Seção Livre
BABEL, Alagoinhas - BA, 2024, v. 14: e20652.
GNOATO. Gabrielle Fernandes da Silva; TILIO, Rafael De. “Vagabundos no sótão”: uma reflexão sobre o sonho americano através da Análise do Discurso. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2024, v. 14, e20652.
“Vagabundos no sótão”: uma reflexão sobre o sonho americano através da Análise do Discurso
"Bums in the attic": a reflection on the american dream through discourse analysis
Gabrielle Fernandes da Silva Gnoatto
Rafael De Tilio
Resumo: No presente artigo faz-se a análise do capítulo “Vagabundos no sótão” do livro “A Casa da Rua Mango” de Sandra Cisneros. Esta obra é uma forma de denúncia às precarizações dos imigrantes mexicanos nos Estados Unidos na década de 1950. A partir de uma análise de discurso pecheutiana, as sequências discursivas analisadas possibilitam refletir sobre a ideologia dominante capitalista que prega que qualquer pessoa, independentemente de suas origens, gênero e classe social pode alcançar o sucesso por meio de sua dedicação pessoal. Todavia, a própria ideia de sucesso (acúmulo de capital e riquezas) pode ser questionada, uma vez que no sistema capitalista esse sucesso está assentado nas mais diversas formas de exploração. Assim, o famoso “sonho americano” é uma possibilidade apenas a algumas pessoas, desconsiderando as demais parcelas populacionais e suas opressões e explorações que as levam e fazem permanecer em condições precárias, embora essas sejam significadas como resultado da falta de esforço.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Ideologia. Imigração Mexicana.
Abstract: This article analyzes the chapter "Bums in the Attic" from the Sandra Cisneros’ book "The House on Mango Street". This work denounces the precarious situation of Mexican immigrants in the United States in the 1950s. Based on a pecheutian discourse analysis, the discursive sequences analyzed make possible to reflect on the dominant capitalist ideology that preaches that anyone, regardless of their origins, gender or social class, can achieve success through personal dedication. However, the idea of success (accumulation of capital and wealth) can be questioned, because in the capitalist system this success is based on the most diverse forms of exploitation. Thus, the famous "American dream" is a possibility for only a few people, disregarding the other parts of the population and their oppression and exploitation that lead them to remain in precarious conditions, even though these are seen as their lack of effort.
Keywords:Discourse Analysis. Ideology. Mexican immigration.
Considerações iniciais
“Vagabundos no sótão” é o título de um dos cento e quarenta e dois capítulos do livro “A casa da Rua Mango” (CISNEROS, 2020), escrito pela estadunidense Sandra Cisneros e publicado originalmente em 1983 pela editora Art Public Press. Os capítulos que compõem o livro são narrados em primeira pessoa por Esperanza, uma menina descendente de mexicanos que relata a dura realidade vivenciada por ela e sua família na década de 1950 vivendo nos EUA. A personagem em questão é o eu-lírico que representa a própria autora enquanto filha de mexicanos que migraram para os Estados Unidos. Desse modo, o descrito pela personagem é bastante impactante e comovente, uma vez que a autora transforma suas próprias memórias e vivências de infância em um relato que nos dá a sensação de ter sido escrito, de fato, por uma criança em virtude da linguagem simples e do olhar ingênuo para com situações bastante delicadas e complexas, sem, no entanto, deixar de fazer uma crítica social como forma de denúncia às situações precárias enfrentadas por imigrantes mexicanos em solo estadunidense.
O próprio nome da personagem “Esperanza” configura uma forma de protesto. A escolha desse nome está ligada à trajetória de Sandra Cisneros, de modo a representar sua trajetória como forma de levar esperança àqueles que são vítimas das mazelas do capitalismo – travestidas de ideologia do sucesso individual e da meritocracia – descritas no livro. Sandra Cisneros, apesar das condições adversas e de em muitos momentos questionar sua identidade e seu lugar no mundo, estudou e formou-se em Artes, inclusive, tornando-se professora universitária. Assim, embora as opressões de gênero, de classe social e de raça sejam inerentes ao sistema capitalista (o capitalismo necessita dessas opressões para existir, pois é um sistema que gera o acúmulo de riquezas a partir de explorações sistêmicas), o fato de uma mulher descendente de mexicanos ter saído de um ambiente periférico e violento onde havia escassez de recursos e ter “vencido” na vida gera uma ilusão de representatividade e de possibilidade de sucesso para outras pessoas em condições similares, embora isso não signifique uma radical mudança social diante das próprias opressões, ilustrando exatamente como funciona a ideologia no sistema de produção capitalista (CHAUÍ, 1990).
Aqui neste artigo, escolheu-se analisar apenas um dos capítulos do livro, embora ele esteja organicamente ligado à obra, dialogando com os demais capítulos. Será feita uma abordagem analítica sob o viés da análise materialista do discurso (doravante, AD), pois entende-se que refletir sobre um conjunto de enunciados[1] através da AD é uma forma de identificar os discursos[2] e as condições ideológicas dominantes em nossa sociedade (PÊCHEUX, 1995). Da mesma forma, a escrita da autora configura-se como um protesto contra as precárias condições de vida enfrentadas pelos imigrantes mexicanos, embora, em tese, o “sonho americano” do self-made man/woman suponha que qualquer pessoa, independentemente de suas origens, gênero ou classe social possa obter sucesso ao ascender social e economicamente (CHAUÍ, 1990). Uma vez que a ideologia dominante capitalista prega que toda e qualquer pessoa que produzir e se esforçar necessariamente obterá sucesso ao alcançar o acúmulo de riquezas e os meios de consumo de objetos, a realidade vivida por Esperanza defronta-se com essa ideologia, levando-nos a refletir e questioná-la.
