O IMAGINÁRIO DO SERTÃO NA PROPOSTA DA CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

 

Áquila Silva de Almeida1*, Anna Christina Freire Barbosa2

 

1Mestranda em Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido também pela Universidade Federal do Vale do São Francisco

2Doutora em Ciências Sociais pela UFRN, atua como Professora Adjunta na Universidade do Estado da Bahia e na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina/PE. Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Territorial (PPGADT);

*Autor para correspondência E-mail: aquilaea@icloud.com

 

Recebido: 05. 02. 2024      Aceito: 06. 03. 2024

 

 

RESUMO: O presente artigo analisa o imaginário do sertão na proposta política da convivência com o semiárido e mais especificamente os modos de enunciar, instituir, dizer e existir do sertão explicitado nesse discurso. O marco metodológico é composto pela proposta de realização de um estudo com abordagem predominantemente qualitativa e com base teórica ancorada na Análise do Discurso. O arcabouço empírico revela que o discurso da convivência produz tensões e instiga novas dizibilidades e visibilidades para o semiárido/sertão. Assim, enuncia-se como um campo discursivo dotado de potência criativa provocando fissuras no discurso homogeneizador que nega a heterogeneidade, as potencialidades, a diversidade identitária e simbólica e a multiplicidade de modos de vida que atravessam a região semiárida.

 

Palavras-chave: imaginário; imaginário do sertão; convivência com o semiárido.

 

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THE IMAGINARY OF THE SERTÃO IN THE PROPOSAL OF COEXISTENCE WITH THE SEMIARID

 

ABSTRACT: This article analyzes the imagery of the sertão in the political proposal of coexistence with the semiarid region and, more specifically, the ways of enunciating, establishing, speaking, and existing in the sertão as outlined in this discourse. The methodological framework consists of the proposal for conducting a predominantly qualitative study with a theoretical basis anchored in Discourse Analysis. The empirical framework reveals that the discourse of coexistence generates tensions and encourages new ways of speaking and visibility for the semiarid/sertão. Thus, it is enunciated as a discursive field endowed with creative power, causing ruptures in the homogenizing discourse that denies heterogeneity, potentialities, identity and symbolic diversity, and a multiplicity of ways of life that traverse the semiarid region.

 

Keywords: imagery; sertão imagery; coexistence with the semiarid.

 

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EL IMAGINARIO DE LA SERTÃO EN LA PROPUESTA DE CONVIVENCIA CON EL SEMIÁRIDO

 

RESUMEN: Este artículo analiza la imaginería del sertão en la propuesta política de convivencia con la región semiárida y, más específicamente, las formas de enunciar, establecer, hablar y existir en el sertão tal como se describe en este discurso. El marco metodológico se compone de la propuesta para llevar a cabo un estudio predominantemente cualitativo con una base teórica anclada en el Análisis del Discurso. El marco empírico revela que el discurso de la convivencia genera tensiones y fomenta nuevas formas de expresión y visibilidad para el semiárido/sertão. De esta manera, se enuncia como un campo discursivo dotado de poder creativo, causando rupturas en el discurso homogeneizador que niega la heterogeneidad, las potencialidades, la diversidad identitaria y simbólica y una multiplicidad de formas de vida que atraviesan la región semiárida.

 

Palabras clave: imaginería; imaginería del sertón; convivencia con el semiárido.

 

 

INTRODUÇÃO

 

De longe, galhinhos secos falam muito mais que o anúncio de uma estiagem;/ de perto, notamos o entrelaçar de minúsculas teias de aranha envolvendo o ramo desfolhado;/ e se chegamos ainda mais perto podemos tocar o branco das flores abrigadas entre o emaranhado da vegetação;/ tudo parece vivo, tudo fala, tudo escuta;/ nas paragens da poesia, não se descobre um mundo novo, muito menos se cria um;/ seu exercício é pura reinvenção daquilo que já é dentro;/ a poesia nos oferece uma lente para enxergar o velho; ela não transforma o mundo em que vivemos, mas sim os olhos de quem vê;/na poesia uma imagem é capaz de fazer com que possamos tocar o infinito com as mãos[1].

 

O excerto poético que abre as linhas iniciais desse trabalho é uma provocação que nos convoca a enunciar o sertão a partir de uma alteridade contrastante, outros ethos, outros ícones, outros símbolos, outras imagens, a propósito a escolha pelo uso da expressão “sertão” sugere essa alteridade pois, conforme proposto por Malvezzi (2007), o termo nos desafia a pensar uma designação da região que não esteja meramente atrelada às suas características naturais e físicas.

Da mesma maneira, evocar essa imagem nos instiga a contestar o discurso de subalternidade que coloca a região no lugar fugidio, do inusitado; o lugar da aridez, do atraso, da pobreza; pois que o sertão não é esse outro, o entrelugar do vazio ou ainda uma tipologia definida por meio dos atributos naturais e humanos de sua paisagem, mas expressão de uma outra coisa. Trata-se de uma territorialidade que se transforma, cria e reinventa modos de vida; um espaço que produz narrativas, identidades, realidades e que é objeto da produção de imagens, sentidos e muitos discursos (BAPTISTA; CAMPOS, 2013a; CARVALHO, 2010; PONTEL; CONTI; ARAÚJO, 2013; MALVEZZI, 2007; SILVA, 2006).

