Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2024, v. 14: e21793.

ROCHA, Marco Antonio. O duplo silenciamento em A muda, de Chahdortt Djavann. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2024, v. 14, e21793.

O duplo silenciamento em A muda, de Chahdortt Djavann

The double silencing in The Mute, by Chahdortt Djavann

Marco Antonio Rocha

Resumo: Chahdortt Djavann é uma escritora e socióloga franco-iraniana engajada em causas feministas, principalmente no que tange ao uso do véu pelas mulheres na religião islâmica. Em seu romance A muda, a autora constrói uma narrativa que expõe os silenciamento sofridos e autoimpostos pelas mulheres do Irã. Para analisar essa temática, mobiliza-se as questões sobre feminismo e o feminino com Felski (2003) e Kehl (2016), e com Spivak (2010) ao tratar da mulher subalterna, vale-se da teorização de Orlandi (2007) sobre silenciamento dentro de uma perspectiva discursiva e busca-se compreender a função narrativa do tópico do manuscrito encontrado a partir de Angelet (1990). Depreende-se, portanto, que Djavann produz uma obra singular a fim de nos fazer refletir, tanto por meio do enredo quanto da estrutura narrativa, sobre os diferentes silenciamentos impostos às mulheres de sua ficção e o silenciamento que o próprio Ocidente impõe aos países não ocidentais.

Palavras-chave: Silenciamento. Mulheres no Irã. Literatura de língua francesa.

Abstract: Chahdortt Djavann is a French-Iranian writer and sociologist committed to feminist causes, mainly regarding the use of the veil by women in the Islamic religion. In her novel The Mute, the author builds a narrative that exposes the suffered and self-imposed silencing by women in Iran. To analyze this theme, we mobilize feminist and feminine issues with Felski (2003) and Kehl (2016), and with Spivak (2010) when dealing with subordinate women, we make use of Orlandi’s (2007) theorization about silencing within a discursive perspective and we seek to understand the narrative function of the trope of the found manuscript from Angelet (1990). It can be inferred, therefore, that Djavann produces a unique work, both through the plot and the narrative structure, in order to make us reflect on the different silencing imposed on the women in her fiction and the silencing the West imposes to the non-western countries.

Keywords:Silencing. Women in Iran. French language literature.

Introdução

Em uma sociedade teocrática islâmica — cujo sistema de governo se submete às normas dessa religião — como o Irã, país onde se desenrolam os acontecimentos do romance A muda da escritora franco-iraniana Chahdortt Djavann, as mulheres são silenciadas por diversos dispositivos patriarcais[1] de controle de seus corpos, de suas vozes, de suas vidas. Segundo Hélène P. Bilong (2022), em sua dissertação de mestrado em que trata sobre a opressão das mulheres na obra,

A muda é uma ilustração perfeita de uma sociedade patriarcal e tradicionalista, na qual as mulheres são vítimas da violência exercida pelos homens. A cultura e a religião exercem uma grande influência sobre a violência que as mulheres sofrem uma vez que esses dois elementos continuam sendo o fundamento do poder do patriarcado. (Bilong, p. 48)[2]

A pesquisadora apresenta minuciosamente exemplos das violências físicas, psicológicas e simbólicas que as personagens femininas do romance sofrem ao longo da narrativa, sendo elas: a privação de liberdade política e econômica; o controle sob seus corpos e sob suas vestimentas; a violência doméstica; a violência sexual; o casamento forçado e o casamento de menores; inclusive o crime de honra[3] que sofre a personagem muda, sentenciada ao apedrejamento.

Entretanto, é preciso tomar o cuidado para não relegar a obra ficcional apenas a seu caráter sociológico, pois dessa maneira, ela é destituída de seu discurso artístico. Principalmente ao ler obras de autores e autoras não ocidentais como documentos que atestem a opressão e revelem a identidade de todo um povo, acaba-se corroborando um discurso colonizador e reforçando ainda mais o preconceito ocidental.

Nesse viés, o objetivo deste trabalho é abordar o romance de Djavann por dois vieses. O primeiro, numa abordagem temática, averiguar de que forma os silêncios são impostos às personagens femininas e como elas reagem a essa condição por meio de transgressões, sendo o próprio autossilenciamento uma delas. O segundo, analisar a estrutura narrativa utilizada pela autora, o tópico do manuscrito encontrado, a fim de refletir de que maneira essa estratégia contribui para a metáfora do silêncio e os dispositivos de silenciamento presentes ao longo do romance.

Desse modo, propõe-se uma análise tanto dos valores literários da escrita de Djavann quanto de sua potência política e social. Trata-se de uma leitura, como propõe Felski (2003), both/and, ou seja, uma leitura que busca conectar literatura e sociologia em prol de uma visão ampla da obra. O objetivo de Rita Felski (2003) em seu livro Literature after feminism é demonstrar como o movimento feminista transformou a maneira de as pessoas pensarem e falarem sobre literatura. Para ela, a partir da crítica feminista é possível repensar a maneira como se enxerga a arte literária porque nos coloca questões centrais para discuti-la. Nessa perspectiva, a autora defende que é possível olhar para as obras literárias ao mesmo tempo sob uma perspectiva estética e sob uma perspectiva política e social.

Portanto, a análise de uma obra literária numa perspectiva feminista não deve se limitar a procurar o que caracteriza os padrões de gênero ou denunciar a condição feminina vítima do patriarcado, mas investigar na relação entre o literário e o político, entre o estético e o social, a singularidade daquela obra, do projeto de sua autora ou autor em seu próprio contexto histórico.

