Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2024, v. 14: e20122.

ALVES LOPES, Carlos Eduardo; ALVES DO LAGO, Neuda. Having fun? Problematizando a neutralidade e a ideologia neoliberal em um livro didático de inglês. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2024, v. 14, e20122.

Having fun? Problematizando a neutralidade e a ideologia neoliberal em um livro didático de inglês

Having fun? Problematizing neutrality and neoliberal ideology in an English textbook

Carlos Eduardo Alves Lopes
Neuda Alves do Lago

Resumo: Partindo do pressuposto apresentado por Holborow (2012) de que a ideologia neoliberal invadiu todas as esferas da vida humana desde seu aparecimento ao final da década de 1970, incluindo os materiais didáticos de inglês (BLOCK, 2017), neste artigo, objetivo identificar e problematizar aspectos neoliberais presentes em duas seções em uma unidade do livro Hello! Teens: Stage 8 (MORINO; FARIA, 2019). Para tal, me apoio em praxiologias acadêmicas que questionam a neutralidade dos livros didáticos de inglês e problematizam a presença exacerbada da ideologia neoliberal. Os dados analisados sugerem que a ideologia neoliberal é responsável por colaborar para a construção de uma visão idealizada e homogênea de sociedade, posicionando os aprendizes como sujeitos consumistas que praticam o autocuidado (BLOCK, 2017). Metodologicamente, este estudo configura-se como uma pesquisa qualitativa documental (FLICK, 2009) de cunho interpretativista (WILLIG, 2014).

Palavras-chave: Livros didáticos de inglês. Neoliberalismo. Educação linguística crítica.

Abstract: Based on the assumption presented by Holborow (2012) that neoliberal ideology has permeated all spheres of human life since its emergence in the late 1970s, including English teaching materials (BLOCK, 2017), this article aims to identify and problematize neoliberal aspects present in two sections of a unit in the book Hello! Teens: Stage 8 (MORINO; FARIA, 2019). In order to achieve such goal, I rely on academic praxiologies that question the neutrality of English textbooks and problematize the exacerbated presence of neoliberal ideology. The analyzed data suggest that neoliberal ideology contributes to the construction of an idealized and homogeneous view of society, positioning learners as consumerist subjects who practice self-care (BLOCK, 2017). Methodologically, this study is understood as a qualitative documentary research (FLICK, 2009) with an interpretivist approach (WILLIG, 2014).

Keywords:English textbooks. Neoliberalism. Critical language education.

Introdução

Pennycook (2021) é categórico ao dizer que todos os nossos atos são políticos, ou seja, existem relações de poder em tudo o que fazemos e dizemos, inclusive, em sala de aula. Neste sentido, a sala de aula não pode ser tomada como um espaço neutro, dado que as relações de poder que se instauram fora dela também são, constantemente, reproduzidas ali. Assim sendo, nosso lócus de atuação é concebido pelo autor como um recorte micro de um contexto macro. Isso implica dizer que a sala de aula é, a todo momento, afetada pelos acontecimentos sociais e políticos que não apenas constituem, mas também são constituídos pelas relações de poder inerentes ao mundo social.

Aqui, ao nos referirmos à sala de aula, não ponderamos simplesmente o espaço físico ou as relações estabelecidas entre nós, docentes, e os alunos, mas consideramos, também, a forma de instruir, a de avaliar, o currículo, os conteúdos e os livros didáticos que, muitas vezes, somos obrigados a utilizar por imposições externas. Os livros didáticos servem como um elemento crucial para que possamos entender melhor a dinâmica existente entre o contexto macro e a sala de aula. Pennycook (2001) afirma que os materiais de ensino apresentam visões de mundo bastante particulares, levando para a sala de aula mensagens culturais e ideológicas que influenciam na construção de ideias bastante específicas sobre categorias como família, raça, gênero e classe. Em Pennycook (2021, p. 141), o australiano aponta que os livros didáticos, particularmente, “as imagens, os estilos de vida, as histórias, os diálogos são ricos em conteúdos culturais”. Assim, conscientizar-se acerca de tais questões é uma das diversas formas de se observar como tudo o que ocorre em sala de aula é “localmente importante e globalmente significante” (ibidem).

