ESCREVIVENDO1 MEMÓRIAS DE UM PASSADO NEM TÃO DISTANTE:
DA SALA DE COSTURA À COZINHA, UM CAMINHO AFETIVO DE MINHAS AVÓS
Erika Silva Chaves1*, Maria Inês Corrêa Marques2, Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira3
1Universidade Federal da Bahia (UFBA) PPGDC
2 Prof.ª Dra. da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
3 Prof.ª Dra Universidade Federal da Bahia (UFBA)
*Autor para correspondência e-mail: erikachaves2003@yahoo.com.br
Recebido: 25.10. 2023 Aceito: 21.04. 2024
RESUMO: Esse artigo trouxe a experiência de reviver histórias passadas com os meus entes, buscou imprimir minha formação através das memórias vividas, e fui apresentada a um lugar até então desconhecido. O objetivo desse estudo foi revisitar memórias de um passado não tão distante e que se deparou em muitos momentos com a minha formação. Utilizei como metodologia a cartografia sentimental de Rolnik (2016), na qual ela explica a exteriorização dos sentimentos, através da delineação dos movimentos. Além de utilizar a teoria cultural de Assmann (2006), a qual me trouxe a conexão da minha identidade. Como resultado, pude experimentar, escreviver, que, segundo Conceição Evaristo (2020), traz a junção das palavras "escrever e vivência", mas a força de sua ideia não está somente nessa aglutinação; ela está na genealogia da ideia, como e onde ela nasce e a que experiências étnica e de gênero ela está ligada, e reviver experiências passadas que, para a Estés (2018), é uma experiência que pode tocar a nossa alma. Com isso, deparei-me com a Polilógica de Galeffi (2017), quando ele diz que a vida humana não só pode se modificar pelas experiências vividas, mas também pode se formar por elas e que podemos dizer que as nossas aquisições ao longo de todo o nosso processo de formação foram devidas a essas experiências. Concluí que, nesse processo de redescobertas das minhas conexões com o que sou, os saberes que foram transmitidos por minhas avós, no presente momento, fizeram parte da minha formação. Portanto, foi de grande importância trazer à luz toda a minha história. Às vezes, enquanto eu me aprofundava em meu passado, meus sentimentos ficavam tão fortes que eu não conseguia expressá-los em palavras. E é isso que me faz dizer que parte de mim pertence ao meu passado, parte de mim pertence ao meu presente e uma pequenina parte de mim pertence ao meu futuro – embora ainda seja desconhecido.
Palavras-chaves: Memórias; movimentos; passado; histórias; cartografia afetiva.
WRITING AND EXPERIENCING MEMORIES FROM A NOT SO DISTANT PAST:
FROM THE SEWING ROOM TO THE KITCHEN, AN AFFECTIVE PATH OF MY GRANDMAS
ABSTRACT: Throughout this article I could relieve some good stories with my loved ones and show how my past influenced the construction of my identity. Throught that I was presented to a place somewhat unknow. So, the purpose of this study was to revisit memories from a ‘not-so-distant past’ and analyse what does it have to do with who I am, currently. I used Rolnik's (2016) sentimental cartography as a methodology, in which she explains the externalization of feelings, through the delineation of movements. Besides that, I also used Assmann's cultural theory (2006), which brought me back to my identity. As a result, I was able to experiment, write, which according to Conceição Evaristo (2020) brings together the words "writing and experience", but the strength of her idea is not only in this agglutination; it is in the genealogy of the idea, how and where it is born and what ethnic and gender experiences it is linked to, and reliving past experiences that, for Estés (2018), is an experience that can touch our soul. Which resonates with the Polylogic of Galeffi (2017), when he says that human life not only can be modified by past experiences, but it also can be formed by them, and so, all the knowledge and wisdom are due to them. So, I concluded that in this process of rediscovering myself the lessons that were taught to me throughout my life, since my grandmothers until these days, played an essential role on the formation of my identity. Therefore, it was of great importance to bring it to light my entire story. Sometimes, as I was digging deep into my past, my feelings have gotten so strong that I could not put them into words. And that it is what makes me say that part of me belongs to my past, part of me belongs to my present, and a tiny little part of me belongs to my future – although it is still unknow.
Keywords: Memoirs; movements; past; stories; affective cartography.