Nesse contexto, o presente trabalho propõe-se a buscar o lugar de sentido desse outro sertão, mais especificamente o sertão que emerge no discurso daquilo que a literatura tem convencionado em chamar de convivência com o semiárido. A proposta da convivência engendra-se a partir da perspectiva de rompimento com a concepção imaginária do sertão/semiárido improdutivo e inviável, e propõe a instituição de um novo olhar sobre esse espaço, suas realidades, seus modos de existir, considerando-se, para tanto, os aspectos naturais, sociais e ambientais que atravessam essa paragem.

Conforme se infere dos dizeres de Baptista e Campos (2013a), conviver com o semiárido significa “viver, produzir e desenvolver-se, não dentro de uma mentalidade que valoriza e promove a concentração de bens, mas sim enfatiza a partilha, a justiça e a equidade [...] significa abraçar uma proposta de desenvolvimento que afirma ser o semiárido viável [...] ser a natureza do semiárido rica e possível” (p. 52-53).

No mesmo sentido, as palavras de Silva (2006) ao expressar que a convivência aponta para a possibilidade de uma nova percepção sobre o espaço semiárido e articula uma proposta cultural “que visa contextualizar saberes e práticas (tecnológicas, econômicas e políticas) apropriadas à semiaridez, reconhecendo a heterogeneidade de suas manifestações, considerando também as compreensões imaginárias da população local sobre esse espaço” (p. 226).

Dito em termos mais ou menos simplórios, o sentido da convivência consiste, portanto, em compreender o sertão/semiárido a partir de uma racionalidade específica que se traduz no entender das suas especificidades, limitações e potencialidades e mais ainda a pluralidade de identidades, de povos, seus modos de existência, saberes, práticas sociais, e realidades heterogêneas.

Assim, em vista de tais objetivos, suscitamos algumas questões: (i) como o imaginário do sertão é evocado no discurso da convivência com o semiárido? (ii) quais as redes de sentidos e imagens que interagem com os modos de enunciar, instituir, dizer e existir do sertão explicitado nesse discurso? (iii) quais substratos ideológicos o imaginário das práticas da convivência com o sertão coloca em disputa?

Para empreender a análise da teia de significados e sentidos que emergem do discurso da convivência com semiárido, adotou-se como proposta metodológica a realização de um estudo com abordagem predominantemente qualitativa e com base teórica ancorada na Análise do Discurso.

Por fim, o trabalho foi organizado em cinco seções. A primeira seção contempla essas incursões iniciais. A segunda seção explora as reflexões teóricas tecidas a partir de uma revisão de literatura sobre: as noções teórico-conceituais do imaginário; do sertão enquanto uma ideologia geográfica; e por fim, o discurso da proposta de convivência com o semiárido. A terceira seção traz os delineamentos do percurso metodológico da pesquisa. Na seção subsequente, apresentamos os resultados e discussões da investigação propondo possíveis respostas aos enunciados-problemas suscitados. Por conseguinte, finaliza-se com a apresentação das considerações finais.

 

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

O IMAGINÁRIO: REFLEXÕES TEÓRICO-CONCEITUAIS A PARTIR DE CASTORIADIS, MAFFESOLI E DURAND

 

Ao longo do tempo o imaginário tem sido objeto de inúmeras reflexões sendo tema de interesse de pensadores como Castoriadis (1982; 1992; 2012), Durand (2012), Maffesoli (2001), dentre outros. Para fins de imergir na discussão desse fenômeno, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de análise, tomaremos como base central de nossas reflexões o aporte teórico fornecido por esses autores.

Em Castoriadis (1982; 1992; 2012), o imaginário está relacionado à dimensão simbólica e criativa da atividade humana. Para discutir o imaginário e as instituições sociais, o autor estabelece uma trinca conceitual relacionando imaginação, imaginário e criação. Para o autor, essas três categorias estão essencialmente intrincadas por uma dinâmica do tempo, do devir histórico: “A história é o domínio em que o ser humano cria formas ontológicas – sendo elas próprias, a história e a sociedade, as primeiras dessas formas” (CASTORIADIS, 1992, p. 111).

No pensamento do filósofo, a história é tomada do ponto de vista epistemológico como uma criação fundamentalmente humana: “essa posição humana fundamental implica que a história não é feita por Deus, ou pela physis, ou por “leis” quaisquer (CASTORIADIS, 1992, p.112). É a partir do conceito de história, portanto, que o autor irá estabelecer o conceito de criação enquanto processo humano de produção de sentido e instituição do real. Nesse aspecto, a criação manifesta-se como fenômeno criativo e intempestivo do fazer humano em sua capacidade de fazer emergir, surgir, constituir, construir o novo.

