O RITO GUERREIRO E SAGRADO ENTRE A CABOCLA JOANA D’ARC E AS MULHERES INDÍGENAS NUMA ILHA DO RIO SÃO FRANCISCO
Maria Aparecida Ventura Brandão1*
1Doutora em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental PPGEcoH/UNEB. Docente na Universidade de Pernambuco-UPE, campus Petrolina.
*Autora para Correspondência: E-mail - aparecida.brandao@upe.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1749-4284
Resumo: Este estudo aborda o rito à cabocla Joan d’Arc numa guerra contra as mulheres indígenas vivenciada em uma comunidade rural negra do semiárido brasileiro, como uma das muitas formas de expressões da cultura negra localizada, mais especificamente, em uma ilha do rio São Francisco. O estudo teve por objetivo analisar os padrões rituais orientados pelo seu idealizador como indicações de gênero, de religiosidade e de identidade guerreira da comunidade envolvida. Tendo como parâmetro a vivência de um embate guerreiro que foi capaz de agregar todos os seus habitantes por um longo tempo de sua história, a celebração sempre recorreu as alegorias produzidas na própria comunidade. A pesquisa resultou de uma problemática relacionada a permanência da tradição em comunidades rurais negras e suas memórias ancestrais. Neste estudo foram apresentados e descritos recortes de um extenso painel de vivência festiva e devocional desenhado pela comunidade rural negra da ilha do Massangano – PE, no semiárido Nordestino. O estudo de natureza etnográfica mostra parte da trajetória de um povo em seu processo de re(existência) cultural, étnica e histórica tematizando toda uma ritualização de seu cotidiano. A investigação oportunizou, entre outros fatores, o conhecimento da gênese de uma guerra ensinada e ensaiada pela espiritualidade das entidades que protegem as gentes que ali habitam. Tendo como expressão sagrada o rito oriundo da mediunidade espírita, representada pela comunicação entre guias e entidades, os resultados da pesquisa apontaram que, acima de tudo, a batalha vivenciada numa comunidade insular do Sertão do Médio São Francisco fortaleceu, definitivamente, laços afetivos, festivos, identitários, culturais, religiosos e de memória entre os massanganos.
Palavras-Chave: Rito Guerreiro; Identidade; Cultura; Joana d’Arc; mulheres indígenas.
THE WARRIOR AND SACRED RITE BETWEEN THE CABOCLA JOANA D’ARC AND THE INDIGENOUS WOMEN ON AN ISLAND IN THE SÃO FRANCISCO RIVER
Abstract: This study addresses the rite of Joan of Arc in a war against indigenous women experienced in a rural black community in the Brazilian semiarid region, as one of the many forms of expression of black culture located, more specifically, on an island in the São Francisco River. The study aimed to analyze the ritual patterns guided by its creator as indications of gender, religiosity and warrior identity of the community involved. Taking as a parameter the experience of a warlike clash that was capable of bringing together all its inhabitants for a long time in its history, the celebration has always resorted to allegories produced in the community itself. The research resulted from a problem related to the permanence of tradition in rural black communities and their ancestral memories. This study presented and described excerpts from an extensive panel of festive and devotional experiences designed by the rural black community of the island of Massangano - PE, in the semiarid Northeast. The ethnographic study shows part of the trajectory of a people in their process of cultural, ethnic and historical re(existence), addressing the entire ritualization of their daily lives. The investigation provided, among other factors, an opportunity to understand the genesis of a war taught and rehearsed by the spirituality of the entities that protect the people who live there. With the sacred expression of the rite originating from spirit mediumship, represented by the communication between guides and entities, the results of the research indicated that, above all, the battle experienced in an island community in the Sertão do Médio São Francisco definitively strengthened affective, festive, identity, cultural, religious and memory ties among the Massanganos.
Keywords: Warrior Rite; Identity; Joan of Arc; indigenous women; Culture.
EL GUERRERO Y EL RITO SAGRADO ENTRE CABOCLA JOANA D’ARC Y MUJERES INDÍGENAS EN UNA ISLA DEL RÍO SÃO FRANCISCO
Resumen: Este estudio aborda el rito cabocla de Juana de Arco en una guerra contra las mujeres indígenas vivida en una comunidad negra rural del semiárido brasileño, como una de las tantas formas de expresión de la cultura negra ubicada, más específicamente, en una isla. en el río São Francisco. El estudio tuvo como objetivo analizar los patrones rituales guiados por su creador como indicios de género, religiosidad e identidad guerrera de la comunidad involucrada. Tomando como parámetro la experiencia de un enfrentamiento guerrero que fue capaz de reunir a todos sus habitantes durante mucho tiempo de su historia, la celebración siempre utilizó alegorías producidas en la propia comunidad. La investigación surgió de una problemática relacionada con la permanencia de la tradición en las comunidades rurales negras y sus memorias ancestrales. En este estudio, se presentaron y describieron extractos de un extenso panel de experiencias festivas y devocionales diseñados por la comunidad rural negra de la isla de Massangano – PE, en la región semiárida del Nordeste. El estudio etnográfico muestra parte de la trayectoria de un pueblo en su proceso de re(existencia cultural, étnica e histórica), tematizando toda una ritualización de su cotidianidad. La investigación aportó, entre otros factores, conocimiento de la génesis de una guerra enseñada y ensayada por la espiritualidad de las entidades que protegen a las personas que allí habitan. Teniendo como expresión sagrada el rito originado en la mediumnidad espiritista, representado por la comunicación entre guías y entidades, los resultados de la investigación mostraron que, sobre todo, la batalla vivida en una comunidad isleña del Sertão do Médio São Francisco definitivamente fortaleció los vínculos afectivos, festivos. identidad, cultura, religión y memoria entre los Massangans.
