Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2023, v. 13: e18377.

PIRES, Gilcelia Santana. Legendagem e tradução: aspectos culturais. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2023, v. 13, e18377.

Legendagem e tradução: aspectos culturais

Subtitling and translation: cultural aspects

Gilcelia Santana Pires

Resumo: Este artigo objetiva descrever o processo da tradução de legendas fílmicas, com foco na interação do tradutor com os textos de partida e chegada quando da transposição do componente cultural, considerando a legendagem como espaço de liberdade de criação e não de fidelidade ao texto de partida. Verifica-se também se há uma tendência à domesticação na tradução e legendagem do filme: The Color Purple. Sua temática principal trata de valores e experiências vividas por diferentes atores sociais afro-americanos, na década de 50, em um contexto de exclusão social, violência doméstica, psicológica, discriminação contra a mulher, sua busca de identidade e liberdade de um regime machista e opressor. Para tanto, algumas legendas do filme: The Color Purple (a cor púrpura) foram selecionadas, a partir de seus significados, os quais se relacionam com os aspectos pretendidos para a análise: o componente cultural. Assim, apresenta-se uma reflexão crítica sobre as traduções das legendas em destaque. Os achados indicam que, há, de certo modo, a preservação dos aspectos culturais da língua de partida na língua de chegada, assim como tendência à domesticação e que o aspecto da ressignificação/atribuição de sentidos se apresenta como um caminho pavimentado pela liberdade de criação no ato tradutório.

Palavras-chave: Legendagem. Componente cultural. Domesticação.

Abstract: This paper aims to describe the translation of subtitles. To do so, subtitling is considered a form of showing freedom of creation and not that one of fidelity to the original text. It is also intended to verify the existence of tendencies to the domestication approach. As a methodological frame, some subtitling of the movie: The color Purple, has been analyzed from a critical point of view. It deals with human values and life experiences of several and different social African American actors, in the 50s, in a social context of social exclusion, domestic and psychological violence, discrimination against women, their search for identity, liberty and freedom from a patriarchal and oppressive social system. Thus, aiming at bringing about the women social situation with focus on the violence aspect, a critical reflection is shown about the subtitling translations. The findings have pointed out to the presence of the cultural aspects in the translations, as well as the tendency to follow the domestication and that the aspect of the resignification/attribution of meanings is presented as a pathway paved by the freedom of creation in the translation process.

Keywords: Subtitling; Cultural aspects; Domestication.

1 Introdução

O tema legendagem suscita indagações sobre sua pertinência no campo científico dos estudos de tradução, bem como sua importância como componente curricular nos cursos de letras e tradução das universidades brasileiras. Sabemos que, hoje, os estudos sobre tradução e legendagem no Brasil estão robustos e têm despertado grande interesse, por parte dos pesquisadores nesse foco. Sobretudo, considerando-se a gama de estudos de tradução literária, tidos como estudos clássicos, que existem.

As pesquisas de cunho qualitativo descritivo sobre o fenômeno da tradução fílmica instigam os pesquisadores a responderem questões conceituais e metodológicas que diferem de acordo com o campo específico da disciplina tradução, enquanto constructo teórico. Portanto, há uma preocupação em esclarecermos ao público acadêmico e técnico da área de tradução, sobre as perspectivas no campo teórico e prático para o desenvolvimento de estudos mais aprofundados do tema: da tradução de legendas como mais um objeto de estudo científico significativo, bem como um processo de trabalho especializado.

Em sua produção investigativa, Cintas e Ramael (2021) discutem as diferentes abordagens conceituais com relação às referências culturais presentes nos textos falados, escritos, imagens e gestos que expressam aspectos históricos, geográficos, ideológicos, intra e extralinguísticos de uma dada cultura, tanto na língua de partida quando na de chegada.