Segundo o autor, enquanto a criação consiste em fazer o que não estava dado, a imaginação se revela como a capacidade humana de imaginar novas formas - dinâmicas sociais, instituições, costumes, relações sociais - e possibilidades de vida. É, pois, uma força criadora que nos permite criar o mundo, “isto é, de nos apresentarmos perante qualquer coisa, acerca da qual, sem a imaginação, nada saberíamos ou poderíamos dizer” (CASTORIADIS, 2012, p.124). Ambas as capacidades, criação e imaginação, são atributos comuns a todos os homens e processos essencialmente intrincados.

Ainda de acordo com Castoriadis (2012), a imaginação está incorporada pela nossa sensibilidade e o que oferece possibilidade a sua manifestação é aquilo que o autor indica como o processo de pôr em imagens:

 

Imaginação, Einbildung em alemão, significa pôr em imagens, o que, em certos aspectos, é certamente comum a todos nós enquanto membros do genus homo, mas é também, a cada instante, absolutamente singular. Passa-se o mesmo em relação àquilo a que chamo o imaginário social instituidor (CASTORIADIS, 2012, p.124).

 

A imaginação é, portanto, faculdade criadora, é por meio dela que o homem transcende o mundo físico e cria um mundo simbólico que lhe permite compreender a si mesmo e a dar sentido a sua existência. Além de dado criativo, é ao mesmo tempo, dado histórico e as formas históricas que a imaginação integra ao longo do tempo são frutos do que o autor denomina como imaginário. O imaginário enreda-se ao simbólico não somente para exprimir-se, mas para existir enquanto tal.

Para Castoriadis (1982), o imaginário é criação incessante e essencialmente indeterminada instituidora da realidade. Assim, toda criação humana, tudo o que existe, que é tangível, visível, o que conhecemos e tomamos como real, é uma revelação da atuação do imaginário.

Para explicar o modo como esse imaginário é acessado, elaborado, o autor aponta para o uso da linguagem:

 

A linguagem mostra-nos o imaginário social a actuar enquanto imaginário instituidor, originando uma dimensão estritamente lógica a que chamo ‘identidade do/para o conjunto’ (qualquer linguagem deve poder dizer que um mais um é igual a dois), e, ao mesmo tempo, uma dimensão propriamente imaginária, visto que é graças e através da linguagem que são fornecidas as significações do imaginário social que mantém uma sociedade coesa (CASTORIADIS, 2012, p.126).

 

Em estudo que discute as perspectivas analíticas do conceito de imaginário, Saad (2018, p. 147) expressa que a linguagem apontada por Castoriadis não é qualquer linguagem, “mas a linguagem como forma histórica, como produto e produção do imaginário, em seus conceitos, redes semânticas e toda uma possibilidade de imagens”. Assim, apresentadas tais premissas teóricas, analisaremos agora a concepção de imaginário na perspectiva de Gilbert Durand.

Ao elaborar o construto teórico sobre imaginário, Durand (2012) buscou explicá-lo por meio de uma proposição analítica da imagem. Na perspectiva do autor, a imagem constitui-se como um componente simbólico fundamental na estruturação do imaginário:

 

A imagem – por mais degradada que possa ser concebida – é ela mesma portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária [...] o analogon que a imagem constitui não é nunca um signo arbitrariamente escolhido, é sempre intrinsecamente motivado, o que significa que é sempre símbolo (DURAND, 2012, p.29).

 

Partindo de tal inferência, o imaginário é entendido por Durand (2012) como um museu de imagens cujo pluralismo infinitamente heterogêneo constitui o conjunto de todas as imagens passadas e possíveis produzidas pelo homem. As imagens e todo seu aparato simbólico instigam o funcionamento do imaginário que conforme expressa Saad (2018, p. 139) funciona em termos metafóricos como uma máquina imaginária “que produz incessantemente imagens – não só do particular, do individual (imagens-acontecimentos), mas ao mesmo tempo, de todo desencadeamento social, cultural, político, ético, estético, científico, artístico, simbólico etc”. E ambos, imagem e imaginário, são um meio de expressão fundamental para a compreensão do mundo e do humano.

Em continuidade à tessitura teórica do imaginário, Maffesoli (2001, p. 75) vai discutir o fenômeno defendendo a sua interface com o real e a esse propósito o autor é peremptório em afirmar que o imaginário é uma realidade e prossegue em termos conceituais definindo o imaginário enquanto: “uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável”. Para o autor, e em alusão aquilo que Walter Benjamin chama de aura, o imaginário se expressa como sendo da ordem da aura, uma atmosfera, uma matriz que cria, replica e dissemina imagens.

Ademais, ancorando-se nas postulações teóricas de Durand, Maffesoli (2001, p. 76) empreende uma análise da imagem e sua potência simbólica e reflete: “Não é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário. A existência de um imaginário determina a existência de conjuntos de imagens.  A imagem não é o suporte, mas o resultado”.