Para a análise do capítulo, dividiu-se o presente artigo em quatro partes. Primeiro, apresentaremos um breve – sem termos a pretensão dessa ser uma apresentação exaustiva sobre o tema – panorama sobre a realidade enfrentada pelos imigrantes mexicanos nos Estados Unidos na medida em que este foi se constituindo enquanto país. Depois, trataremos dos conceitos teóricos mobilizados a partir da análise do discurso para a análise do capítulo em questão. Após isso, descreveremos o corpus (o capítulo do livro, as sequências discursivas) elegido e sua interpretação à luz do escopo teórico da AD pechêutiana e, por fim, teceremos algumas considerações finais.
Os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos
O movimento migratório é praticado há séculos pela humanidade. Antes de os seres humanos fixarem-se em uma região e construir as civilizações que deram origem ao que hoje chamamos de assentamentos ou cidades, os agrupamentos humanos realizavam o nomadismo. Assim, os seres humanos migraram juntamente com os animais em busca de alimentos. Só muito tempo depois, quando começaram a praticar a pecuária e a agricultura é que se fixaram em alguns locais. Dessa forma, falar em migração é falar de um dos movimentos mais antigos praticados pela humanidade. Hoje, diversos são os tipos de migração descritos pela geografia política, entretanto, o motivo mais comum para este movimento continua sendo a busca por melhorias na qualidade de vida. Um exemplo recente disso é o definido por Adams (1933) como “sonho americano” que ainda hoje leva muitas pessoas a deixarem seus países de origem e irem para os Estados Unidos da América em busca de melhores condições de trabalho e de vida.
As Américas eram habitadas, inicialmente, por diversos e variados povos originários que a partir do Século XV passaram por um longo processo de colonização e de exploração de raízes eurocêntricas[3] e, assim, passaram a receber um intenso fluxo de imigrantes (livres e escravizados) ao longo da história. No caso das Américas do Norte, as Treze Colônias, como eram chamados os territórios colonizados por ingleses, foram recebendo imigrantes de diversos países que constituíram sociedades com organizações e culturas semelhantes às que se encontravam na Europa, ou seja, eurocêntricas e em contraposição às tradições dos seus povos originários, e que posteriormente culminaram na Independência dos Estados Unidos, em 1776.
Após a Independência dos Estados Unidos iniciou-se uma política de expansão territorial para o oeste fundamentada na Doutrina do Destino Manifesto. Tal doutrina embasou-se em uma premissa religiosa como justificativa para a expansão ao oeste ao argumentar que os habitantes do que, então, haviam se tornado os Estados Unidos, eram o povo escolhido por Deus para dominar as terras a oeste de seu território e, assim, levar o progresso àquela região e aos povos originários que lá habitavam. Entretanto, além de causar a dizimação de parte significativa dos povos originários, essa exploração do oeste evidenciou as diferenças entre os estados do sul e do norte dos Estados Unidos, levando à Guerra de Secessão, ocorrida entre 1861 e 1865.
Enquanto os estados do norte tinham características de produção como manufatura, pequenas propriedades agrícolas e mão de obra livre e assalariada, os estados do sul eram, predominantemente, latifundiários monocultores (plantations) e dependiam do trabalho agrícola realizado por pessoas escravizadas. Assim, quando a região do oeste começou a ser invadido via expansão, os estados do norte e do sul entraram em conflito, pois cada qual queria impor seu modelo econômico e de trabalho aos novos territórios. Por fim, os estados do sul acabaram sendo derrotados dentre outros fatores em função do embargo econômico decretado pelo então presidente Abraham Lincoln, que acabou gerando uma crise de desabastecimento e, ademais, pela chamada Lei do Confisco que permitia aos nortistas ocuparem as terras dos sulistas vencidos em batalhas. Tal lei acabou gerando uma grande fuga de escravos e, como a mão de obra nos estados do sul era dependente de escravizados, sofreram um forte abalo econômico. Desse modo, pouco a pouco, os estados do sul foram perdendo forças e, consequentemente, apoio, o que os conduziram à derrota.
Uma das principais consequências desse conflito foi a abolição da escravatura nos Estados Unidos, consolidada pela décima terceira emenda da Constituição. Entretanto, o fim da escravidão não significou igualdade de oportunidades para todos os indivíduos e, muito menos, igualdade perante a lei para os ex-escravos e afrodescendentes. Os anos que se seguiram à abolição da escravatura foram marcados por um forte segregacionismo originando, inclusive, o movimento Ku Klux Klan que perseguia e matava pessoas negras.
Paralelamente a esses movimentos de racialização, dentre os anos 1940 aos anos 1960 o governo dos Estados Unidos criou o Bracero Program. Essa iniciativa visava estimular a imigração de trabalhadores mexicanos para servirem de mão de obra agrícola nos Estados Unidos. Porém, de acordo com Reis (2007), com a crise econômica do petróleo nos anos 1970, a imigração passou a ser considerada um problema e os migrantes foram considerados culpados pelos problemas econômicos. Allport (1954) corrobora com esse argumento ao confirmar que as crises econômicas intensificam a xenofobia.
Cabe ressaltar que os Estados Unidos, assim como o Brasil, receberam uma grande leva de imigrantes dos mais diversos países durante seu processo de constituição como país. Desse modo, é um país que possui grande diversidade étnica em seu território. Entretanto, a definição de povo estadunidense não leva em consideração essa diversidade. Ao pensarmos nessa definição, o imaginário social que prevalece nos Estados Unidos, diferentemente do que acontece quando se considera o contexto brasileiro, é de uma cultura majoritariamente branca e de tradição europeia. Reis (2007) destaca que uma dessas consequências é o sentimento antiestrangeiro que se baseia, dentre outras questões, em um nativismo que alega que as origens dos Estados Unidos estão unicamente nas raízes anglo-saxônicas. Desse modo, todo aquele que não apresenta essas origens – manifestado fenotipicamente e em características culturais – acaba por não ser considerado parte daquilo que é considerado “verdadeiramente” estadunidense.