A referência cultural extralinguística

refere-se a um fenômeno (referente) que existe na realidade (extralinguístico) dentro de uma dada cultura (cultural) e se expressa através da língua dessa cultura (expressão linguística cultural).” Acredita-se que o público original seja capaz de compreender a referência (identificável) através de seu repertório cultural (conhecimento enciclopédico) (CINTAS E RAMAEL, 2021 p. 202, Tradução nossa)

Tais referências devem ser observadas e ressignificadas de acordo com a cultura ou culturas das comunidades de fala para as quais a legendagem fílmica será desenvolvida. Em outras palavras, os autores afirmam que as questões voltadas para as referências culturais podem trazer desafios para o ato tradutório, pois estas são diversas e complexas e podem variar tanto na forma de expressão extralinguística como intralinguística.

Outro colaborador para a discussão sobre tradução fílmica foi Mouzat (1995), que analisou os tipos de mudanças que a tradução de legendas causa na forma, e o efeito delas no sentido do texto, incluindo mudanças referentes à morfologia verbal, por exemplo, ou até mesmo a omissão de estruturas verbais que podem comprometer o sentido do texto na língua de chegada.

Por outro lado, Bamba (1997) diz que é possível recuperar a perda de sentido do texto de partida, se nos concentramos nos recursos semióticos dos diálogos que podem compensar a eventual perda ou omissão de partes do texto causada pela tradução de legendas. Já Araújo (2000) investigou sobre a tradução de expressões, denominadas por ela como clichês de emoção, e se elas foram traduzidas através de um padrão criado pelos tradutores na língua portuguesa ou se apenas os traduziram da língua inglesa tal qual se mostram.

Mello (2005) propõe, em sua tese de doutorado, um estudo sobre os sentidos gerados na língua de chegada pelo tradutor. Ela não se preocupa em analisar as perdas, as adaptações, omissões ou o grau de aproximação e distanciamento do texto de partida e o texto traduzido. Mello (2005, p. 20) afirma que “o foco de seu trabalho investigativo está na leitura que fazemos do filme em língua original e na leitura que fazemos do filme quando literalmente o lemos nas legendas”.

Por outra via, a pesquisa de Carvalho (2005) investiga a prática da tradução para legendas, entendida no âmbito da tradução audiovisual, a partir de uma perspectiva sistêmica e funcional. Dessa forma, “a legendagem e outras modalidades de tradução audiovisual não têm autonomia como textos originais, de modo que só podem ocupar a posição de traduções de outro produto — ficando sujeitas a serem consideradas traduções boas e válidas ou não” (CARVALHO, 2005, p. 59).

Em outros contextos, como em Portugal, os problemas da tradução de legendas parecem ter as mesmas características e formas de reflexão sobre eles. Fernandes (2007) se propôs a investigar a atividade da legendagem relacionada às tarefas que o tradutor/legendador tem (o direito) de fazer – nomeadamente, a parte técnica da legendagem. A pesquisadora centra sua discussão na expectativa de um modelo de tradutor/legendador ‘ideal’, termo assumido por ela. Esse modelo caracteriza o tradutor de legendas como um sujeito com competências amplamente desenvolvidas no campo da linguística, semântica e tradutologia, assim como aquele profissional com visibilidade no campo prático, além de ser considerado um objeto de estudo no campo da tradução fílmica.

Diante do exposto, o problema desta investigação arrola-se nas questões da tradução de legendas com relação ao componente cultural, especificamente. Como são tratadas as referências culturais na tradução, como alguns teóricos consideram os significados das referências culturais interpretados e transpostos para o texto de chegada, bem como os processos engenhados pelo tradutor como liberdade de criação no texto de chegada. A autonomia do tradutor, que se impõe como um autor, intérprete e construtor de sentidos, o permite atuar como aquele que pode e deve exercer a liberdade de criação.

Comecemos por refletir acerca das ideias de Arrojo (1986, p. 42), “Se pensamos a tradução como um processo de recriação ou transformação, como podemos falar em ressignificação de sentidos, criação de referências culturais na língua de chegada? Como poderemos avaliar a qualidade de uma tradução, considerando esses aspectos?”.