Kumaravadivelu (2003, p. 255), seguindo a mesma lógica, é enfático ao problematizar o fato de que os livros didáticos não são, de modo algum, neutros, visto que “representam valores culturais, crenças e atitudes”. Segundo o autor, tais materiais reproduzem ideologias que podem influenciar a forma como professores e alunos concebem determinadas culturas. O linguista aplicado denuncia que, frequentemente, essa influência passa despercebida. Neste viés, as ideologias que são levadas para a sala de aula, através dos materiais didáticos, acabam sendo naturalizadas, o que pode ser bastante problemático, principalmente, se pensarmos em alertas feitos por autores como Kumaravadivelu (2003, 2016) e Pessoa e Borelli (2018). Tais pesquisadores sinalizam que grande parte dos livros utilizados nas aulas de inglês não são produzidos localmente, mas sim em contextos nos quais a língua-alvo é falada o que, por sua vez, pode entrar em choque com a bagagem cultural dos alunos (PENNYCOOK, 2021). Seguindo a mesma lógica em relação aos livros didáticos utilizados em aulas de línguas, Vandrick (2014) e Block (2017) afirmam que tais materiais corroboram para a construção de uma visão de sociedade homogênea e livre de disparidades.

A produção eurocêntrica de materiais didáticos traz para nossas salas de aula valores, comportamentos, diálogos e personagens extremamente idealizados, vinculados a ideais neoliberais como o consumismo e o seu aparente fácil acesso. A respeito deste consumismo, Nascimento e Mastrella-de-Andrade (2017) comparam os livros didáticos de inglês a catálogos de compras vinculados a um tipo específico de público. Block (2017), em consonância com os autores, afirma que os materiais didáticos de inglês não apenas situam os aprendizes na língua-alvo, mas, também, ditam o tipo de pessoa que eles devem ser ao utilizá-la.

Refletindo sobre a breve discussão acima, a concepção de que a sala de aula é um espaço político requer, conforme defende Pennycook (2001, 2021), uma lente crítica que questione os elementos, (im)postos como naturais e apolíticos, vinculados a ela. Portanto, neste estudo, nos propomos a identificar e problematizar aspectos neoliberais presentes em duas seções de um livro didático de inglês de oitavo ano que, por muito tempo, fez parte da prática pedagógica do primeiro autor. Acreditamos que essa problematização seja relevante para a desconstrução daquilo que a ideologia neoliberal (CHUN, 2009) tenta mascarar nos materiais didáticos: um mundo sem problemas e o livre acesso ao consumismo, por uma comunidade unificada de falantes de inglês pertencentes a uma classe social bastante específica. Para isso, organizamos este artigo da seguinte forma: inicialmente, trazemos praxiologias acadêmicas que problematizam o neoliberalismo e sua presença nos livros didáticos de inglês. Em seguida, traçamos o percurso metodológico escolhido para o estudo. Posteriormente, fazemos a problematização que almejamos, na análise de dados e, por fim, tecemos nossas considerações (não) finais.

Fundamentação Praxiológica

Definir com precisão o que venha a ser o neoliberalismo não é uma tarefa fácil, visto que ele pode ser entendido, na perspectiva de Bori (2020), como um fenômeno em constante movimento que se manifesta das mais variadas formas, em diferentes países e em diferentes períodos. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Daghigh e Rahim (2020) afirmam que não existe uma forma pura de neoliberalismo. Para os pesquisadores, o que existe são formas específicas e localizadas de manifestações do neoliberalismo em cada país. Block (2017), na mesma linha dialógica, diz que a árdua tarefa de se definir o neoliberalismo relaciona-se, de fato, a como ele varia de contexto para contexto. No entanto, o autor afirma que, apesar da variação contextual, o neoliberalismo apresenta algumas características fundamentais em comum, ao redor do globo, as quais podemos utilizar para que possamos compreender seu funcionamento.

A primeira dessas características está relacionada ao fato de que, no neoliberalismo, ao contrário do que normalmente se prega, o estado possui, sim, um papel extremamente ativo, uma vez que é ele o responsável por autorizar a privatização parcial ou total de serviços públicos como educação, moradia, transporte e assistência médica. A privatização de tais serviços é tomada, também, como um dos grandes pilares do neoliberalismo. Outra prática associada a ele relaciona-se à criação ou manutenção de reformas nos impostos que acabam por penalizar aqueles que estão na base da pirâmide social: os proletariados da classe baixa e média.

