Seção Livre
BABEL, Alagoinhas - BA, 2024, v. 14: e21585.
RODRIGUES, Hiarla Yasmin França; ALENCAR, Rafael Barros de; LIMA, Samuel Anderson de Oliveira. 20 Palavras ao redor do sol: diálogos literomusicais. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2024, v. 14, e21585.
20 Palavras ao redor do sol: diálogos literomusicais
20 Words around the sun: literary-musical dialogues
Hiarla Yasmim França Rodrigues
Rafael Barros de Alencar
Samuel Anderson de Oliveira Lima
Resumo: Este artigo pretende realizar um diálogo literomusical entre o disco “20 Palavras ao redor do sol” da multi instrumentista, compositora e cantora paraibana Cátia de França com obras do poeta João Cabral de Melo Neto. A partir do título do disco, que nos remete a um poema intitulado “Graciliano Ramos”, somos sugeridos a verificar a obra da cantora Cátia de França com objetivo de encontrar outros vestígios cabralinos nas canções, assim como outros indícios literários. A cantora Cátia de França, em entrevista, fala que toda sua obra é baseada na literatura. Dessa forma, nosso objetivo, neste artigo, é perscrutar as canções do disco “20 Palavras ao redor do sol” e entender seus enlaces com a literatura, seu exercício literomusical.
Palavras-chave: João Cabral. Cátia de França. 20 palavras ao redor do sol.
Abstract: This article aims to carry out a literary-musical dialogue between the album “20 Palavras ao redor do sol” by multi-instrumentalist, composer and singer Cátia de França with works by the poet João Cabral de Melo Neto. Based on the album's title, which refers us to a poem entitled “Graciliano Ramos”, we are suggested to check the singer's work in order to find other goat traces in the songs, as well as other literary evidence. The singer Cátia de França in an interview says that all her work is based on literature. Thus, our objective in this article is to scrutinize the songs from the album 20 Palavras ao redor do sol and understand their links with literature, their literary-musical exercise.
Keywords:João Cabral. Cátia de França. 20 words around the sun.
O cante das araras
O som está na natureza, no balançar das folhas, no cair das frutas no chão, nos pingos da chuva se deslocando pelo ar e tocando qualquer superfície, no cantar dos pássaros e nos mais diversos sons emitidos pelos animais, compondo formas de comunicação, de reação, de interações entre agentes e meios.
Nos dicionários, o significado da palavra “som” remete a tudo captado através da audição, ou sensação auditiva provocada por vibração. Minimamente, o som é a relação de ondas com o meio de propagação, de outra forma, o som é um constructo que se propaga no tempo, por isso, é efêmero. O som está também em nosso corpo, no pulsar de nosso coração, na circulação de sangue, no movimento dos líquidos corporais, etc.
Enquanto natureza física, o som surge a partir de uma perturbação (efeito de compressão e rarefação) que se propaga em um meio, como o ar, e é recebido como sensação. O pesquisador José Miguel Wisnik (2002, p. 17) assim o define: “Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos”.
Wisnik (2002) afirma que não é a matéria do meio em que o som se propaga que caminha levando o som, mas um sinal de movimento, um código único, efêmero, que passa através do meio, modificando-o e criando nele uma inscrição, um desenho, de característica fugaz, que se perde no e com o tempo. Nesse sentido, a relação do som com a matéria, sua capacidade de ser mudada pelas vibrações sonoras, ou em outras palavras, a capacidade das vibrações sonoras mudarem o meio, podem ser extrapoladas no sentido de que a canção transforma outro meio além do físico, o meio social, a sociedade, a partir de sua característica primordialmente vibracional e por isso capaz de ser interpretada pelos sentidos humanos e linguísticos, com suas melodias, afetivas e culturais. Em nosso artigo, partimos da capacidade do som em transformar os meios: físico e social.
Neste sentido, a discussão sobre som que envolve música perpassa a (des)organização de ruídos, de sons, assim como o controle de suas vibrações e a consonância com a sensação melódica intencional, assim como os sentidos quando da apreciação estética, quando se volve para as construções de sentido, os processos de recepção e significação pela sociedade de uma época. Assim, a música é um composto sonoro, característico das civilizações humanas. Talvez a história da música, em algum sentido, se confunda com a história do próprio homem. Como dito pelo pesquisador Wisnik (2002), o som, através de seu código único, modifica o meio, inscreve nele suas vibrações, efêmeras, fadadas ao tempo e sua propagação.
Dessa forma, pensar em música é estar atravessado por um passado que a uniu diretamente com a palavra, com seus enlaces, entonações e pausas. De toda forma, é pensar sua aproximação com a literatura, seus recursos compositivos, sua herança histórica e poética. Sobre esse tema o pesquisador Rückert (1997, p. 1) escreve: “A relação entre elas, música e literatura, é mais profunda, pois, sendo a voz humana o mais primitivo instrumento musical, a música surgiu do canto e, no canto, o conteúdo é a poesia declamada melodiosamente”.
