Seção Livre
BABEL, Alagoinhas - BA, 2023, v. 13: e16973.
CARVALHO, Tiago Cabral Vieira de. A atuação da liberdade schilleriana em Maria Stuart. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2023, v. 13, e16973.
A atuação da liberdade schilleriana em Maria Stuart
Schillerian freedom in Mary Stuart
Tiago Cabral Vieira de Carvalho
Resumo: Neste artigo, forneço uma leitura da peça Maria Stuart, de Friedrich Schiller, a partir da noção de liberdade imanente ao seu pensamento. Tal noção, apesar de ter raízes em ideais kantianos, é original em relação à do filósofo predecessor de Schiller. Schiller argumenta que o sublime, efeito estético de uma tragédia, tem capacidade de influenciar a dimensão ética da vida humana ao nos fazer livres. Stuart, protagonista da peça, é a representação dessa noção shcilleriana de liberdade.
Palavras-chave: Schiller. Liberdade. Sublime.
Abstract: In this article, I provide a reading of Schiller’s Mary Stuart based in the notion of freedom inherent to his thought. Such notion, although rooted in Kantian ideals, is original in relation to that of the philosopher, also Schiller’s predecessor. Schiller argues that the sublime, the aesthetic effect of a tragedy, has the power of influencing the ethical dimension of human life by making us free. Stuart, the protagonist of the play, is the representation of this Schillerian notion of freedom.
Keywords: Schiller. Freedom. The sublime
Roberto Machado, em O nascimento do trágico, fala que o pensamento alemão da virada do século XVIII para o XIX “começou por ser, em grande parte, uma reflexão sobre o kantismo ou, mais especificamente, uma tentativa de completar, ultrapassando-o e radicalizando-o, o projeto kantiano” (2006, p. 48). É assim que, continua Machado, “o tema da reconciliação das oposições ou da superação das distâncias ou cisões estabelecidas por Kant (...) é evidente em Schiller” (2006, p. 48). Machado também afirma que é “do encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant (...) que nasce a primeira filosofia do trágico, uma reflexão filosófica original que criou um tipo novo de pensamento sobre a tragédia” (2006, p. 54). Na obra de Schiller, seja em ensaios mais curtos e específicos, como nos textos sobre o sublime, o patético e a arte trágica, seja em ensaios mais abrangentes e longos, como em Poesia ingênua e sentimental, Sobre graça e dignidade ou até mesmo nas Cartas para a educação estética do homem, encontra-se, com frequência, o esforço do autor para tentar reconciliar as antinomias em torno das quais giram vários dos conceitos trabalhados por ele.
Poesia ingênua e sentimental apresenta o problema da antinomia entre o real e o ideal por meio da oposição entre o ingênuo e o sentimental. Segundo Schiller, a poesia ingênua distingue-se da sentimental “por referir a Idéias o estado real em que esta última permanece e por aplicar Idéias à realidade” (1991, p. 83). Márcio Suzuki, na introdução ao texto de Schiller, explica que o poeta ingênuo desconhecia “o fato de que a natureza pudesse vir a ser consagrada como um Ideal” (1991, p. 37). É, portanto, “nesse ponto – a busca consciente de um Ideal do gênero humano – que reside a ‘superioridade’ do sentimental em face do ingênuo” (1991, p. 37). No entanto, ainda que este traço reflexionante do sentimental lhe confira uma certa “superioridade”, ele não goza de uma primazia absoluta. “Enfim, nem o ingênuo subordina-se ao sentimental, nem este àquele, mas ambos estão numa relação de ‘subordinação coordenada’” (1991, p. 38). Sendo assim, a tarefa que, segundo Constantino Luz Medeiros, “se impõe ao poeta sentimental em sua atividade reflexionante é a unificação entre a arte e a natureza no âmbito da poesia” (2018, p. 46). Medeiros também explica como Schiller aborda o satírico, o elegíaco e o idílico (ou seja, as maneiras de sentir do poeta sentimental) de acordo com a relação que estabelecem com o real e o ideal: “De acordo com a relação entre real e o ideal, a sátira representa a contradição entre a realidade e o ideal; a elegia é a expressão do prazer na natureza; enquanto o idílio unifica o real e o ideal, a natureza e a arte” (2018, p. 47). É, portanto, por meio da junção entre o ideal e o real, da reflexão e da natureza, do sentimental e do ingênuo que é possível atingir o “Ideal da bela humanidade”, como afirma o próprio Schiller: “temos de admitir que, considerados unicamente por si, nem o caráter ingênuo nem o sentimental esgotam por completo o Ideal da bela humanidade, que pode provir apenas da íntima união de ambos” (1991, p. 101). Nas palavras de Suzuki, por fim, “a terceira espécie de poesia constitui uma idealidade inalcançável (...), o princípio que possibilita pensar toda produção poética sem nenhum critério exclusivo e sem valorização unilateral da maneira grega ou romântica” (1991, p. 40).