ESCRIBIR Y VIVIR MEMORIAS DE UN PASADO NO TAN LEJANO:
DEL SALA DE COSTURA A LA COCINA, UN CAMINO AFECTIVO DE MIS ABUELAS
RESUMEN: En el artículo, presento la experiencia de reavivar historias que ocurrieron con la participación de mis seres queridos. Busco exponer el proceso de mi educación a través de recuerdos pasados. Me adentro en un lugar hasta ahora desconocido. Por lo tanto, el objetivo de este estudio es repasar recuerdos de un pasado no lejano, que entrecruzó con mi formación académica en muchas ocasiones. Utilicé como metodología la cartografía sentimental de Rolnik (2016), la cual explica la exteriorización de sentimientos, a través de la delineación de movimientos. Además, me serví de la teoría cultural de Assmann (2006), la cual me proporcionó la conexión con mi identidad. Como resultado, pude experimentar, escribir, que según Conceição Evaristo (2020) reúne las palabras "escritura y experiencia", pero la fuerza de su idea no está solo en esa aglutinación; es en la genealogía de la idea, cómo y dónde nace y con qué experiencias étnicas y de género se vincula, y revivir experiencias pasadas que, para Estés (2018), como una experiencia que puede tocar nuestra alma. Igualmente, me basé en la Polilógica de Galeffi (2017), cuando dice que la vida humana no sólo puede ser modificada por las experiencias vividas, sino que, uno puede también formarse por ellas. Me arriesgo a afirmar que mis adquisiciones a lo largo de mi proceso de formación se debieron a las dichas experiencias. Las conclusiones que puedo sacar del proceso de evocación de la memoria para descubrir quién soy, se dieron a través del intercambio con mis abuelas. Por ello, es fundamental profundizar mi historia de vida, ya que, las emociones y los sentimientos, en muchos momentos, son complejos a la hora de describirlos. De esa manera, puedo manifestar que soy parte de mi pasado, mi presente, que me llevará a un futuro desconocido.
Palabras clave: Memorias; movimientos; pasado; cuentos; cartografía afectiva.
INTRODUÇÂO
A minha vida, em muitos momentos, depara-se com minhas memórias afetivas de um tempo que não volta mais; tempo esse que, às vezes, torna-se turvo e sem muitas visões, tempos outros que mostram cheiros, texturas e sensações, como um vento que sopra as lembranças do passado que jamais retornarão. Esse turbilhão de sensações e de emoções que provamos pela vida e que fazem parte de nossas experimentações e vivências.
Segundo Rolnik (2016), essas memórias da cartografia afetiva nos possibilitam deixar o nosso corpo vibrar, entrar em várias frequências possíveis e tais frequências podem nos levar a vibrações, sons e canais de passagem/caminho.
Quando coletamos essas histórias dentro da nossa mais profunda memória, praticamos uma atividade paleontológica contínua, que, para Estés (2018), quanto maior for o número de ossos do esqueleto de nossas histórias, maior será a nossa probabilidade de descobrirmos a história inteira. Porém, faz-se necessário penetrar novamente numa história pela porta da escuta, pois é muito mais fácil poder falar sobre sua vivência do que escrevivê-la; isto é, segundo a autora Conceição Evaristo (2020), trazer a história de nós mesmos, através da oralidade, resgatando nosso passado e nossas heranças que estavam escondidos lá no fundo da nossa memória.
Então, quando eu busco as vivências do passado não tão distante, estou revivendo e apresentando minha formação como pessoa parte da sociedade, informações que contribuíram, de certa forma, para o que sou atualmente.
Nesse caminho das redescobertas, o autor Assmann (2006) apresenta-nos a Teoria da Memória Cultural, na qual afirma que as conexões da memória cultural se cruzam com a identidade, permitindo-me delinear as recordações do passado e, através desse processo, desenvolver uma imagem e uma identidade de mim mesma no presente momento.
Contudo, para a metodologia de escrita do artigo, utilizei nesse estudo a cartografia afetiva de Rolnik (2006), que traz a cartografia sentimental como estratégia sobre as formações sociais e como esse processo é compreendido. A autora traz a exteriorização de sentimentos e percepções, buscando delinear os movimentos que se apresentam. Assim, de forma sensível, faço um estudo etnográfico descritivo e exploratório, através da cartográfica sentimental e embasado em uma revisão bibliográfica.
Depois da seleção dos artigos e livros, foi utilizado, também, para a escrita desse estudo, a Teoria Cultural de Assmann (2006), mas sob a perspectiva de apresentar os saberes e as práticas de um determinado período da minha formação humana e identitária; o que delineou em muitos momentos o caminho a ser percorrido na escrita.