Segundo Maffesoli (2001), o imaginário só existe se pensado em sua dimensão coletiva, pois que ultrapassa o individual, impregna o coletivo, é cimento social, é aquilo que liga, une uma mesma atmosfera. É, pois, conforme sintetizado por Saad (2018, p. 135): “produto e ao mesmo tempo produtor de subjetividades e de subjetivações sociais, bem como produz por meio de sua eficácia simbólica – produção de imagens – a objetividade social, cultural, política”.

Ao que se vislumbra, cada um dos pensadores aqui referenciados analisam o imaginário com certos distanciamentos e objetivos teóricos distintos. Essa breve incursão teórica, permeada de certa precariedade em meio a um universo de discussões tão complexas, é só um ensaio, um esboço para apoiar as reflexões que faremos nessa pesquisa tomando como arcabouço as ideias semeadas por esses pensadores. 

 

O SEMIÁRIDO COMO LÓCUS EMPÍRICO

 

O Semiárido brasileiro é um território situado predominantemente no Nordeste do país, mas também se estende pela parte setentrional de Minas Gerais. Esse domínio territorial, cuja delimitação geográfica atende a critérios de aridez e estresse hídrico, ocupa cerca 12% do território nacional (1,03 milhão de km²) e abrange 1.262 municípios brasileiros.

Conforme estabelecido pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), o reconhecimento de um território como semiárido, depende fundamentalmente do preenchimento das seguintes condições: possuir (i) precipitação pluviométrica média anual igual ou inferior a 800 mm; (ii) índice de aridez de thornthwaite igual ou inferior a 0,50; (iii) percentual diário de déficit hídrico igual ou superior a 60%, considerando todos os dias do ano (SUDENE, 2017).

Vale sublinhar que comparado com outras regiões semiáridas do mundo, o semiárido brasileiro é o mais chuvoso do planeta, costumando chover de 200 a 800mm anuais. Entretanto, trata-se de uma precipitação pluviométrica concentrada em poucos meses do ano e distribuída de forma irregular em todo semiárido.

Essa variabilidade no regime pluviométrico, tanto no espaço quanto no tempo, aliada a alguns fatores naturais como: (i) as altas temperaturas em todos os meses do ano; (ii) o elevado índice de evapotranspiração; (iii) a predominância de solos rasos e rochas cristalinas que dificultam a formação de mananciais subterrâneos; (iv) a reduzida capacidade de absorção de água no solo em razão do relevo alterado e dos solos rasos e pedregosos (BAPTISTA; CAMPOS, 2013b; BORJA ET. AL., 2022; SILVA, 2006), são responsáveis pela ocorrência das secas - um fenômeno natural e cíclico nesta região. 

Pensando sob o aspecto social, o território semiárido é marcado por questões-problemas relacionadas à concentração de terra, da água. Em razão disso, o semiárido apresenta níveis altíssimos de exclusão social e de degradação ambiental, sendo estes fatores determinantes da crise socioambiental e econômica vivida na região (ASA, 2023).

 

O SERTÃO COMO UMA IDEOLOGIA GEOGRÁFICA

 

No manuscrito intitulado: “Sertão: um outro geográfico”, ao empreender uma discussão em torno do termo “sertão”, Moraes (2003, p. 1) expressa que o espaço não se caracteriza enquanto um tipo empírico de lugar, pois que o sertão “não se define por características intrínsecas de sua composição ou do arranjo de seus elementos numa paisagem típica”; nem tampouco pode ser entendido enquanto obra da intervenção humana sobre a superfície da terra. Assim, por não corresponder a uma materialidade terrestre delimitada concretamente e não se inserir como uma empiria, o sertão não pode ser entendido a partir dos conceitos teóricos incorporados pela geografia tradicional, ou seja, como um habitat, um território, uma região ou um ambiente.

Para Moraes (2003), o sertão traduz-se em uma outra coisa, uma ideologia geográfica, pois designa não um lugar concreto, mas diferentes lugares; trata-se de uma realidade simbólica adaptável a diferentes discursos e intencionalidades. Nesse aspecto, expressa:

 

O sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto – em certos contextos históricos – a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como um qualificativo local básico no processo de sua valoração [...] Trata-se de um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes neste processo. O objeto empírico desta qualificação varia espacialmente, assim como variam as áreas sobre as quais incide tal denominação. Em todos os casos, trata-se da construção de uma imagem, à qual se associam valores culturais geralmente – mas não necessariamente – negativos, os quais introduzem objetivos práticos de ocupação ou reocupação dos espaços enfocados (MORAES, 2003, p. 2).

 

Tomado, portanto, como uma ideologia geográfica, pode-se dizer que “os lugares tornam-se sertões”, seja para atrair “o interesse de agentes sociais que visam estabelecer novas formas de ocupação e exploração daquelas paragens” ou para provocar movimentos de expansão econômica ou de poder político de grupos específicos (MORAES, 2003, p. 2-3); ou ainda para apoiar a construção de uma rede de símbolos, discursos e imagens que operacionalizam uma identidade a esse espaço como o lugar do degredo, do atrasado, do selvagem, da inviabilidade social.