Conceitos teóricos mobilizados
O capítulo “Vagabundos no Sótão” é composto unicamente por linguagem escrita. Mas, para realizar a análise da linguagem escrita empregada pela autora, não basta apenas um conhecimento gramatical, uma vez que para a AD o discurso funciona como um sistema mais amplo do que a gramática. Por isso, a AD se faz tão necessária, pois emprega conceitos da linguística juntamente com os do materialismo histórico e da psicanálise para compreender o campo semântico ideologicamente marcado na produção dos sentidos (PÊCHEUX, 1995). Assim, nos baseamos em alguns dos conceitos estabelecidos por Pêcheux (1990; 1995; 2014) e Orlandi (2001; 2009) para fundamentar as análises deste artigo.
Buscou-se, primeiramente, constatar como funcionam os efeitos de sentido no texto, pois, de acordo com Pêcheux (1995; 2014) o sentido é variável a depender das condições ideológicas de interpelação dos indivíduos em sujeitos. Ou seja, a produção dos sentidos varia de acordo com as posições ideológicas que estão presentes no discurso e que interpelam os indivíduos em sujeitos. Por exemplo, conforme veremos ao longo da análise, os sentidos da palavra “vagabundo” mudam de acordo com quem/quando/onde/para quem ela é empregada. Mas, mesmo assim, entende-se que os sentidos tendem a uma estabilização em seus usos (estabelecendo regiões de regularidades dos sentidos), mas não estão cristalizados nem fixos na língua, sendo variáveis dentre a comunidade dos falantes. Justamente por isso Leandro-Ferreira (2003) prevê o cuidado que o analista do discurso deve ter ao empregar termos e noções já cunhados socialmente, pois suas significações podem variar em decorrência de diversos fatores, tais como quem fala, quando se fala, para quem se fala etc. e, portanto, não podem ser concebidos nem compreendidos como óbvios ou únicos.
Outro conceito bastante importante para a AD é o de língua. Apesar de o senso comum defini-la como sinônimo de fala (enunciado, discurso manifesto), para a AD ela é uma maneira de difusão da ideologia (enunciação, discurso latente), pois faz menção à suposta universalização dos dizeres e dos sentidos, conforme argumenta Leandro-Ferreira (2003). Assim, a fala (produção individualizada dos sentidos) está permeada por elementos da ideologia dominante[4]. Conforme veremos posteriormente, o discurso verbal em questão produz sentidos de diversas formas e tende a perpetuar uma ideologia específica.
Outro conceito importante é o de discurso. De acordo com Orlandi (2009), é no discurso que a fala (aspecto individual) e a ideologia (aspecto coletivo e social) se encontram e, juntas, significam algo de uma determinada maneira a depender das condições sociais (classe, gênero e raça/etnia etc.) dos seus produtores. Discurso, portanto, é conceituado como os efeitos de sentidos produzidos entre os interlocutores a partir da consonância/dissonância das regiões de regularidades de sentidos (formação discursiva) às quais eles, os sujeitos, estão filiados (PÊCHEUX, 2014; ORLANDI, 2009). Assim, no presente trabalho, foram analisadas sequências discursivas nas quais existem falas que reproduzem ideologias. Dessa maneira, buscamos entender como esses discursos significam a partir da língua e da ideologia que nele se fazem presentes:
O discurso é um dos aspectos da materialidade ideológica, por isso, ele só tem sentido para um sujeito quando este o reconhece como pertencente a determinada formação discursiva. Os valores ideológicos de uma formação social estão representados no discurso por uma série de formações imaginárias, que designam o lugar que o destinador e o destinatário se atribuem mutuamente (PÊCHEUX, 1990, p.18)
Entende-se, assim, que este dispositivo analítico mobilizado (isto é, os conceitos empregados na análise) não estão isolados, mas interferem uns nos outros, modificando-os e sendo essenciais para a compreensão geral, uma vez que um termo/palavra não pode ser definido sozinho, mas sempre em referência a outros e a algum contexto social e ideológico específico. Desse modo, a Formação Discursiva, definida como região de regularidade de sentidos do interdiscurso (PÊCHEUX, 2014) organiza os sentidos. Ou seja, Formação Discursiva é um conjunto de formulações já feitas que, tanto as conscientes e as esquecidas quanto as permitidas e as proibidas de se dizer, são responsáveis por modalizar aquilo que dizemos. Entende-se, dessa forma, que os sentidos não estão restritos às palavras isoladas, mas sim às Formação Discursivas as quais o sujeito adere e das quais não possui pleno conhecimento (COURTINE, 2014).
Buscamos, então, os conceitos de sujeito e de sentido de acordo com a AD. Assim, para Orlandi (2009), a ideologia interpela os indivíduos (entes sem história) em sujeitos (de uma história, de um tempo e contexto específicos). Para Pêcheux (1995; 2014) o sentido produzido entre os interlocutores é mutável e variável. Assim, ambos, sujeito e sentido, relacionam-se com o já-dito ou memória discursiva (conceituado como interdiscurso).