A tradução seria teórica e impossível se fosse apenas um processo de transferência de significados tal qual são representados pelo léxico, estrutura linguística, sintaxe e semântica da língua de partida. Mas, veremos, no desenvolvimento deste trabalho, que a tradução é, na verdade, uma transformação. Transformação de uma língua, ou de textos em outras línguas e textos, quer seja para legendagem ou para outra esfera de seus usos.

Para responder a estas e outras questões sobre o processo criativo de tradução para legendas de filme, selecionamos como corpus para esta pesquisa, o filme americano: The Color Purple, dirigido por Steven Spielberg (1985) e baseado na obra literária de Alice Walker com o mesmo título. Faremos uma análise comparativa das legendas com o intuito de verificar as tendências e estratégias utilizadas em sua tradução das referências culturais.

Dessa forma, pretendemos descrever o processo da tradução de legendas com foco na postura do tradutor com relação à tradução do componente cultural na língua de chegada, considerando a legendagem como espaço de liberdade de criação. Pretendemos, ainda, verificar se há uma tendência à domesticação na tradução na língua de chegada ou uma tendência à ressignificação de sentidos a partir do ponto de vista ideológico do tradutor, referências culturais do contexto da língua de chegada.

Neste estudo, também corroboramos com a conceituação de legendagem de Cintas e Ramael (2014) que a definem como uma prática de tradução que consiste na apresentação de um texto escrito curto, geralmente na parte inferior da tela, que objetiva narrar o diálogo original dos personagens, bem como os elementos discursivos que aparecem na imagem (letras, encartes, rótulos, cartazes entre outros itens semelhantes), assim como a informação contida na trilha sonora (música, voice-over, entre outros recursos sonoros).

2 Legendagem / tradução e seus constructos

Como arcabouço teórico, alguns constructos embasam nossa compreensão das funções do tradutor de legendas bem como a questão da liberdade de criação atribuída aos sentidos do componente cultural que este confere ao texto de chegada. Para tanto, buscamos fundamentação teórica nas abordagens Funcionalistas para a tradução, bem como nos constructos dos Estudos Descritivos da Tradução. Tratamos, também, das estratégias domesticadoras e estrangeirizadoras no processo de tradução além da visão estruturalista, logocêntrica e do desconstrutivismo o qual representa a visão pós-estruturalista na discussão.

Por algum tempo, as pesquisas sobre a tradução de legendas no Brasil abordavam essa prática, sob o ângulo da proximidade das legendas da língua de chegada com o texto da língua de partida (MELLO, 2005). Por esta ótica, o papel do tradutor é de reprodutor de significados, assim, sua criatividade e atividade de construtor de sentidos são ignoradas. Nessa linha, a função do tradutor/legendador seria apenas a de ‘retirar’ os significados do texto de origem e ‘colocá-los’ nas legendas.

Por outro lado, Arrojo (1986, p.40) afirma que “é impossível resgatar integralmente as intenções e o universo do autor, exatamente porque essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido”. Assim, a questão do texto dito ‘original’ não se sustentaria, visto que

[...] o ato tradutório toma como ponto de partida uma mensagem efetiva, isto é, a mensagem derivada do texto de partida tal como decodificada pelo receptor-tradutor e a transforma em nova mensagem pretendida (não idêntica à mensagem efetiva). Tal segunda mensagem pretendida será submetida às vicissitudes da mensagem pretendida original [...] (AUBERT, 1993, p. 74).

Existem muitos aspectos pertinentes ao ato tradutório, porém a postura do tradutor deve ser ressaltada como aquela que apresenta duas faces: a do agente, interpretante e construtor de significados e, ao mesmo tempo, aquele sujeito que é passível de circunstâncias culturais, temporais e históricas.

