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REMEMORAÇÃO E CONTAÇÃO DA HISTÓRIA DE-SI PELA GEOGRAFIA AFETIVA DO CAMPO-ROÇA NA LEMBRANÇA ANCESTRAL DOS FAMILIARES MORTOS E VIVOS

 

RECOLLECTION AND NARRATION OF ONE'S OWN STORY THROUGH THE AFFECTIVE GEOGRAPHY OF THE COUNTRYSIDE, IN THE ANCESTRAL MEMORY OF DECEASED AND LIVING RELATIVES

 

RECUERDO Y NARRACIÓN DE LA PROPIA HISTORIA A TRAVÉS DE LA GEOGRAFÍA AFECTIVA DEL CAMPO, EN LA MEMORIA ANCESTRAL DE FAMILIARES FALLECIDOS Y VIVOS

 

Antonio José de Souza1, Elaine Pedreira Rabinovich2

 

 

1Teólogo/Historiador. Pós-Doutorando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutor em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) – com período sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris). Mestre em Educação e Diversidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor da Educação Básica do município de Itiúba/BA.

 

2Psicóloga Clínica. Pós-Doutora em Psicologia e História pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Psicologia Social (USP). Docente adjunta da Universidade Católica do Salvador (UCSal). Professora convidada pela EHESS/Paris. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Família, (Auto)Biografia e Poética (FABeP-UCSal). Membro do IAE-USP.

 

 

“[...] creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e adjacências. [...] Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas, contando em voz alta umas para as outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir entre nós, era talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos.”. (EVARISTO, 2020, p. 52)

 

A proposta deste dossiê foi rememorar e contar a história de-si mesmo, a narração da própria vida enquanto expressão da individualidade e afirmação de-si, quer dizer: uma técnica singular na qual a pessoa busca entender ‘a si’ a partir dos seus próprios meios, mas, também, com o auxílio dos ‘outros’. O ‘si’ – que é o ‘mesmo’ – e o ‘outro’ em fluxos dialéticos: ver-se projetado no espelho da memória como um ‘outro’ entre os ‘outros’ (ARFUCH, 2010; FOUCAULT, 2019).

Nesse sentido, falar de-si “[...] significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão.” (CHIZIANE, 2018, p. 18). A imagem-na-ação impõe o trânsito apurado, cauteloso, emaranhado e subjetivo entre o presente-passado-presente, culminando na hermenêutica de-si com ênfase não apenas no conhecimento de-si, mas no cuidado de si-e-do-outro, o ‘outro’ familiar; o ‘outro’ morto ou vivo – o ‘outro’ que, mesmo morto, vive celebrado na memória.

Trata-se de, tal um arqueólogo de memórias, escavar o chão ancestral do vivido no campo-roça; indo à casa da infância junto aos mais velhos da família, retirando-os do fundo da terra (se for preciso) para tê-los, outra vez, participando da vida dos vivos pela lembrança dos espaços, através da geografia afetiva.

Aqui, o espaço (auto)biográfico é material (campo-roça: ruralidades) e imaterial (a ausência dos mortos, a lembrança dos vivos, o passado vivido); o espaço em múltiplas dimensões: lugar, variedade de coisas e acontecimentos e perspectivas, o espaço teatral da ação do tempo (ARFUCH, 2010; EVARISTO, 2022; SANTOS, 2008). O tempo cotidiano dentro do tempo rememorado e compartilhado em primeira pessoa do singular (o eu), sem negligenciar a pessoa do plural (o nós), pois, “[...] no entre-nós, tem-se um outro nome para família.” (SOUZA, 2022, p. 34).

Dito isso, passemos às apresentações dos trabalhos que compõem o Dossiê Rememoração e contação da história de-si pela geografia afetiva do campo-roça na lembrança ancestral dos familiares mortos e vivos. Mas, antes, uma informação; o Dossiê está organizado por três seções, a saber:

A primeira é o Editorial, escrito de modo franco pela Professora Doutora Maria Angélica G. Coutinho (FABeP/UCSAL); alertando-nos para a ‘ousadia-prazerosa’ proporcionada pela memória e, também, pelo retorno às veredas de uma geografia afetiva, engajada com o conhecimento de-si, através do inevitável encontro com os ‘outros’.