Segundo Wisnik (2002) a música fala, ao mesmo tempo, ao horizonte da sociedade e ao vértice subjetivo de cada indivíduo, ainda, a música, antecipa e ensaia as transformações que estão se dando, que vão se dar, ou que deveriam acontecer na sociedade. O som, onda mecânica, é efeito físico e necessita de um meio para se propagar, uma vibração que carrega matéria e é efêmero. Além do meio físico que o som precisa para se propagar, é possível também discorrer sobre o meio social, cultural e estético que o pesquisador Wisnik chamou de “contexto”. Em nossa perspectiva, a música se propaga nesse contexto em uma discussão que perpassa a interpretação do som e sua relação com a cultura. É nesse sentido que o pesquisador escreve: “Como já disse, no entanto, o grau de ruído que se ouve num som varia conforme o contexto” (2002, p. 32). O que Wisnik chama de contexto pode ser entendido como as contribuições estruturais, sociais, estéticas e culturais de um tempo histórico, que a sociedade elenca para interpretar o som, uma antropologia da música e/ou do ruído em uma abordagem sociológica que envolve o som dentro da rede de apreensões sociais. E continua:
Um grito pode ser um som habitual no pátio de uma escola e um escândalo na sala de aula ou num concerto de música clássica. Uma balada “brega” pode ser embaladora num baile popular e chocante ou exótica numa festa burguesa. Tocar piano desafinado pode ser uma experiência interessante no caso de ragtime e inviável em se tratando de uma sonata de Mozart. (Idem)
O som que modifica o meio, inscrevendo seu código único, é sentido, interpretado pelo corpo que também vibra e, além desta condição física do som, sua interpretação, sua valoração varia, como dito acima, com elementos da sociedade, históricos, culturais e estéticos. A interpretação do som está diretamente ligada ao meio social, a uma espécie de construção social da realidade sonora e musical. Estamos diante, dessa forma, de um fenômeno físico e de um fenômeno social, assim, o som possui essa capacidade minimamente dual, apresenta essas duas realidades: física e social.
Desde a antiguidade a música e a literatura estiveram relacionadas. Ao pensarmos a música enquanto um organismo mimético da natureza humana aludimos a conceitos aristotélicos defendidos na obra Poética (1990). Para Aristóteles, tanto a literatura, quanto a música, a dança e as artes plásticas, podem ser consideradas artes miméticas, pois se compreende a arte como produto resultante da relação entre o homem e o mundo. Em contrapartida, de acordo com Cara (1985), os códigos produzidos pelas palavras e consequentemente pelos sons incomodavam Platão que considerava a poesia um espaço subjetivo para opinião e sensação, uma vez que compreendia que para atingir o mundo das ideias o caminho era o da ciência, não à toa expulsou os poetas da sua república.
Refutando diretamente as concepções platônicas que desvalorizavam a poesia enquanto objeto capaz de interferir positivamente o meio social, temos João Cabral de Melo Neto, um poeta que sem fazer uso dos subjetivismos frequentemente encontrados nas poesias, sistematiza o sertão como um cientista, identificando fenômenos e fatos de forma metódica e racional, trazendo a pedra como matéria-prima para suas análises e produções, que, por vezes, resultam em um trabalho áspero e preciso. João Cabral usa a literatura como veículo cultural, denunciativo e pedagógico do mesmo modo que Cátia de França utiliza a música, ambos reafirmam a identidade cultural de um Brasil plural. Se João Cabral se vale de expressões e referências de determinadas comunidades, Cátia de França ao desenvolver suas músicas - que conforme comprovaremos são influenciadas por referências literárias - adiciona elementos sonoros que aludem a essas comunidades, a dizer pela sanfona, o caxixi, o atabaque e o berimbau, costurando uma colcha de muitos ritmos e linguagens.
Dessa forma, nossa proposta neste artigo é percorrer os conteúdos literomusicais agenciados no disco 20 palavras ao redor do sol[1] da compositora paraibana Cátia de França. Nossa discussão também perpassa pelas (des)semelhanças entre os campos da música e da literatura a partir da análise das canções e suas intertextualidades com a obra de João Cabral de Melo Neto. O cante, tão caro ao poeta pernambucano, aparece na obra de Cátia de França como o cante que se canta a contrapelo. Cátia de França digere João Cabral e parece entoar em seu canto despido, desarmado, só a lâmina da voz, uma herança poética cabralina.
O canto seco sustenta a pisada
João Cabral de Melo Neto foi um poeta brasileiro, nascido no ano de 1920 em Pernambuco, região Nordeste do Brasil. Autor de várias obras de destaque, das quais citamos: Morte e Vida Severina, Os três mal amados, O Cão Sem Plumas, Paisagens com Figuras, o poeta pernambucano teve sua biografia marcada pelo recebimento de prêmios importantes para literatura nacional e mundial, chegando a ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras. João Cabral nasceu em uma família que fazia parte da elite açucareira nordestina e passou boa parte de sua infância na zona da mata, em uma região conhecida por São Lourenço da Mata. Antes de ser poeta, o pernambucano teve intenções de ingressar na carreira profissional de jogador de futebol. Conta sua biografia que, na juventude, João Cabral frequentava a vida intelectual de Recife, indo depois morar no Rio de Janeiro, cidade onde lança no ano de 1942 seu primeiro livro, intitulado Pedra do sono.