De forma mais ampla, pontua Block (2017), são os princípios neoliberais que permitem a desregulamentação dos mercados financeiros na qual os bancos ficam livres, legal e moralmente, de qualquer compromisso com qualquer necessidade social. O mercado e o lucro são os pilares fundamentais da atividade econômica. Neste sentido, o mercado acaba se tornando a forma dominante na sociedade e, portanto, todas as atividades do dia a dia giram ao redor dele. Com isso, os sujeitos sociais passam a ser concebidos como prestadores de serviços e consumidores responsáveis pelo seu próprio bem-estar e desenvolvimento, visto que, ao legitimar privatizações de serviços públicos básicos, o estado tende a se afastar de qualquer compromisso com aqueles que compõem seu corpo social.

Chun (2009, p. 112) denuncia que, por trás da propaganda neoliberal de mercado livre, está o crescente sucateamento das sociedades, comprovado pela degradação ambiental, alienação social, e grande acúmulo de capital nas mãos de alguns, o que, dispara o autor, “tem levado a uma crescente pobreza e desespero”. Com essas características em mente, o autor afirma que o neoliberalismo pode ser entendido como ideologia que mobiliza constantemente recursos políticos, econômicos e intelectuais responsáveis por invadir não apenas nossas relações, mas, da mesma forma, nosso próprio eu.

Segundo Chun (2013), a ideologia neoliberal, ao levar o mercado a todos os aspectos da vida institucional e social, almeja produzir uma cidadania neoliberal (BROWN, 2005). Nesse viés, aqueles que compõem o mundo social são concebidos como sujeitos neoliberais racionais que praticam o autocuidado, isto é, são capazes de lutar por suas próprias necessidades e ambições em um mundo extremamente competitivo. Block (2017) defende que, na atual conjuntura global, não devemos olhar para os indivíduos simplesmente como sujeitos neoliberais, mas, também, como cidadãos neoliberais cujas práticas estão intrinsicamente ligadas aos direitos e deveres, sociais e políticos, e as “escolhas” permitidas pelas forças neoliberais, das quais podemos citar como exemplos: os empregos precários e a manutenção do funcionamento do mercado através do consumismo. O cidadão neoliberal, para Brown (2005), é totalmente livre e individual, pois cria estratégias para si próprio conforme as opções viabilizadas pelo neoliberalismo. Pennycook (2021, p. 119) faz uma ressalva sobre esta ideia de liberdade individual imposta pela ideologia neoliberal. Segundo ele, esta ideia simplória de que o sujeito age com autonomia em um mundo marcado por desigualdades econômicas, raciais, de gênero etc. é um tanto quanto problemática e alienadora, uma vez que desconsidera que estamos a todo momento sendo cerceados por uma sociedade, cultura e ideologia marcadas pela heteronormatividade, pelo patriarcado e pela branquitude do norte. Na perspectiva de Chun (2013), o conceito da cidadania neoliberal nada mais é do que uma tentativa do neoliberalismo de fazer com que o estado se desvincule de qualquer tipo de responsabilidade social e política com seus cidadãos.

Em sua cobertura panorâmica dos caminhos da Linguística Aplicada Crítica no século XXI, Pennycook (2022) aborda os movimentos políticos que a impactaram, a partir do neoliberalismo. Para o professor, nos trinta anos que se passaram desde que ele primeiro advogou a criticidade para os linguistas aplicados, no seu artigo seminal (PENNYCOOK, 1990), continuamos com preocupações semelhantes, tais quais a crise financeira e o racismo. Contudo, novos problemas surgiram, como a questão dos milhões de refugiados, das novas formas de xenofobia e do isolacionismo populista, e a Linguística Aplicada não pode ignorá-los. Ademais,

[o] surgimento do neoliberalismo também nos trouxe novos desafios. Nós já estávamos criticando o que era comumente chamado de “racionalismo econômico” nos anos 90, e muitos dos pecados hodiernamente associados ao neoliberalismo eram evidentes à época: a economia do gotejamento, redução de impostos para a elite, privatização excessiva, desregulamentação ilimitada, encolhimento do governo, oposição ao bem-estar social. Os elementos-chave da redistribuição de renda – partidos apoiando a democracia social, sindicatos de trabalhadores, sistemas de impostos justos – foram desafiados pela austeridade do neoliberalismo, o aumento da migração, e a reemergência de políticas nacionalistas e xenofóbicas, desviando o debate político de um bem comum compartilhado para um discurso excludente” (PENNYCOOK, 2022, p. 4) [1]