Também utilizei a Escrevivência para narrar minha história; de acordo Conceição Evaristo (2020), é necessário visitar as histórias vivenciadas do cotidiano, recuperando-as, pela memória, indo ao passado... lugar do encontro possível com parte da minha família.
Encontrei nessa caminhada a Teoria Polilógica de Galeffi (2017), que, no decorrer da escrita, pude inferir e compreender que muitas das ações passadas das minhas vivências e dos muitos saberes que absorvi na infância tinham entrelaces com a Polilógica, pois o ser humano tem traços da prática dialógica, em que configura a arte de aprender, como: aprender a ver-ser, aprender a pensar, aprender a viver junto, aprender a fazer. Então, a Cartografia Afetiva, assim como a Teoria Cultural, a Escrevivência e a Polilógica foram caminhos metodológicos da minha escrita.
O início da minha escrita acontece como se uma porta, a porta da casa de minha avó, estivesse aberta para me receber. Daí a sensação de encontrá-la (minha avó) assim que eu atravessasse a porta da minha memória. No segundo momento do texto, vejo-me: “[...] então, essa sou eu!”, pois, depois de percorrer o fundo das minhas memórias, reconheço-me nas minhas ancestralidades e no vínculo de amor e afeto do/pelo outro.
Contudo, para a autora Estés (2018), quando escutamos uma história, ela percorre um caminho pelo canal auditivo até chegar ao bulbo cerebral; onde esses impulsos seriam transmitidos e transcritos para o consciente ou, melhor dizendo, tocando o fundo da alma de quem a ouve.
REVISITANDO A PORTA DO CORAÇÃO
Portanto, começo a escavar esse tempo agora, não pela história falada, mas pela história escrita. Inicio meu caminho passando a mão em uma máquina de costurar antiga, daquelas que só funcionava quando os pés balançavam e fazia a roda da máquina girar e costurar. Nesse momento a sensação de volta ao passado foi tão intensa, deparei-me na porta da casa de minha avó materna, aquelas portas grandes, com quase dois metros de altura, de madeira e com uma fechadura de ferro, e a percepção de voltar a esse momento foi indescritível, porque estou entrando pela porta enquanto passeio a minha mão nos contornos da máquina de costura. Quanto mais deslizo minha mão... mais memórias e sensações eu tenho.
Ao tocar delicadamente a roda da máquina, encontro-me no corredor da casa de minha avó olhando para o final e tentando enxergar quem estava ali, parada ao fim do corredor, com a luz do sol ao final da tarde entrando pela janela dos fundos, e iluminando todo o corredor, e deixando tudo muito nublado em meus olhos.
Busco aquela vovozinha com bochechas rosadas, e vestido comprido, com chinelos de couro, e cabelo curto. Tento encontrá-la através da luz que perpassa por entre os espaços vazios do seu corpo, fazendo um contorno. Paro, respiro e tenho a sensação de sentir aquele cheirinho de alfazema que só ela costumava usar. Nesse momento minha respiração para meu coração dispara e meus olhos se fecham.
Posso não ver o seu rosto, mas posso sentir sua presença em cheiro, em sons, em toques. Ela está aqui, e eu estou sentindo a sua presença. Minhas mãos agora estão na mesa da costura, feita de madeira e, ao mesmo tempo, escuto minha avó chamando para tomar um prato de sopa de verduras com aquele cheiro característico de sopa de vó, tão caloroso e afetuoso, sensação de estar em um lugar bem-acolhida e agasalhada.
Corro pelo corredor de madeira, escuto as minhas passadas e os ruídos que o chão produz; quero chegar logo à mesa, poder sentar e provar dessa sensação, uma vez esquecida, que aquecia meu coração.
Foram poucos os lugares da minha vida em que senti um acolhimento e um pouco de amor, esse era um desses lugares. Sim, sinto saudades do cheiro da sopa, do som da máquina de costura, e até das broncas amáveis dessa minha avó.
Quando dei por mim, minhas mãos estavam querendo costurar uma colcha de retalhos sobre esse momento, sem perder um fio, uma linha, nenhuma história. Como posso trazer dessas memórias tão vívidas a sensação de estar em um lugar que não estou há tanto tempo? “[...] significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão” (Chiziane, 2018, p. 18).