Palabras clave: Rito Guerrero; Identidad; Cultura; Juana de Arco; mujeres indígenas.
INTRODUÇÃO
As festas populares ressignificam expressões identitárias e de memória traduzidas pela multidimensionalidade das práticas religiosas, culturais, simbólicas e míticas. Essas expressam vida, esperança, devoção, sociabilidade e afetividade entre os membros formadores de uma comunidade. O sentimento religioso e a busca pelo transcendente são tidos como características inerentes a povos e civilizações de todos os tempos e culturas (Eliade, 2010). As práticas religiosas como objeto de interesse deste estudo refletem, segundo (Geertz,1989, p. 67) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos seres humanos por meio da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral, revestindo essas concepções com tal aura de factualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
Dentre as festas de natureza múltipla, que variam entre a obediência a um culto religioso e ao prazer recreativo vivenciadas no Semiárido Nordestino, destaca-se na memória da comunidade rural negra da ilha do Massangano, localizada em meio às aguas do rio São Francisco ou “Velho Chico”, no entorno de dois estados: Pernambuco e Bahia, mais precisamente entre as cidades de Petrolina e Juazeiro, uma batalha travada por dois exércitos femininos: o da guerreira Joana d’Arc e o das guerreiras indígenas. Assim sendo, este artigo pontua o itinerário de uma ordem sagrada, que se divide entre o espírito guerreiro de sua comunidade e sua devoção aos valores e exemplos herdados de sua ancestralidade.
O material analisado neste estudo apoia-se nas fontes de uma pesquisa de doutorado de natureza etnográfica voltada para análise de religiões de matriz africana a partir de relatos de indivíduos participantes da investigação. Trata- se, sobretudo, da averiguação do culto aos caboclos e a guerreira Joana D’Arc numa ilha do rio São Francisco, região semiárida do Nordeste brasileiro.
1 BREVE ITINERÁRIO DA ILHA DO MASSANGANO
A ilha do Massangano fica localizada a 17 km de sua cidade sede: Petrolina. Situada no alto sertão pernambucano, Petrolina tem sua economia baseada na agroexportação da manga e da uva concentradas nas mãos dos altos empresários do agronegócio. Longe do poder dos grandes latifundiários e, consequentemente, da fruticultura irrigada, a ilha do Massangano resiste pela força do trabalho braçal de seus habitantes, pela tradição de suas ancestralidades e pelo conhecimento que foi historicamente, acumulando do mundo como um autêntico tesouro cultural e autoral. Segundo Brandão (2023, pgs. 98-99) Uma comunidade tradicional traduz-se por códigos próprios de convivência aos mais variados aspectos: saberes, vivências, relações interpessoais, laços de amizade, grau de parentesco, etnia, ancestralidade, escolaridade.
Conforme conclui a autora, as comunidades tradicionais não ultrapassam as singularidade locais cumprindo seus compromissos com protocolos de cuidados e de conservação dos bens materiais e imateriais locais resguardados, principalmente, pelos membros mais idosos da comunidade.
Como parte integrante do conjunto de ilhas do rio São Francisco, a Massangano distingue-se das demais ilhas do complexo saofranciscano, cerca de 334 ilhas segundo (Ferraz & Ferraz Barbosa 2015: 41-42), por sua força de resistência e seus fatores de proteção a sua rica prática sagrada, aos seus folguedos e a sua visão de sustentabilidade.
O tempo que remonta o processo de ocupação do sertão nordestino foi marcado, segundo a história narrada por Andrade (1988), pela ação do rio na colonização portuguesa que definiu as terras das margens de sua esquerda para a criação do gado, levando a formação de grandes currais. Esse episódio deu origem a uma consequente e temporária denominação para o rio, que, antes, recebera duas nominações: de rio Opara e depois rio São Francisco. Assim posto, a partir da construção dos currais, deram-lhe o nome de rio dos currais, já que as terras às margens do rio se ocupavam da pecuária. Esse episódio significou o marco da chegada do homem branco com seu gado e seus escravos, enquanto o litoral dedicava-se ao cultivo da cana para produção do açúcar, que era transportado para a corte portuguesa.
No entanto, foi mesmo com a chegada do europeu às margens do rio no dia 04 de outubro do ano de 1500 – dia dedicado a São Francisco na Europa que o nome do rio ficou efetivamente denominado de rio São Francisco.
As gentes que habitam a ilha do Massangano ali aportaram há cerca de um século e meio e se constituíram como uma grande família. Na época, a ilha era habitada pela etnia Cariri, que ali vivia da pesca e do plantio do milho e outras variedades da fauna e da flora, bem como caçavam, colhiam frutos, faziam utensílios, praticavam seus rituais e se divertiam entre suas danças e cantos.