Conforme Britto (2010, p.137), “o tradutor tenderá a modificar mais o original na medida em que ele julgar que a obra se destina a um leitor do qual se pode exigir pouco, um leitor que não terá grande conhecimento de culturas estrangeiras”. Essa visão, no entanto, considera o leitor como sendo de cultura periférica e o texto de partida como sendo de cultura central, ou seja, de nações ditas culturalmente hegemônicas, como os Estados Unidos, por exemplo.

Na verdade, a estratégia de domesticação destina-se à garantia do princípio da transparência e originalidade do texto de partida, isto é, o texto traduzido deve parecer original, natural e fluente como se ele não tivesse sido traduzido. Como Venuti explica, em seu artigo, A invisibilidade do tradutor,

[...] uma tradução é considerada aceitável (por redatores, revisores e leitores) quando a sua leitura é fluente, quando a ausência de quaisquer passagens canhestras, construções não idiomáticas ou significados confusos transmite a sensação de que a tradução reflete a personalidade ou a intenção do autor estrangeiro, ou o significado essencial do texto de partida (VENUTI, 1995, p. 111).

Desse modo, a origem do significado não tem como referência única, o indivíduo, pois, como se sabe, existem outras interferências de outros determinantes no processo de criação, de escritura. “Esta, por sua vez, depende de outros aspectos culturais pré-existentes, selecionados pelo autor, organizados numa ordem de prioridade, e reescritos (ou elaborados) de acordo com valores específicos” (VENUTI, 2002, p.87)

Nord (2001 apud PFAU, 2010, p. 17) afirma:

O tradutor deve ter em mente, antes de entrar no processo tradutório, os seguintes princípios básicos que o levarão a uma tradução direcionada, ou seja, funcionalista: ele deve saber a função do texto-alvo, a quem a tradução é dirigida, o tempo e o lugar de recepção do texto, o meio em que ele será transmitido e, finalmente, os motivos que o levam à sua produção e à sua recepção.

Muitas vezes, o tradutor considera a obra que traduz e o seu autor como originais, consagrados e soberanos Essa postura o faz trabalhar com mais ênfase e respeito ao ato tradutório já que seu intuito é garantir a semelhança entre os textos nas línguas de partida e de chegada o mais ‘original possível. Esta forma de conceber a interação entre o texto, autor e o leitor/tradutor tem outro enfoque para Arrojo (1986). A autora afirma que “quando um leitor produz um texto, sua interpretação não pode ser exclusivamente sua, da mesma forma que o escritor não pode ser soberano do texto que escreve” (ARROJO, 1986, p. 41).

Lawrence Venuti (2002) aborda a questão da autoria, pois a mesma era comumente definida, nos primórdios dos estudos da tradução, como originalidade. Em princípio, a tradução ficaria atrelada ao conceito de imitação desse suposto texto primeiro, sendo considerada por vezes uma afronta ao conceito predominante de erudição, vinculada à autoria original e, raramente, considerada uma forma de erudição literária.

Assim compreendida, a tradução não aparece como uma simples cópia do original, em que o tradutor deve tornar-se invisível para que o leitor tenha acesso ao autor do texto de partida, àquilo que ele “quis dizer”. A tradução, para Venuti (1995), é o resultado de um processo de substituição em que a intervenção do tradutor, enquanto autor, na relação entre texto de partida e texto traduzido assume um caráter definitivo, pois é através da interpretação do texto de partida que o tradutor/autor constrói o seu texto de chegada. No que diz respeito ao significado do texto, Venuti (2002) considera uma concepção em que o significado é “[...] um efeito de relações e diferenças entre significantes ao longo de uma cadeia potencialmente infinita (polissêmica, intertextual, sujeita a infinitas relações)”.