Em Sobre graça e dignidade, Schiller tenta, por meio dos conceitos de graça e dignidade, superar a divergência existente entre a ética e a estética. O autor explica que a graça ocorre quando existe harmonia entre o ético e o estético, ou seja, entre o racional e o sensível. Portanto, o homem obedece harmoniosamente à razão somente quando a perfeição ética “brota de sua humanidade inteira como o efeito unificado de ambos os princípios” (2008, p. 38), ou seja do sensível e do racional. Já a dignidade ocorre quando tal harmonização não está presente. Ao ser alvo do afeto (da dor, do sofrimento), o homem expressa a dignidade quando submete o sensível ao racional, demonstrando a autonomia deste: “O domínio dos impulsos pela força moral é a liberdade do espírito e a sua expressão no fenômeno se chama dignidade” (2008, p. 49). Por fim, Schiller revela o que ele entende ser uma expressão completa da humanidade: “Se graça e dignidade, aquela ainda sustentada pela beleza arquitetônica, esta, pela força, estão unidas na mesma pessoa, logo, a expressão da humanidade é consumada nela” (2008, p. 55). Tal conclusão é bem semelhante àquela encontrada no ensaio “Sobre o sublime”, contido em Friedrich Schiller, em que Schiller afirma que apenas “quando o sublime se conjuga ao belo, e quando formamos a nossa receptividade para ambos na mesma medida, somos cidadãos perfeitos da natureza” (2011, p. 73).
Anatol Rosenfeld explica que a busca e formulação do equilíbrio entre os opostos é a preocupação constante não só dos dois textos de Schiller anteriormente tratados, mas também em Cartas sobre a educação estética da humanidade, em cujo texto introdutório à edição de 1963 se encontra esse comentário. Comentando Poesia ingênua e sentimental, Rosenfeld explica que a poesia ingênua é dirigida para a realidade dada, ao passo que a sentimental é inspirada pela idéia e pelo ideal de uma realidade perdida. Entretanto, um retorno à ingenuidade dos antigos é impossível. O impulso fundamental das Cartas é, portanto, de forma a resolver tal impasse, o da conciliação, da síntese das antíteses (1963, p. 13-4). Ainda sem seu texto, Rosenfeld explica que “Kant concebeu, entre a função teórica do nosso intelecto (...) e a função prática da nossa razão (...), uma terceira função, inteiramente autônoma, intermediária entre as outras. Esta terceira função, numa das suas especificações, constitui o gôsto estético” (1963, p. 16-7), tratada na Crítica da faculdade de juízo. Assim, continua Rosenfeld, “as Cartas exaltam a educação estética e o ‘terceiro caráter’ (o estético) como meio transitório para chegar-se ao estágio moral, para transformar os postulados morais em ‘praxis’ cotidiana” (1963, p. 21). Por fim, Rosenfeld conclui afirmando que Schiller almeja não um retorno à natureza original, mas um novo “estado natural” em que todo o desenvolvimento espiritual e moral esteja contido: “a necessidade física e a necessidade moral se unem também numa necessidade superior que é a verdadeira liberdade, constituída pelo conhecimento e pela aceitação autônomos das leis eternas” (1963, p. 23).