A poesia de João Cabral, enquadrada pelo cânone à terceira fase do modernismo brasileiro, conversou com as temáticas que se aproximavam da realidade nordestina e, de acordo com Marques (apud NOGUEIRA, 2001, p. 92), em diversos depoimentos ele defendeu a existência da cultura do Nordeste: “o homem só é amplamente homem quando é regional, se me tirar a estrutura ideológica de Pernambuco, eu nada sou”; “o homem não chega ao geral sem partir do particular, não se pode chegar ao nacional sem ser regional”.
A defesa de uma representação do regional pelos escritores modernistas é, inclusive, anterior à produção cabralina, se potencializando na prosa de 30, mais conhecida como o romance de 30, no qual escritores principalmente do Nordeste se posicionaram motivados pela necessidade de trabalhar com as problemáticas sociais que o avanço do capitalismo e os escombros da guerra trouxeram. Esses autores prezavam pela fuga do onírico para que só então pudessem tratar de acontecimentos reais e recorrentes do cotidiano nordestino, como fome, êxodo rural, abandono governamental, exploração racial e seca.
De acordo com Haroldo de Campos (2019) em um de seus ensaios intitulado de “O Geômetra Engajado”, a associação de João Cabral com a geração de 45 não passou de um critério cronológico, pois, do contrário dos demais da geração, o poeta se ocupou obsessivamente da mecânica da criação e o seu projeto foi uma luta contra o acaso, de modo que se distanciou da preferência individualista e intimista desses. O empenho do autor resultou em dicções que constroem uma imagem poética de forma plástica por meio de paralelos semânticos que não alienam a linguagem, pois, segundo Campos, João Cabral “traduziu-se este seu empenho pelo alargamento do auditório na investidura da temática do nordeste, do subdesenvolvimento econômico agudo e do pauperismo dessa região” (CAMPOS, 2019, p. 78).
A crítica atribui à poética de João Cabral de Melo Neto características de concisão e objetividade, atributos que lhe rendem adjetivos como engenheiro das palavras, arquiteto da poesia, dentre outros. Fato é que a preocupação com a palavra, sua posição e alcance certeiros são marcas da poesia cabralina. João Cabral tem como identidade o verso medido, a proliferação e condensação de imagens em seus poemas, a aproximação com a arte pictórica mais do que com a arte musical.
O cuidado, por vezes obsessivo, com a forma e com a palavra exata, serve como demonstração do esforço do poeta em transpor para a poesia a indiscutível importância do seu universo de criação, calcado na observação do mundo ao seu redor. Universo restrito, de palavras repetidas – em busca da condensação do sentido – e da representação de dois espaços intimamente visitados e revisitados: Pernambuco e a Espanha. (PEDRA, 2010, p. 9)
João Cabral de Melo Neto é tido por muitos como poeta avesso ao lirismo tradicional, assim como anti-musical, como é possível observar na entrevista concedida no dia 04 de novembro de 1980, no Rio de Janeiro, captada pelo pesquisador e professor Antônio Carlos Secchin (1999, p.326):
O grande poeta brasileiro, não só de agora, mas de qualquer época, é Carlos Drummond de Andrade. Foi ele quem me convenceu, com Alguma poesia, de que eu também poderia ser poeta. Sempre fui antimusical, e na minha adolescência essa postura era incompatível com a poesia. No colégio, tinha um imenso enjoo dos versos tipo ‘Ora, direis, ouvi estrelas’, com esse ritmo chatíssimo.
Em outra entrevista, João Cabral abre a exceção e demonstra seu gosto musical pelo flamenco, por ser cantado ao extremo da voz, revelando seu gosto pelos extremos, visível também em seus signos poéticos.
É essencial em poesia ter um som, uma ligação com a fala. Mas é uma dicção diferente, que não é cantável. Realmente não gosto de música, nunca gostei. Sou um poeta visual, não auditivo. A única música que gostei foi o flamenco, que é dissonante, pois o sujeito canta no extremo da voz (SECCHIN, 1999, p.93)
Assim, pensar qualquer relação da obra de João Cabral com a música requer um exercício cuidadoso. Alguns experimentos musicais bem sucedidos de sua poesia foram presenciados pelo poeta, como a peça musicada por Chico Buarque sobre Morte e Vida Severina, que posteriormente virou um álbum[2] contendo 12 canções, das quais todas, intertextualmente, são agenciadas em desdobramentos de versos de Morte e Vida Severina com parcerias de Airton Barbosa. Chico Buarque participa de duas canções: “Mulher na janela” e “Funeral de um lavrador”. A peça de muito sucesso acabou por tornar Chico Buarque conhecido pelo público, assim como o próprio João Cabral, que admite, em entrevista, a contribuição positiva do musical para sua carreira e difusão da obra Morte e Vida Severina.
É, portanto, a partir da exceção de João Cabral e seu gosto pelos cantes que se desenvolvem ao extremo da voz que nos sentimos confortáveis para estabelecer o diálogo entre a poesia cabralina e sua presença marcante no disco de Cátia de França, intitulado 20 palavras ao redor do sol.