Tais inferências nos ajudam a entender o modo como esse imaginário do sertão, assentado na ideia do abandono, da marginalização, do atraso, da semiaridez, da seca, tem sido articulado ao longo da história como uma estratégia ideológica adotada pelas elites dominantes para a manutenção de seus privilégios e expansão do domínio político na região; a propósito, está no cerne desse discurso o processo de industrialização das secas que culminou com a execução desastrosa de grandes obras hídricas que mais contribuíram para reforçar uma relação social patronal e clientelista do que efetivamente resolver os problemas que atravessam o território semiárido, a exemplo da concentração da terra, da água, do saber, do poder e seus consectários devastadores, a pobreza e a fome (ASA, 2023, 2019, 2014; BAPTISTA; CAMPOS, 2013a; SÁ, 2012; FORTUNATO; MOREIRA NETO, 2010; SILVA, 2006).

Esse modo de dizibilidade revela sobremodo a cristalização de uma ideologia que conforme explicita Freire (1996) busca uma ocultação da verdade dos fatos; que se vale da linguagem - em toda sua possibilidade de produzir imagens - para penumbrar a realidade e ao mesmo tempo nos miopizar, nos ensurdecer, nos forçar a acreditar em uma versão distorcida das coisas, dos acontecimentos. Nesse sentido, é imperativo necessário irromper a hegemonia desses discursos; reelaborar as relações sociais e de poder que operam nesse espaço e, sobretudo, construir novas dizibilidades e visibilidades para o sertão.

 

 

METODOLOGIA

 

A pesquisa busca analisar a teia de significados e sentidos que emergem do discurso da convivência com semiárido e adota como estratégia metodológica a realização de um estudo com abordagem predominantemente qualitativa e com base teórica ancorada na Análise do Discurso. Desse modo, tem-se que a AD observa as múltiplas possibilidades de interpretação do discurso, visto que este é enunciado a partir de um determinado contexto, por diversos sujeitos e sob diversas perspectivas.

Orlandi (2009) depreendendo o sentido do discurso a partir da sua etimologia expressa que o discurso está impregnado da ideia de curso, de movimento, portanto, o discurso é a palavra em movimento. Essas palavras deambulam em torno de muitos sentidos que se modificam segundo as posições ideológicas de quem as enuncia.

A esse respeito, como expressa Pêcheux (2009):

 

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, ‘não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante) mas, ao contrário é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões, proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). [...] As palavras, expressões, proposições, etc. mudam de sentido segundo as posições sustentadas por daqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem (PÊCHEUX, p. 147-148).

 

Assim, infere-se que as formações discursivas são espaço de enunciação de uma determinada formação ideológica e os sentidos de um discurso sempre são determinados ideologicamente, sendo elemento constitutivo do dizer. Dessa maneira, considerando os objetivos propostos, bem ainda partindo do pressuposto de que os discursos são orientados por essas formações ideológicas, optou-se pela utilização da ideologia como categoria de análise.

Desse modo, definiu-se como objeto/recorte o discurso explicitado na proposta política da convivência com o semiárido, que possui no seu cerne densidade histórica e uma trama de sentidos e tensões. Portanto, busca-se por meio dessa análise compreender: (i) qual imaginário de sertão/semiárido se materializa nesse discurso; (ii) quais os sentidos impregnados no modo de enunciar, instituir, dizer e existir do sertão/semiárido na proposta política da convivência; (iii) quais substratos/tensões ideológicas orientam esse discurso.

Para tanto, o corpus selecionado para a análise é constituído por material documental e bibliográfico versando sobre a proposta da convivência com o semiárido, sobretudo o material produzido pela ASA - Articulação do Semiárido, principal entidade articuladora desse projeto político. Ademais, com fins de obter os sentidos enunciados nesse discurso, o mesmo será analisado a partir das suas condições de produção, demarcando-se o contexto histórico que o atravessa e o momento que em que é produzido.

Por fim, no que diz respeito a bibliografia que subsidia o direcionamento teórico da pesquisa, foi empreendida uma revisão de literatura a partir de estudos que discutem a teoria do imaginário e um denso conjunto de trabalhos que tratam o tema da convivência com o semiárido.

Nesse sentido, a revisão se debruçou nas seguintes etapas: (i) delimitação do tema e dos objetivos da revisão; (ii) escolha das fontes de dados; (iii) eleição das palavras-chave para busca, sendo os termos escolhidos para a definição da busca bibliográfica: “imaginário”, “imaginário do sertão”, “regiões semiáridas”, “convivência com o semiárido”; (iv) busca e armazenamento dos resultados; (v) seleção do material de acordo com os critérios de inclusão e exclusão, ; (vi) extração dos dados do material selecionado; (vii) avaliação do material escolhido para análise; e, por fim, (viii) síntese e interpretação dos dados colacionados para revisão (AKOBENG, 2005 apud COSTA; ZOLTOWSKI, 2014).