Uma autora engajada

Chahdortt Djavann nasceu no Irã em 1967, mas exilou-se de seu país natal em 1991 por não conseguir viver sob o regime teocrático islâmico que se instaurou em seu país em 1979. Primeiro, foi para a Turquia e então, em 1993, para a França, onde reside atualmente. Quando chegou ao Hexágono, não falava uma palavra de francês (sua língua materna é o persa) e aprendê-lo não foi fácil, mas foi com essa língua que se fez escritora, tornando-a sua língua de trabalho e de expressão cultural. Em seu texto “De l’apprentissage du français à l’écriture” para o livro Pour une literatura-monde[4], a autora conta que foi após começar a fazer análise em francês que se sentiu pertencente à língua francesa e que esta a pertencia também.

[...] Um ano após minha chegada a Paris, comecei a fazer análise em francês. No divã, fiquei espantada ao me escutar me dizendo em francês. Essa língua que acolheu, durante anos, minha história, minha infância, meus sonhos e minhas feridas. Eu soube sofrer, rir, chorar, fantasiar, esperançar, delirar, amar em francês. Reescrevi meu passado, minha história, plantei minhas raízes nessa língua. Ela me adotou e eu a adotei. (Djavann, 2008, p. 302-303)[5]

Nessa passagem, a escritora evidencia o poder de cura que a psicanálise fez em sua vida. Maria Rita Kehl (2016), psicanalista brasileira, ao aderir a perspectiva de sujeito da psicanálise proposta por Lacan — um ser de cultura, constituído numa dimensão histórica e simbólica que sempre o antecede, dividido entre o consciente e o inconsciente e submetido ao funcionamento deste — reafirma a singularidade constitutiva de cada sujeito, ou seja, nessa perspectiva cada sujeito precisa singularizar-se a despeito das pressões estruturais da sociedade, não havendo categorias identitárias universais como O Homem ou A Mulher, por exemplo. Por isso, é essencial que cada sujeito possa narrativizar sua própria história a fim de se constituir nela e por ela, não se limitando apenas aos discursos que o atravessam.

A direção de uma cura, na expressão de Lacan, passa não por uma modificação da estrutura da linguagem que o sujeito habita, mas certamente passa por uma modificação de suas práticas falantes. Dominar (relativamente) nossas práticas linguageiras, em vez de sermos inteiramente alienados a elas, eis uma possibilidade de cura vislumbrada pela psicanálise. (Kehl, 2016, p. 23-24)

Portanto, a partir do momento em que pôde narrar sua própria história em francês, Djavann adquiriu outras referências a que se fiar que àquelas ligadas à sua língua materna. Para a escritora, sua vinculação com a língua francesa permitiu-lhe acessar valores democráticos, os quais ela associa à liberdade individual, ao passo que a afastou da língua persa, associada por ela a valores teocráticos da sociedade islâmica.

Djavann fez dos direitos das mulheres o seu combate. Desde a infância, sempre foi contra todas as regras que marginalizavam as mulheres, como o uso do véu (Bilong, 2022). O Irã, país natal da autora, tornou-se uma república islâmica teocrática em 1979 com a Revolução Iraniana. Após várias intrigas políticas e um certo descontentamento da população com uma ocidentalização do país, o povo iraniano votou em um referendo nacional para se tornar a república islâmica que é hoje, aprovando uma nova constituição republicana teocrática. Nessa nova organização política, as mulheres foram privadas de seus direitos políticos e econômicos, sendo colocadas em uma situação subalternizada por esse regime também sexista. Sendo assim, exilar-se foi a maneira que Djavann encontrou para sobreviver longe de um regime que a reprimia. Entretanto, fez do seu exílio uma grande luta pelo direito das mulheres, denunciando a violência e os abusos contra elas, principalmente as cometidas em seu país natal.

Ela estudou psicologia social e antropologia e sua dissertação de mestrado versa sobre a doutrinação religiosa e islâmica no sistema de educação do Irã. Além disso, iniciou também uma tese de doutoramento sob o título La création littéraire dans la langue de l’Autre, em que se propunha a trabalhar com as obras de Cioran, Ionesco e Beckett, mas não chegou a conclui-la. Em 2002, publicou o seu primeiro romance, Je viens d’ailleurs [Venho de outro lugar], de caráter autoficcional[6]. La muette, publicado em 2008, é o seu primeiro livro a ganhar uma tradução brasileira com o título A muda, feita por Liliane Mendonça e editada pela Arte & Letra.

A produção de Djavann é bastante engajada socialmente no sentido de expor e criticar a opressão que as mulheres islâmicas sofrem no Irã. De acordo com Felski (2003), certas vertentes feministas afirmam que, ao estudar a escrita de mulheres de uma cultura não ocidental, muitas vezes não é possível separar o valor estético do valor social das obras pois eles estão fortemente entrelaçados; nesse sentido, não há espaço para a noção de uma arte autônoma nas sociedades não ocidentais.

No entanto, Felski (2003) também chama a atenção para outra vertente de críticas feministas que advertem sobre o perigo de se ler obras literárias como documentos incontestáveis de identidade ou opressão. O olhar reificante para os países que não pertencem ao Norte Global nega qualquer complexidade formal de suas obras, relegando-as a um retrato fiel da sua cultura de origem ao ler nelas somente o seu conteúdo e desprezar a sua forma. Isso não significa dizer, reitera a autora, que as mulheres de países não ocidentais nunca são oprimidas, mas expressa a insatisfação de ver trabalhos de ficção usados para fins sociológicos com o único objetivo de confirmar estereótipos sobre as mulheres não ocidentais como vítimas oprimidas.