Conforme Lopes (1997), os Cariris haviam sido expulsos do litoral pela etnia Tupi. Assim sendo, passaram a se alojar em lugares mais férteis e ricos em caça, pesca e frutos silvestres: serras, brejos, ilhas, olhos d’água e as margens do rio Opara (hoje, rio São Francisco) e de seus afluentes. Mais adiante, quando os portugueses iniciaram a prática da escravidão indígena no litoral, alguns grupos da etnia tupi migraram para as margens do rio Opara e foram lutando contra os cariris. Também, nesta época, o processo de etnogênese tem seu início marcado por meio de conflitos fundiários entre o branco colonizador, os povos originários e entre uma aldeia e outra resultando na morte e na escravidão de muitos indígenas ou obrigando-os a migrarem para outras localidades, como foi o caso da referida etnia Cariri, que habitava a ilha do Massangano em período anterior ao processo de colonização portuguesa no Nordeste.
A historiografia sobre os indígenas no Brasil, em especial a história desses povos no Nordeste brasileiro, ocupou o período colonial e o imperial. As pesquisas sobre a história indígena no Império priorizaram os registros sobre os aldeamentos na segunda metade do século XIX. (Santos Júnior, 2015). Esse período foi marcado pela expropriação das terras indígenas, pela extinção oficial dos aldeamentos no Império, pela afirmação do desaparecimento dos indígenas no Nordeste e pela assimilação dos seus descendentes na sociedade nacional. Esse processo não foi diferente na região semiárida brasileira, como é o caso da ilha do Massangano, habitada pelos cariris (Valle, 1992; Moreira Neto, 2005).
Mais adiante, com o desfecho dos conflitos deflagrados, os grupos indígenas que haviam se rebelado foram escravizados. As demais populações não rebeladas foram concentradas nos aldeamentos missionários instalados nas ilhas do rio São Francisco, nas quais os indígenas receberam o ensino religioso e de ofícios, para transformá-los em mão de obra qualificada. O ensino, nessas missões, era supervisionado por padres de diferentes ordens religiosas (Jesuítas, Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos e Oratorianos), que se alternaram na gestão das missões, caracterizando a região por ter possuído a mais duradora e diversificada experiência missionária no Brasil entre os séculos XVII e XVIII (Pompa, 2003).
Com o transcorrer do tempo, a ilha do Massangano passou a ser povoada por grupos que fugiam das rebeliões desencadeadas em outros lugares, como é caso do conflito de Canudos, para se refugiarem na ilha. Suas atividades se expandiam entre a pesca, a caça, a navegação, o plantio e a colheita. Segundo Nóbrega (2017, p. 111) ao relatar sobre o povoamento e a distribuição das tarefas entre homens e mulheres da ilha do Massangano – local no qual este estudo se desenvolveu - nos tempos fundantes da comunidade negra “enquanto as mulheres ficavam em terra para cuidar dos filhos, das casas e das plantações, boa parte dos homens ocupava-se com os ofícios das águas. Eram além de pescadores, também, exímios remeiros ou moços de convés”. Era a época das barcas com suas imagens de proas - as conhecidas carrancas: figuras míticas, que serviam como uma espécie de amuleto para afugentar os maus espíritos que ameaçavam virar as embarcações.
Não obstante, essa realidade pouco mudou com o passar dos tempos. As mulheres da ilha cumprem os mesmos ofícios, assim como os homens, que continuam na lida com a pesca, com o transporte de pessoas da ilha para cidade e da cidade para a ilha, seja para o trabalho nos centros urbanos de Petrolina e Juazeiro, seja para fazer o transporte de agentes culturais, turistas e habitantes do lugar. Os agentes culturais sempre visitam ou buscam, na ilha, material para suas pesquisas. Com efeito, as questões das vivências sagradas dos massanganos são movidas pelas águas e seus seres encantados, pela prática quaresmal da penitência, bem como por todos os processos de sobrevivência coletiva.
Os massanganos alimentam suas crenças pela presença das livusias, que, segundo Cascudo (2015, p. 334), trata-se de uma “assombração acompanhada de barulho e ventania”. Em meio a essas manifestações, os encantados ou almas que continuam a vagar pelo mundo, os pedidos de rezas e pagamento de promessa se multiplicam nas encruzilhadas da ilha ou mesmo sobre as águas do rio acima ou do rio abaixo como costumam dizer os ilhéus.
Formando um painel ecológico, as cidades de Petrolina e Juazeiro contornam as paisagens de várias ilhas; contudo, predomina a visão de que a ilha do Massangano se destaca por seus ares de mistérios e de suas festas sagradas e profanas. A dança, as penitências, as rezas e o canto são elementos presentes quase diariamente na vida dos massanganos, seja nas celebrações religiosas, seja nas festividades recreativas. Nos termos de Miller (2005), certamente, pode-se asseverar que a dança e o canto são importantes expressões materiais da imaterialidade.
O autor pontua que a importância da materialidade está justamente no cultivo sistemático da imaterialidade, algo muito presente e comum a toda prática religiosa. Vale ressaltar que a “imaterialidade” como sinônimo de visões ou aparições de entes que já não se encontram na esfera terrestre tornou-se algo que se materializa na ilha pelas devoções diversas (pagamento de promessas, culto aos mortos etc.). Por esses viés, nasce, na ilha, a festa da guerreira Joana d’Arc, ensinada a um de seus habitantes por um guia francês enquanto esse navegava por entre as águas do rio.