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

 

A PROPOSTA DA CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

 

Nas últimas décadas, vem sendo gestada uma outra concepção de ver e construir o semiárido. À luz dessa racionalidade, a seca não é concebida como um problema a ser combatido, mas compreendido, pois, entende-se ser possível conviver estrategicamente com esse fenômeno a partir da articulação de práticas e ações políticas apropriadas que irrompam com as estruturas legitimadoras de desigualdades, de concentração de terra, renda e água no espaço semiárido. (ASA, 2019, 2018, 2014; BAPTISTA; CAMPOS, 2013a; CARVALHO, 2010; CONTI; PONTEL, 2013; FORTUNATO; MOREIRA NETO, 2010; RIBEIRO, 2022).

A elaboração da ideia da convivência é protagonizada pela ASA - Articulação do Semiárido. Trata-se de uma federação que reúne mais de três mil organizações da sociedade civil - associações, entidades de desenvolvimento rural, sindicatos rurais, cooperativas, ONG´s, Oscip, etc, e defende, propaga e põe em prática, inclusive através de políticas públicas, o projeto político da convivência com o Semiárido (ASA, 2023).

De modo geral essa rede conectada a entidades diversas atua em todo o semiárido defendendo os direitos dos povos e comunidades da região com pautas ligadas à reforma agrária, a descentralização do acesso à água e suas atividades são orientadas pela proposta de um desenvolvimento possível para a território semiárido ancorado na proposta de correção das distorções sociais e os desequilíbrios ambientais desencadeados pelo projeto capitalista (ASA, 2023, 2019, 2018, 2014).

No entender de Pontel, Conti e Araújo (2013, p. 204) a convivência “delineia novas concepções, práticas e relações que se expressam no Semiárido como um espaço do bem viver, tanto na perspectiva de integralidade e sustentabilidade quanto no modo de conceber este território com suas formas de vida e de organização de seu povo”. Na mesma linha de entendimento Silva (2006, p. 225), expressa tratar-se a proposta da convivência de “uma nova percepção que retira as culpas atribuídas às condições naturais, e enxerga o espaço semiárido com suas características próprias, seus limites e potencialidades”.

Para Silva (2006, p. 227), o discurso da convivência direciona para a compreensão de um novo modelo de desenvolvimento para o semiárido e está ancorado em um conjunto de significados e sentidos. Em sua dimensão ambiental, a convivência explicita como imperativo fundamental, “o manejo e uso sustentáveis dos recursos naturais num ecossistema, sem inviabilizar a sua reprodução”, o que implica em estabelecer uma relação de coexistência e interação recíproca com esse ambiente.

Na dimensão econômica, expressa-se enquanto a capacidade de aproveitamento sustentável das potencialidades naturais e culturais a partir do desenvolvimento de práticas produtivas apropriadas às realidades semiáridas. A esse respeito, assevera que “além de sustentáveis, as iniciativas de produção e distribuição das riquezas devem ser includentes, com a democratização do acesso aos meios necessários à produção”. (SILVA, 2006, p. 235).

Nesse aspecto, portanto, é pressuposto fundamental que as estratégias produtivas adaptadas à realidade semiárida igualmente possibilitem a expansão da produção, a distribuição de renda, o acesso a bens e serviços públicos como saúde, moradia, educação, alimentação, abastecimento hídrico. É nesse contexto que a convivência expressa seu terceiro sentido que resvala no seu potencial de expansão das capacidades humanas e melhoria da qualidade de vida das populações sertanejas por meio da redução das desigualdades sociais e da pobreza (ASA, 2019, 2018, 2014; SILVA, 2006).

Ainda de acordo com Silva (2006), a convivência assume uma dimensão cultural na medida em que propõe a formação de uma consciência coletiva sobre a realidade territorial semiárida, sobretudo suas particularidades, fragilidades e potencialidades. Além disso, trata-se de um discurso dotado de um sentido político, uma vez que emerge como uma proposta política que busca estabelecer novas dinâmicas sociais e dinâmicas de poder capazes de contestar os fundamentos econômicos da realidade e promover a superação das estruturas geradoras das iniquidades sociais.

Assim, ao propor um modo contra-hegemônico de pensar o desenvolvimento do semiárido, a proposta da convivência aponta para o despertar de uma nova racionalidade ética permeada por valores, teorias e orientações de base ecológica, que considera as múltiplas realidades socioambientais e a diversidade sociocultural dos povos do semiárido. Essa racionalidade introduz uma noção de desenvolvimento ancorada na dimensão da transformação da realidade a partir da convivência com a natureza e não de sua dominação (ASA, 2019, 2018, 2014; CONTI; PONTEL, 2013).

Por outro lado, conforme defendido por Carvalho (2010), a convivência não deve ser concebida somente enquanto uma prática, mas sobretudo como uma ideia-projeto que enuncia a reelaboração das formas de conceber, ver e dizer do semiárido/sertão; que evoca a construção de uma identidade para o semiárido capaz de contemplar o vasto repertório de seus modos de vida, as expressões do seu povo, suas relações simbólicas.