Ainda nesse viés, o engajamento de Djavann pode ser depreendido de sua postura autoral ao averiguar tanto sua produção literária quanto sua produção crítica em ensaios. Jérôme Meizoz (2009), a partir dos pressupostos de Dominique Maingueneau sobre ethos e discurso literário e de Pierre Bourdieu sobre o campo literário, pensa as atividades discursivas dos escritores a partir de suas posturas autorais, as quais ele define como “a apresentação de si de um escritor, tanto em sua gestão do discurso quanto em suas condutas literárias públicas [la présentation de soi d’un écrivain, tant dans sa gestion du discours que dans ses conduites littéraires publiques]” (Meizoz, 2009, s. p.). Com isso, ele implica que uma pessoa só existe como escritor dentro da cena de enunciação[7] da literatura por meio de sua postura, “historicamente construída e referenciada no conjunto de posições do campo literário [historiquement construite et référée à l’ensemble des positions du champ littéraire]” (Meizoz, 2009, s. p.). Portanto, a postura autoral é construída no conjunto de elementos interiores e exteriores (prêmios, discursos, entrevistas etc.) ao texto literário, desde o escritor e dos mediadores (jornalistas, críticos, biógrafos etc.) até o público. Segundo Meizoz (2007, p. 20), é importante ressaltar, “todo autor manifesta uma postura, consciente ou não [tout auteur manifeste une posture, consciente ou non]”.

Em 2003, Djavann publicou pela editora Gallimard o livro Bas les voiles ! [Abaixo o véu!], um ensaio em que faz uma análise antropológica e histórica do véu islâmico e de seu uso cultural, tradicional, psicológico, social, sexual, jurídico e político, condenando veemente o seu uso e criticando a França por não interferir em defesa dos Direitos Humanos no país. Segundo ela,

Alguns intelectuais franceses falam de bom grado no lugar dos outros. E hoje eles falam no lugar daquelas que não ouvimos — o lugar que qualquer outro além delas deveria ter a decência de não tentar ocupar. Porque esses intelectuais continuam, assinam, fazem petições. Eles falam da escola, onde não colocam os pés há muito tempo, dos subúrbios onde nunca sequer pisaram, falam do véu sob o qual jamais viveram. Eles decidem estratégias e táticas, esquecendo-se que aqueles de quem falam existem, vivem na França, país de direito, e não são um sujeito de dissertação, um produto de síntese para uma exposição em três partes. (Djavann, 2003, s.p.)[8]

Seu incômodo reverbera o célebre texto de Gayatri Spivak (2010), Pode o subalterno falar? Nele, a pesquisadora indiana discute a capacidade dos grupos marginalizados, o qual ela chama de “subalternos”, de se fazerem ouvir e representarem a si mesmos dentro das estruturas de poder dominantes. Spivak (2010) argumenta que os intelectuais ocidentais, ao tentar dar voz aos subalternos, muitas vezes reforçam as relações de poder coloniais e silenciam ainda mais esses grupos.

Dessa maneira, este trabalho procura mostrar como Djavann, em seu romance A muda, produz uma obra com recursos estéticos e narrativos em prol de discutir questões importantes sobre a condição das mulheres no Irã, corroborando sua postura autoral enquanto uma autora engajada politicamente pelos direitos das mulheres.

Entre os silenciamentos e as violências, as transgressões

A história de Fatemeh e de sua tia paterna, a “muda” do título do romance, é narrada pela própria personagem em forma de relato a fim de mostrar como seus destinos trágicos se entrelaçam. Fatemeh escreve sua história da prisão, uma vez que foi sentenciada à forca por ter assassinado o mulá (clérigo islâmico) com quem foi obrigada a se casar, em um caderno dado a ela por um dos guardas. Alguns meses antes, sua tia também foi sentenciada à morte pelo mesmo mulá, pois estava prometida em casamento a ele e ainda assim manteve relações com o tio paterno de Fatemeh, por quem havia se apaixonado, o que configuraria um crime de honra nas leis islâmicas. Por esse delito, a muda foi sentenciada ao apedrejamento, mas o pai de Fatemeh, para tentar fazer com que a sentença da muda fosse menos cruel — em vez de apedrejada, seria apenas enforcada — negocia com o mulá a mão de Fatemeh em casamento. Meses depois de se casar e viver sob o teto do mulá e de suas outras esposas, Fatemeh dá à luz uma menina. Entretanto, ela não conseguia aceitar sua condição submissa ao mulá e ao lar, e então, num ato violento e corajoso, tira a vida dele e de sua filha de quatro meses, atitude que a faz ser também sentenciada à morte.

O romance, então, trata de uma narrativa apressada e urgente, já que é escrita por uma personagem-narradora adolescente em seus últimos dias de vida, com muitas digressões temporais e uma linguagem bastante direta. Seu objetivo é registrar sua história para que suas atitudes possam ser compreendidas: “Escrevo para que alguém se lembre da muda e de mim, porque morrer assim, sem nada, me assustava. Talvez um dia alguém leia este caderno. Talvez um dia alguém me compreenda. Não peço para ser aprovada, apenas compreendida” (Djavann, 2021, p. 9).

Logo, sua escrita é a única forma de transgredir o silêncio que lhe é imposto, ainda que seu texto não tenha pretensões de encontrar muitos leitores, pois ela decide permanecer calada durante todo o interrogatório (e tortura) pelo qual a submetem. Já no início do romance, Fatemeh explica os motivos pelos quais manteve-se em silêncio, reproduzindo o silêncio de sua tia, o qual interpreta à sua maneira:

Durante o interrogatório, eu não disse uma palavra, recebi golpes sem gritos, me fiz de muda também. Nesses três dias entendi o silêncio obstinado no qual minha tia tinha se refugiado. Sua absoluta forma de se fechar no silêncio impunha respeito aos outros e, às vezes, os assustava; calar-se talvez significasse não trair a verdade. As pessoas passaram a chamá-la “a muda”. Ela o era realmente? Ninguém sabia, pois não tinha sido sempre; até seus dez anos ainda falava. Mais tarde, embora muda, ela fazia o seu silêncio falar com perfeição. A alegria, a tristeza, o ódio, o amor, a ternura, a cólera, a indignação, a esperança e o desespero se expressavam em seu olhar, em cada traço do seu rosto, no seu modo de se levantar e sair ou então de ficar, escutar e acariciar a gente só com o olhar. Mesmo os mais ignorantes dos analfabetos podiam ler em seu rosto o que ela dizia sem palavras. Ela tinha se calado, mas não fechado o seu coração. Fez do silêncio uma arte, para viver melhor. (Djavann, 2021, p. 10-11)

Ao tratar da política do silêncio, a linguista e analista do discurso Eni Orlandi (2007) afirma que o funcionamento da censura por parte da opressão é o mais evidente: ao se proibir certas palavras, proíbem-se também a produção de determinados sentidos. Entretanto, ela destaca que a constituição do sujeito[9] e do sentido dentro do discurso se dá de forma simultânea, ou seja, como sujeito e sentido são constituídos ao mesmo tempo, ao se proibir certos sentidos, proíbe-se por consequência ao sujeito ocupar determinados lugares, determinadas posições de sujeito. Logo, o silenciamento não trata de calar o interlocutor, mas de impedi-lo de sustentar outro discurso que não o permitido.