Outro conceito bastante importante é o de ideologia:
Desse modo, é a ideologia que, através do "hábito" e do "uso, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser, e isso, às vezes, por meio de "desvios" lingüisticamente [sic.] marcados entre a constatação e a norma e que funcionam como um dispositivo de "retomada do jogo " É a ideologia que fornece as evidências pelas quais "todo mundo sabe" o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc. (PÊCHEUX, 1995 p.159-160).
Além dos apresentados, são relevantes os conceitos de pré-construído, que é aquilo que já está posto socialmente – assim, este conceito está relacionado como o de interdiscurso. Desse modo, o pré-construído é aquilo que já foi dito anteriormente de outro lugar ou por outro(s) sujeito(s) (COURTINE, 2014); ele se relaciona com o conceito de Formação Discursiva, pois esta organiza/regulariza o que pode ou não ser dito de acordo com a ideologia dominante (ORLANDI, 2011).
Esse trabalho parte da análise de um capítulo do livro “A casa da Rua Mango”. Uma vez que, conforme Cândido (2011) a literatura deve se basear na denúncia da realidade, sua própria característica a acusa como uma ciência não neutra; neste mesmo sentido, a AD destaca a impossibilidade da neutralidade em quaisquer discursos. Cabe, assim, observarmos como o capítulo do livro elegido para a análise produz sentidos a partir das ideologias que estão em circulação, mas que não são tão evidentes para os sujeitos.
Descrição do capítulo: as sequências discursivas
O capítulo que se pretende transcrever foi dividido em Sequências Discursivas (SD). Estas, embora possam ser confundidas com sequências linguísticas, são mais amplas que aquelas, uma vez que a sequência discursiva não está ligada necessariamente apenas a uma fala/frase, sendo superior à frase e podendo se dar de maneira oral ou escrita (PÊCHEUX, 1995; ORLANDI, 2009). Aqui, fizemos um recorte mostrando como cada SD representa um enunciado do capítulo, incluindo o título. Assim, ao todo, foram estabelecidas vinte e quatro sequências discursivas que serão posteriormente analisadas:
SD1: Vagabundos no sótão
SD2: Eu quero uma casa na colina como aquelas com os jardins onde o Pai trabalha.
SD3: Nós vamos aos domingos, nos dias de folga do Pai.
SD4: Eu ia.
SD5: Eu não vou mais.
SD6: Você não gosta de sair com a gente, o Pai diz.
SD7: Ficando velha demais?
SD8: Ficando esnobe demais, a Nenny diz.
SD9: Eu não digo a eles que tenho vergonha- todos nós encarando as janelas como os famintos.
SD10: Eu estou cansada de olhar o que eu não posso ter.
SD11: Quando nós ganharmos na loteria… a Mãe começa, e então eu paro de ouvir.
SD12: As pessoas que vivem nas colinas dormem tão perto das estrelas que elas se esquecem daqueles como nós, que vivem muito perto da terra.
SD13: Eles não olham para baixo, exceto para ficarem satisfeitos por morarem nas colinas.
SD14: Eles não têm nada a ver com o lixo da semana passada ou com o medo dos ratos.
SD15: A noite chega.
SD16: Nada os acorda a não ser o vento.
SD17: Um dia eu vou ter a minha própria casa, mas eu não vou me esquecer de quem eu sou ou de onde eu vim.
SD18: Os vagabundos de passagem vão perguntar: Posso entrar?
SD19: Eu vou oferecer a eles o sótão, pedir a eles que fiquem, porque eu sei como é estar sem uma casa.
SD20: Alguns dias, depois do jantar, meus convidados e eu vamos sentar na frente da lareira.
SD21: As madeiras do assoalho vão estalar no andar de cima.
SD22: O resmungo do sótão.
SD23: Ratos? eles perguntarão.
SD24: Vagabundos, eu direi, e ficarei feliz.
Processo Discursivo: análise das sequências discursivas
Nesta seção, será realizada a análise das sequências discursivas, conforme embasamento na AD pechêutiana. A AD foi escolhida como ferramenta teórica para essa análise em virtude de ser uma teoria que abrange, juntamente com a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise, desvelando os aspectos contextuais, ideológicos e inconsciente na produção dos discursos (PÊCHEUX, 1990; 1995; 2014; ORLANDI, 2001; 2009). Assim, para compreendermos os enunciados (SD) aqui estabelecidos, é necessário pensar em como eles produzem sentidos e como se relacionam com a ideologia dominante em nossa sociedade[5]. Passaremos, então, à análise das SD.
Quando vamos ler um texto, o que primeiro observamos é o título. Assim, a SD1 é o próprio título do capítulo. Para Terzi (1991), o título tem uma posição de destaque em relação ao restante do texto ou à produção discursiva justamente por ser a primeira informação processada – ou o primeiro discurso enunciado. Além disso, funciona como uma síntese do que será apresentado, antecipando (imaginariamente, portanto, é uma formação imaginária do discurso) para o leitor o assunto que será tratado durante o texto, despertando nele interesse ou desinteresse de acordo com seus gostos, crenças e opiniões pessoais. Nesse ponto, torna-se necessário retomar o conceito de Formações Imaginárias para Pêcheux (1995), uma vez que em um texto não há a simples decodificação de enunciados conforme prega a linguística estruturalista, mas sim a necessidade de revelar seus sentidos e ideologias implícitas. Quando um sujeito dialoga com outro, cada qual ocupa uma posição e o que está em jogo são, obrigatoriamente, os efeitos de sentidos que decorrem daquilo que é exposto por cada um.