2 O PROCESSO DE PESQUISA
Na ilha, fomos recebidos por Conceição, a mulher, que retém, na memória, os passos percorridos na ilha pela afetividade da festa ou batalha da cabocla Joana D’arc como melhor define o rito. Essa festa fez-se cerne deste estudo por representar a síntese entre o sagrado e espírito guerreiro de seus habitantes. Segundo narra Conceição, a batalha de Joana d’Arc marca os passos de uma festa, que povoa o coração do povo massangano, expressando saudade, tradição, alegria, e espírito guerreiro pelo propósito religioso e pelo cenário alegórico de sua realização.
Este artigo resulta de uma pesquisa qualitativa de enfoque antropológico e etnográfico. Os dados foram coletados por meio de entrevista feita a Conceição e a Nailza, membros da comunidade, que apresentam maior propriedade para falar sobre o assunto. Conceição por ser filha do organizador do evento, é uma testemunha viva dos passos seguidos por seu pai Berto Barrinha – médium encarregado de promover a festa e, Certamente, como os massanganos costumam dizer, “a última pessoa que sabe sobre os arranjos e os detalhes dessa história” que tanto marca a tradição da ilha.
Praticantes da umbanda, os massanganos trazem, na memória, um tempo de cura espiritual e corporal traduzidas e realizadas pelos ritos sagrados vividos na casona ou casa dos caboclos ou caboqueiros – um templo para os ilhéus e suas conseguintes gerações. Segundo Nóbrega (2017, p.112)
“Caboqueiro” é o termo recorrente para se referirem àqueles que lidam com os caboclos. Os termos “caboqueiros” e “médiuns” (ou mais comumente, na flexão de gênero feminina: “medias”) podem coincidir, mas não são a mesma coisa, já que médium pressupõe a capacidade de alguém “pegar caboclo”, enquanto “caboqueiro” pode ser simplesmente aquele que frequentemente está lidando com tais entidades, sem a necessidade de incorporá-las.
A devoção à umbanda traz, por meio de seus deuses, rituais e seus seres espirituais, a exemplo de caboclos, uma prática devocional consistente das religiões de roda. É comum ao se falar sobre umbanda na evocação aos espíritos de negros, de índios ou caboclos ou de qualquer outra ordem. Esses eram sagradamente cultuados e valorizados por suas mensagens e pelo trabalho espiritual de caridade que empreendiam realizando curas corporais e espirituais, abertura de caminhos e expulsão de obsessões etc.
As práticas rituais aplicadas neste contexto, mesmo tendo influência direta dos cultos negros e indígenas, haviam sido transformadas em relação a suas antecessoras, prevalecendo, então, a postura kardecista, inclusive no nome dos primeiros templos fundada por esse grupo, chamados Tenda Espírita de Umbanda e no modo de organização do culto, mais silencioso, ordenado, simplificado, muitas vezes, seguindo o padrão das mesas kardecistas. Mas esse era e continua sendo um tipo de umbanda. (Rohde, 2009).
No início do século XIX, a macumba era ritualmente pobre e muito próxima da estrutura do culto praticado pelos bantos, no qual invocavam os espíritos dos antepassados tribais. Os orixás nagôs, ainda, não haviam assumido um papel mais importante no culto. Foram lentamente introduzidos a partir do crescimento do prestígio do candomblé.
(...) A primitiva macumba, longe de ser um culto organizado [grifos meus], era um agregado de elementos da cabula, do candomblé, das tradições indígenas e do catolicismo popular, sem o suporte de uma doutrina capaz de integrar os diversos pedaços que lhe davam forma. É desse conjunto heterogêneo que nasceria a umbanda, a partir do encontro de representantes da classe mais pobre com elementos da classe média egressos do espiritismo kardecista. Foi este último grupo que se apropriou do ritual da macumba, impondo-lhe uma nova estrutura e, articulando um novo discurso um fator que deu início ao processo de legitimação (Oliveira 2008: 76).
3 O BAILADO DOS ARCOS, FLECHAS E LANÇAS NUMA GUERRA DE ENCANTOS E ENCONTROS ENTRE O SAGRADO E O PROFANO
A festa da cabocla Joana d’Arc e das guerreiras indígenas, como são nomeadas na ilha, sintetiza o objeto central deste estudo e uma das mais efervescentes manifestações da cultura, da espiritualidade e ato de guerrear e não de brigar ou lutar. A festa perdurou até meados dos anos de 1990 do século passado, passando a fazer parte do calendário cultural da ilha a partir da década de quarenta, quando, segundo descreveu Conceição, atualmente, com sessenta anos de idade, nativa da ilha e narradora em detalhes de todo processo do rito, viveram-se, no lugar, momentos de intensas alegrias.
A informante começa sua narrativa dizendo que a festa da cabocla Joana d’Arc e das índias guerreiras surgiu quando seu pai Berto Barrinha, na condição de médium espiritual, recebeu orientações de um de seus guias ou entidade, também, espiritual que se apresentava sempre como um Caboclo Francês. Segundo Rego (2021 p. 160), guia é uma entidade, que comanda a cabeça de um médium preparado. Esse “médium preparado” era nativo da ilha e muito respeitado por ser o criador e mantenedor da festa da cabocla Joana d’Arc e das indígenas. Na crença espírita, o médium é orientado por um guia espiritual a aconselhar pessoas, prever acontecimentos e render obrigações para com uma comunidade ou povo, além de atuar energeticamente no ambiente, tornando-o “sagrado”, conclui Rego (2021).