1.1 Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
Se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
(MELO NETO, 2020, p. 251)
No poema de João Cabral, intitulado A Palo Seco, o poeta pernambucano agência o cante a palo seco - expressão espanhola para designar o canto cantado à capela, sem acompanhamento de instrumentos, normalmente um canto que expressa dor, com longas enunciações vocais - para, de alguma forma, falar sobre o ato de escrever poemas, dessa forma, constituindo um metapoema. O poema é extenso, no que diz respeito à estrutura, possui quatro partes, das quais cada parte está dividida em quatro estrofes, que por sua vez está composta por quatro versos. Presente no livro Quaderna (1956-1959) A Palo Seco costura um signo poético espanhol e nos dá pistas de sua exceção ao desgosto musical.
Na primeira parte do poema, o cante é reduzido em sua própria expressão escrita: é o cante sem guitarra; o cante sem; o cante (apenas). Essa demonstração do cante a palo seco, que se reduz a pureza de ser apenas o cante, é, de toda forma, uma demonstração da forma composicional de João Cabral, ou pelo menos, sua opção estética, a ser confirmada pela obra do pesquisador Antônio Carlos Secchin intitulada “João Cabral: a poesia do menos”.
3.2 A palo seco é o cante
de grito mais extremo
tem de subir mais alto
que onde fica o silêncio
(MELO NETO, 2020, p. 253)
O cante a palo seco é sobretudo, a partir da leitura do poema, um canto incisivo, em que se emprega o seco, “não por resiliente”, “mas por ser mais contundente” como expressa os últimos versos do poema cabralino. Ainda, “o cante a palo seco é cante que não se enfeita, é cante que não canta, cante que aí está”. A opção estética pelo canto não costumeiro, pelo deslocamento e/ou ruptura com a tradição poética brasileira da geração de 45 é, de alguma forma, expressa no poema.
Falar da música nordestina é também se referir diretamente à construção de uma identidade. Se na década de 30 os modernistas pretendiam a reafirmação de uma identidade nacional na literatura, a música, como uma das séries da cultura, haveria de se posicionar em relação às mudanças acontecidas pós-Primeira Guerra Mundial. Buscava-se então reagir aos padrões estrangeiros com “uma música que remetesse à identidade nacional e ao seu povo, que fosse buscar nas canções populares sua matéria-prima, já que essas são vistas como reserva da brasilidade” (ALBUQUERQUE, JR., 2011, p. 173). Precisava-se de criações que não remetessem a qualquer aproximação com os grandes meios urbanos, dessa forma, a música regional foi vista como a solução devido ao seu caráter singular, puro e rural.
No que se refere à musicalidade, Cátia de França faz seu parto, uma vez grávida da literatura concisa e cortante, comumente cabralina, para tomar um caminho em direção a sua retirada, mas uma retirada avessa, não tão comum. Cantadores musicalizam versos, na Paraíba muito se vê os que galopam com suas violas em rodas de glosas influenciados pela lírica das cantigas trovadorescas, o que naturalmente permite uma passagem rápida pelo texto, Cátia, por sua vez, toma o caminho das pedras no sol, torce a poesia para exprimir dela os seus sentidos, parafraseia e parodia até a tornar uma canção. No seu caminho ela captura a lição das pedras, a economia e a condensação, pedras não ficam umas sobre as outras de tanto serem pisoteadas, frequentadas, a sua música feita por esse caminho tem uma dicção pétrea, exige ouvidos atentos, é preciso que se volte para compreendê-la, voltas que geram elipses.
Intestinos de pedra, vocação de caliça[3] (desenvolvimento)
A gente de uma capital entre mangues,
gente de pavio e de alma encharcada,
se acolhe sob uma música tão resseca
que vai ao timbre de punhal, navalha.
(MELO NETO, 2020, p. 364)
20 Palavras ao redor do sol é o nome do primeiro álbum de carreira de Catarina Maria de França Carneiro, mais conhecida como Cátia de França[4]. Multi instrumentista, desde criança, Cátia dominava instrumentos musicais como o piano, violão, depois aprendendo também sanfona, assim como alguns instrumentos de sopro e percussão. Foi professora de música e como artista participou de festivais musicais na década de 60. Paraibana, negra, lésbica, Cátia de França nasceu em 1947 e é compositora e diretora artística de seus discos, com uma carreira até hoje muito atuante.
Carvalho de Souza (s/a, p. 4) escreve que no ano de 1970 Cátia de França venceu um festival de Música Paraibana e como premiação lançou um compacto duplo que é, dessa maneira, seu primeiro registro fonográfico. Sobre a biografia da compositora paraibana, Carvalho de Souza ainda coloca que, na década de 70, Cátia viajou para a Europa integrando um grupo de música folclórica juntamente com Elba Ramalho.