Desse modo, ao lermos “Vagabundos no sótão”, esse título, primeiramente, remete-nos a um imaginário popular de quem é vagabundo. Para definir a palavra vagabundo, recorre-se ao dicionário Houaiss (2014a), pois os dicionários são tentativas de estabilização dos sentidos das mais diversas palavras utilizadas numa língua. Assim, foram encontradas seis definições para vagabundo:
1 que ou quem leva vida errante, perambula, vagueia, vagabundeia
2 que ou quem leva a vida no ócio; indolente, vadio
3 B; pej. que ou o que age sem seriedade ou com desonestidade; malandro, canalha, biltre
4 fig. que não tem constância, é volúvel ‹espírito v.›
5 B; pej. de má qualidade, inferior, ordinário ‹tecido barato, v.›
6 indivíduo que não tem residência habitual, ou que emprega a vida em viagens, sem ter um ponto central de negócios
Chama a atenção o fato de todas as seis definições serem, de acordo com o pré-construído estabelecido pelo dicionário, pejorativas, podendo ser considerado uma região do interdiscurso uma vez que representam diversas facetas de uma memória-discursiva (acúmulo histórico e coletivo) sobre os sentidos das palavras. Ou seja, ao abrir o dicionário e observar os significados dessa palavra, o leitor a remete a alguém ruim, pois tudo o que foi descrito choca-se com o que é proposto como bom pela ideologia dominante capitalista: trabalhar, produzir, ter uma ocupação, ter uma residência fixa, ter constância e empenho para com os seus objetivos, etc.
A segunda parte que chama a atenção no título é o sintagma adverbial “no sótão”, indicando o local. Exploremos, igualmente, o significado da palavra sótão, de acordo com o dicionário Houaiss (2014b):
1 p.us. a parte de um edifício que se situa abaixo do nível da rua; porão
2 (1826) parte da casa entre o forro e o telhado; desvão [Ger. é us. como depósito de coisas fora de uso, mas às vezes tb. se usa como habitação ou dormitório.] ‹subiram para dormir no s.› cf. água-furtada
3 último andar de um edifício
Chama atenção nessa definição justamente a ambivalência dessa palavra: ao mesmo tempo em que significa a parte superior e elevada de uma residência, também significa uma parte inferior (porão). Entretanto, apenas pelo título, não se pode entender por qual motivo aqueles que não produzem ou não têm ocupação ou não tem trabalho formal, portanto, vagabundos, estariam no sótão, e se o sótão em questão se situa como um ambiente elevado (cômodo superior de uma residência) ou rebaixado (cômodo inferior de uma residência).
A SD2 relata onde a personagem, Esperanza, diz querer uma casa como aquela na qual seu pai trabalha. Para entendermos essa SD, é necessário considerar este capítulo em relação ao livro todo para compreender que ela e sua família (seu pai, sua mãe e mais dois irmãos) moram em bairros ocupados, principalmente, por imigrantes mexicanos, cujas casas/apartamentos são muito diferentes daqueles que seu pai trabalha. Embora apenas seus pais tenham nascido no México, Esperanza e seus irmãos possuem feições e características físicas típicas do povo latino.
Assim, embora tenham nascido nos Estados Unidos, eles não são assim considerados por outros estadunidenses brancos. Aqui, já é necessário considerar um recorte de raça e de classe social conforme o sentido pré-construído de que os verdadeiros estadunidenses são exclusivamente brancos e descendentes de europeus. Sabendo que os Estados Unidos são reconhecidos por terem sido fundado por colonizadores europeus e que seus povos originários e outros migrantes não-europeus foram desconsiderados, assim a ideologia dominante estabelece que o estadunidense é aquele com descendência inglesa e que possui pele clara, olhos claros e cabelo claro e que são falantes (como língua materna) do idioma inglês. Essa questão da identidade perpassa o livro todo, uma vez que Esperanza, embora nascida nos Estados Unidos, não é branca e, conforme anteriormente descrito, a identidade estadunidense imaginariamente padrão baseia-se naqueles com origens e características, tantos física quanto culturais, semelhantes às anglo-saxãs. Além disso, sabe-se que aos imigrantes mexicanos foram relegados aos subempregos e, principalmente, aos trabalhos braçais. Assim, quando a menina diz querer uma casa como aquela onde seu pai trabalha, isso remete-nos ao imaginário social de que o imigrante não branco trabalha em casas de estadunidenses nativos, geralmente realizando funções como empregada doméstica, motorista, jardineiro ou carpinteiro – trabalhos subalternos. E, principalmente, infere-se que ela (Esperanza) não mora em uma casa como aquelas nas quais o pai trabalha, portanto, ela mora em uma casa inferior ou menos abastada.
Aqui, há, igualmente, o imaginário social da casa americana urbana de classe média, amplamente difundida em filmes, jornais e seriados: uma casa grande e ampla, cômodos espaçosos, pintada de tinta branca por fora, com dois pisos, uma varanda e amplo jardim. A imagem dessa casa americana pode ser facilmente acessada por nós, pois através dessas exibições, construiu-se a imagem de que assim é a moradia daqueles (diga-se: todos) que vivem nos Estados Unidos.
O imaginário dessa residência americana torna-se ficcional na medida em que não se considera que aqueles que nela vivem são apenas pessoas das classes médias. Uma vez que a mídia frequentemente exibe imagens de famílias estadunidenses em casas desse modelo, constitui-se à ideia equivocada – ou melhor: imaginária e ideologicamente orientada – de que é comum, banal e acessada por todos. Assim, institui-se a suposição de que a realidade do país é a realidade das classes médias brancas, desconsiderando as demais realidades das pessoas que nele vivem.
Essa Formação Imaginária é posta em xeque quando confronta-se essa residência com a casa em que Esperanza mora. Assim, há uma contradição. A casa dos americanos é bonita, espaçosa e luxuosa. Esperanza é americana, pois nasceu nos Estados Unidos, mas ela não tem uma casa como a dos americanos “de verdade”. Portanto, poder-se-ia questionar se ela é estadunidense uma vez que nasceu naquele território, mas não tem acesso ao que, em tese, todo americano comumente tem.