Agora me sento com uma xícara de chá, começo a apreciar o sabor e o cheiro das ervas medicinais; e, ao mesmo tempo em que estou em transe pela recordação do toque da máquina de costura, parece que novamente estou entrando no túnel do tempo, recordando de como eu comecei com o gosto pelas ervas e flores e porque eu tenho uma fascinação por tudo que pode curar através das plantas. Nesse sentido, Rolnik (2016) afirma que:
[...] o olhar não é do tipo que se debruça sobre as mutações vividas nesse processo, mas daquele que se constrói junto com elas e como parte delas. Um olhar vibrátil impregnado de forças que agitam naquele período, cuja expressão, aqui sob forma de livro, participa da construção dos territórios que então se fazem, pelo viés específico da sua cartografia (Rolnik, 2016, p.15).
Então tento buscar explicações sobre essa habilidade e essa facilidade em estudar a fitoterapia, já que poderia até ser pela minha ancestralidade o identificar-me com o natural: minha bisavó materna era filha de uma mulher negra muito entendida sobre as ervas, folhas e flores, e, por conseguinte, sua mãe a ensinou a arte e a sabedoria das ervas e da culinária, e ela, por sua vez, buscou passar para as suas bisnetas esses saberes culturais.
Enfim, minha bisa era uma vovozinha doce e sem muita instrução, porém nos ensinava o que tinha aprendido com a mãe dela, isso me faz transcrever os saberes e as práticas de Galeffi (2017):
Não se trata de definir “competências” e “habilidades” ao modo do produtivismo competitivo, seletivo, bancário, dominante, e sim focar a atenção no desenvolvimento humano pela aprendizagem de suas dimensões vitais. Na avaliação Polilógica, avalia-se o sentir e perceber, o pensar e conhecer, o viver-junto, o fazer e o ser (Galeffi, 2017, p. 138).
Quanto era bom tomar alguns chás preparados por ela para melhorar a minha saúde; dizia ela: “[...] minha filha, tome isso que é bom pra tua alma [...]”. E, sim, o chá de camomila trazia paz e tranquilidade a minha alma e, quando ela trazia uma garrafada para acabar com a gripe e resfriado, ela exteriorizava: “[...] isso é bom pra tirar todo o catarro do seu corpo [...]”.
E quando minha barriga doía de fome, subia no fogão à lenha da minha bisa e sentia aquele cheirinho de xinxin de galinha, galinha de molho pardo, feijão-verde. Então, quando olho para uma panela de barro, lembro-me desses sabores da infância. E toda vez que faço um bolo e ele sai quentinho do forno, lembro-me da fisionomia da minha bisa rindo e perguntando: “[...] quer um pedaço de bolo com suco, minha flor?” Não era só o bolo, era o carinho, era o amor feito no forno, sendo fatiado e ofertado com tanto acolhimento; muitas saudades desse passado.
[...] nosso comportamento alimentar se deve ao espaço que crescemos e com as pessoas com as quais convivemos. Essa memória cultural nos acompanha por toda vida, pois ela pode ser resgatada em alguns momentos da vida cotidiana pela nossa memória afetiva. Por esse motivo, que algumas receitas podem nos transportar à infância, e ou a outros momentos passados da nossa vida (Pires e Kluczkosvki, 2021, p. 8).
Desse modo, fui buscar a etimologia da palavra saudade, que agora está mexendo e doendo em meu peito. Ela tem origem na palavra, que vem do latim, "solitatem" (solidão) e no galego-português, "soidade", que originou as formas arcaicas "soidade" e "soudade”, as quais se ajuntaram às palavras "saúde" e "saudar", dando origem à saudade. (Dicionário, 2023). Porém, para Aurelio (2023), significa um sentimento de lembrança de um momento vivido no passado, uma vontade de reviver algo e experiências passadas. Para mim, saudade é o amor que fica.
Então, estou aqui sentada novamente, passando a minha mão pela máquina de costura e lembrando da fisionomia dessas duas mulheres sábias e lutadoras; estou aqui acalmando minha alma com o seu chá e tentando trazer um pouco de carinho e afeto nesse momento para meu corpo.
ENTÃO, ESSA SOU EU
Desse movimento trago crenças, costumes, tradições e espaços geográficos afetivos distintos que, ao mesmo tempo, cruzam-se em minhas memórias e que apresentam um significado antropológico do meu ser em dois tempos/momentos díspares.