Contudo, quando o tradutor faz um trabalho de qualidade e tem sua voz presente no texto produzido, sem perder sua identidade ou domesticar outras culturas e seus sujeitos, um novo texto, com a mesma história; mas com nova originalidade, a da obra interpretada é reescrita em outra língua, ou seja, a língua de chegada. Como Arrojo (1986) acrescenta “o foco interpretativo é transferido do texto, como receptáculo da intenção “original” do autor, para o intérprete, o leitor, ou o tradutor”. Assim, o leitor/tradutor/intérprete tem sua visão do texto traduzido.

Em outras palavras, nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que consideramos ser o texto de partida àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos (ARROJO, 1986, p. 44).

O que temos, então, como resultado, é um texto que traz as marcas culturais, históricas e linguísticas do autor/tradutor. Neste ponto, poderíamos identificá-lo como membro participante ativo de uma comunidade interpretativa subjetiva, ou seja, o texto, seus leitores e uma infinidade de possibilidades de construção de sentidos, significados diferentes daqueles que o autor do texto de partida teve como intenção. Isto ocorre porque “a tradução imita os valores linguísticos e literários de um texto estrangeiro, mas a imitação é moldada numa língua diferente que se relaciona a uma tradição cultural diferente” (VENUTI, 2002, p. 120). Ainda sobre o processo tradutório revela:

A tradução forma sujeitos domésticos por possibilitar um processo de espelhamento ou autorreconhecimento: o texto estrangeiro torna-se inteligível quando o leitor ou a leitora se reconhece na tradução, identificando os valores domésticos que motivaram a seleção daquele texto estrangeiro em particular, e que nele estão inscritos por meio de uma estratégia discursiva específica (VENUTI, 2002, p. 148).

Já a estrangeirização privilegia o contexto fonte, ou seja, o leitor é levado até o texto pela manutenção de características linguístico-culturais do texto-fonte. Para alguns tradutores, a estrangeirização é a oportunidade de se conhecer novas culturas, a forma de compartilhar valores culturais que não existem na língua de chegada. Dessa forma, quanto mais o tradutor mostrar aspectos da estrangeiridade do texto, em sua tradução, mais chance de se desenvolver um público-leitor mais aberto às diferenças linguísticas e culturais.

Na visão tradicional – logocêntrica, o tradutor considera o texto de partida como um elemento intocável, de significados estáveis, os quais não podem ser modificados. Assim, traduzir, significaria transportar os significados que são concebidos como imutáveis, de um texto de partida para o texto de chegada, ou seja, de uma língua para outra. Neste tipo de transposição pensa-se que seja possível preservar o significado dito ideal, original. Neste contexto, o tradutor não interpreta o texto de partida, não interfere em seus significados, apenas os transporta da forma que é concebido na língua de partida.

Em oposição a essa visão, Jacques Derrida, filósofo da pós-modernidade, acredita que não existe um quadro hierárquico entre o texto dito original e a tradução, em que o texto de partida é considerado superior ao de chegada, ou seja, o texto traduzido não é inferior em nenhum aspecto, quer seja, linguístico ou semântico. A ideia de que o texto traduzido pode ter um valor menor com relação aos seus significados, por terem sido interpretados a partir da leitura de seu tradutor, tem sido confrontada pelos teóricos da abordagem desconstrutivista. Nessa visão, entre outras concepções, há este pensamento aponta para uma reflexão mais profunda sobre a tradução: a diferença promovida pela leitura e pela tradução é que torna possível a sobrevivência do texto.

A concepção tradicional de fidelidade em que o tradutor pode parecer inseguro ou infiel quando interfere nos significados do texto de partida, é negada a partir dos constructos desconstrutivistas, visto que nessa abordagem o tradutor é considerado um sujeito ativo, visível e construtor de sentidos no texto de chegada. Ou seja, ele é um leitor, intérprete e autor do texto de chegada, no qual ele deve imprimir aspectos culturais da língua de partida.