Deve-se pontuar, no entanto, que, como aponta Suzuki em “O belo imperativo” (texto introdutório a A educação estética do homem, edição de 1995) uma liberdade promovida pelo gosto estético associado à beleza não deve ser confundida com liberdade encontrada na razão prática. Segundo Suzuki, “no impulso lúdico, o homem não desfruta da liberdade moral strictu sensu, mas de uma liberdade em meio ao mundo sensível. No juízo estético, a razão empresta a sua autonomia ao mundo sensível” (1995, p. 17) – o próprio Schiller reitera tal distinção entre liberdade estética (da beleza) e liberdade moral (do sublime) no ensaio “Sobre o sublime”, contido em Friedrich Schiller. Há ainda uma terceira espécie de liberdade, originalmente conceituada por Schiller, a que se refere Rosenfeld em sua última citação, sobre a qual trata este ensaio e que será melhor discutida posteriormente.
Em “Sobre o sublime teórico em Schiller e o espírito trágico do idealismo transcendental”, contido em Limites do belo, Ricardo Barbosa, citando Pascal, explica como o espanto diante da infinitude da natureza se relaciona com a visão trágica do mundo, que se origina no pensamento moderno: “Sabemos como Pascal reagiu à nova imagem da natureza: ele se disse apavorado com o silêncio dos espaços infinitos (...). Esse sentimento de desconforto expressa um aspecto significativo da visão trágica do mundo que emerge no pensamento moderno” (2014, p. 86). E essa visão é consequência da tomada de conhecimento dos limites do conhecimento humano. O esforço que Kant realiza, com sua obra, é uma tentativa de justificar como a razão é capaz de manter sua autonomia diante da infinitude da natureza, ou seja, como o “abismo entre o mundo da natureza e o da liberdade pode ser superado (e este é o seu momento sublime), (...) [ainda que ele compreenda] que este abismo não pode ser suprimido (sendo esta a sua nota trágica)” (2015, p. 59). Mais adiante, Barbosa explica que a “arte trágica é uma arte do sublime porque retira toda sua força do conflito entre a sensibilidade e a liberdade e da superação espiritual deste conflito (2014, p. 100).” Assim, em “sua acepção mais ampla, o trágico se deixa ver como uma determinação da natureza humana, e mesmo como a sua condição enquanto uma ‘natureza mista’” (2014, p. 100-1). Mais à frente, Barbosa afirma que o “motivo central de todo o pensamento de Schiller, no qual se adensa todo o sentido do trágico, é a conciliação do homem consigo mesmo” (2014, p. 101). E tal conciliação resulta da liberdade da vontade humana.
No artigo “Freedom and Autonomy in Schiller”, Sabine Roehr argumenta que, por mais que o lastro do pensamento de Schiller se apoie sobre o kantismo, o poeta vai além da simples aplicação de ideias kantianas e estabelece uma diferença crucial. Essa diferença reside no fato de que a liberdade da razão não necessariamente corresponde à obediência da lei moral, mas sim à autonomia da vontade humana em relação a esta mesma lei moral: “Such a will [vontade] would be autonomous in a sense different from Kant’s, it would show an independence that defies the dictates of the person’s own moral reason” (2003, p. 126). A liberdade no sentido original de Schiller, portanto, funda-se também na razão, mas não na razão prática kantiana, identificada pela obediência cerrada a leis morais. Roehr acrescenta que Schiller usa, pela primeira vez, sua noção de liberdade em Sobre graça e dignidade (2003, p. 126). No texto, Schiller afirma que a vontade, como uma faculdade suprassensível, não é subjugada nem pela lei da natureza, nem pela da razão, de forma que resta uma vontade completamente livre (SCHILLER, 1998, p. 45). Dessa forma, a conciliação que resulta da superação espiritual do conflito trágico ocorre não por meio da harmonização do sensível e do racional, mas pelo controle, por parte da vontade, da coexistência conflitante entre dois impulsos – por isso tal conciliação ser oriunda de uma natureza mista.