Antropologicamente, posso dizer que minha identidade e formação perpassou em dois momentos distintos, em dois espaços sociais diferentes, porém no mesmo lugar. Logo, quando criança, o espaço me parecia um lugar grande e cheio de conhecimento, saberes e afetos.
De um lado, minha avó costureira, bordadeira e cozinheira, que me ensinou a bordar, costurar; do outro, minha bisa cozinheira, sábia, com seus dotes curandeiros, apresentou-me o contato com a natureza, com os chás, com as flores, com o pé no chão; e do abraço terno e fraterno, muitas vezes quente e acolhedor, que, de forma involuntária, fez-me aprender esses saberes culturais.
Hoje, com um olhar maduro e cheio de experiências, aproveitando os saberes aprendidos e estudados dentro da academia, posso me reencontrar e entender o que muitas vezes o tempo presente nos faz esquecer.
Esse reencontro com as minhas avós trouxe, em poucos segundos, aquelas poucas vezes que sentimos um arrepio e dizemos da boa sensação, ou que um anjo nos abraçou naquele instante. Estar, assim, trazendo essas escrevivências de um passado cheio de conhecimento, cheio de sensações, cheio de saberes que se entrelaçam e me apresentam o eu dentro de mim que eu tinha esquecido, melhor dizendo, que havia adormecido.
Agora posso dizer que sou a prova viva de escreviver memórias de um passado nem tão distante, mas ao mesmo tempo tão presente em minha memória. O que me resta, enfim, são: fotografias, memórias e sensações, lembranças de um passado com tanto a dizer e tanto a me ensinar.
Apenas hoje, percebo todas as influências e os conhecimentos adquiridos desse passado: a costura e os pontos de cruz em cada detalhe do costurar, trouxeram a lembrança de uma criança que ainda podia acreditar em sonhos; e o gosto dos chás, das ervas em proteção e saúde do meu corpo, vieram da sabedoria da minha ancestralidade negra, que me ajuda a entender e a estudar sobre o poder das ervas e a cura por elas.
Compreendo, através dessa escrivivência, uma constelação de sensações, antes não percebidas. Hoje, na minha fase madura, percebo que o verão era ali, pois trazia em mim uma atmosfera de ar fresco e liberdade; sim, aquele lugar de rememoração me fez sentir viva.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para iniciar a escrita deste artigo, debrucei-me em alguns artigos de Assmann (2006), quando ele explica que toda memória cultural preserva nossa identidade adquirida ao longo de nossa formação, que, segundo o próprio autor, seria uma herança institucionalizada, ou seja, quando buscamos lembrar das nossas memórias, estamos resgatando o motivo pelo qual fomos formados: “[...] a memória cultural é a faculdade que nos permite construir uma imagem narrativa do passado e, através desse processo, desenvolver uma imagem e uma identidade de nós mesmos” (Assmann, 2006, p. 110).
É importante salientar que, para fazer sentido uma escrita, mesmo de rememoração de sua história, faz-se necessário entender o caminho a ser seguido, além do desejo de mergulhar novamente em um túnel do tempo, e resgatar a sua própria vida naquele tempo passado. E a esse desejo, Rolnik (2016) explica que existem três movimentos; no primeiro movimento, os corpos deveriam ser afetados e ter seu poder de afetar; no segundo movimento, como essa intensidade experimentada pode compor um plano de consistência; e o terceiro movimento faz-nos perceber a nossa própria existência, um território conquistado, um espaço. “[...] o desejo, nesta concepção, consiste no movimento de afetos e de simulação desses afetos em certas máscaras, movimento gerado no encontro dos corpos (Rolnik, 2016, p. 36).
É quando se percebe o óbvio, que nós podemos retornar ao nosso lugar, apresentando essa vibratilidade do corpo.
Coletar histórias é uma atividade paleontológica continua. Quanto maior o número de ossos do esqueleto de histórias que tivermos, maior a probabilidade de descoberta da história inteira. Quanto mais inteiras forem as histórias, maior será o número de mudanças e desenvolvimentos da psique a nós apresentados, e melhor será nossa oportunidade de captar e evocar o trabalho da alma (Estés, 2018, p.31).
Com isso, me deparo com a Polilógica de Galeffi (2017), quando ele explica que a vida humana pode não só se modificar, como também se formar por experiências do sentir, do experienciar, do habitar e do propagar, um meio onde podemos nos certificar das nossas aquisições ao longo de todo o nosso processo de formação de ser humano.