Por outro lado, na censura está a resistência (Orlandi, 2007) uma vez que os sujeitos silenciados encontram outras formas de produzir sentido no silêncio — a muda “fazia o seu silêncio falar” e “dizia sem palavras”. No caso do romance, a recusa à fala por parte de Fatemeh, no interrogatório, e de sua tia, ao longo de sua vida, pode ser interpretada como um movimento de transgressão contra a sociedade que as silencia, já que as mulheres não têm direito à opinião pública e são destituídas de qualquer poder político onde vivem. Dessa maneira, o silenciamento que se autoimpõem é também uma tática de enfrentamento das relações de poder; calam-se para “não trair a verdade”, ou seja, para não se permitirem ser colocadas em um lugar (discursivo) ao qual não se sentem pertencentes e, assim, recuperar o domínio de si (de suas práticas discursivas).

Quando descreve com mais detalhes sua tia muda, Fatemeh realça suas atitudes transgressoras, expressas em sua maneira particular de viver como uma pária social:

A muda não fazia nada igual aos outros, não era parecida com ninguém. As pessoas achavam que era louca porque tinha atitudes livres e contraditórias. Ela ignorava completamente as proibições. Só muito mais tarde entendi porque ela era tão diferente. Estava sempre sem véu, até quando abria a porta de casa, apesar de nenhuma mulher, em nosso meio, mesmo que fosse louca, muda, cega, careca ou não, jamais aparecer no limiar da porta sem véu, de medo que algum passante visse. [...] a muda tinha ao mesmo tempo a liberdade de um homem e a minúcia de uma mulher [...]. O fato de que era muda lhe dava uma liberdade que certamente não poderia ter se sempre tivesse falado. Ser muda significava não ser como os outros [...]. (Djavann, 2021, p. 18-19)

Nessa passagem, a narradora estabelece uma relação entre ser mulher e ser homem na sociedade em que as personagens vivem. Por sua condição como mulher, esperava-se da muda que seguisse as regras islâmicas, como por exemplo usar o véu ao abrir a porta de casa. Entretanto, por ignorar completamente essa e outras proibições, ela é vista como louca pela vizinhança; por outro lado, Fatemeh enxerga essas atitudes como a “liberdade de um homem”, ou seja, aos homens não são impostas as mesmas regras sociais que às mulheres.

A narradora afirma que a liberdade da muda vem de seu próprio silenciamento, pois assim ela se permite expressar-se pelo seu corpo, pelas suas atitudes, transgredindo todas as normas que lhe são impostas por sua condição de mulher. Suas transgressões, então, inspiraram Fatemeh, que acabou tendo o mesmo fim trágico que sua tia, como espelhos uma da outra e reflexos dessa sociedade que não permite à mulher a liberdade de suas escolhas, o domínio sobre seus corpos e seus discursos.

Embora a falta de liberdade das mulheres na cultura teocrática do Irã seja um fato, nem todas as mulheres o enxergam da mesma maneira, como é possível notar na relação entre Fatemeh e as duas personagens femininas mais próximas de si. Enquanto ela tem com a muda uma relação de admiração e espelhamento, com sua mãe, por outro lado, ela tem uma relação bastante conflituosa pois não aceita as tradições que ela segue tão fielmente. Assim, o conflito entre Fatemeh e sua mãe é também um conflito cultural, ao mesmo tempo que sua aproximação com a muda representa o rompimento com essas tradições. Em seu relato, Fatemeh confessa: “Acho que nunca amei minha mãe [...]; às vezes me sentia culpada de gostar mais da muda do que dela, era como se eu a traísse” (Djavann, 2016, p. 39).

A relação entre as duas mulheres mais velhas, a muda e a mãe de Fatemeh, é ainda mais conflituosa. A muda é a tia paterna de Fatemeh, mas mora junto com a sua família pois seus pais já morreram — sua mãe teve uma hemorragia interna após ter sido espancada pelo marido (cena que a muda presenciou e que lhe gerou, acreditam os familiares, o trauma do mutismo) e este, embora tenha sido preso, logo foi solto, vindo a falecer de overdose alcoólica alguns meses depois. A mãe de Fatemeh não gostava da presença da cunhada na casa e, certo dia, em uma conversa com as amigas, decidiu casá-la para se ver livre dela. Então, ofereceu a muda em casamento ao mulá que visitava a família com frequência. Isso evidencia a tese de Felski (2003) de que não existe nenhum senso de segurança pelo vínculo do gênero, ou seja, as mulheres, evidentemente, não compartilham sempre a mesma visão de mundo apenas por compartilharem o mesmo gênero. Pelo contrário, ao se supor que existe um vínculo anterior a qualquer tipo de relação apenas por esse motivo, rebaixa-se as mulheres a condições menos humanas, incapazes de construírem uma identidade singular e ter suas próprias visões de mundo.