Nesse sentido, percebemos que o tradutor das legendas do filme, “The Color Purple”, se deslocou das posições logocêntricas e buscou se aproximar dos textos da língua de partida, a partir de uma postura desconstrutivista, na qual ele se torna autor visível, através de sua obra criativa, crítica em que demonstra sua capacidade de mediação e liberdade de reescrita para o texto de chegada. Cremos que sua autoria não foi feita a partir de uma pura e simples reconstrução que se faz, em segunda mão, de um texto tido como um material inerte e intocável.

Podemos, então, verificar essa postura, a partir da análise da tradução/ interpretação das seguintes legendas selecionadas para este trabalho, conforme organizadas e apresentadas na próxima seção.

3 Análise de legendas

A expressão cultural é um aspecto fundamental na vida das pessoas. Ela se manifesta no cotidiano, de forma consciente e em contínua recriação, seja artística ou natural. Algumas manifestações culturais, presentes na tradução do filme em estudo, foram reconstruídas para o imaginário e a realidade dos espectadores a partir da liberdade de criação no ato tradutório.

Há, entre os tradutores, telespectadores e estudiosos, algumas questões sobre o processo de legendagem e tradução do componente cultural que precisam ser investigadas à luz de uma abordagem metodológica que se proponha a uma aproximação do objeto de pesquisa.

Para tanto, a proposta desta pesquisa pretendeu preencher a lacuna de uma abordagem teórico/metodológica que, no contexto dos estudos de tradução, abarque aspectos culturais e ideológicos inerentes ao contexto do conteúdo fílmico que foi analisado, através de comparações das traduções feitas para as legendas da língua inglesa para a portuguesa, bem como dos aspectos culturais presentes na língua de partida.

Como resultados da análise de alguns trechos traduzidos nas legendas do filme, “The Color Purple”, apontamos para alguns achados relevantes quanto aos objetivos propostos para a pesquisa.

Como já mencionado, o filme foi baseado no romance de Alice Walker com o mesmo título. Sua temática principal trata de valores e experiências vividas por diferentes atores sociais afro-americanos, na década de 50, em um contexto de exclusão social, violência doméstica, psicológica, discriminação contra a mulher, sua busca de identidade e liberdade de um regime machista e opressor. A escolha do estudo do referido filme se justificou pelas seguintes razões: possibilidades de aprofundamento dos aspectos culturais, uma vez que o contexto social, histórico e cultural do filme abrange uma população caracterizada por traços culturais fortes e, frequentemente, silenciados nas traduções de legendas.

Vejamos as legendas e suas análises:

A.

Texto de partida: “She ain’t fresh, but expect you know that. She’s spoiled twice”.

Texto de chegada: “Já foi deflorada. Mas já deve saber disso. Já ficou prenha duas vezes”.

No contexto sócio-histórico do início do século XX, apresentado no filme, a concepção da sociedade machista com relação às questões da sexualidade feminina era fundada na ideia de que a mulher era um ser inferior, sem direitos a sua própria vontade, aquela que deveria ser submissa e acatar os mandos e desrespeito dos homens, fossem eles pais, maridos ou amantes.

Para caracterizar esse tipo de relação social, entre a mulher subjugada e violentada moralmente e fisicamente, como pode ser visto no filme, a linguagem usada apresenta termos chulos e agressivos. Tais como, palavrões, palavras depreciativas as quais qualificam as mulheres como “coisas de pequeno ou nenhum valor”, como pode ser visualizado nas legendas A e B:

B.

Texto de partida: “Young women no good these days. Got their legs open for every Tom, Dick, Harpo”.

Texto de chegada: “As moças de hoje não prestam, Abrem as pernas para todo mundo”.

Já no trecho C, abaixo:

C.

Texto de partida: “I wanna marry your Nettie. I got to have somebody right now”.

Texto de chegada: “Quero casar com sua Nettie. Preciso de uma mulher”.