Vandrick (2014) afirma que o neoliberalismo é responsável por não apenas reproduzir, mas também reforçar e exibir intensamente desigualdades sociais, principalmente, em relação à classe social na educação. Quando falamos sobre ensino de línguas, tamanha reprodução, reforço e exibição de desigualdades sociais pode ser vista na forma como os professores ministram suas aulas, com o auxílio ou não de tecnologias, e até mesmo nos livros didáticos que reforçam diversos estereótipos de classe, por exemplo. Em relação aos livros didáticos, acreditamos ser pertinente traçar um pequeno diálogo entre problematizações feitas por linguistas aplicados críticos como Pennycook (2001) e Kumaravadivelu (2003, 2008). Para o primeiro pesquisador, os livros didáticos, apesar de a priori trazerem conteúdos selecionados aleatoriamente, apresentam, na verdade, visões de mundo bastante particulares que corroboram para a construção de realidades sociais limitadas em relação a categorias como família, raça, gênero, etnia e classe. Segundo o autor, “todos os materiais de ensino carregam em si mensagens culturais e ideológicas” (PENNYCOOK, 2001, p. 129).

Kumaravadivelu (2008) alerta que devemos olhar com bastante atenção para os livros didáticos utilizados nas aulas de línguas. O autor afirma existir três razões para isso. A primeira relaciona-se ao fato de que os materiais didáticos não apenas são utilizados com muita frequência nas aulas, mas também porque eles parecem “enfeitiçar” professores e alunos o que, contribui, sobretudo, para uma limitação na prática docente. A segunda razão vincula-se à tendência que os professores têm de transmitir valores culturais presentes nos materiais, sendo estes interessantes ou não para os alunos. Já a última razão dialoga com o fato de que tais materiais didáticos não são neutros, pois “refletem visões particulares de mundo que são direta ou indiretamente impostas a professores e alunos” (KUMARAVADIVELU, 2008, p. 186), bem como “representam valores culturais, crenças e atitudes” (KUMARAVADIVELU, 2003, p. 255). O pesquisador categoricamente afirma que os livros didáticos, por mais que sejam produzidos com as melhores intenções, acabam levando para a sala de aula mensagens sutis que podem influenciar negativamente professores e alunos, principalmente quando tais materiais trazem visões rasas e estereotipadas de determinadas culturas. Essas visões normalmente são vinculadas a comportamentos de falantes nativos da língua-alvo (KUMARAVADIVELU, 2003, 2008).

Segundo Block (2017), os livros didáticos de ensino de línguas não apenas situam os aprendizes como falantes da língua que estão aprendendo, mas, na mesma medida, os situam como tipos específicos de pessoas que falam tal idioma. O autor problematiza o fato de que, em tais livros, as camadas sociais mais vulneráveis bem como seus comportamentos são marginalizados. O pesquisador, a partir disto, afirma que os materiais didáticos de inglês têm incorporado princípios neoliberais ao retratarem, com muita frequência, falantes do idioma que parecem pertencer a uma classe social específica, que passam boa parte do seu tempo “viajando, fazendo compras, usando novas tecnologias, pensando e falando sobre si próprios e sobre aqueles que estão em sua volta, praticando, assim, o autocuidado” (BLOCK, 2017, p. 8). Ou seja, tais personagens exercem facilmente suas individualidades ao mesmo tempo em que alimentam constantemente o grande mercado econômico com um consumismo exacerbado. A esse respeito, Vandrick (2014, p. 88) afirma que muitos livros didáticos acabam posicionando “os aprendizes como consumidores e servem como propaganda para o mercado global”.