Em trabalho que discute os discursos que caracterizam o sertão e o semiárido, Fortunato e Moreira Neto (2010) apontam que o discurso da convivência vem tecendo um conjunto de enunciados/imagens que ressignificam a identidade sobre o sertão:

 

Elege-se para o semiárido a viabilidade da sustentabilidade, de uma convivência com as peculiaridades e especificidades da região, operacionalizando um deslocamento da memória, já cristalizada no imaginário social, do “sertão” ausente de possibilidade de vivência e pressupondo novas formas, estratégias e táticas de lidar com este ambiente (FORTUNATO; MOREIRA NETO, 2010, p. 52).

 

Nesse sentido, vê-se que a proposta da convivência é também um movimento de deslocamento do imaginário do sertão enquanto um espaço de impossibilidades, de geografia inóspita e inviabilidade social para um outro lócus de sentido: um território simbólico-cultural revestido de dimensão política, afetiva, identitária; de vocações e potencialidades.

 

IMAGINÁRIOS EM DISPUTA: DO SERTÃO À PROPOSTA DA CONVIVÊNCIA

 

Conforme referenciado em Castoriadis (1982; 1992; 2012), o imaginário pode ser entendido sinteticamente como um fenômeno ontológico da vida sócio histórica que orienta as formas de percepção, identificação e a atribuição de significados que conferimos ao mundo. Trata-se de criação incessante e instituidora da realidade. Assim, tudo o que conhecemos e tomamos como real, é uma revelação da atuação do imaginário.

Ao que se vislumbra, o imaginário que institui a ideia primária do sertão encontra-se historicamente impregnado de imagens, subjetividades e ideologias homozeneizadoras que potencializam a compreensão desse território como um espaço de impossibilidade e inviabilidade social; o lugar do atraso, da semiaridez, de reprodução da pobreza.

Embora tenha se revestido de legitimidade para atuar enquanto uma estratégia engendrada pelas elites dominantes na defesa dos seus interesses de domínio e expansão de fluxos econômicos e geopolíticos na região, esse imaginário encontra-se em um campo de disputa com o discurso da convivência com o semiárido que estabelece novos modos de dizibilidades e visibilidades para esse espaço.

O que se propõe, nesse contexto, é uma cisão, um redirecionamento discursivo, um deslocamento de imagem desse território então visto como atrasado e hostil para um outro lócus, uma outra alteridade, uma territorialidade que expressa a ideia do vivido, do apropriado, do viável. Assim, ancorado no discurso da convivência, um outro sertão possível é evocado a emergir, a constituir-se como novo: novas formas, novas dinâmicas, novas relações, novos sentidos.

Tomando como substrato teórico a proposição de Maffesoli (2001) ao inferir que é a imagem não é o suporte, mas o resultado do que o imaginário institui, vê-se que o imaginário da convivência projeta um sertão onde as relações de saber/poder são articuladas como estratégias de enfrentamento social aos problemas que atravessam a realidade semiárida; um espaço constituído por sujeitos políticos e históricos que lutam pela dignidade de vida, contra a pobreza, as mazelas e as injustiças sociais; e para além disso, um território dotado de expressões materiais, simbólicas e culturais.

Apoiando-se em Durand (2012), é possível dizer que essas outras imagens e todo seu aparato simbólico instigam o funcionamento da máquina imaginária em seu poder de produzir incessantemente imagens. Assim, ao imaginário que remete o sertão a uma área rural, isolada, fugidia, distante, atrasada e que produz imagens simbólicas relacionando esse espaço ao degredo, a miséria, a pobreza; o discurso da convivência produz, viabiliza e reverbera outras imagens que dizem de um território produtivo, viável, repleto de potenciais e possibilidades.

Ademais, a partir de um referencial ideológico, o discurso da convivência demarca contraposição ao modelo de combate às secas ancorado na proposta política de base clientelista e patrimonialista que no passado legitimou o fenômeno da indústria das secas e que ainda hoje, diante do recrudescimento neoliberal, tem sido evocado para justificar o aprofundamento da expansão capitalista no domínio territorial semiárido.

Portanto, como toda ideologia evoca um modo de pensar o mundo, a proposta da convivência ao propor uma interpretação crítica desse processo, explicita uma nova mentalidade fundamentada na construção de um repertório de práticas políticas democráticas que contemplem a participação dos sujeitos políticos que vivem nesse espaço. 

A esse respeito vale sublinhar que ao articular no seu cerne modos de enunciar, dizer e existir do sertão em contraposição a hegemonia do discurso das secas, da dependência, do atraso econômico - sentidos negativos e pejorativos associados à região - as imagens impregnadas no imaginário da convivência estabelecem uma estratégia de resistência e de afirmação desse território. Nesse aspecto, as imagens produzidas adquirem força discursiva e representacional nas disputas em torno da produção imaginária e cristalizam um outro modo de ver e atribuir significados à realidade semiárida.