Nessa orientação o “guia” de nome francês pediu ao médium Berto Barrinha para realizar uma festa que simbolizasse uma batalha entre guerreiras históricas representativas de lugares distantes, ou seja, a França e a ilha do Massangano. A primeira, uma mulher camponesa, heroína da guerra dos Cem Anos na França, canonizada pela igreja católica, libertadora de seu povo num período no qual toda ação dessa natureza condenava a mulher por heresia ou bruxaria, as segundas, representadas pelos povos originários por meio das figuras femininas.
Assim posto, o guia ou caboclo francês orientou o médium “Seu Berto Barrinha” sobre todos os passos e normativas da festa ou guerra como preferem chamar o povo da ilha. Segundo relata Conceição, esse Caboclo Francês foi quem indicou roupas, cancioneiro, passos, objetos e local para a realização da batalha a ser travada entre dois cordões: o cordão das mulheres indígenas e o cordão da guerreira Joana d’Arc. Com exceção de “seu” Berto Barrinha, somente mulheres podiam participar do evento. “A festa já não acontece mais. Com a morte de Berto Barrinha – o “dono da festa” -, e com ela, o desaparecimento de seu guia, francês, não houve quem a “enfrentasse”, para usar um termo de lá”, conclui Nóbrega (2019, p 250). O que se enfatiza sobre a festa não é tanto a luta entre o índio e o branco colonizador, mas a atualização de qualidade guerreira, batalhadora, que, naquele contexto, se traduziu no corpo das mulheres, conclui Nóbrega (2019).
Para Arantes (2000), os elementos culturais nada significam se olhados individualmente e a cultura é constituída de sistemas simbólicos, que se articulam em seus significados e que são compreendidos de forma diversa pelos diferentes grupos sociais, ganhando sempre novos significados. Aqui, cabe a análise de que tanto um grupo como outro, na referida batalha, representam a história e a cultura em sua coletividade. O autor destaca, ainda, que o sentido mais profundo da cultura popular, ou outra, é a “arte de construir com cacos e fragmentos um espelho onde transpareça o mais abstrato e geral num grupo humano” Arantes (2000, p. 78). Na esteira do pensamento de Arantes (2000), reitera-se a força de adesão da coletividade na direção da submissão ao sagrado aliada à alegria contagiante de uma festa que tem seu eixo marcado pela religiosidade e pelo profano.
Tomando por referência o encontro entre o guia e o médium em meio ao singrar das águas do rio são Francisco, a guerra entre a cabocla Joana D’Arc e suas guerreiras e as indígenas, mulheres que marcaram e marcam o povoamento da ilha, o estudo contribui com a visão de gênero, que eleva a mulher ao seu instinto guerreiro numa dinâmica de equidade com o gênero oposto.
4 DISCUSSÃO E ANÁLISE
Quando se menciona o nome de Joana d’Arc logo salta da memória histórica coletiva a figura da mulher guerreira na França do século XV, vista como bruxa, condenada a morrer queimada e depois canonizada “santa pela igreja católica” por sua trajetória de entregas e lutas na guerra dos cem na França. Se na devoção católica Joana d’Arc é uma santa milagrosa, na umbanda Joana D’Arc ´passou a ser devotada como o orixá Obá. Prandi (2001) Narra que Obá escolheu a guerra como prazer nesta vida. Enfrentava qualquer situação assemelhando-se com quase todos os orixás. Certo dia, Obá desafio para a uta Ogum, o mais temido e ardiloso guerreiro. Conhecedor dos feitos de Obá, Ogum teria consultado os babalaôs que o aconselharam a fazer oferendas de espigas de milhos e quiabos, tudo pilado, dando consistência de uma mistura viscosa e escorregadia.
Assim Ogum procedeu e depositou o ebó num canto do lugar onde havia de ocorrer a luta. No momento da batalha, Obá, em tom desafiador, começou a dominar a luta. Ogum conduziu-a ao local onde estava a oferenda. Lá Obá pisou no ebó, escorregou e caiu. Ogum, então, sagaz aproveitou-se da queda de Obá, retirou-lhe os panos e a possuiu ali mesmo, tornando-se seu primeiro marido. Mais tarde Xangô roubou Obá de Ogum.
Nas duas correntes da linha religiosa, catolicismo e umbanda Joana D’Arc vem representar a tenacidade guerreira e certamente, por isso mesmo, foi tão reverenciada na Iha do Massagano.
A festa de Joana D’Arc na Iha do Massangano-PE teve seu início e permanência marcados pelos ritos da umbanda. O vocábulo Umbanda foi lançado, em geral, em locais pouco frequentados. Quando não, diziam as Entidades atuantes que a Umbanda era um movimento novo, que iria se espalhar por todo o Brasil, trazendo esperança, secando lágrimas, espargindo compreensão, amor, acendendo a fé, centelha divina que de há muito tempo se apagara em muitas infelizes criaturas. Iniciou-se então um movimento silencioso, mas contínuo da luz contra sombras, dos magos da face branca contra os magos da face negra (TRINDADE, 1991, p. 54).