Podemos observar que aspectos culturais que determinam certas posturas de domínio do homem sobre a mulher são trazidos para a língua de chegada. O uso do pronome possessivo sua para se referir à situação de controle em que a mulher vivia na casa paterna. A estrutura: I got to have somebody right now, indicaria, a princípio, uma forte tendência para inferir-se que a mulher é uma necessidade imposta, iminentemente, pelo homem. Quando Mister, o personagem, usa o termo ‘alguém’, para se referir à mulher com quem irá se casar, ele demonstra a forma rude de tratamento. Ou seja, a mulher é um alguém qualquer que o homem anseia para fazer uso e explorá-la.

Essa visão foi amenizada pela tradução na língua de chegada quando o autor/tradutor decidiu retirar a ideia de “ter que” imposição e “agora mesmo” expressos, respectivamente, pelas formas: got to have e right now”. O verbo escolhido: precisar, demonstra uma possível relação de dependência do homem em relação à mulher. Ou seja, a posição da mulher passa a ser de importância para a sobrevivência do homem. O discurso veiculado na escolha do tradutor traz a ideia que Van Dijk (2017) discute sobre o uso da linguagem em suas variadas dimensões

Qualquer forma de língua manifestada como texto (escrito) ou fala-em-interação (falado), num sentido semiótico amplo. Isso inclui as estruturas visuais, como o layout, os tipos de letras e imagens para textos escritos ou impressos, os gestos, a expressão facial e outros signos semióticos para a interação falada. Esse conceito de discurso pode incluir combinações de material sonoro e visual em muitos discursos multimídias híbridos, caso dos filmes, da televisão, dos telefones celulares, da internet e de outros canais e veículos de comunicação (VAN DIJK, 2017, p. 166).

Neste caso, o tradutor/intérprete usou de sua liberdade de criação e transpôs um texto com um significado diferente que valoriza, até certo ponto, a mulher. Pode-se notar que para o tradutor:

[...] a preocupação com a fidelidade linear, verbum pro verbo (como já recomendava Cícero que não se fizesse), a pretensa fidelidade um a um, palavra por palavra, uma compreensão errônea do conceito de “tradução literal” simplória e quivocadamente tomada sempre como uma transposição ipsis literis, quando, em realidade, não é necessário estabelecer-se qualquer artifício contábil para determinar-se a literalidade do processo tradutório, independente de qual seja o produto final alcançado pelo autor (COSTA, 1996, p. 87).

D.

Texto de partida: Mister - You ever hit her?
Harpo - No, Sir.
Mister - How do you expect her to mind? Wives are like children, you have to let them know who got the upper hand. Nothing can do it better than a good beating.

Texto de chegada: - Já bateu nela?
- Não, Sinhô.
- Como quer que ela te obedeça? Mulher é feito criança. Mostre quem é que manda. Nada melhor do que uma boa surra.

Nas legendas do item D, é possível perceber o espelhamento que se faz da situação de violência doméstica que se perpetuava no contexto sociocultural e histórico da sociedade americana e, como se sabe, em nossa sociedade também. Infelizmente, até os dias de hoje tem se discutido muito os problemas e consequências da violência física, psicológica e moral contra as mulheres, sobretudo, afrodescendentes. Neste sentido, o tradutor apontou para este quadro de forma direta e consciente, a partir das escolhas que fez do léxico e estruturas sintáticas. Assim, o leitor/telespectador pode ter acesso ao componente cultural em destaque.

Na mesma direção, na canção Miss Celie’s blues, o blues da Sra. Celie, o tradutor buscou encurtar, facilitar o caminho da transposição de significados de uma língua para outra ao optar por uma estrutura verbal simples em vez de uma composta para expressar que a senhora Celie, a personagem que representa o ser mais oprimido e violentado da história, não saia do pensamento de Shug, a cantora de blues, também, por sua vez, ultrajada e rejeitada pelo próprio pai, pastor e totalmente contra a escolha profissional de sua filha: cantora de blues, corajosa e que buscava seguir seu próprio destino.