Da liberdade referida no título deste artigo, ou seja, a liberdade da vontade, trata Schiller nas cartas de número quatro e 19. Na primeira, explica que a conduta ética no homem, para não ser imposta por constrangimentos físicos, tem de se tornar natural, uma vez que o homem é “plenamente livre” entre sua inclinação e o dever (1995, p. 31). Na segunda, Schiller explica que não é a predominância nem da sensibilidade nem da razão que determina a liberdade da vontade humana, mas sim a coexistência de ambos. Portanto, ao mesmo tempo em que os dois impulsos estão não constrangidos, mas atuando no homem, eles também estão submetidos ao poder da vontade, de onde se tem origem a liberdade[1]. Em nota a esse trecho, Schiller explica que a liberdade de que fala se funda na natureza mista do ser humano. Quando o homem “age racionalmente nos limites da matéria e materialmente, sob leias da razão”, ele prova agir segundo tal liberdade (1995, p. 101-3).
Como apontado por Barbosa, outra noção crucial para o entendimento do trágico é o sublime. Na Crítica da faculdade do juízo, Kant classifica o sublime em dois tipos: o matemático e o dinâmico. O sublime matemático está vinculado à magnitude da natureza. Dessa forma, a “natureza é, portanto, sublime naquele entre os seus fenômenos cuja intuição comporta a idéia de sua infinitude” (1995, p. 101). O sublime, portanto, é um sentimento que se funda na “inadequação da faculdade da imaginação, na avaliação estética da grandeza, à avaliação pela razão” (1995, p. 104). O sublime dinâmico, por sua vez, está vinculado a uma demonstração de força da natureza, quando ela é, então, “considerada no juízo estético como poder que não possui nenhuma força sobre nós” (1995, p. 106). Algo a ser notado nessa diferenciação é que o sublime dinâmico é capaz de revelar uma faculdade de resistência que nos encoraja a medir-nos com a natureza (1995, p. 107). Por mais que tomemos conhecimento de nossa impotência física, também descobrimos uma
faculdade de ajuizar-nos como independentes dela e uma superioridade sobre a natureza, sobre a qual se funda uma autoconservação de espécie totalmente diversa daquela que pode ser atacada e posta em perigo pela natureza fora de nós, com o que a humanidade em nossa pessoa não fica rebaixada, mesmo que o homem tivesse que sucumbir àquela força (1995, p. 108).
Para Kant, portanto, o sublime dinâmico revela nossa capacidade de ajuizarmo-nos como moralmente superiores à natureza, mesmo que sucumbamos fisicamente a ela.
Como é apontado por Roberto Schwarz e Márcio Suzuki, tradutores de A educação estética do homem numa série de cartas, muitas vezes, em Schiller encontra-se de ideia a liberdade vinculada à autonomia da razão prática, ou seja, ainda sob influência de ideias kantianas, como, por exemplo, no ensaio “Do sublime (para uma exposição ulterior de algumas ideias kantianas)”, presente em Friedrich Schiller. Aqui, Schiller começa por fazer uma distinção bastante similar à de Kant. Schiller divide, num primeiro momento, o sublime em teórico (que corresponderia ao matemático em Kant) e prático (que corresponderia ao dinâmico em Kant):
O sublime prático se diferencia, assim, do sublime teórico pelo fato de que o primeiro está em conflito com as condições de nossa existência, ao passo que o último apenas com as condições do conhecimento. Um objeto é sublime de modo teórico na medida em que traz consigo a representações de infinitude, para cuja apresentação a faculdade da imaginação não se sente à altura. Um objeto é sublime de modo prático na medida em que traz consigo a representação de um perigo que nossa força física não se sente capaz de vencer. Sucumbimos na tentativa de realizar uma representação do primeiro; e sucumbimos na tentativa de nos contrapor ao poder do segundo. Um exemplo do primeiro é o oceano em calmaria, o oceano em tempestade é um exemplo do segundo (2011, p. 25).