Embora o plano da mãe de casar a cunhada com o mulá parecesse simples, na verdade havia uma problemática. Fatemeh também tinha um tio por parte de mãe que morava próximo a eles, na faixa dos vinte anos e muito bonito, por quem a muda era apaixonada. Certo dia, sem saber que estava prometida em casamento, a muda e o tio têm relações sexuais e são descobertos pela mãe. Fatemeh tece os seguintes comentários sobre o ocorrido:

A muda tinha muita força de vontade; só os seres de inteligência medíocre, como a minha mãe, podiam subestimar sua obstinação; ela que vivia irredutível no silêncio havia tantos anos! Tinha decidido colocar um fim nesse projeto de casamento com o mulá, e colocou de forma radical. Ela se ofereceu ao homem que amava, sem lhe pedir nada em troca. Um ato mais que revolucionário para uma mulher, e não apenas em nosso meio, mas nesse país onde o amor é sempre um caso de honra entre os irmãos e os pais, um negócio com um contrato e arranjo, um simples comércio. Nesse país onde o amor é proibido. (Djavann, 2021, p. 59)

A partir desse trecho, podemos ler a história que relata Fatemeh apenas como um romance entre a muda e seu tio materno. Todavia, para Joana Russ (apud Felski, 2003), no artigo de 1972 chamado “What can a heroine do?” os enredos feministas não conseguem subverter totalmente os papeis de gênero, uma vez que estão inseridos numa cultura masculina; por isso, o grande enredo disponível para as mulheres é apenas a história de amor. No entanto, Felski (2003) combate esse argumento ao apresentar a análise de Ann duCille sobre a escrita de mulheres afro-americanas a fim de defender que uma história de amor pode ser rica e potente para aqueles cujo amor romântico é negado. Como a própria Fatemeh afirma, trata-se de um “ato mais que revolucionário para uma mulher nesse país onde o amor é proibido”.

Esse incidente chegou aos ouvidos do mulá e, na sua concepção, a muda havia cometido adultério, por isso, segundo as leis do Islã, ela seria apedrejada. Para tentar reverter a situação, o pai de Fatemeh suplica ao mulá que não seja tão atroz, então o mulá lhe promete que a muda não seria apedrejada, apenas enforcada, desde que pudesse se casar com Fatemeh. O pai, não sem sofrimento, concede o pedido. Já o tio, também foi condenado: três meses de prisão e cento e vinte chicotadas, sendo reduzidas para oitenta com a clemência do mulá. Segundo a narrativa de Fatemeh, inferimos que as leis do Islã são muito mais cruéis com as mulheres, principalmente quando se trata do adultério, que com os homens.

Fatemeh então se casa e se torna a terceira esposa do mulá. Em seu relato, ela descreve com detalhes o momento em que ele consuma o casamento, mostrando ao leitor a violência que sofrera. Com o passar dos dias, Fatemeh se ocupa das tarefas domésticas atribuídas pela segunda esposa, Zahara, e, quando descumpre as ordens, é trancada no subsolo para passar a noite.

Após seis meses de casada, Fatemeh engravida do mulá e então dá à luz uma menina. Entretanto, como não suportava mais a ideia de estar naquela condição, toda noite que o mulá a visitava em seu quarto para ter relações sexuais, Fatemeh imaginava como o mataria. Até o dia em que toma coragem de concretizar o ato. Contudo, não só matou o mulá, como logo em seguida tirou também a vida de sua filha.

Eu tinha afiado a faca e escondido sob o colchão. Enfiei em sua garganta quando seu sexo estava na minha vagina. Eu o empurrei e lhe dei muitas facadas no peito. Ele jazia no sangue. Olhei por instantes o bebê que dormia e pensei no provérbio tão caro à minha mãe: “Ninguém pode lutar contra o seu destino…” O dela começava mal desde o berço; abandoná-la com Zahara ou minha mãe teria sido criminoso. Eu tinha vontade de pegá-la em meus braços, mas peguei um travesseiro e o mantive pressionado sobre seu rosto. Ela tinha quatro meses e se chamava Zynabe; eu não gostava desse nome, foi o mulá que escolheu. (Djavann, 2021, p. 82)

Os dois assassinatos, de certa maneira, relacionam-se metaforicamente com o silenciamento: o mulá teve sua garganta perfurada por uma faca enquanto a menina teve suas vias aéreas obstruídas, ambas partes importantes do aparelho fonador. Essa foi a única forma que Fatemeh encontrou de transgredir a sua condição, mesmo que isso a levasse à morte. Por não desejar o mesmo destino à filha, que cresceria uma menina e então uma mulher submetida ao regime teocrático de seu país, Fatemeh também tirou a sua vida, impondo-lhe o silêncio ao qual havia sido acometida.

É só então no relato, ao narrar sua própria história, que a personagem tem o direito à voz. Ao passo que a muda quebrava o seu silêncio com suas ações, seu corpo transgressor, Fatemeh colocou em palavras suas memórias, mesmo que não fossem lidas, como um ato final de transgressão. Dessa maneira, o ato de escrever de Fatemeh não é somente uma denúncia, uma vez que ela não espera ser lida ou que seu texto vá encontrar interlocutores além dela mesma. Sua escrita é a forma de lidar com a situação em que ela se encontra, já que ela não poderá mudá-la, é a única possibilidade de cura no sentido psicanalítico (Kehl, 2016). Em certo ponto da narrativa ela escreve: “[...] não quero morrer com esse ódio que me atravessa e me arrasa [...], quero morrer em paz, livre, preciso esgotar meu sofrimento nessa cela, preciso registrar meu ódio nesse caderno” (Djavann, 2021, p. 31). Pelo viés discursivo, Orlandi (2007) ressalta que:

Escrever é uma relação particular com o silêncio. A escrita permite o distanciamento da vida cotidiana, a suspensão dos acontecimentos. Ela permite que se signifique em silêncio. Assim, há autorreferência sem que haja intervenções da situação ordinária (a censura) de vida: o autor escreve para significar (a) ele-mesmo. É um modo de reação ao automatismo do cotidiano marcado pela censura. Com o distanciamento estabelecido pela escrita, os movimentos identitários podem fluir, podem ser trabalhados pelos sentidos. (Orlandi, 2007, p. 83)

Depreende-se, então, que é pela escrita privada de seu relato autobiográfico que Fatemeh faz o seu silêncio significar. Todavia, não é desse modo que o romance é apresentado ao leitor.