Do ponto de vista musical, o álbum “20 palavras ao redor do sol” traz participações especiais como a direção musical de Carlos Alberto Sion e Zé Ramalho, e no elenco de instrumentistas artistas como Dominguinhos, Severo e Sivuca nas sanfonas, Chico Batera na bateria e percussão e, Amelinha e Elba Ramalho nos vocais. As canções são composições de Cátia de França, algumas em parceria com outros compositores, como: Djaniras[5], parceria com Israel Semente e Xangai; Ensacado[6], parceria com Sérgio Natureza; e a última canção do disco, Eu vou pegar o metrô[7], parceria com Lourival Lemes.
O disco apresenta um diálogo visível com a literatura, basta que observemos que, na contracapa, Cátia de França escreve: “Meu trabalho é todo pautado em escritores. Eu não me inspiro porque a Lua está assim ou assado, porque estou apaixonada, ou estou sofrendo. É sempre um lastro, um alicerce que me dá credibilidade e me torna eterna.” Outra evidência do diálogo com a literatura se encontra no título do álbum: 20 Palavras ao redor do sol, uma clara referência cabralina, encontrada no poema intitulado Graciliano Ramos, presente no livro Serial.
O poema cabralino nos insere no deserto solar do vocabulário de Graciliano Ramos, na atmosfera poética e nas características composicionais que marcam as narrativas do alagoano. Graciliano Ramos compõe uma constelação1 de artistas que João Cabral homenageia em sua obra, sejam autores da literatura, pintores, dentre outras personalidades eleitas pelo poeta pernambucano.
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
(MELO NETO, 2020, p.320, grifo nosso)
Ao ouvir o disco inaugural de Cátia de França identificamos a potência do seu cante, um canto A Palo Seco, cantado ao extremo da voz, afiado como as lâminas cabralinas, com fome de cicatriz, “um cante sem a arma do braço”, “só a lâmina da voz”. Como afirmado na contracapa do disco, o trabalho apresentado está todo pautado na Literatura, mais especificamente em um diálogo estreito com a obra de João Cabral de Melo Neto, particularmente, mas não só, com o livro Serial. Nesse sentido, a presença cabralina nas canções de Cátia de França e do disco 20 palavras ao redor do sol, vão de citações diretas, paródias, referências poeticamente “escondidas”, onde mediante um quase garimpo somos capazes de apreender essa pedra preciosa, cabralina e barroca.
O título do disco, bastante sugestivo, agencia uma ideia cabralina presente no poema intitulado Graciliano Ramos, que assim inicia:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara
(MELO NETO, 2020, p. 165, grifo nosso)
Nos primeiros versos do poema é visível a opção pela clareza, pela característica solar. Conhecido como o poeta do menos, João Cabral parece eleger palavras concretas, sólidas e imagéticas, por serem, segundo ele, mais poéticas, mais líricas. Com um vocabulário vasto e mineral, as palavras de João Cabral parecem proliferar a partir do rearranjo dentro do texto, as palavras parecem dobrar-se em uma multiplicação de imagens agenciadas no enlace poético cabralino. As mesmas vinte palavras se dobram e redobram, em um panejamento barroco, se arranjam e rearranjam em um enlace, gerando um sem fim de imagens, de significados, de símbolos poéticos (palavras lâminas, limpas pelo sol).
O intitulado Graciliano Ramos reitera uma proposta poética universal porque regional. A palavra, ávida em João Cabral, possui também o gosto de cicatriz, de corte, nas canções de Cátia de França, presentes no disco em questão, cortes secos, “secando quase tudo ao espinhaço”. O leitor de João Cabral, que excede ao diálogo teatral da obra Morte e Vida Severina, consegue enxergar no poema em questão uma autoidentificação. João Cabral aponta na escrita narrativa de Graciliano uma técnica que se assemelha à sua, a precisão cortante do seu objeto faca: as palavras. A superioridade da palavra é destacada pelo rumo cíclico que lhe é dado, o sol que bate na faca/palavra limpa a crosta viscosa para deixar à vista a sua cicatriz clara. O sol seca as palavras, a vida, a saliva, deixando apenas o espinhaço, que fere e incomoda como ponta de agulha.
O processo de digestão da tradição cabralina, processo antropofágico, no caso de Cátia de França, passa pelo “intestino de pedra”, uma ética/estética já proposta em outra obra de João Cabral (Vale do Capibaribe), e pela “vocação de caliça”. Cátia de França distribui em seu disco tanto citações diretas de versos, como imagens cabralinas, sugeridas pela interação do poema com uma leitura subjetiva e seu intento musical, cantado a palo seco, ao extremo da voz. De outra forma, é possível perceber um ethos cabralino tanto nos versos das canções, nas ideias agenciadas, nas imagens poéticas, assim como na proposta de cantar um cante árido, que é quando se canta a sol a pino. A canção[9] que dá nome ao álbum é a terceira dentre doze e assim inicia:
20 palavras girando ao redor do sol
Na insistência de quem sabe o que quer
Vem Zé Ferreira com sua roupa domingueira
Vem inté Dona Tereza arriba lá da bagaceira
20 palavras girando ao redor do sol
Secando as coisas quase tudo ao espinhaço
falo somente por quem falo, eu sei que falo
Gente vive nesse clima
gavião e outras rapinas.