É certo que na ilha, a umbanda, conseguiu espalhar crenças, amor, alegrias e afetividades entre os massanganos mesmo por meio da realização de uma batalha indicada pela entidade conhecida apenas pelo nome de francês. O espírito do Francês teria revelado e orientado ao médium Berto Barrinha, nativo da ilha do Massangano, para organizar e deliberar a batalha de gira na ilha entre as guerreiras de Joana d’Arc e o cordão das mulheres guerreiras indígenas.
Pierre Verger (1997) discorre, em concordância com Prandi (2001), em sua vasta obra, que no panteão dos mitos dos orixás, que o maior prazer de Obá era lutar. “Obá é uma orixá guerreira e na sua evolutiva ascendência e descendência sincretiza na umbanda a figura da guerreira Joana d’Arc”.
Nessa linha narrativa sobre a festa da guerreira Joana d’Arc na ilha, por coincidência, ou não, o médium Berto Barrinha foi orientado por um guia “francês” a ofertar essa festa à mártir, também, francesa, Joana d’Arc. Não seria, portanto, coincidência relacionar as duas personagens em seus espíritos guerreiros. Nesse sentido percebe-se que não se deve ao acaso a presença espiritual da guerreira Joana D’arc na ilha, tão pouco das índias.
A narrativa de que alguém passa para o plano espiritual sem experimentar a morte, embora se encontrem interpretações bíblicas lá em Gênesis 5:22-24 e Hebreus 11:5), não é recorrente nas narrativas cristãs e ocidentais. São as histórias de pessoas que morreram e voltaram em espírito, com ou sem incorporação, para consolar, atormentar ou se vingar de familiares, amigos e desafetos. Essas narrativas povoam o imaginário popular e, assim sendo, ganharam lugar de destaque na literatura, no cinema, nos folhetins de tevê, nas produções de cordel, na música e nas rodas de conversa em comunidades rurais do sertão nordestino como sempre ocorreu na ilha do Massangano – uma forma de compreender que os “não vivos” continuam retornando aos espaços terrenos.
A partir deste contexto, o interesse deste estudo voltou-se para as narrativas coletadas pelos moradores da ilha do Massangano sobre a festa ou batalha da guerreira Joana d’Arc vivenciada por cerca de seis décadas – tempo significativo na (re)produção de uma tradição de caráter híbrido, ou seja, traduzindo crenças e religiosidades de diferentes matrizes como a umbanda e o catolicismo, mas, também, luta, heroísmo feminino e as alegrias de natureza profana que invadiam a ilha naquelas ocasiões, perdurando até meados dos anos noventa do século passado. Mas como toda festa cumpre seu tempo, a batalha ou festa da guerreira Joana D’arc e das índias como são chamadas na ilha do Massangano, também, foi “demarcada por meio de uma série de alterações espaciais, comportamentais, emocionais e fisiológicas, e de usos de objetos materiais, que vem estabelecer simbolicamente uma complexa separação em relação ao tempo cotidiano” (Gonçalves; Contins, 2009, p. 15).
A batalha, segundo relato de Conceição, foi orientada ao seu pai Berto Barrinha numas de suas viagens a vapor pelo rio São Francisco. Em uma dessas navegações “rio acima” termo que corresponde à direção geográfica das Minas Gerais, um guia, chamado de francês lhe ensinou como fazer a “batalha de Joana d’Arc”, também, conhecida como “a batalha das índias”. Seu Berto Barrinha era médium e mantinha duas casas de caboclo na ilha, juntamente com sua irmã. Segundo a informante Conceição, filha de seu Berto Barrinha, “caboclo é entidade de respeito na ilha e povoa, sobretudo, suas encruzilhadas e ai de quem não pedir licença para cruzar as estradas do lugar por onde eles transitam, principalmente ao meio-dia e às 18h” – instantes em que os caboclos ficam na espreita dos transeuntes que andam pela ilha.
A casa ou casona dos caboclos de “Seu” Berto Barrinha cumpria o sério compromisso de manter o rito ou as giras durante três dias da semana: segundas, quartas e sextas-feiras. Giras, conforme Rego (2021) é um termo comum na umbanda, referindo-se à cerimônia para “incorporação nas médiuns, às entidades ou orixás. Serve, também, na despedida das entidades. Girar, dançar em roda. É certo que por essa ocasião a ilha era em grande quantidade povoada pelas “medias finas”, ou seja, por mulheres que incorporadas por espíritos de caboclos dedicavam seus tempos de folga a brincar com essas na, também, chamada casa dos caboclos. A construção do personagem do caboclo pelos médiuns integra quase sempre gestos e comportamentos associados pelas classes médias à falta de educação do povo: os “caboclos” xingam e bebem demais, todos recusam-se a ler e a aprender a contar as horas, alguns se vangloriam das travessuras que fizeram, enquanto outros, por princípio e para o prazer do público, estranham coisas ligadas à “modernidade”. Boyer (1999, p. 36)
Na ilha do Massangano, conforme a agenda ritualística, o dia de segunda-feira era dedicado e vivenciado pelas giras, a quarta-feira fazia reverência aos caboclos e “caboqueiras” e as sextas-feiras eram dedicadas a corrente das águas. Aliás, tudo na ilha nasce e retorna para as águas. Lá habitam os encantados, presenças vivas no fundo das águas do Velho Chico e, por isso mesmo, dignos de cerimônias e reverências entre os massanganos. Os encantados, segundo conceitua Loureiro (2001, p. 97), são espíritos que habitam em encantarias, espécies de cidades dos encantados que ficam localizadas na natureza, geralmente embaixo de um rio ou em algum lugar no interior de alguma mata.