Entre a realidade e a ficção, a ambiguidade

Para inserir o leitor no universo ficcional de A muda, Djvann faz uso de um artifício recorrente nas literaturas, principalmente nas de cultura francesa: o tópico do manuscrito encontrado. Trata-se de uma estratégia, aparentemente banal, em que o narrador do livro (voz narrativa que, muitas vezes, se passa pela voz do próprio autor) afirma no prefácio que o texto a ser lido é, na verdade, um manuscrito que lhe chegou de alguma maneira, geralmente por acaso. Esse procedimento literário tem como objetivo conferir à narrativa um valor de realidade, como se ela tivesse de fato acontecido no mundo real, não apenas no universo da ficção.

Segundo Christian Angelet (1990), o tópico do manuscrito encontrado foi interpretado de diferentes maneiras ao longo dos séculos. No século XVIII, esse recurso era utilizado quando o romance ainda tentava se impor como gênero literário: “[...] ao dar a história por realmente encontrada e ao confiar a narração ao protagonista, os romancistas pensavam fugir das censuras sobre a extravagância e a inverossimilhança às quais a crítica oficial os condenava” (Angelet, 1990, p. 168)[10]. Contudo, Angelet (1990) duvida que alguma vez esse tópico tenha sido levado a sério, pois sempre acaba por conferir um tom irônico ou paródico à obra.

Ainda no século XVIII, aponta o autor, há evidências de que esse tipo de estratégia ao mesmo tempo que procura atribuir um valor de realidade ao texto, atesta justamente o seu carácter ficcional, uma vez que o leitor não é ingênuo e consegue identificar o pacto romanesco do texto que tem diante de si. Inclusive o filósofo francês Rousseau faz uso desse artifício ao explorar a questão da natureza da ficção, principalmente no que tange as relações que ela produz entre ficção e realidade. “Aos olhos de Rousseau, ficção e realidade se encontram no possível [Aux yeux de Rousseau, fiction et réalité se rejoignent dans le possible.]” (Angelet, 1990, p. 172). Portanto, o tópico do manuscrito encontrado sempre foi uma questão literária instigante, capaz de conferir à obra uma camada a mais de interpretação.

No século XIX, todavia, ele muda completamente de natureza. Angelet (1990) afirma que, graças essa estratégia narrativa, o romance se torna plural e contraditório, pois mobiliza diversas vozes que se cruzam na obra e integram um comentário crítico na ordem da ficção. No século XX, ao comentar sobre a obra La Nausée de Sartre, Angelet (1990) sugere que o mesmo tópico é utilizado para abalar as convenções formais sobre as quais repousam o romance da subjetividade.

De uma forma ou de outra, a estratégia do manuscrito encontrado sempre confere à obra um caráter de dúvida, pelo menos em um primeiro contato, pois a aproxima da realidade sem deixar de atestar sua ficcionalidade. O romance de Djavann está inserido nessa forma narrativa quando, em seu prefácio, uma certa narradora-autora nos conta que recebeu uma carta e um pacote de uma repórter correspondente no Irã; o pacote continha dois manuscritos, um em persa e outro a sua tradução para o francês. O pedido da repórter é de que a autora publique esse texto pois o relato trata de “uma história real escrita por uma jovem prisioneira de quinze anos” (Djavann, 2021, p. 5-6). Além do prefácio, ainda encontramos uma “nota da jornalista” e uma “nota do tradutor” após o relato de Fatemeh, que ajudam a construir a imagem desse texto com caráter ficcional.

Ioanna Chatzidimitriou (2012), em seu texto “Speaking Silence: Translation in Chahdortt Djavann’s La Muette”, critica a estrutura narrativa escolhida pela autora ao apontar que o relato de Fatemeh é deslocado de sua função original, de sua cultura e de sua historicidade ao passar de uma língua para outra, colocando a personagem central e sua tia em posições subalternizadas.

Os dispositivos de enquadramento no geral e o ato de tradução em particular ilustram a necessidade da história de Fatemeh de ser contada em uma língua estrangeira ou se manter para sempre em silêncio. Em outras palavras, contar a história de Fatemeh em francês retira o poder performativo da narrativa embutida, pela mesma razão, fazendo com que Fatemeh passe de uma agente de resistência para o exato oposto do que ela e sua tia significam na história: ambas se tornam espectadoras silenciosas, vítimas cujas histórias de vida não servem a outro propósito exceto exemplificar tudo o que há de errado com o Irã atualmente. (Chatzidimitriou, 2012, p. 1208)[11]

Sendo assim, o texto ocidentalizado em francês, por um lado, ganha um caráter de denúncia, como se somente a partir do trabalho em conjunto entre escritora, tradutor, jornalista e ficcionista as mulheres silenciadas por esse regime possam ganhar voz; por outro, a ação tradutora destitui o relato de Fatemeh de sua função original para ser lido como a generalização de uma verdade histórica.

No entanto, é justamente a estratégia do manuscrito encontrado que nos permite ler esse romance de maneira ambígua: há, simultaneamente, uma denúncia da condição das mulheres no Irã e uma crítica ao próprio Ocidente francófono sobre como ele olha para a cultura não ocidental a fim de corrigi-la, buscando denunciar uma realidade mais ampla na voz de um indivíduo. Pelo dispositivo tradutório, Fatemeh ganha voz ao mesmo tempo que a perde, pois, a posição de sujeito que ocupa enquanto escritora/narradora de sua vida é diferente da posição em que é colocada no texto traduzido, um deslocamento que impossibilita o leitor a acessar os sentidos de sua primeira posição. Logo, o título do romance de Djavann caracteriza muito mais que somente a tia muda da narradora. O mutismo se torna uma metáfora ainda maior para tratar de dupla subalternização e silenciamento enfrentadas por essas personagens: a condição de mulher, que não tem voz na sociedade descrita, e a condição de não ocidental, que não tem voz a não ser pela tradução ocidentalizada de seu texto.