Seguindo a mesma lógica, Nascimento e Mastrella-de-Andrade (2017) fazem uma comparação entre os livros didáticos de inglês e catálogos de compras destinados especificamente a um determinado público: as classes mais privilegiadas. Ao reduzirem a realidade social a “roteiros turísticos para lugares exóticos e paradisíacos, viagens em cruzeiros internacionais, pessoas em diferentes restaurantes, lojas de marcas famosas como indicação de compras, prática de esportes para descanso no exterior” (NASCIMENTO; MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2017, p. 132), os livros didáticos homogeneízam o mundo real como um local livre de problemas, composto por um tipo específico de falante que tem fácil acesso ao consumo. Assim sendo, os aprendizes são posicionados como indivíduos extremamente empoderados, com grande agência, isto é, transitam livremente por todos os locais sem serem afetados por qualquer tipo de desigualdade presente no mundo contemporâneo (BLOCK, 2017).

O livro didático, normalmente, é visto como uma autoridade, tanto por parte dos alunos quanto dos professores. Tamanha noção faz “supor que tudo nele contido está correto e suas verdades não devem ser questionadas” (NASCIMENTO; MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2017, p. 138). Segundo os pesquisadores, tomar o livro didático de inglês como autoridade é problemático, pois comumente a realidade ali retratada apresenta uma visão idealizada da sociedade em um viés anglo-eurocêntrico, ou seja, retrata falantes e comportamentos vinculados ao continente europeu e ao norte-americano. Tais sujeitos e comportamentos exacerbados pelo neoliberalismo devem, na perspectiva que adotamos neste estudo, ser problematizados.

Aqui, entendemos problematização conforme Pennycook (2001, 2021). Para o pesquisador australiano, a problematização deve nortear as práticas daqueles que trabalham com a linguagem em uso. Assim sendo, problematizar equivale a questionar incansavelmente tudo aquilo que é tomado como natural, a fim de vislumbrar outras possibilidades de ser e agir. No caso do livro didático, acreditamos que a problematização dos aspectos neoliberais nele presentes seja pertinente para romper com uma visão idealizada e homogênea da sociedade bem como do que significa ser e agir em uma língua estrangeira.

Contextualização e perspectiva metodológica

Para a análise que almejamos neste estudo, utilizamos o livro da coleção Hello! Teens, da editora brasileira Ática, voltado para o oitavo ano do Ensino Fundamental dois, o qual por muitos anos fez parte da prática pedagógica do primeiro autor deste artigo. A escolha de tal corpus se dá, pois, hoje, percebemos uma marcante presença de aspectos neoliberais em várias partes do livro. A respeito do material didático em pauta, ele possui 192 páginas, divididas em oito unidades que contemplam temas como English: A Global Language, Digital World e Remarkable People. Todas as unidades são divididas em nove seções: Warm Up, Thinking Ahead, Word Work, Focus on Language, Listen and Speak, Pronunciation Corner & Jazz Chants, Read and Write, Tips for Life e Check your Progress.

Nesta pesquisa, por uma questão de extensão, focalizamos nas seções Warm Up e Word Work presentes na segunda unidade do livro, que foi intitulada como Having Fun. A primeira seção objetiva apresentar o tema da unidade através de imagens e diálogos. Já a segunda contempla o vocabulário que, na visão das autoras do livro, dialoga com a temática da unidade. Em relação à unidade, as autoras afirmam que:

os alunos serão incentivados a falar a respeito das atividades de lazer de que mais gostam. Eles também retomarão o Simple Past nas formas afirmativa, negativa e interrogativa, além de reverem as short answers ligadas a esse tempo verbal. Visando a sua formação integral, os alunos lerão textos que tratam de viagem e reunião com amigos, considerando a importância desses momentos de lazer e escreverão um blog post sobre uma experiência desse tipo que tiveram. Por fim, serão estimulados a refletir e discutir sobre o direito ao lazer com base na leitura de uma notícia (MORINO; FARIA, 2019, p. 227)

Justificamos a escolha do nosso recorte com base na descrição acima, dado que é notória uma articulação entre a temática da unidade (Having Fun) a atividades de lazer e viagens, conforme a discussão feita por Nascimento e Mastrella-de-Andrade (2017). Neste sentido, é possível perceber a presença de forças neoliberais na unidade, que, em nossa perspectiva, são amplamente maximizadas nas seções mencionadas Warm Up e Word Work.