Trata-se de um campo em disputa na produção de sentidos que não busca desvincular-se dos sentidos que constroem as imagens contidas no imaginário do sertão, mas os relocaliza afirmativamente como marca identitária de uma territorialidade que se reinventa e se transforma, que é dotada de materialidades, símbolos, projetos; um território de especificidades, fragilidades, mas sobretudo de potencialidades, que é produtor da vida, de saberes e de uma diversidade de modos de existência.

E assim o faz por meio da elucidação histórica e geopolítica que constitui as bases desse imaginário instituído sobre o sertão e a partir da construção de uma nova teia de sentidos e significações em torno desse espaço. Portanto, o movimento da convivência atua para, através da operação simbólica defendida por Castoriadis (2012), pôr esse novo sertão em imagens, desvelá-lo.

Sob essa perspectiva, imaginário e simbólico estão intrinsecamente associados e articulam aquilo que Castoriadis (2012) denomina como capacidade imaginária, ou seja, a capacidade de ver em uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é por meio da evocação de outras imagens.

Importante sublinhar que essa cisão não se limita a compreensão da região por meio dos seus atributos socioespaciais e humanos, mas sobretudo propõe um novo modo de pensar a natureza desse espaço, a cartografia de sua paisagem, sua diversidade ecológica e sustentabilidade. Isso implica repensar as formas de apropriação dos recursos naturais disponíveis nesse ecossistema e os modos de produzir nesse espaço que não mais se conformar com a lógica predatória de dominação da natureza e da concentração dos seus recursos.

No discurso da convivência, o espaço semiárido é sobretudo um lugar social e político potencialmente relevante que produz sujeitos sociais e históricos que vivem, pensam, sentem, produzem saberes, estabelecem relações práticas, materiais, simbólicas e identitárias com o seu território e atuam no sentido de transformar coletivamente as estruturas sociais da realidade que os cerca.

Por outro lado, vê-se que as mudanças de sentidos operadas pelo discurso da convivência fazem emergir uma racionalidade que retira o semiárido do lugar da região problema e o coloca no imaginário de um sertão que dá certo, é viável, produtivo, vivido. Nesse movimento, o projeto da convivência evoca o valor do território semiárido enquanto um espaço produtor de sentidos sejam eles simbólicos, econômicos, políticos e sociais.

 

CONCLUSÃO

 

A pesquisa buscou analisar o imaginário do sertão contido no discurso da convivência a partir da teoria da análise de discurso (AD) e tomando como categoria de análise a perspectiva ideológica. Nesse sentido, ao que se vislumbra, a proposta política da convivência articula em seu cerne um discurso que provoca um descolamento de compreensões sobre o sertão/semiárido a partir da legitimação de novas dizibilidades e visibilidades para esse domínio territorial.

Ao demarcar contraposição à noção de “combate à seca”, uma estratégia discursiva acionada para justificar as intervenções estatais na região baseadas em práticas clientelistas e paternalistas, o movimento político da convivência aponta para a emergência de um novo paradigma que estabeleça novas formas de conceber e atuar no semiárido, considerando as várias formas de vida e de organização das relações sociais presentes nesse território.

Nesse sentido, essa ideia-projeto aponta para a necessidade de mobilizar a participação coletiva das populações que vivem no espaço semiárido tanto no processo de tomada de decisão quanto na implementação de políticas públicas para a região, pois que se tratam de sujeitos históricos e políticos, reprodutores de conhecimentos e saberes.

Ademais, verifica-se que a proposta reforça a ideia-ação de conviver com os fenômenos naturais que atravessam a realidade semiárida, pois entende-se que o desenvolvimento não pode prescindir de uma harmonização entre a cultura e a natureza. Essa proposição produz tensões ideológicas na medida em que rechaça a lógica hegemônica do discurso de expansão capitalista responsável ao longo da história pela legitimação de desigualdades, de concentração de terra, renda e água no espaço semiárido.

Tem-se ainda que o discurso que institui e legitima os sentidos enunciados na proposta da convivência cristaliza representações e visões sobre a região semiárida e as coloca em um campo de disputa. Assim, por um lado, tem-se instituído um imaginário com marcas que remontam a uma ideologia geográfica do sertão que coloca esse território no lugar do degredo, do atrasado, da inviabilidade social. Por outro, tem-se o imaginário que conforma imagens e sentidos que contam histórias, modos de vida e novas dinâmicas sociais para esse espaço.

Na medida em que institui no imaginário do sertão imagens prevalecentes de um espaço com viabilidade e em constante transformação, a convivência enuncia-se como um campo discursivo dotado de potência criativa que tem provocado fissuras no discurso homogeneizador que nega a heterogeneidade, as potencialidades, a diversidade identitária e simbólica e a multiplicidade de modos de vida que atravessam as paragens da região semiárida.

 

 

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[1] Prefácio assinado pela poeta Aline Monteiro e extraído do livro “Chuva Doce” (2022), de autoria de Áquila S. Almeida.