A segunda seção é estruturada a partir da lógica dos Artigos-Memoriais, quer dizer: aqueles com forte teor (auto)biográfico; são trabalhos que demonstram o emprego de uma escrita implicada na poética subjetiva de-si para ilustrar a realidade, ajudando-nos, sobremaneira, a entender a concretude da vida objetiva de-nós. Vejamos:

No texto ‘Escrevivências de uma mulher negra da roça’, Ana Maria Anunciação da Silva (SMED-ICHU) e Antonio José de Souza (PUC/SP – SMED-ITIÚBA), empreendem uma escrita-de-si compartilhada. A bem da verdade, o lirismo pessoal acontece pelo esforço da primeira autora que, ao voltar no tempo, experiencia o reconhecimento de-si-mesma-e-dos-outros, isto é: ter a consciência de que alguém está ali e a vê, tornando-se conhecedora e conhecida. Assim, este trabalho tem duas dimensões: inicialmente calcada na presença do ‘outro’, onde se vê a primeira autora enquanto ‘aparição’ para o segundo autor; ela sendo vista como alguém que é ‘uma’, mas também ‘milhares’ vivendo dentro de-si e das memórias. A grafia comunitária alcança o auge na conversão entre a primeira autora e algumas mulheres negras; Carolina de Jesus, Lélia Gonzalez, Glória Anzaldúa e Conceição Evaristo são as convidadas para esse diálogo inventado no real.

Em ‘Eu/nós: história e autoetnografia’ a professora Elaine Pedreira Rabinovich (UCSAL), oferece-nos um estudo potencialmente inovador quanto singelo, porque é encharcado da poética de um tempo vivo na memória; reverberando, no presente, o que é próprio do passado. Trata-se de uma viagem intersubjetiva partilhada a partir do ‘aperceber-se’ pertencente a determinado grupo familiar, no qual o ‘eu’ é entrelaçado no ‘nós’; refletindo que o-ser ao se aprofundar na história da família, encontra-se nas possiblidades de vir-a-ser da História.

‘Ruralidades em Vó Maria: (auto)etnografia pelos trilhos memorialísticos da infância’ é escrita em primeira pessoa por Antonio José de Souza (PUC-SP – SMED-ITIÚBA), retomando algumas passagens da história de sua família matriarcal, analisando-as à luz da semiótica do rural/roça. O trabalho tem o mote (bio)historiográfico da personagem principal, Vó Maria, acompanhando-a nos trânsitos pelos “trilhos” da roça-cidade. Aqui, um deslocamento subjetivo, por entre a locomotiva da memória pessoal de-si-mesmo rumo à infância e às personagens importantes dessa fase da vida. Vó Maria é o fio condutor dessa narrativa imbricada nas bifurcações: pai-marido, roça-cidade, objetivo-subjetivo, passado-presente, História-estória, ela (Vó Maria) e o autor (seu neto) e, também, vida-morte.

Falando em morte, Ana Maria de Amorim Viana (IFSertãoPE), em ‘A morte moderna ou não permita Deus que eu morra sem confissãocoloca o(a) leitor(a) avizinhado(a) por uma emoção na iminência de eclodir. É, assim, por duas razões: a primeira pelo tema da morte que, para a maioria de nós, é uma experiência conhecida e, por isso, a sensação de ser conduzido(a) – pelas palavras da autora – ao episódio da morte daquele(a) que, ainda, nos faz falta... apesar do tempo ou por conta do próprio tempo; a segunda pela qualidade do texto, afinal, quando bem escrito tem o poder natural de transportar quem o lê por lugares imateriais. De modo sintético, o texto é um fluxo entre as “esquinas” das memórias do ‘outro’ e os recônditos das próprias memórias a partir do exercício exotópico proposto pela autora.

No escrito ‘Legados das ribeirinhas do Velho Chico:  autoetnografia de uma beiradeira’, Diana Léia Alencar da Silva (UCSAL), coloca-nos tal um(a) navegante que se sabe navegando nas águas misteriosas da memória alheia. E, assim, no curso da viagem, é possível “tomar” o lugar das personagens narradoras; experiência fundamentalmente pedagógica – especialmente quando quem ler é um homem. Desse modo, pode-se – o(a) leitor(a) – está, às vezes, à beira do texto, mas, outras vezes, completamente submerso no escuro profundo da reflexão implicada. A autora fala do encontro de dois rios companheiros e divisíveis na cor de suas águas; metáfora para o que é feito em termos de método científico, isto é: a autoetnografia – escrita de-si na companhia do do-nós, abrindo caminhos pela escrita da vivência. Quer dizer, na escrita do que foi vivido pelas mulheres ribeirinhas – “embarcações” de uma ancestralidade vocalizada pela autora no trânsito passado-presente, objetivo-subjetivo, territorialidade-fluvialidade e fartura-escassez.