Posteriormente, Schiller afirma que, somente por meio do sublime prático, “experimentamos nossa verdadeira e completa independência da natureza” (2011, p. 28). O sublime prático de Schiller mostra-se – por meio de um processo que se assemelha àquele do sublime dinâmico de Kant –, então, capaz de revelar nossa autonomia moral em relação à natureza. A nossa faculdade de resistência revela-se simultaneamente à percepção de nossa impotência física. Somos, então, capazes de perceber, por meio do sublime, que a natureza externa “não diz respeito de modo algum a nossa verdadeira pessoa, a nosso eu moral” (2011, p. 39).
A partir da primeira distinção, Schiller, então, irá criar outra ramificação para o sublime prático. Ele se divide em sublime contemplativo e sublime patético. O sublime contemplativo é basicamente idêntico ao sublime prático original. Ele emerge de objetos “que não se mostram para nós mais do que como um poder da natureza muito superior ao nosso”, dando-nos a opção de aplicar isso ao nosso estado físico ou à nossa pessoa moral (2011, p. 41). Um abismo, um vulcão em chamas, um oceano em tempestade (que Schiller usa para caracterizar o sublime prático), exemplificam essa categoria: “uma vez que em todos esses casos, é a fantasia que acrescenta o temível, (...) esses objetos pertencem à classe do sublime contemplativo” (2011, p. 42). Já o sublime patético ocorre quando entra em cena o pathos, o afeto, o sofrimento em si, ou seja, quando um determinado poder se torna efetivamente pernicioso, hostil, violento. É válido notar que, por mais óbvio que possa parecer, “o sofrimento só pode se tornar estético e despertar um sentimento de sublime quando é mera ilusão ou criação poética” uma vez que o sofrimento efetivo não permite nenhum juízo estético por suspender a liberdade de espírito (2011, p. 48). Por fim, Schiller argumenta que o
patético só será sublime por meio da nossa liberdade moral, e não da nossa liberdade física. O sofrimento eleva o nosso ânimo e se torna sublime de modo patético não porque nos vemos subtraídos a esse sofrimento graças a nossa boa habilidade (...), mas antes porque sentimos o nosso eu moral subtraído à causalidade desse sofrimento – a saber, à sua influência sobre a determinação de nossa vontade (2011, p. 50).
Schiller inicia o ensaio “Sobre o patético”, contido em Objetos trágicos, objetos estéticos, afirmando que o “fim último da arte é a apresentação do suprassensível, e a arte trágica põe isso particularmente em obra na medida em que sensifica para nós a independência moral em relação às leis naturais no estado do afeto” (2018, p. 69). Schiller define, então, a tragédia como sendo tanto a apresentação da natureza que sofre quanto da resistência moral ao sofrimento (2018, p. 74). Os heróis são tão sensíveis à dor e amam a vida quanto qualquer outro ser humano, mas são heróis justamente porque tais sensações “não os dominam a ponto de não poderem sacrificá-la quando os deveres da honra ou da humanidade o exigem” (2018, p. 72). Por isso, a mera apresentação do sofrimento nunca é suficiente. O afeto só é digno de apresentação quando acompanhado da resistência a ele para que que se torne “visível simultaneamente a humanidade mais alta, a presença de uma faculdade suprassensível” (2018, p. 77). No ser humano, portanto, é justamente a presença do princípio suprassensível “que pode colocar um limite aos efeitos da natureza e que se torna reconhecível, justamente por isso, como algo que dela se diferencia” (2018, p. 81).
“Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos”, ensaio também incluso Objetos trágicos, objetos estéticos, gira em torno da relação entre ética e estética – de forma semelhante a Sobre graça e dignidade, apesar de que, naquele texto, a relação é tratada no âmbito da ação, neste, da recepção –, e a ideia de Schiller no texto remonta à ideia clássica de que arte deve deleitar e instruir. Segundo Schiller, apenas quando cumpre “o seu mais alto efeito estético é que a arte terá uma influência benfazeja sobre a eticidade; mas só exercendo a sua total liberdade é que ela pode cumprir o seu mais alto efeito estético” (2018, p. 20). Dessa forma, o prazer que sentimos com obras de arte “fortalece nossos sentimentos morais” (2018, p. 20). Posteriormente, Schiller afirma que o objeto sublime está “em conflito com a nossa faculdade sensível, e essa inconformidade a fins tem de necessariamente despertar desprazer em nós” (2018, p. 24). Mas é justamente tal inconformidade que faz vir à tona uma outra faculdade que supera a faculdade sensível. “Portanto, um objeto sublime é conforme a fins para a razão justamente porque está em conflito com a sensibilidade, e deleita por meio da faculdade mais alta na medida em que causa dor por meio da [faculdade] baixa” (2018, p. 24). Schiller conclui então que a “dor da contrariedade a fins é conforme a fins para nossa natureza racional em geral” (2018, p. 25). Mais à frente, Schiller argumenta que “o mais alto deleite moral sempre será acompanhado da dor” (2018, p. 27), tendo, por isso, o gênero poético que nos proporciona o prazer moral em grau privilegiado “servir-se das sensações mistas e nos deleitar por meio da dor” (2018, p. 27). Em “Sobre o sublime”, Schiller explica que o “sentimento do sublime é um sentimento misto” (2018, p. 60) porque ele consiste na junção de um “estado de dor, que se exprime (...) como um horror, com um estado de alegria, (...) que, embora nãos seja propriamente um prazer, é preferido por almas refinadas a todo prazer” (2018, p. 60). Tal prazer vinculado ao sublime nos agrada, segundo Schiller, porque satisfaz a autonomia da razão. Em “Sobre a arte trágica”, também presente em Objetos trágicos, objetos estéticos, Schiller diz que a “penosa luta entre inclinações ou deveres opostos, fonte de miséria para aquele que a sofre, deleita-nos na contemplação” (2018, p. 41). A miséria padecida pelo personagem – que não partilha do sentimento de sublime em si, mas é somente fonte dele por exercer a liberdade de sua vontade – da tragédia, portanto, causa o sentimento de sublime em nós devido à autonomia da liberdade humana que percebemos tanto nele quanto em nós. É importante pontuar tal diferença agora para que fique clara a distinção entre a liberdade vinculada à personagem de Maria Stuart e a liberdade evocada pelo sentimento de sublime no espectador da peça.
Roberto Machado, em O nascimento do trágico, explica como o sentido trágico se configura no pensamento e obra poética de Schiller. Segundo Machado, para Schiller, a tragédia grega deixa sempre a desejar devido à “importância que concede ao destino, isto é, por apresentar uma sujeição cega do homem à fatalidade, o que é humilhante para a liberdade e incompreensível para a razão” (2006, p. 73). Nas palavras do próprio Schiller, em “Sobre a arte trágica”, é isso
que deixa para nós algo a desejar mesmo nas peças mais insignes do palco grego, porque em todas elas se apela, por fim, à necessidade, permanecendo assim sempre um nó por dissolver para a nossa razão que exige razão. Contudo, no nível último e mais alto que galga o ser humano moralmente formado, e a que se pode elevar a arte comovente, também esse [nó] se dissolve, desaparecendo com ele qualquer sombra de desprazer. Isso ocorre quando mesmo essa insatisfação com o destino é eliminada, perdendo-se no presságio, ou antes em uma distinta consciência de uma conexão teleológica das coisas, de uma ordem sublime de uma vontade bondosa. Associa-se então, ao nosso deleite com o acordo moral a revigorante representação da mais perfeita conformidade a fins no grande todo da natureza (2008, p. 51-2).