De acordo com Ferretti (2008), em São Luís –MA, os encantados são concebidos como espíritos de pessoas que um dia viveram na terra, mas que desapareceram misteriosamente, ou como seres que sempre foram espíritos. O mundo dos seres encantados tem se revelado nas narrativas orais dos ilhéus massanganos como seres que habitam o fundo do rio ou as matas e que precisam de rezas e de considerações dos vivos para que esses não lhes “perturbe” o sossego.
Segundo esclarecem, os ilhéus, os encantados são seres invisíveis, mas com o poder de se aproximarem e serem sentidos por quem está por perto. São “almas penadas ou errantes” que partiram antes do tempo e vivem escondidos no fundo do rio, nas encruzilhadas e nas caatingas fechadas.
Conforme Cascudo (2012) uma encruzilhada é um caminho de cruzamento e passagem para diversos outros lugares, lugar clássico de invocações e encantamentos para todos os povos. Também, local de demônios, chamados pelo poder rogatório, e dos espíritos noturnos, sinistros e misteriosos. Para os massangano, como evidência Conceição, é, também, o lugar preferido das almas penadas e dos caboclos encantados que saem do fundo do rio para assombrar quem passa pelas encruzilhadas.
A percepção popular sobre “alma penada” é referente ao espírito de alguém que já morreu e deixou dívidas ou praticou muitas maldades na terra. A partir dessas condições, ficam vagando ou sempre perambulando por diversos lugares para atormentar os vivos.
A casona de Seu Berto Barrinha ou casa dos caboclos, como até hoje é nomeada na ilha, representa o lugar sagrado das giras e da memorialística festa do exército da guerreira Joana D’arc e das índias caboclas. As caboclas e caboclos são concebidos como espíritos de ancestrais indígenas.
Hoje, viva apenas na lembrança afetiva dos ilhéus massanganos, a festa, ainda, representa a reunião, em seus tempos áureos, de quase todas as mulheres da ilha – únicas protagonistas do espetáculo. Conforme narra Conceição, seu pai Berto Barrinha foi fiel aos ensinamentos do guia francês. A festa era organizada a partir de dois cordões: cordão branco, com vestes, também, brancas representava a ala de Joana D’arc portando suas armas: as lanças. A ala verde, com suas vestes na mesma tonalidade, era a das índias guerreiras com seus arcos e flechas.
De acordo com Prandi (2001), esses elementos constitutivos da festa passam a empreender os outros sentidos que constituem a heteroglossia religiosa presente “nos objetos rituais, nas cantigas, nas rezas, cores das roupas, nos rituais secretos e danças, nos arquétipos, mitos ou modelos de comportamento das entidades incorporativas. Assim relacionado, cada lado era composto por sete guerreiras. Com sete integrantes em cada lado, cada ala deveria ter como enfrentante uma média fina.
No caso da ala das índias, essa deveria estar adornada com penachos de ema, enquanto a ala de Joana d’Arc apresentava sua enfrentante vestida à moda Joana D’Arc tal e qual a guerreira donzela na França: indumentária inspirada num quadro da heroína francesa adquirido pelo irmão do organizador da festa “Seu Berto Barrinha” em uma de suas viagens por cidades ribeirinhas do “Velho Chico”, nome carinhoso atribuído ao rio São Francisco pelas comunidades que habitam seu entorno. Cada ala portava, também, sua bandeira com suas respectivas porta-bandeiras. A festa ocorria sempre no mês de dezembro que no calendário da umbanda é dedicado à cabocla Joana d’Arc.
Nessa “real miscigenação” a coreografia se fazia pelo arremesso de flechas, arcos e lanças produzidas por “seu” Berto Barrinha. Essas eram arremessadas no salão formando no ar um quase bailado ou em solo como uma dança de ninfas em seus lances de sedução e num ritmo que remete a uma quase peleja sonora. O cancioneiro que marcava os episódios da guerra foi cantado “com gosto e um certo ar de saudade” pelas participantes do duelo, segundo a entonação de seus versos melódicos por Conceição para o pesquisador. A canção traz como letra o texto abaixo transcrito:
Canto de guerrear
(Cancioneiro das Índias)
Sultão das Matas, ô á
Traga tua aldeia
Que eu mandei chamar
Ô que índias são essas, de flecha na mão?
Pegue a sua lança em toda posição
Ô de onde delas são,
Da aldeia de Sultão!
Sultão das Matas, ô á
Traga sua aldeia
Que eu mandei chamar
O apelo à presença do Sultão das matas remete a festa que “aparentemente” não estaria conectada à religião, mas que por ser orientada por um guia e praticada na casa dos caboclos teria sua conexão com o sagrado. A presença dos caboclos é identificada nas mais variadas morfologias de coletivos religiosos afro-brasileiros, contudo, para a religião umbandista são actantes indispensáveis para agenciamento dos trabalhos. (Oliveira, 2004; Carneiro, 2008).