(CÁTIA DE FRANÇA, 20 palavras ao redor do sol, 1979, grifo nosso)
A luta que se trava contra a seca que acomete muitos à morte igual, de velhice antes dos trinta, de fome um pouco por dia, mesma morte severina, bastante explorada na obra cabralina, reverbera como temática e como poética nos versos das canções de Cátia de França. Note que as palavras minerais que giram ao redor do sol e se desdobram em um panejamento solar, barroco, nos versos da canção, aparecem secando quase tudo. Há também a citação direta nos versos “falo somente por quem falo”. Além, o verso “gavião e outra rapinas” também compõe uma citação “deslocada” do verso cabralino. Na segunda estrofe da canção temos:
Essa luta contra o deserto
luta em que o sangue não corre
em que o vencedor não mata
mas ao vencido absorve
Essa luta contra a terra
é uma boca sem saliva
(CÁTIA DE FRANÇA, 20 palavras ao redor do sol, 1979, grifo nosso)
Cátia de França parece digerir a obra de João Cabral e recontextualizar alguns signos, alguns versos, por vezes, chega a sua negação, como é possível observar no diálogo que estabelece com “Vale do Capibaribe”, poema presente no livro Paisagens com Figuras. Nos versos do poema, o ilusório alicerce de morta civilização, a luta que sempre ocorre, não é tema de canção. Cátia de França poetisa essa luta em forma de canção, como pode ser visto nos versos citados acima e, a compositora paraibana reitera a citação cabralina, como está destacado em negrito abaixo.
Observa-se que os diálogos costurados por Cátia de França atravessam a leitura do poema intitulado “Graciliano Ramos” e caminham até as obras do homenageado autor, mais especificamente na obra Vidas Secas, a qual está presente o personagem Fabiano que é um sertanejo que fala pouco porque “as palavras de pedra ulceram a boca” (MELO NETO, 2020, p. 202), e que vive um êxodo constante com a sua esposa Sinhá Vitória, a cachorra Baleia, um papagaio e seus dois filhos. Na narrativa de Graciliano Ramos, Fabiano não fala, mas muito tem a dizer, apesar de ser uma “árvore pedrenta”, ele sonha com sua esposa uma cama de couro, como a que tem seu Tomás da Bolandeira, o verso “é uma boca sem saliva” presente na música da cantora paraibana remete a uma cena que vale ser destacada:
Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia (RAMOS, 1970, p. 79).
As palavras-facas são os instrumentos que atuam sobre a geografia do Nordeste avinagrado, para falar por aqueles que existem e são condicionados pelo sol, mas que precisam acordar do sono morto para agir sobre a força das ações privadoras dos solos inertes. A palavra afiada corta e desperta, resulta no grito. Cátia aponta nos versos a necessidade da luta, do não conformismo, “chegou a hora, mostre o seu palavreado, ou então assuma seu papel de mamulengo”. O Mamulengo é um tipo de fantoche usado principalmente no Nordeste, ou seja, Cátia sugere que é preciso acordar e falar com as palavras lâminas, caso contrário ficamos sujeitos à manipulação.
A terra desértica, a aridez, assim como a poética cabralina e o cante de Cátia de França, tem vocação de caliça. Os intestinos que são capazes de digerir pedras o fazem por pura vocação. Os restos de construção, fragmentos de materiais diversos são alvo de devoração, como é possível observar no poema “Vale do Capibaribe”. O deserto é cenário e é, como no poema cabralino Fábula de Anfion, o deserto do vocabulário, o labirinto do poeta, a própria palavra. O cenário poético em João Cabral é tanto os complexos naturais, biológicos, climáticos, orgânicos, minerais, quanto o ambiente poético, a estética do menos, estética desértica, o dilema do ofício de poeta.
No mentido alicerce de
morta civilização
a luta que sempre ocorre
não é tema de canção.
É a luta contra o deserto,
luta em que o sangue não corre,
em que o vencedor não mata
mas aos vencidos absorve.
É uma luta contra a terra
e sua boca sem saliva,
seus intestinos de pedra
sua vocação de caliça,
(MELO NETO, 2020, p. 153, grifo nosso)
João Cabral em seu poema fala com o que, do que, por quem e para quem fala. É possível notar na canção alguns versos transcriados do poema como “falo somente por quem falo”, “gavião e outras rapinas”, assim como enlaces parcialmente modificados, como “secando as coisas quase tudo ao espinhaço” na canção, e no poema cabralino temos:
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta ou simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
(MELO NETO, 2020, p. 320, grifo nosso)
O canto de Cátia de França, tal qual o cante a Palo Seco, é desarmado, sem a arma do braço, só a lâmina da voz. É um canto mineral, sólido, um canto de grito mais extremo. A conversa estabelecida com João Cabral veste as suas vestes, seus códigos e signos poéticos, para enfrentar os versos em melodia, a canção, desafeto tão caro ao poeta pernambucano. O verso cabralino, escrito para não ser cantado, é contemporanizado em uma voz feminina, negra, lésbica, secando tudo até o espinhaço. Cátia fala com o, do, para, por quem vive da/na seca, que tudo corrói, que tudo constrói.