Na SD3 é revelado que, aos domingos, eles vão até os locais onde estão essas lindas residências quando o pai tem folga, provavelmente em bairros de classes médias e abastadas. Até o momento, não foi explicado qual é o motivo de irem até lá. Pode-se pensar em algumas hipóteses a partir do funcionamento do interdiscurso ou da memória-discursiva, pois têm-se a ideia de que mexicanos trabalham em subempregos, inclusive quando deveriam estar de folga; em outras palavras: os não-estadunidenses devem apenas trabalhar, inclusive em seus momentos de folgas. O pai estaria indo “fazer um bico” fora de seu trabalho usual quando os filhos o acompanham? Os filhos também trabalham, juntamente com o pai?
Há, nessa sequência discursiva, uma dualidade. A noção de não-dito (parte componente do interdiscurso e da memória discursiva) ajuda-nos a compreender que, ao mesmo tempo que se sugere o que vão fazer nesses locais, sugere-se também o que não vão fazer. Em virtude do que foi exposto sobre imigrantes mexicanos e relacionando-se com o que é exposto nos demais capítulos do livro, depreende-se, por exemplo, que eles não possuem imóveis naqueles locais, muito menos que estão sendo convidados a participar de um evento social ou de lazer, como um almoço com as pessoas que ali residem.
Os personagens são pobres, de baixo prestígio social, portanto, a ideia de imigrante, aqui, relaciona-se com aquela que normalmente é retratada pelas mídias: pessoas que estão nos Estados Unidos para servir aos brancos, realizando tarefas de baixa remuneração, como faxineiro, motorista, manobrista, cozinheiro, cuidador, etc.
Já na SD4, ao relatar que “ia” - usando o verbo ir no pretérito imperfeito do indicativo - indica-se que ela foi mais de uma vez ao local, por um certo período de tempo, mas não vai mais. Ou seja, é uma ação que não ocorre na atualidade do relato. Isso é confirmado na SD5, quando ela diz que “não vai mais”. Assim, entende-se que, no passado, a menina acompanhava a sua família, mas deixou de acompanhá-los. Até aqui, por falta de indícios ou de esclarecimentos não se pode entender o que a fez mudar de comportamento. Nas SD6 (“não gosta”), SD7 (“ficando velha”) e SD8 (“esnobe”) são feitas algumas suposições pelo pai e pela irmã sobre os motivos que a fizeram deixar de acompanhá-los.
Na SD9 o motivo e a causa são, finalmente, revelados. Podemos dividir essa SD em dois momentos. No primeiro momento, a menina assume que não acompanha mais sua família por vergonha, embora não diga isso a eles. Em um segundo momento, o motivo dessa vergonha é revelado. Assim, entende-se que não é, como sugerido pelo pai ou pela irmã anteriormente, que ela estivesse passando pela fase da adolescência, quando, normalmente, os jovens assumem uma postura de distanciamento de sua família para se autoafirmar, mas, sim, porque, segundo a autora, eles encaram as janelas como os famintos encaram a comida. Aqui, deve-se pensar sobre o uso da palavra faminto.
Novamente, foi consultado o Dicionário Houaiss (2024c) e revelou-se que faminto possui dois significados. O primeiro está descrito como alguém que tem muita fome, ou seja, esfomeado; o segundo é de alguém que deseja com ardor, ávido por algo. Ambos significados estão relacionados, pois encontramos na literatura a expressão fome sendo usada não somente como uma necessidade física por alimento, mas também como desejo por algo. Por exemplo, por paráfrase, a expressão “Fome de quê?” pode ser entendida não somente como uma vontade de alimentar-se, mas também como um desejo por algo. Pode-se observar esse uso no título do premiado filme Fome de Sucesso[6], produzido pela plataforma de streaming Netflix.
Assim, a palavra “famintos”, como descrito pela autora, está relacionada com a ideia de pessoas desejosas. Quando eles encaram as janelas das casas bonitas, desejam algo, embora não esteja explícito o quê desejo, e isso relaciona-se com a questão da moradia ou do bairro precário onde Esperanza mora. Desse modo, retomando a SD2 e seguindo o conceito de objeto de desejo exposto por Lacan (1998), entende-se que esse desejo está relacionado à falta. Portanto, só se pode desejar aquilo que não se tem ou não se possui, uma vez que o desejo se consolida na relação com a falta. Assim, o desejo de possuir algo aplaca quando se obtém aquilo que é desejado. Assim, ao demonstrar um desejo, ela demonstra também uma falta: no caso, a falta de uma moradia digna.
Na SD10 ao falar que está cansada de olhar o que não pode ter, há a utilização do pronome relativo “que”. Esse pronome relativo é comumente utilizado para retomar algo que foi anteriormente citado. Assim, a autora não faz uma lista enunciativa dos bens e objetos que não pode ter, não dizendo exatamente o que não pode ter, mas, através desse pronome entende-se que não se refere apenas à casa, mas também a todos os privilégios que, enquanto filha de imigrantes latinos, jamais teria. Ao expor que jamais alcançaria certo padrão de vida e privilégios, a autora, igualmente, põe em xeque o ideal capitalista de sonho americano e de meritocracia que supõe que se (qualquer) o indivíduo se esforçar bastante ele pode alcançar aquilo que almeja (CHAUÍ, 1990). O livro, entretanto, confronta essa ideologia dominante de meritocracia capitalista quando a personagem experencia diversas situações que não a deixam em igualdade com aqueles considerados americanos.