Para Spivak (2010), se o discurso do subalterno (diga-se, dos cidadãos não ocidentais) é silenciado, a mulher subalterna encontra-se numa posição ainda mais periférica devido às questões de gênero. E, segundo a pesquisadora, mesmo que haja uma tentativa de recuperar as áreas silenciadas, a longo prazo, esse trabalho inevitavelmente irá se unir a constituição de um sujeito imperialista e “a mulher subalternizada continuará tão muda como sempre esteve” (Spivak, 2010, p. 112).

O romance de Djavann, portanto, é um retrato da crítica de Spivak (2010), uma vez que o silêncio na narrativa é uma metáfora dupla: tanto da condição silenciada das personagens femininas quanto do discurso de Fatemeh silenciado pela tradução — mesmo que o texto traduzido seja uma tentativa de dar voz ao outro, falha ao continuar mantendo a subalterna silenciada e utilizando sua voz para denunciar uma realidade construída por olhos ocidentais.

Considerações finais

Nem toda história escrita por mulheres é feminista no sentido ideológico de denunciar as diferenças entre os gêneros e expor as mazelas do patriarcado. Contudo, o ato de contar histórias tem sido importante para imprimir uma presença feminista na esfera pública. Maria Pia Lara (apud Felski, 2003, p. 108) observa que a narrativa “nos permite reimaginar e redescrever as vidas das mulheres de uma forma que carrega força estética, moral e política [allows us to reimagine and redescribe the lives of women in a way that carries aesthetic, moral, and political force]”. Ainda que uma narrativa se proponha feminista e busque um tom de denúncia, é importante não relegar a literatura de uma autora mulher somente a uma questão sociológica e deixar de enxergar seus aspectos estéticos.

Isto posto, é importante observar tanto os aspectos políticos e sociais quanto os aspectos estéticos e narrativos de uma obra literária e como um contribui com o outro. Nesse sentido, a análise de Bilong (2022) não alcança interpretações mais profundas da obra pois limita-se à temática das violências contidas no romance, o que pode reforçar ainda mais os estereótipos ocidentais sobre o Irã e as mulheres iranianas. Já a análise de Chatzidimitriou (2012) sobre a tradução fictícia, embora evidencie que o texto traduzido continua reproduzindo as estruturas de poder e opressão ocidentais, não leva em consideração o artifício pelo qual essa tradução aparece: por meio do tópico do manuscrito encontrado; ou seja, ela ignora o caráter irônico que tal artifício pode apresentar e as metáforas que se pode desprender dele.

Além de retratar a condição das mulheres iranianas, Djavann também cria uma história complexa sobre o poder da escrita e ironiza o papel do Ocidente nas trocas culturais, principalmente no que tange ao papel da tradução que, ao deslocar o discurso do relato de Fatemeh, confere-lhe um estatuto de denúncia, mesmo que este nunca tenha sido o fim para o qual a personagem tenha escrito. Desse modo, em A muda, a autora coloca em evidência o duplo silenciamento que as mulheres iranianas sofrem — de um lado, por sua condição como mulheres, de outro, por sua condição periférica em relação ao Ocidente —, assim como evidencia que o silenciamento, quando autoimposto, também pode ser uma forma de resistência e uma estratégia de significar no discurso.

Marco Antonio Rocha - Doutorando em Letras com ênfase em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Letras (UFPR). E-mail: marco.rocha91@gmail.com