Uma vez que utilizamos o livro didático como documento nesta investigação, em que não almejamos medir ou enumerar eventos, mas sim compreender com profundidade (RICHARDSON, 2014) e problematizar a construção homogênea do mundo social pela ideologia neoliberal, este estudo configura-se como uma pesquisa qualitativa documental (FLICK, 2009) de cunho interpretativista (WILLIG, 2014). Desta forma, não tomamos o livro didático como um recorte neutro da realidade, mas sim como um “dispositivo[s] comunicativo[s] metodologicamente desenvolvido[s] na construção de versões sobre eventos” (FLICK, 2009, p. 234). Além disso, dialogando com Willig (2014), consideramos a interpretação primordial para atribuir significado às problematizações feitas neste trabalho.

Análise do material empírico

Figura 01: Seção Warm Up

Figura 01: Seção Warm Up

Fonte: Morino e Faria (2019, p. 26-27).

Como se nota, a seção introdutória da unidade Warm Up (Figura 1) é composta por elementos verbais e não verbais. Esta junção dos elementos é entendida por Gray (2013) como representação, um processo no qual imagens e elementos textuais funcionam, segundo o autor, como o coração dos materiais didáticos. Para ele, a representação é responsável por não apenas retratar o mundo, mas, da mesma forma, colaborar para a construção de uma versão específica da realidade. A grande problemática da representação nos livros didáticos de inglês, na perspectiva do pesquisador, se relaciona com o fato de que, muitas das vezes, ela é segregante e um tanto quanto simplória.

Em relação à representação construída na seção Warm Up, consideramos relevante pontuar como os elementos não verbais junto ao título da unidade reforça o tema lazer, uma recorrência em livros didáticos de inglês (NASCIMENTO; MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2017). Na imagem, é possível perceber a presença de personagens jovens extremamente felizes e harmônicos exercendo sua liberdade no que aparenta ser uma pista de skate, praticando, desta forma, o autocuidado (BLOCK, 2017). Gray (2013) problematiza a recorrência de temas como lazer, diversão, sucesso, viagens e consumo em livros didáticos de inglês. Segundo o autor, tais temas contribuem para a promoção da língua inglesa como uma mercadoria. Assim sendo, entendemos que livros didáticos, ao retratarem tais temas, sem nenhum tipo de problematização, podem funcionar como uma vitrine para o mercado neoliberal global.

Em nossa concepção, essa vitrine passa a ser muito mais problemática caso “exiba” apenas determinados padrões sociais e, consequentemente, a marginalização de outros. Segundo Rocha (2014, p. 137), os materiais didáticos de inglês precisam ser questionados, pois “uma análise mais cuidadosa nos mostra que poucos grupos sociais aparecem e de maneira estereotipada, enquanto outros sequer são contemplados”. Em sintonia, Walsh (2019, p. 22) afirma que muitos livros escolares reforçam “estereótipos e processos coloniais de racialização”.

Refletindo sobre as problematizações feitas pelas autoras, percebe-se na imagem da seção aqui problematizada corpos jovens, magros, brancos, de cabelos lisos e bem trajados. Acreditamos ser pertinente mencionar que, ao longo da unidade, a homogeneização de corpos é bastante evidente. Esse padrão quase nunca é quebrado e, quando ocorre, nos parece ser consequência do multiculturalismo neoliberal problematizado por Walsh (2007). Em outras palavras, parece haver uma mísera e acrítica inserção da diversidade racial para agradar os consumidores do mercado global.

No caso da imagem da seção Warm Up, o único corpo negro, por exemplo, está em segundo plano, tendo seu rosto tampado pela garota ruiva e branca que está nas costas da amiga. Voltando a Pennycook (2001, 2021) sobre o quão ideológica uma imagem presente em materiais didáticos pode ser, pensamos que a figura trazida na seção Warm Up colabore para a construção de uma realidade estereotipada, homogênea, marginalizadora e distante do mundo real que, na realidade, é composto pelos mais diversos tipos de corpos, cores e classes sociais.

Como já mencionado, os corpos representados na introdução da unidade vão ao encontro da ideia de autocuidado ressaltada por Block (2017). Na visão do autor, os livros didáticos reproduzem essa ideologia neoliberal com personagens altamente agentivos que passam boa parte do seu tempo se divertindo, pensando, falando sobre si próprios e sobre aqueles que os cercam. É possível notar, de forma mais ampla, a presença do autocuidado no diálogo que compõe a seção introdutória da unidade.