Quem padece sono de morto
Precisando d´um despertador
Sol a pino sobre o olho
Estrebucha, cerra os dentes.
(CÁTIA DE FRANÇA, 20 Palavras ao redor do sol, 1979, grifo nosso)
20 palavras ao redor do sol, de toda forma, remete toda uma herança literária, que aporta em Graciliano Ramos e em João Cabral de Melo Neto seus expoentes e, representam a capacidade do recurso da proliferação em ambos autores. O signo árido é criador, prolifera e é capaz de produzir mais do que a fome, é estética, é verso, é canção e é símbolo poético que se dobra e se desdobra em novas construções artísticas. Dizer o pouco para fazer o muito, é para isso a serventia das ideias fixas. Os diálogos estabelecidos com a literatura, em nosso enfoque com João Cabral de Melo Neto, ultrapassam as citações de versos completos ou de trechos reconfigurados e aporta em um ethos cabralino. O canto em Cátia se transforma em cante no momento em que digere (no sentido antropofágico) a obra cabralina para reinundar de sentidos o cante a palo seco, o canto árido, gerador, estético e ético.
Nem tente o ponto final[10] (considerações finais)
A pedra do reino
Foi bem saber-se que o Sertão
não só fala a língua do não.
Para o Brasil, ele é o Nordeste
que, quando cada seca desce,
que, quando não chove em reino,
segue o que algum remoto texto:
descer para a beira do mar
(que não se bebe e pouco dá)
Tu, que conviveste o sertão
quando no sim esquece o não
e sabe seu viver ambíguo
vestido de sola e de mitos,
a quem só o vê retirante,
vazio do que nele é cante,
nos deste a ver que nele o homem
não é só capaz de sede e fome.
(MELO NETO, 2020, p. 502)
“Sons, palavras, são navalhas”, canta Belchior na canção Apenas um rapaz latioamericano. A arte nos países decoloniais somam ao fazer artístico, na elaboração de suas obras, a apreciação estética com o intento crítico, resistente, maduro, consciente. Mais especificamente no Nordeste brasileiro, a arte ganha contornos de denúncia, em uma exitosa simbiose estrutural, temática, estética, como podemos observar nas obras dos artistas acima elencados, João Cabral de Melo Neto e Cátia de França. Ambos, antropofágicos (no uso largo do conceito), atualizaram temáticas já abordadas na literatura e na música, por sua vez, contemporanizaram personagens, estéticas iniciadas com outros autores, outras obras. O Nordeste para ambos é esse componente híbrido criativo, são vivências, geografias, palavras que compõem esse complexo cultural artístico, são universais porque agenciam conteúdos universais, digeridos, tensões amalgamadas, poéticas, somadas ao conteúdo regional, local. Obras não regionalistas.
Paraibana, nascida em João Pessoa, filha de uma professora negra, Catarina de França, ou como é mais conhecida, Cátia de França aprendeu a tocar piano por sugestão de sua mãe e acordeon por sugestão do pai. Os livros e, por assim, a literatura mundial e nacional, faziam parte do cotidiano da compositora, dos quais foram marcantes, José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, autores que estão muito presentes em sua obra musical. Cátia de França conta em entrevista[11] sobre a presença de livros em seu cotidiano: “Era primeiro os livros. Podia faltar manteiga, mas livro não”
As palavras de João Cabral se proliferam ao redor do sol, em uma elipse barroca. As palavras minerais, os objetos, vão se dobrando e desdobrando no decorrer da obra cabralina, gerando novas imagens poéticas. O sol limpa, corta as subjetividades muito usadas nas palavras poéticas da geração de 45, criticada pelo poeta pernambucano. João Cabral em A Palo Seco aponta que este “cante existe em situações e objetos, em Graciliano Ramos, desenho de arquiteto”. Em nossa abordagem há uma relação entre os poemas cabralinos A Palo Seco do livro Quaderna e Graciliano Ramos do livro Serial: a citação a Graciliano Ramos e todo arcabouço de trabalho com a palavra que essa voz é capaz de remeter. João Cabral, ao falar do ato de tecer poemas, como é possível observar em A Palo Seco, aproximou o signo espanhol, do canto árido, ao poeta alagoano, assim como o título/dedicatória de seu poema, que trata da palavra limpa pelo sol, pela lâmina clara, com gosto de cicatriz, pelas marcas de criação de uma nova linguagem literária.
Ora, acreditamos que o poema “Graciliano Ramos” constitua um momento crucial de autoimplicação na obra de João Cabral. Apresentando-se através do romancista de Alagoas, o pernambucano cria o que Deleuze e Guattari nomeiam “personagem conceitual” - não se trata do homem real Graciliano, mas dos conceitos que João Cabral reúne sob o seu nome e que permitem fazer andar sua reflexão lírica, seu pensamento poético. (CORRÊA, 2005, p. 76)
No poema A Palo Seco o cante seco é empregado porque mais contundente, as temáticas do sertão em João Cabral, assim como em Graciliano Ramos não são representações folclóricas, regionalizadas do sertão, são aportes poéticos, estéticos, são imagens que educam pela dureza e pela clareza, como a pedra, uma lapidação da palavra, um plano poético ousado, pensado e não resignado. O poeta apresenta seu cálculo de retirar, sua forma de construção, ou dilema poético no poema A Palo Seco, considerado por isso um metapoema.