Notas

  1. Entende-se por “patriarcado” o sistema de dominação dos homens sobre as mulheres que, enquanto enraizado na cultura, limita a participação política das mulheres na sociedade, subordinando-as às decisões masculinas sobre os seus direitos. Entretanto, o termo como conceito ainda é bastante discutido, não havendo apenas uma interpretação a respeito. A socióloga e cientista política Bruna Camilo (2019) investiga, em sua dissertação de mestrado, as definições do conceito dentro da Ciência Política e dos estudos marxistas e socialistas, assim como analisa de que maneira um Estado pode ser compreendido como patriarcal.
  2. No original: “La muette est une illustration parfaite d’une société patriarcale et traditionaliste, dans laquelle les femmes sont victimes de la violence exercée par les hommes. La culture et la religion exercent une grande influence sur la violence que subissent les femmes car ces deux éléments restent le ciment du pouvoir du patriarcat.” (Bilong, p. 48) Essa e outras traduções foram feitas pelo autor deste trabalho.
  3. De acordo com a organização Human Rights Watch (2001), “crimes de honra são atos de violência, geralmente assassinatos, cometidos por membros familiares masculinos contra membros familiares femininos que são percebidos como tendo trazido desonra à família” (tradução nossa). Várias razões podem levar a mulher a se tornar um alvo, como “recusar-se a entrar em um casamento arranjado, buscar divórcio – mesmo de um marido abusivo – ou cometer adultério” (Human, 2001, tradução nossa). Esse tipo de crime não é exclusivo de nenhuma sociedade ou religião, entretanto, no direito islâmico, a Xaria, prevê-se a pena de morte em casos de adultério e apostasia (renúncia à fé islâmica), principalmente, pois considera-se que esses atos ferem a honra familiar e social.
  4. Livro organizado pelos franceses Michel Le Bris e Jean Rouaud a partir de um manifesto publicado em 2007 pelo jornal Le Monde. O volume é composto por 27 ensaios de escritores francófonos de diversas regiões do mundo com o objetivo de pensar a literatura de língua francesa na contemporaneidade e tentar extinguir a barreira que separa as literaturas francesas das demais literaturas francófonas.
  5. No original: “[…] Un an après mon arrivée à Paris, j'ai commencé une psychanalyse, en français. Sur le divan, j'ai été étonnée de m'entendre me dire en français. Cette langue a accueilli, pendant des années, mon histoire, mon enfance, mes souvenirs et mes blessures. J'ai su souffrir, rire, pleurer, fantasmer, espérer, délirer, aimer en français. J'ai réinscrit mon passé, mon histoire, replanté mes racines dans cette langue. Elle m'a adoptée et je l'ai adoptée. Au bout de ce cheminement qu'est la psychanalyse, j'étais devenue une autre, une autre en français, et mon écriture ne pouvait prendre corps que dans cette langue ; puisque cette autre est celle qui écrit.” (Djavann, 2008, p. 302-303)
  6. A autoficção ainda é uma nomenclatura bastante vaga, mas utilizada para conceituar obras que poderiam ser lidas num entremeio de autobiografia e ficção. Lejeune (1975) postula que uma obra estabelece um pacto com o leitor: pode se tratar de um pacto autobiográfico quando, entre outros fatores, o nome do autor, do narrador e do personagem principal são os mesmos, ou se tratar de um pacto romanesco, quando esses nomes não coincidem. Na autoficção, porém, esses pactos não são muito claros, o que propicia outros níveis de interpretação para a obra. No caso do livro de estreia de Djavann, embora trate-se de um romance, é narrado em primeira pessoa por uma voz feminina e não nomeada; além disso, há muito da experiência pessoal da autora na narrativa.
  7. Maingueneau (2008) propõe que toda enunciação está inscrita em uma cena, ou seja, as configurações que permitem e propiciam cada discurso de ser produzido (um enunciador e um coenunciador, um lugar etc.).
  8. No original: “Certains intellectuels français parlent volontiers à la place des autres. Et aujourd’hui voilà qu’ils parlent à la place de celles qu’on n’entend pas – la place que tout autre qu’elles devrait avoir la décence de ne pas essayer d’occuper. Car ils continuent, ils signent, ils pétitionnent, ces intellectuels. Ils parlent de l’école, où ils n’ont pas mis les pieds depuis longtemps, des banlieues où ils n’ont jamais mis les pieds, ils parlent du voile sous lequel ils n’ont jamais vécu. Ils décident des stratégies et des tactiques, oubliant que celles dont ils parlent existent, vivent en France, pays de droit, et ne sont pas un sujet de dissertation, un produit de synthèse pour exposé en trois parties.” (Djavann, 2003, s.p.)
  9. Para a Análise do Discurso de linha francesa, o sujeito é aquele que fala no discurso; ele não tem total controle das escolhas que faz quando diz, dizendo aquilo que é possível dentro das Formações Discursivas em que está inscrito. “Ao dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam sentidos, e também por sua memória discursiva, por um /saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentido por se inscreverem em formações discursivas que representam no discurso as injunções ideológicas”. (Orlandi, 2000, p. 53).
  10. No original: “[…] en donnant l’histoire pour réellement arrivée et en confiant la narration au protagoniste, les romanciers pensaient échapper aux reproches d’extravagance et d’invraisemblance dont la critique officielle les accablait.” (ANGELET, 1990, p. 168)
  11. No original: “The framing devices in general and the act of translation in particular illustrate the need for Fatemeh’s story to be told in a foreign tongue or forever keep its silence. In other words, telling Fatemeh’s story in French takes the performative power away from the embedded narrative, by the same token, transforming Fatemeh from an agent of resistance to the exact opposite of what she and her aunt mean in the original story: they both become silent bystanders, victims whose life stories serve no other purpose than to exemplify all that is wrong with modern day Iran.” (Chatzidimitriou, 2012, p. 1208)
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Referências

  1. ANGELET, Christian. Le topique du manuscrit trouvé. Cahiers de l'Association internationale des études francaises, n.42, 1990. p. 165-176. Disponível em: . Acesso em: 19 jul 2024.
  2. BILONG, Hélène Patience. L’opression de la femme dans La muette de Chahdortt Djavann. Orientador: Philippe Basabose. 109 fl. Dissertação (mestrado) — Departamento de línguas, leteraturas e culturas modernas da Universidade Memorial de Terra Nova, Terra Nova, Canadá, 2022. Disponível em: . Acesso em: 19 jul 2024.
  3. CAMILO, Bruna. Patriarcado e teoria política feminista: possibilidades na ciência política. 114 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2019. Disponível em: Acesso em: 16 out 2024.
  4. CHATZIDIMITROU, Ionna. Speaking Silence: Translation in Chahdortt Djavann’s La Muette. MLN, vol. 127, n.5, Johns Hopkins University Press, 2012. p. 1206-1225.
  5. DJAVANN, Chahdortt. Bas les voiles ! Paris: Gallimard, 2003.
  6. DJAVANN, Chahdortt. De l’apprentissage du français à l’écriture. In: LE BRIS, Michel; ROUAUD, Jean (org.). Pour une littérature-monde. Paris: Gallimard, 2007. p. 287-303.
  7. DJAVANN, Chahdortt. A muda. Trad. Liliane Mendonça. Curitiba: Arte & Letra, 2021.
  8. FELSKI, Rita. Literature after feminism. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.
  9. HUMAN Rights Watch. “Item 12 - Integration of the human rights of women and the gender perspective: Violence Against Women and "Honor" Crimes”. Humans Rights News. 6 de abril de 2001. Disponível em: . Acesso em: 16 out 2024.
  10. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
  11. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.
  12. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. Organização Sírio Possenti, Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
  13. MEIZOZ, Jérôme. Postures littéraires: mises en scène modernes de l’auteur. Genève: Slatikne Érudition, 2007.
  14. MEIZOZ, Jérôme. Ce que l’on fait dire au silence: posture, ethos, image d’auteur. Argumentation et Analyse du Discours, n. 3, 2009. Disponível em: . Acesso em: 19 jul 2024.
  15. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000.
  16. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
  17. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Beloza Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Recebido em: 25-set-2024
Aceito em: 18-out-2024

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