Figura 02: Seção Warm Up

Figura 02: Seção Warm Up

Fonte: Morino e Faria (2019, p. 27)

No diálogo (Figura 2), Kitty e Carol, duas personagens recorrentes nas unidades do Hello! Teens, têm uma conversa que gira em torno do que fizeram no final de semana junto de outras pessoas. Kitty, por exemplo, passou seu final de semana festejando com primos, fazendo amigos e assistindo TV. Já Carol foi ao Museum Of Modern Art (MoMa), localizado em Nova York, com alguns amigos. Vale a pena ressaltar que todos os personagens do livro vivem em Nova York, confirmando assim a problemática apontada por Kumaravadivelu (2003, 2008, 2016) sobre a ênfase que os livros didáticos de inglês insistem em dar ao norte global. Voltando à fala das personagens, cabe aqui destacar a discussão de Block (2017) sobre como os personagens de livros didáticos de inglês, guiados pelo neoliberalismo, exercitam o autocuidado, sendo eles retratados como falantes nativos, aparentemente não pertencendo a nenhuma classe social, que amam falar sobre si e sobre os outros. As duas últimas falas entre Kitty e Carol, ao discorrerem sobre suas preferências, parece comprovar com muita clareza o argumento do autor.

Faz-se mister problematizar o aparente não pertencimento das personagens a nenhuma classe social, principalmente, se levarmos em consideração a discussão de Gray e Block (2014). Segundo os pesquisadores, os materiais didáticos de inglês, guiados pelos princípios neoliberais de individualidade e consumo, tendem a retratar comportamentos vinculados às classes mais privilegiadas, ao passo que apagam completamente a existência da classe trabalhadora. Na seção Word Work (Figura 3) do documento aqui problematizado, nota-se uma forte presença desses comportamentos.

A seção, como se observa abaixo, é composta por exercícios que objetivam expandir e praticar o vocabulário relacionado à temática da unidade. Em relação ao primeiro exercício, os alunos são convidados, incialmente, a ouvir e repetir as ações, para, posteriormente, assinalar aquelas que condizem com sua realidade. O que nos chama a atenção é a quantidade de representações (GRAY, 2013) que incentivam os aprendizes a se posicionarem como cidadãos neoliberais consumistas que transitam livremente, sem terem sua agência perturbada por qualquer tipo de desigualdade, praticando o autocuidado (BLOCK, 2017). Já o segundo exercício reforça ainda mais a ideia do autocuidado e consumo, visto que os alunos são orientados a falar sobre suas próprias preferências com base nas 15 representações disponíveis na seção.

Figura 03: Seção World Work

Figura 03: Seção World Work

Fonte: Morino e Faria (2019, p. 29-30)

Das 15 representações, apenas 4 delas, a nosso ver, não envolvem o consumo e/ou o acesso a bens de consumo de uma forma tão explícita, sendo elas: read a good book, walk the dog, visit relatives e go out with friends. No entanto, pontuamos que essas atividades são representadas por pessoas bem-vestidas, saudáveis e felizes. O cachorro da imagem, por sua vez, é limpo, bem tratado e de pedigree cara. Daghigh e Rahim (2020) apontam que o consumismo é uma das principais manifestações do neoliberalismo, já que, sem consumidores, não haveria demanda para alimentar o mercado. Na perspectiva dos autores, o consumismo é apresentado como um valor de extrema importância para a sociedade, com o objetivo de impulsionar o mercado.

Bori (2020) ressalta que o consumismo é um aspecto neoliberal recorrente e central nos livros didáticos de inglês. Segundo o pesquisador, tal aspecto é retratado em primeiro plano, até mesmo quando os materiais trazem temas como educação, cultura ou trabalho. No caso do documento aqui em análise, em específico na seção Word Work, percebe-se o consumismo atrelado ao tema da unidade. Nas representações, é possível perceber jovens se divertindo em um show, visitando uma exposição de arte, indo ao cinema, utilizando celulares e vídeo games, transitando em um shopping com várias sacolas de compras nas mãos etc. É como se todo tipo de lazer e diversão dependesse do acesso a bens de consumo.