Como regra ou tratativa da batalha não podia existir sentimento competitivo, raivoso ou de disputa brutal e real entre as guerreiras, pois se tratava de uma guerra guiada espiritualmente, ensaiada, pensada, refletida, dançada e cantada. Para Conceição não havia vencidos e nem vencedores. Essa ontológica condição reflete o sentido de guerra como um jogo que se faz num tabuleiro entre amigos e onde os que estavam no front da guerra entendiam a dimensão de como deve ser um espaço sagrado. No entanto, a ala vencedora era sempre a das índias guerreiras, talvez em memória as primeiras habitantes do lugar.
O fato de a festa ser composta apenas por mulheres numa notória distinção de gênero nos faz crer que para os massanganos a mulher desempenha um papel de relevante protagonismo em suas histórias, como um ser que não precisa ser objeto de discussão em relação a correlação de força que grassa entre os gêneros nas sociedades “reconhecidamente civilizadas e civilizatórias”.
(Abertura da cantiga da ala da Cabocla Joana d’Arc)
“Deus vos salve, índio guerreiro
Guerreiro e guerreador
Vejam debaixo de ordem
Preso pelo imperador
Nós somos índios guerreiros,
Todos são guerreador
Nós precisamos ver
Quem é esta batalhadora
Sou eu a Joana D’Arc
A grande batalhadora
Mas com a fé em Deus
Nós somos as vencedoras
Que guerreira é aquela?
Que vem guerreando pelas matas
É a Joana D’Arc
Guerreando contra os adversários
(...)
Cutila, cutila, cutilá, cutilá
Cutila esses mouros que vieram batalhar
Que eu sou uma guerreira
Sou guerreira real
Ô guerreira Joana D’Arc,
receba a ordem imperial
Rei da França mandou dizer
Que chegue-se até lá
Chama o meu país de França
Joguei minha lança no ar
Ainda se duvidar, vão ver sangue avoar”
Canto de encerramento da festa
Adeus Joana D’Arc guerreira
Da mata toda guerreira
Chegou os índios de flecha guerreira
Lá nas matas flechei.
Ressalta-se que todo o cancioneiro da guerra foi orientado pelo Guia Francês ao Sr. Berto Barrinha e representa uma “quase peleja” termo usado no dia a dia para indicar a batalha diária de um trabalhador ou operário em seu mundo do trabalho e também com o sentido da poética popular que simboliza a luta metafórica entre as palavras na construção de um desafio na seara artística. Importante ressaltar que no movimento ou coreografia em dinâmica na guerra ensaiada da cabocla Joana D’Arc e das índias guerreiras o canto representa o desafio de um grupo a outro e ao mesmo tempo um apelo a relevância histórica, guerreira, sagrada e social dos dois como numa ode que glorifica e exalta a todos os envolvidos na batalha numa só dimensão vitoriosa.
Ao rememorarem a batalha da Cabocla Joana D’Arc e das índias guerreiras, os ilhéus massanganos deixam claro em seus relatos que na ilha tudo converge para a existência de um só povo que se constituiu pelos lações de família, de compadrio, de amizade e de afetividade. Uma grande família enlaçada nos mesmos ideais, com suas feições devocionais e festivas unida pelo intuito de conservar seus valores ancestrais em desdobramentos de sucessivas alianças para que a borracha do tempo não consiga apagar suas histórias de luta, de re (existência).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo foram apresentados e descritos recortes de um extenso painel de vivências festivas e devocionais desenhados pela comunidade rural negra da ilha do Massangano no semiárido Nordestino. O estudo de natureza etnográfica mostra parte da trajetória de um povo em seu processo de re(existência) cultural, étnica e histórica tematizando toda uma ritualização de seu cotidiano. O estudo oportunizou o conhecimento da gênese de uma guerra ensinada e ensaiada pela espiritualidade das entidades protegem as gentes que ali habitam.
Novas dimensões e sentidos do fazer festa numa casa de caboclos, seres encantados não no sentido figurado mais real do que imaginado e refutado por (Carneiro, 2005) como mera alegoria ou metáfora é firmar a toada do racismo epistemológico, possibilitou o descortinar de outra forma de constituir o amor pelos propósitos de uma guerra cantada e guiada nos meandros do sagrado do umbandista – uma religião e seus mitos de puro amor. Os domínios da festa se superam pela intenção de não a conduzir pelas veredas da maldade, como os massanganos da ilha deixam evidente em seus relatos.
Contudo, como refletiu Tambiah (1985) discorrendo sobre ritual, “não podemos demarcar ou definir os domínios dessa prática, elas podem existir em todos os lugares e serem demonstradas de diversas maneiras”. Mas lá na ilha esses domínios estão no domínio do bem, tanto é que “ficamos cada vez mais prenhe de amor em cada guerra travada na casona” concluiu Conceição.
Tendo como expressão sagrada o rito oriundo da mediunidade espírita, representada pela comunicação entre guias e entidades, os resultados da pesquisa apontaram que, acima de tudo, a batalha vivenciada numa comunidade insular do Sertão do Médio São Francisco fortaleceu, definitivamente, laços afetivos, festivos, identitários, culturais, religiosos e de memória entre os massanganos.
REFERÊNCIAS
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