De volta ao livro de Machado, ele argumenta que, em Schiller, o homem é obrigado, pela morte, que representa a negação da vontade, a fundar sua grandeza em seu aspecto racional. Essa ideia é formulada nos termos de uma livre submissão possibilitada pela ‘cultura moral’ (2006, p. 67). Assim, apesar de o homem não ser capaz de opor resistência física ao mundo, ele pode, pela cultura moral, “‘submeter-se voluntariamente’ à violência da natureza, suportar o que não pode modificar, suprimir livremente todo interesse sensível, tornando-se livre a ponto de a natureza não exercer violência sobre ele pois, ‘antes de atingi-lo, já se tornou sua própria ação’” (2006, p. 67). Machado, então, usa a peça Maria Stuart para ilustrar a concepção schilleriana do trágico. Segundo Machado, o fato de Stuart submeter-se voluntariamente à violência, “morrer com o coração altivo, sem medo da execução”, mostra que, na personagem da rainha escocesa, o suprassensível supera o sensível, ou seja, ela afirma sua nobre dignidade moral, seu caráter sublime (2006, p. 74).
Deve-se notar, no entanto, que a linha de raciocínio seguida por Machado adota, para Schiller, um conceito de liberdade derivado do de Kant, para quem, como já mencionado, a liberdade (ou a vontade) se identifica com a razão prática, ou seja, com a obediência a leis morais. A tentativa deste ensaio, portanto, é a de adaptar a interpretação de Machado de forma a comportar o conceito schilleriano de liberdade, autônoma em relação a quaisquer determinações morais.
Mary Stuart foi rainha da Escócia durante parte do reinado de Elizabeth I, rainha da Inglaterra no século XVI. Stuart foi encarcerada sob a acusação de planejar o assassinato de Elizabeth. No entanto, o real motivo de sua prisão é o fato de ser herdeira legítima do trono inglês e manifestar o desejo de criar um parlamento único para o os dois países. Na peça, os súditos de Elizabeth convencem-na de encontrar-se pessoalmente com Stuart enquanto ela estava presa. Durante o encontro, Elizabeth faz uma provocação a Stuart e a escocesa, enfurecida, ofende a inglesa e reivindica o trono inglês em razão de seu direito legítimo. Algumas cenas depois, Elizabeth assina a cara de execução da escocesa depois de muita hesitação e de discussões com súditos seus que argumentavam tanto contra quanto a favor da execução de Stuart. Elizabeth, no entanto, em vez de entregar a carta oficialmente a um de seus súditos, entrega-a a Davison, o secretário de Estado. Ele, aflito ao tomar conhecimento do conteúdo da carta, entrega-a involuntariamente ao barão de Burleigh, um dos súditos favoráveis à execução. Dessa forma, Elizabeth faz parecer terem sido Davison e Burleigh os responsáveis pela execução premeditada, e não ela. Após a execução ter sido levada a cabo, Elizabeth condena Davison à prisão, expulsa Burleigh do reino, é abandoada pelo conde de Shrewsbury – que argumentou contra a execução – e descobre que o conde de Leicester, que era secretamente amante de Stuart, fugiu. A peça então termina com Elizabeth aparentemente demonstrando resiliência, mas completamente sozinha.