Cátia de França em seu disco de lançamento agencia toda poética cabralina, desde versos a propriamente um ethos externado nos poemas de João Cabral, seu canto seco e árido é como está nos versos do poema Fazer o seco, fazer o úmido do livro Educação pela pedra[12]: “uma música tão ressaca/ que vai ao timbre de punhal, navalha”. (MELO NETO, 2020, p. 364)
As heranças literárias nas canções de Cátia de França ora são claras, diretas, como o título do disco, ora mais rebuscadas, escondidas, tecidas em uma rede poética própria, como é possível observar na canção Quem vai, quem vem, que engendra picotes dos versos cabralinos de poemas distintos, um trabalho de alguma forma que se assemelha ao garimpo, uma análise comparativa. O diálogo se estabelece com os poemas O automobilista infundioso, assim como com Chuvas. Os versos da canção[13] são:
Lá em Trapuá
Lá em Trapuá, estrada de Nazaré
Um pouquinho adiantado de Tracunhaém
Quem vai, quem vem? Vai olhar para as crianças
Cruzamento tão estranho, caniço com pé de cana
Corra, não atrapalhe ou te dão logo sumiço
Quem vai, quem vem?
Balacacum, balacumbaca
Chuva feminina num sertão bem masculino
(CÁTIA DE FRANÇA, Quem vai quem vem, 1979, grifo nosso)
O Engenho Trapuá, curiosamente, segundo carta[14] do próprio João Cabral, era o local onde ele gostaria de ficar quando de sua morte, localizado em Tracunhaém, a 60 km de Recife e aparece no poema intitulado Alto do Trapuá do livro Paisagem com figuras, que reúne poemas de 1954-1955. O poema assim inicia:
Já fostes algum dia espiar
do alto do Engenho Trapuá?
Fica na estrada de Nazaré,
antes de Tracunhaém.
(MELO NETO, 2020, p. 160)
No poema Chuvas, Carpina, município de Pernambuco, protagoniza um clima ambíguo, é agreste em parte e Mata em outra parte, no poema é chuva e sertão ao mesmo tempo. O poema é dividido em quatro partes, cada parte com 6 estrofes e cada estrofe com 4 versos. Na última parte do poema temos a seguinte estrofe, talvez matriz dos versos de Cátia de França: “Chuva feminina, num sertão bem masculino”
No Sertão masculino
a chuva sem dissímulo
demonstra o que ela é:
que seu sexo é mulher.
(MELO NETO, 2020, p. 325)
Os diálogos com a literatura cabralina se vão tecendo no cante de Cátia de França como os fios de sol cantados por galos (referência ao poema Tecendo uma manhã de João Cabral de Melo neto) que juntos tecem uma manhã solar e cantante.
Na torre da igreja, num muro qualquer
em algum galinheiro, terreiro mulher
o galo é sereste, ele é seresteiro
é relógio, é alarme, escondido no puleiro.
(CÁTIA DE FRANÇA, Os galos, 1979l)
A proposta musical de Cátia de França passa por uma digestão de símbolos e signos literários, parte da palavra e do seus sons. Sons transformados e transformadores. Sons que agem com o meio e o transformam, deixa escrito no meio social, estético, cultural e musical um lastro poético que a eternizam em sua universalidade regional. Sons, palavras, cantes, na obra de Cátia de França tem em sua gênese o trabalho árduo, biográfico de uma vida artística, crítica, leitora da literatura mundial e nacional.
Os sons, expressões da perturbação, do fenômeno físico de compressão e rarefação, ganham compreensão social e estética, política e cultural, ganham contornos intertextuais em obras como o disco de Cátia de França “20 palavras ao redor do sol”. Os sons, as canções da paraibana, fecundos poéticos, transformam o meio literário que permeia, reescreve o lirismo cabralino em um cenário musical, coquista, contemporâneo, seco, árido. A paraibana Cátia de França parece reesculpir a pedra cabralina do sim.
Hiarla Yasmim França Rodrigues - Mestranda em Ciências da Linguagem pelo programa de pós-graduação em ciências da linguagem (UERN); Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte; poeta cordelista; estudante pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Literatura e suas Interfaces críticas (GELINTER). E-mail: rodrigueshiarla@gmail.com
Rafael Barros de Alencar - Estudante de doutorado pela UFRN, no PPgEL - Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem em Cotutela com a Universidad de Salamanca - USAL, no programa de doutoramento Español: investigación avanzada en Lengua y Literatura. Becario del Santander. E-mail: rafaelbonnies@gmail.com
Samuel Anderson de Oliveira Lima - Professor Doutor Associado da UFRN, ministra disciplinas na área de literatura espanhola na graduação em Letras-Espanhol e na área de literatura comparada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Experiência no ensino de línguas e literaturas brasileira e espanhola. E-mail: samuel.lima@ufrn.br
Recebido em: 06-set-2024
Aceito em: 18-out-2024