O estudo intitulado ‘De reza para mau-olhado à Dissertação de Mestrado: uma autoetnografia do Catolicismo Popular sertanejo’, de Jadnaelson da Silva Souza (IFSertãoPE), é, em tudo, interdisciplinar; fundindo a Teologia com o Meio Popular, as Ciências da Natureza com a sabedoria da Ancestralidade Indígena e Afro-Brasileira, os Estudos Culturais com a gramática do-si-mesmo... o resultado: um texto bem olhado, sentido, escrito e fundamentando na experiência familiar-religiosa daqueles(as) que têm suas existências situadas nos Sertões Nordestinos. Aqui, o autor demonstra a força da sua própria (auto) palavra (grafia), colocando-nos perante um acontecimento histórico-pessoal-comunitário-afetivo (etno) de fé e vida em abundância.

Finalmente, a derradeira seção: a dos Artigos que trazem, na sua estrutura, o diálogo com o Método (Auto)Biográfico, bem como as categorias teóricas (Memória, Família, Campo-Roça) propostas por este Dossiê. São eles:

‘(Auto)biografia de uma enfermeira no exercício docente: percurso pessoal e profissional’ é um trabalho de rememoração realizado por Rita da Cruz Amorim (UEFS). A autora ver-se na infância de contexto rural e de escola multisseriada; estudando e crescendo e contando de-si enquanto lembra dos familiares mortos e vivos. Lembra, para não esquecer, das dores e delícias vividas no percurso formativo até o ‘tornar-se’ enfermeira na prática docente em uma Universidade Pública.

Fechando o Dossiê de maneira exitosa, temos o artigo ‘Experiências de gestão de Casas de Sementes e o lugar dos processos educativos da família às outras inter-relações’ escrito por Glauciane Pereira dos Santos (IFBaiano), Heron Ferreira Souza (IFBaiano), Ana Maria Anunciação da Silva (SMED-ICHU), Erasto Viana Silva Gama (IFBaiano). Trata-se de uma pesquisa importante. Primeiro por ressaltar a semente como um germe que faz brotar o ímpeto pela conservação ao que é próprio de uma geografia formada pelo campo/roça; abundante em saberes ancestrais garantidores da autonomia dos seus povos e da soberania alimentar tão necessária à vida sem sobressaltos. Segundo, porque a semente é, aqui, um símbolo-objetivo-subjetivo; é a síntese do enfrentamento às tentativas de imposição daquele modo de vida regido por uma lógica híbrida, transgênica, inadequada, descontextualizada e distante das condições ambientais do território que é, também, afetivo. Por fim, o texto tem sua importância, pois é um lembrete de que as sementes são oportunidades para a formação de um lugar-casa erguido por bases humanas para humanos e onde se celebra todas as formas de vida familiar, comunitária e planetária.

[...]

Cremos, parafraseando a epígrafe de Conceição Evaristo (2020), que a gênese de todos esses escritos está no acúmulo profundo com os ditos e os não-ditos, ouvidos e percebidos desde a tenra infância até os dias de hoje. Na origem desses escritos, estão os chamados, os clamores, as rezas, as vozes gritadas no diapasão alto, ressoando fundo nas memórias de quem não quer esquecer dos vivos e, principalmente, dos mortos cravados nas terras do ser-TÃO a que pertencemos.

 

 

Ótima leitura/estudo.

É o que desejamos às(aos) leitoras(es)!

 

Os Organizadores

 

 

  

 

Referências

 

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

 

CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Porto Alegre: Dublinense, 2018.

 

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabela Rosado. Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 48-54.

 

EVARISTO, Conceição. Prefácio: Tituba, um evocar das águas que ainda nos atormenta! In: CONDÉ, Maryse. Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem. Tradução de Natalia Borges Polesso. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 7-13.

 

FOUCAULT, Michel. Tecnologias de si [1982] (Parte 1), por Michel Foucault. Tradução de Andre Degenszajn. Blog do Labemus – Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social. [S.l.], 12 de agosto, 2019. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2019/08/12/tecnologias-de-si-1982-por-michel-foucault/. Acesso em: 30 abr. 2023.

 

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: Editora Edusp, 2008.

 

SOUZA, Antonio José de. Tornar-se negrogay: a história de vida de um homem-professor situado e “sitiado”. 2022. 183 f. Tese (Doutorado em Família na Sociedade Contemporânea) – Universidade Católica do Salvador, Salvador, 2022.