Na SD11 a mãe fala sobre quando ganhar na loteria. A fala da mãe não é concluída porque a protagonista diz que para de ouvir; entretanto, pode-se fazer uma suposição sobre o que a mãe estaria falando, sobre os objetivos de vida que realizaria e os bens que adquiriria caso ganhasse na loteria. A segunda parte desse enunciado é interessante porque vemos a personagem demonstrar-se consciente da ideologia do sonho americano que prega o consumismo, embora, enquanto menina, não o identifique por esse nome: o grande desejo da mãe é ter dinheiro para poder consumir e, assim, fazer parte da sociedade norte-americana ao invés de ser considerada uma “faminta”. Torna-se igualmente interessante refletir sobre os padrões capitalistas de consumo, pois, de acordo com essa ideologia, somos aquilo que consumimos e nos constituímos de maneira interpelativa como sujeitos enquanto consumimos (CHAUÍ, 1990). Uma vez que as pessoas das classes sociais menos favorecidas não consomem ou consomem apenas o essencial para sua subsistência, elas não são consideradas plenos sujeitos.
O modo como a autora descreve o comportamento dos personagens ao observar a janela como famintos faz lembrar aquela imagem muito repetida em desenhos animados dos cães observando o frango sendo assado em uma máquina de padaria, até mesmo porque tal máquina de fazer assados recebe o nome popular de “televisão de cachorro”. Assim, a “animalização” (reificação, desumanização) do comportamento humano relaciona-se com a região do interdiscurso, uma vez que se relaciona com outros sentidos já existentes. Em uma projeção dos seus desejos e anseios, a janela funciona para eles do mesmo modo em que o frango representa um desejo (de saciar algo) para os animais.
Entretanto, uma vez que os animais não produzem e não consomem mercadorias tal como os humanos no sistema de produção capitalista, sobra a eles aquilo que for dado/desprezado por outros animais ou outros seres humanos que, enquanto ser consciente e inserido no sistema capitalista, produz e consome. Assim, os personagens têm seu comportamento igualado ao de um animal que passivamente espera petiscos, descartes e sobras. Chama a atenção o fato de que, diferentemente dos cães, os humanos imigrantes trabalham, produzem e geram riquezas, porém para outros. Por que, então, não têm acesso aos bens de consumo se o sonho americano prega que todos aqueles que se esforçarem terão ascensão social? – justamente devido ao funcionamento da ideologia (CHAUÍ, 1990).
Já na SD12, há uma relação de sinonímia entre classe social e espaço físico[7] - altitude. As pessoas mais privilegiadas, aquelas que moram nas colinas, estariam mais próximas ao céu, ou seja, em uma condição de superioridade e elevação espiritual ou moral, enquanto que os menos favorecidos estariam em um nível mais baixo, portanto próximo à terra, à rua (e ao inferno) e às dificuldades, disso decorrendo uma certa degradação moral. Chama atenção, igualmente, a questão da alienação em relação aos seus próprios privilégios, pois os ricos ignoram outras realidades. Isso é confirmado na SD13, pois é relatado que eles somente olham para “baixo” para agradecer seus privilégios, e não para questioná-los.
Essa posição de distanciamento das classes sociais menos abastadas e da alienação, na SD14, distingue aqueles que são servidos daqueles que servem. Os primeiros, embora sejam beneficiados através da exploração do trabalho dos segundos, não se responsabilizam pelas más condições em que as pessoas que trabalham para eles vivem. Não há aí uma relação de cooperação, mas de exploração na qual apenas um dos lados é beneficiado. A SD15 e a SD16 corroboram com o descrito sobre privilégios ao relatar que nada acorda os ricos durante a noite a não ser o barulho do vento. Ou seja, o sono tranquilo está ligado à ausência de preocupações com as condições de trabalho ou de moradia ou de vida daqueles que não são da sua classe social, havendo uma alienação geral das classes sociais, pois não somente os trabalhadores dominados estão alienados de suas explorações, mas também as classes dominantes se encontram alienadas das causas e dos efeitos da sua própria dominação. Em outras palavras, tanto para Chauí (1990) quanto para Pêcheux (1995; 2014), parte significativa da produção e da participação na realidade passa despercebida pelos sujeitos devido ao funcionamento da ideologia que os faz esquecer (alienar) das suas reais e materiais condições de produção e de existência.
A SD17, inicialmente, pode parecer subversiva ou desalienante quando a personagem diz que não vai se esquecer de onde vem – mais precisamente de suas origens. Entretanto, essa sequência discursiva, ainda assim, corrobora com a ideologia dominante capitalista que dita regras que devem ser cumpridas pelas pessoas – tais como concluir uma faculdade, ter um emprego, uma casa própria, casar e ter filhos ou possuir determinados objetos. Assim, o sonho de ter uma casa igual a das classes abastadas, embora possa parecer revolucionário por vir de uma personagem a quem foi negado o direito de moradia digna, ainda se encaixa no modelo de consumo capitalista porquê reforça a questão do acúmulo dos bens de consumo.
A SD 18 é uma possibilidade, uma conjectura, pois o exposto nesta SD depende da efetivação do imaginado (uma Formação Imaginária) na SD17, pois para que os “vagabundos” possam questioná-la sobre a possibilidade de entrar na casa, ela deve, primeira e obrigatoriamente, ter uma casa. Aqui, pode-se ver uma espécie de subversão, mas, ainda assim, organizada a partir e segundo os esquemas ideológicos capitalistas, pois a ideologia dominante faz uma distinção entre os que possuem bens e os que não os possuem bens, sendo que os últimos não os possuem justamente por não terem se esforçado para adquiri-los, portanto, não trabalharam. Logo, quem não trabalha é denominado de vagabundo. Assim, o desejo de dar um lar digno para aqueles chamados de vagabundos vai ao encontro da ideologia que diz que os vagabundos (aqueles que não trabalham e não produzem) não podem ter acesso aos bens de consumo. Cabe ressaltar que a palavra vagabundo é utilizada de maneira irônica nesta SD, pois no imaginário popular vagabundo é aquele que não produz. Assim, uma vez que no capitalismo é necessário produzir para ter acesso aos bens de consumo, aqueles que não têm acesso aos bens de consumo não estariam trabalhando e se esforçando.
