o recorte racial e cultural em suas demandas.
Relatório (D10)
O último documento na presente análise também é o mais recente do gênero. Ao longo das 79 páginas há uma descrição minuciosa de atividades, caracterização do Recaatingamento e das comunidades participantes.
Seu contexto de produção é o momento histórico pós-pandêmico no planeta e relata atividades realizadas ao longo dos anos entre 2021 e 2023, período em que as comunidades e as equipes técnicas já estavam recebendo vacinas e os índices de mortes por Covid-19 diminuía significativamente a cada mês. Ainda assim, é possível ver dispostas ao longo de todo o documento, fotografias de pessoas com máscaras dos tipos Cirúrgica, N95 e Face Shield.
De natureza descritiva, a lógica interna do documento é dividida em introdução, detalhamento das comunidades e os resultados das atividades realizadas. Seus conceitos-chave trazem um desenho geral da importância do Recaatingamento, ações desenvolvidas, seus objetivos e dimensões, detalhamento das comunidades com georreferenciamento, histórico de formação, hábitos culturais e as práticas socioambientais por elas desenvolvidas; além disso são apresentados os resultados das atividades formativas e de campo.
Ao todo são descritas 20 comunidades em 12 municípios distintos, abrangendo 3 diferentes Territórios de Identidade no estado da Bahia, são eles: Piemonte da Diamantina, Piemonte Norte do Itapicuru e Sertão do São Francisco. Além disso, é possível notar a partir das fotografias, que tanto nas atividades formativas quanto nas atividades de campo, há uma incidência significativa de mulheres, sejam elas jovens ou idosas. Também há registros fotográficos da implementação dos novos modelos de cerca ecológica.
Paralelo a isso, como descrito em D9, uma das estratégias de diálogo para convencer as comunidades a manter a média de 50ha de área para recuperação foi garantir alguma atividade rentável de cunho não extrativista dentro das áreas. Nesse sentido, nota-se que o acordo foi mantido, uma vez que os registros fotográficos mostram a instalação dos meliponários para a criação de abelhas nativas, com o intuito de garantir às comunidades mais autonomia além de outras ações como materiais para “[…] criação de abelha com ferrão; material para reparo de viveiros, de cisterna e a geomembrana do barreiro trincheira” (Irpaa, 2023, p. 62).
Alguns desafios são apontados, como a necessidade de melhoramento das práticas de manutenção dos sistemas de irrigação de salvação. Sobre isso é importante destacar que D5 apontava um estudo preparatório da equipe técnica e em D10 já foram aplicados.
Além disso o desafio que acompanha o Recaatingamento desde o seu início, que é a implementação dos planos de manejo. Este é uma peça central para que essa ecometodologia seja ainda mais efetiva, uma vez que prevê a manutenção de animais dentro da Caatinga considerando sua capacidade de suporte. Porém, D10 aponta que é o desafio mais “[…] complexo, principalmente por envolver questões de mudança de comportamento. Com isso, afirmamos que essa construção é processual e deve sempre está em monitoramento e aprimoramento” (Irpaa, 2023, p. 42).
Por outro lado, e diferentemente de todos os documentos anteriores, algumas comunidades já estão conseguindo implementar o plano de manejo, garantindo que esse acordo seja formal e registrado em ata da associação.
CONCLUSÕES
Na pesquisa apenas 10 documentos localizados foram elegíveis para a inclusão no estudo e neste escrito foram analisados à luz da análise documental, buscando fazê-la de modo a atender os requisitos previstos pelas recomendações teóricas.
Nesse sentido, é possível considerar que ao longo de 15 anos descritos em documentos, entre cartilhas e relatórios, o Irpaa foi aprimorando algumas estratégias para o desenvolvimento do Recaatingamento, motivo pelo qual expande suas ações, ao mesmo tempo em que melhora suas práticas com as comunidades.
Com base nas análises é possível indicar que D3 não pode ser considerado como parâmetro como pretendia o Irpaa, sobretudo pelo disposto em D6, para a replicabilidade das ações do Recaatingamento, uma vez que se tratava da experiência pioneira e as variáveis independentes ainda não poderiam ser consideradas. Por exemplo, somente 10 anos depois, em 2019, o Irpaa reconhece que as cercas eletrificadas eram inapropriadas para o isolamento da área. Ainda assim, é louvável a capacidade adaptativa em perceber os equívocos e corrigi-los apresentando soluções.
Ao longo dos documentos, foram encontrados impasses quanto à ortografia e outras questões problemáticas quanto à linguagem. Nesse ponto vale destacar que erros são comuns e aceitáveis até certo ponto, devendo, por isso, tomar a necessária atenção a erros grotescos como os demonstrados ao longo das análises – especialmente quando se tratar de documentos que serão publicados, bem como os relatórios entregues às instituições financiadoras – de encaminhar os materiais à revisão ortográfica a pessoas da área de linguística. Isso, entretanto, não tira o mérito das ações desenvolvidas pelo instituto, bem como os benefícios levados às comunidades com que atua e à própria Caatinga.
Destaca-se ainda que ao longo do tempo houve melhora significativa na forma de apresentar as comunidades. Isso pode estar relacionado à forma como cada convênio é firmado com as instituições financiadoras e os formulários exigidos para a prestação de contas.
Por fim, os documentos em formato de relatório (D3, D4, D5, D6, D9, D10) demonstram a capacidade de articulação e captação de recursos do Irpaa, tanto pela continuidade do Recaatingamento ao longo de seus 15 anos, como pela potencialização e ampliação das atividades realizadas com as comunidades.
Como recomendações a outras pessoas que tenham interesse em aprofundar este estudo, recomenda-se que sejam realizadas pesquisas in loco com as comunidades atendidas pelo Recaatingamento ao longo desses anos, de modo a aferir em campo a implementação dessas ações e seus resultados, sobretudo se forem investigadas as primeiras comunidades atendidas e comunidades mais recentes.
Ainda assim, é possível afirmar o Recaatingamento como uma ecometodologia potencial para a recuperação da Caatinga, sobretudo para que suas gentes possam construir uma nova lógica de vida. O caminho nunca está pronto, se faz caminhando. Esse caminhar é sempre necessário para que além de aprender a conviver, seja possível poder Bem Viver no Semiárido Brasileiro.
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