Na música pode-se notar uma identidade entre as duas mulheres com relação a suas histórias de vida. Por isso, na tradução, a frase mana, nós somos iguais, significa que temos os mesmos sofrimentos e expectativas de superação. Portanto, Shug afirma que está atenta e pronta para atender às necessidades de Celie, quando diz: então, mana, estou de olho em você e espero que você pense que você é alguém também.

E.

Texto de partida “sister, you’ve been on my mind”.
“Oh, sister, we are two of a kind”.
“So, sister, I’m keeping my eyes on you”.
“I bet you think I don’t know nothing but singing the blues”.
“Oh, sister, I’ve got news for you”.
“I’m something and I hope you think you’re something too”.

Texto de chegada: “Mana, da cabeça você não me sai”.
“Oh, mana, nós somos iguais”.
“Então, mana, estou de olho em você”.
“Aposto que você pensa que eu não sei fazer nada, além de cantar blues”.
“Oh, mana, tenho novidades para você”.
“Eu sou alguém e tomara que você também pense que você é alguém”.

F.

Texto de partida: “Celie, you got the ugliest smile out of creation”.

Texto de chegada: “Celie, você tem o sorriso mais feio do mundo”.

G.

Texto de partida: “Celie is ugly, but she ain’t no stand a hard work and she can learn

Texto de chegada: “Celie é feia, mas trabalha e aprende depressa.

Percebe-se, nos textos em F e G que a identidade construída para a mulher, desde sua adolescência, em sua tenra idade, no caso de Celie, 14 anos, é aquela de um ser insignificante, uma mercadoria, um objeto feio a ser utilizado para satisfazer os prazeres sexuais masculinos, bem como os afazeres domésticos. Um burro de carga. Ambos os textos, tanto o de partida como o de chegada, transmitem esse estereótipo. Essa visão sobre mulher estava presente nas duas culturas, tanto no contexto social e cultural norte-americano quanto na sociedade brasileira da época histórica representada no filme. Talvez, por isso, o texto de chegada tenha preservado uma tendência para uma construção de sentido o mais próximo possível do texto de partida. Já que se tratava de realidades vividas por ambas as culturas e na mesma proporção de insignificância.

4 Conclusão

Como afirmamos, anteriormente, o autor de um texto não é mais o detentor único ou origem primeira das ideias que expressa em suas produções. A noção de que o original é “desconstruído” durante o processo de leitura/interpretação e isso tem impacto direto sobre a noção de tradução, de originalidade e, portanto, de autoria. Da mesma forma, segundo a pós-modernidade, o tradutor, como qualquer indivíduo, passa a ser entendido como pré-determinado pela cultura na qual está inserido, pelos valores ideológicos, por suas experiências, por todos os textos que leu e conhecimentos que detém, disso resultando a impossibilidade de se deixar de considerar o somatório de intervenções por ele sofrido durante o processo de tradução.

Assim, é importante ressaltar que o tradutor precisa se movimentar entre os vários sistemas propostos para o ato de expressão comunicativa e tradutório, e buscar a interação com outra língua(s) e cultura(s) diferente(s) de sua língua/cultura materna e desenvolver a percepção e sensibilidade para saber quando ele deve ou não manter a literalidade, desviar com consciência do texto de partida, omitir com liberdade o determinar por conta de suas bagagens cultural e ideológica, assim também estar apto a ampliar sempre seus conhecimentos. Desta forma, ele poderá contribuir com resultados de qualidade que possam servir aos propósitos de cada um dos envolvidos nesse complexo jogo que é a tradução, a saber, o autor do texto de partida, autor/leitor/intérprete do texto de chegada, telespectadores, revisores, editores, entre outros.

Gilcelia Santana Pires - Universidade Estadual de Feira de Santana. Email: gspires@uefs.br

Referências

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Recebido em: 24-ago-2023
Aceito em: 20-dez-2023

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