A SD19, no entanto, representa uma ambivalência que gera um duplo sentido e, assim, uma dupla interpretação, típicos do funcionamento e das disputas de sentidos do/no interdiscurso e na memória discursiva (PÊCHEUX, 1995; 2014; ORLANDI, 2001; 2009). Uma das possibilidades de considerar esse enunciado é estabelecendo a separação entre as categorias privilegiado e não privilegiado a partir da diferença entre os espaços (altura) em que se encontram. Ao dizer que os vagabundos ficariam no sótão e não no porão, por exemplo, retomam-se os sentidos tratados na SD12. O sótão pode ter o significado de parte ou cômodo de cima de uma casa, portanto, esses vagabundos, ao ficarem no sótão estariam ocupando um lugar privilegiado e não aquele perto da terra, do chão, onde comumente ocupam, conforme tratado na SD12. Entretanto, não devemos esquecer que o dicionário traz, igualmente, a definição de sótão enquanto porão (HOUAISS, 2024b), ou seja, também significando a parte inferior ou cômodo da parte de baixo de uma residência. Assim, a segunda interpretação possível é de que a palavra sótão esteja funcionando semanticamente como porão, parte inferiorizada da residência. Os trabalhadores explorados, então, continuariam a ocupar uma posição de inferioridade estando, inclusive, “escondidos”, pois, geralmente, guarda-se no porão objetos de pouca utilidade e entulhos que se deseja esconder. Tal interpretação é possível pois os convidados da autora perguntam se os barulhos do assoalho (chão) estão sendo produzidos por ratos. Animais como os ratos e outros animais peçonhentos, geralmente, encontram-se em lugares pouco limpos e com pouca luminosidade. Além disso, questiona-se o porquê de tais vagabundos não estarem à lareira na sala de estar, juntamente com os outros convidados, mas sim escondidos.
Por fim, as SD20, SD21, SD22 e SD23 reiteram o lugar ocupado pelos vagabundos, que seria aquele local elevado, próximo aos privilégios que a eles são negados. Assim, o título que, inicialmente, parecia desconexo, encaixa-se perfeitamente ao contexto do texto quando se sugere que os vagabundos significam aqueles que não tem acesso aos bens de consumo e, portanto, à dignidade, pois, no sistema capitalista, ter dignidade é ter residência, alimentos, roupas, automóvel e outros objetos que, contudo, são pagos e podem ser custeados pelo trabalho. Portanto, para ter dignidade e existir é necessário ter dinheiro e consumir. A existência e a dignidade são então ironizadas pela autora. Assim, ela encerra o capítulo em uma reflexão sobre como seria se aqueles que ocupam lugares inferiores pudessem ocupar lugares superiores.
Considerações Finais
Ao longo da obra e, mais especificamente, após a leitura do capítulo, foi possível perceber como diversos discursos significam não de maneira explícita, mas por intermédio da ideologia dominante presente em nossa sociedade. O sistema capitalista ao qual a maioria das nações modernas aderiu tem diversas falhas e é, em suas origens, o sistema da reprodução da desigualdade pautada, imaginariamente, na liberdade e na igualdade dos sujeitos – desde que sejam brancos e trabalhadores. Para que uma única pessoa possa obter o que é considerado sucesso (dinheiro em grande quantidade), parcela considerável da população é explorada e oprimida. O que se constata é que a própria ideologia do sistema é falsa quanto ao cumprimento das suas promessas, uma vez que não é possível que todos sejam donos dos meios de produção e acumulem capital na mesma proporção, pois alguém sempre ocupará o lugar daquele que gera a força de trabalho necessária para produzir mercadorias e bens de consumo.
Entretanto, além dessa falha essencial ao sistema, entende-se que ele se apoia, ainda, nas demais opressões para continuar existindo. A ideia de que os primeiros imigrantes europeus às Américas eram um povo superior, vinda, conforme relatado anteriormente, desde a Doutrina Manifesto, foi essencial para que aquele povo se sentisse no direito de ocupar e explorar novos territórios, impondo sua cultura e seu sistema econômico e simbólico. Além disso, a ideia do sonho americano defronta-se com a impossibilidade na medida em que não leva em consideração diversos outros fatores que influenciam nos direitos dos cidadãos às condições dignas de trabalho, moradia e educação dentre outros. Assim, o descrito por Sandra Cisneros configura-se como uma forma de denúncia e, até mesmo, de protesto contra a ideologia dominante.
Gabrielle Fernandes da Silva Gnoatto - Laboratório de Estudos e Pesquisas em Sexualidades e Gêneros da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Professora de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino de Gravataí-RS. Bacharel em Letras (Língua Portuguesa) e Literatura da Língua Portuguesa, Língua Francesa e Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: gabrielle.fsgnoatto@gmail.com
Rafael De Tilio - Laboratório de Estudos e Pesquisas em Sexualidades e Gêneros da Universidade Federal do Triângulo. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutor em Psicologia.E-mail:rafael.tilio@uftm.edu.br
Recebido em: 30-abr-2024
Aceito em: 02-out-2024