E, para desenvolver a escrita preservando minha história fidedignamente, revisitei objetos que foram utilizados por minhas avós e busquei cheiros e alimentos que me fizessem retornar àquele espaço da infância. Nesse contexto, Conceição Evaristo (2020) explica que a escrevivência produz e desenrola os fios de nossas experiências múltiplas ao mesmo tempo que revisitamos nosso território.
CONCLUSÃO
Concluí, ao final da escrita e dos estudos, o quanto é importante revisitarmos nosso passado. Porém, essa revisitação tem que ter bases, por vezes, científicas para entendermos o processo da escavação de memórias adormecidas.
Por muitas vezes, felizes, por outras vezes, dolorosas, é importante, porém, que possamos fazer essa experimentação, para que consigamos nos reconhecer no agora. É complexo, é difícil, entretanto, é bastante gratificante quando buscamos perguntas e obtemos respostas ao longo da nossa pesquisa cartográfica.
As redescobertas das minhas conexões sobre tantos assuntos vieram à tona, pois percebi que foram transmitidos por saberes de minhas avós e que foram absorvidos por mim enquanto criança. A sensação de passar a mão em uma máquina de costura, o cheiro do chá de camomila que me transportou a um tempo não tão distante, porém a um lugar que não posso retornar, pois já não está mais ao meu alcance, fez-me perceber a importância do presente.
Quando falo das sensações que eu experimentei com o toque e o cheiro, não posso deixar de relatar a sensação do meu coração. Em muitos momentos da escrita, ele chorava por não estar mais naquele local e por não ter a presença delas na minha vida; em outros, ele ficava tranquilo por ter vivido e apreciado aquelas vivências.
Foi uma experiência indescritível fazer esse estudo, pois posso dizer que meu passado me faz presente, me formou como ser humano e traçou minha identidade. E esses traços, essas experiências, essas vivências, com certeza, levarei para o meu futuro, apesar de desconhecido.
Agradecimentos
Sinceros agradecimentos a professora Drª Maria Inês Correa Marques, a professora Drª Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira, a Fapesb, minha agência de fomento à pesquisa, e, principalmente, as minhas queridas e amadas avó Anathilde Sulz de Almeida (in memorian) e a minha bisavó Donata dos Santos (in memorian).
REFERÊNCIAS
Assmann, Jan. Communicative and cultural memory. In: ERLL, Astrid; NÜNNING, Ansgar (Ed.). Cultural memory studies: an international and interdisciplinary handbook. Berlin; New York: De Gruyter, 2006. p. 109-118.
Chiziane, Paulina. O alegre canto da perdiz. Porto Alegre: Dublinense, 2018.
Dicionário Aurélio: On-line de Português. In: Dicionário Aurelio: saudade. 1.0-RC2. 1. ed. On-line: Origem, 2023. 1. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/saudade/. Acesso em: 6 out. 2023.
Dicionário Etimológico. In: Dicionário Etimológico: saudade. 1.0-RC2. 1. ed. On-line: Origem, 2023. 1. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/saudade/. Acesso em: 6 out. 2023.
Estés, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com lobos. 1. ed. Rio de Janeiro. Rocco, 2018.
Evaristo, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabela Rosado. Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 48-54.
Galeffi, Dante. Recriação do Educar: Epistemologia do Educar Transdisciplinar. Berlin: Novas Edições Acadêmicas, 2017.
Pires, Caroline; Kluczkosvki, Alana. Comida é memória, afeto e identidade. In: Comida é memória, afeto e identidade. 1.0-RC2. 4. ed. São Paulo: USP, 2021. Disponível em: https://www.fsp.usp.br/sustentarea/2021/04/07/comida-e-memoria-afeto-e-identidade/. Acesso em: 18 out. 2023
Rolnik, Suely. Cartografia Sentimental. 2 ed. Porto Alegre. UFRGS, 2016.
Soares, Lissandra; Machado, Paula. Escrevivências” como ferramenta metodológica na produção de conhecimento em Psicologia Social. Psicologia Política, São Paulo, ano 39, v. 17, n. 39, ed. 39, p. 203-219, 2018
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Revista Ouricuri, Juazeiro, Bahia, v.14, n.1. 2024, p.03 - 13. jan./jul., Publicação contínua http://www.revistas.uneb.br/index.php/ouricuri | ISSN 2317-0131