Com base nessa problematização, duas grandes questões emergem: Quem, em nosso país, pode ir a shows, visitar exposições de arte, jogar vídeo games, tirar fotos com celulares de última geração, ouvir música com equipamentos especializados, assistir a desenhos em TV slims, fazer vídeos com o uso de câmeras profissionais, assistir a um bom filme no cinema, nadar com equipamentos e em ginásios especializados, praticar esportes em escolas especializadas e ir ao shopping saindo de lá com as mãos cheias de sacolas? A qual ou a quais classes sociais tais comportamentos estão vinculados?

Sob nosso prisma, a resposta para tais questionamentos evidencia ainda mais a discussão de autores como Pennycook (2001, 2021, 2022), Gray e Block (2014), Vandrick (2014), Block (2017) e Nascimento e Mastrella-De-Andrade (2017) sobre como os livros didáticos de inglês, atravessados pela ideologia neoliberal, tendem a retratar uma realidade bastante específica e homogênea do mundo social, completamente distante das realidades de pessoas de camadas sociais mais vulneráveis. Além disso, materiais didáticos de inglês guiados pelas forças neoliberais parecem não apenas posicionar os aprendizes como sujeitos bastante particulares, como aponta Block (2017), mas também ditar quem pode ou não aprender tal língua. Portanto, a problematização desses materiais se mostra bastante pertinente se quisermos lutar por uma educação linguística mais justa e inclusiva.

Conclusão

Partindo do pressuposto de que a sala de aula é um espaço político (PENNYCOOK, 2001, 2021) e de que a ideologia neoliberal está presente em todos os aspectos da vida humana contemporânea (HOLBOROW, 2014), incentivando o consumismo e a prática do autocuidado (BLOCK, 2017), neste estudo, objetivamos identificar e problematizar tais aspectos que, em nossa concepção, são amplamente presentes nas seções Warm Up e Word Work da Unidade dois do livro Hello! Teens, voltado para o oitavo ano do Ensino Fundamental dois que, por muitos anos, fez parte da prática pedagógica do primeiro autor deste texto. Para isso, utilizamos praxiologias acadêmicas que questionam a neutralidade dos materiais didáticos de inglês e problematizam a ênfase dada a práticas consumistas e individualistas, que contribuem para a construção da ilusão de uma realidade social homogênea e livre de disparidades, ao posicionarem os aprendizes como sujeitos pertencentes a uma determinada classe social.

Em nossa análise, percebe-se uma acentuada presença de aspectos neoliberais frequentemente identificados em livros didáticos de inglês. Em relação à seção Warm Up, problematizamos a temática Having Fun como pano de fundo para a inserção do incentivo ao consumo, a imagem com personagens homogêneos vinculados a uma classe social específica, bem como os diálogos triviais em que personagens focalizam a si próprios e às pessoas que os cercam. Sobre a seção Word Work, problematizamos a quantidade de representações incentivando o consumo, a tendência que as atividades ali presentes têm em posicionar os aprendizes como consumidores de classes sociais mais privilegiadas, e o apagamento de comportamentos vinculados à classe trabalhadora.

Acreditamos que a relevância deste estudo esteja relacionada à problematização da tendência que os materiais didáticos de inglês, inflados com a ideologia neoliberal, têm de apresentar e colaborar com a construção de uma realidade social homogênea, excludente, livre de problemas e desigualdades. Esperamos que as reflexões aqui apresentadas sirvam como um meio de contestar a autoridade e a aparente neutralidade dos livros didáticos de inglês.

Carlos Eduardo Alves Lopes - Doutorando em Letras e Linguística no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG), mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás e Licenciado em Letras-Inglês pela Universidade Federal de Goiás (Jataí). E-mail: karlosdoodoo@hotmail.com
Neuda Alves do Lago - Professora titular na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG).E-mail:neudalago@ufg.br

Notas

  1. Nossa tradução para: “The rise of neoliberalism has also brought us new challenges. We were already critiquing what was commonly called “economic rationalism” in the 1990s, and many of the sins now associated with neoliberalism were evident then: trickle-down economics, tax cuts for the wealthy, excessive privatization, unrestricted deregulation, shrinking government, opposition to social welfare. The key elements of redistributive welfare – parties supporting social democracy, trade unions, fair tax systems – have been challenged by the austerity of neoliberalism, the growth of migration, and the reemergence of nationalist and xenophobic politics, shifting political debate from a shared commons to an exclusionary discourse.”
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Recebido em: 30-abr-2024
Aceito em: 02-out-2024

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