A liberdade da vontade de Stuart, então, se revela no fato de ela não ter aceitado a provocação de Elizabeth, de não ter se curvado perante uma soberana que a acusava de um crime que ela não cometera. Pelo contrário, o insulto de Elizabeth apenas a faz reivindicar seu direito ao trono com veemência, pois chama Elizabeth de bastarda e se autoproclama soberana: “eu sou o rei!” (198-?, p. 84). Ao fazer isso, é como se Stuart fosse por livre e espontânea vontade para sua execução uma vez que ela não se arrepende em nenhum momento de ter confrontado Elizabeth. Exatamente como afirma Machado, Stuart submete-se voluntariamente à violência, suporta o que não pode modificar, suprime livremente todo interesse sensível, tornando-se livre a ponto de a natureza não exercer violência sobre ela. O que deve ser pontuado é que a ação de Stuart não parte de uma liberdade ou vontade guiada por uma razão moral, mas por uma razão livre, autônoma tanto em relação à inclinação quanto à moral. O que serve de evidência para a presença da liberdade schilleriana em vez da kantiana em Stuart é o fato de que ela não se sacrifica com vista a perfazer uma ação ética. Ela não se sacrifica com a intenção de salvar alguém, por exemplo, e o faz mesmo sob a lamentação de seus servos mais próximos, que detinham apreço por ela. Ou seja, ela causou mais dor do que satisfação em outros com seu sacrifício.
Como já mencionado anteriormente, Schiller explica, nas cartas quatro e 19, em A educação estética do homem, que a vontade do homem é “plenamente livre entre dever e inclinação” (1995, p. 31) e está para os dois impulsos – matéria e forma, sensibilidade e razão – como “um poder (como fundamento da realidade), sendo que nenhum dos dois pode, por si só, comportar-se em face de outro como poder” (1995, p. 102). Roehr, em trecho já mencionado de seu artigo também argumenta que tal conceituação de vontade carrega uma ideia de autonomia diferente da de Kant. Roehr acrescenta que, em Schiller, a vontade desafia os ditames da razão moral e ainda assim, ou precisamente por causa desse desafio, merece admiração do espectador no teatro (2003, p. 126).
Elizabeth serve como um exemplo contrastante para justificar a admiração que se concede a Stuart. Observamos também que Elizabeth exerce sua livre vontade, independentemente de leis morais, por desejar permanecer no trono inglês apesar de sua ilegitimidade. No entanto, Elizabeth não merece admiração porque atua com hesitação e por ações covardes. Elizabeth hesita até o fim em dar a ordem de execução, mostrando até uma certa agonia – ou seja, dor – no fato assumir um posto que não lhe pertence e acusar injustamente a outra rainha (cena 10 do quarto ato). Depois, quando finalmente assina a carta, executa uma manobra que a isenta de culpa no assassinato de Stuart. Observamos, assim, que Elizabeth foge a todo custo da dor de suas responsabilidades. E, como vimos Schiller explicar em “Sobre a arte trágica”, não basta haver apresentação do pathos, é preciso que se apresente simultaneamente resistência a ele. Como Elizabeth não resiste ao sensível, à inclinação – ainda que exerça sua livre vontade – ela não é, ao contrário de Stuart, sublime. E a sublimidade de Stuart é alvo de nota até mesmo por parte dos personagens. O conde de Shrewsbury, provavelmente o personagem mais sensato da peça, alerta Elizabeth quanto às consequências que podem ser acarretadas no espírito do povo com a execução de Stuart:
Quero apenas dizer-vos uma coisa:
Tremeis agora da Maria viva:
Não é esta que deve amedrontar-vos.
Tremei da morta, da decapitada,
Ela sairá da campa, nova deusa
Da discórdia, inflamando todo reino
Em chamas da vingança, repelindo
De vós o coração de vosso povo.
O inglês a odeia agora porque a teme;
Vingá-la-á depois de degolada.
Não veria mais nela uma inimiga
De sua fé, mas tão-somente a neta
De seus monarcas, vítima do ciúme
E do rancor, e a chorará! (198-?, p. 107).
Da mesma forma, o sublime de Stuart afeta também o espectador que, conforme explica Schiller em “Sobre o sublime”, faz-nos sentir livres – ainda que o sentimento de liberdade que afete o espectador implique uma superioridade moral perante a natureza – por percebermos que, assim como na personagem, em nós, também, o espírito age “como se não estivesse sob quaisquer leis que não as suas próprias” (2011, p. 60).
Como já mencionando anteriormente, Barbosa argumenta que o “motivo central de todo o pensamento de Schiller, no qual se adensa todo o sentido do trágico, é a conciliação do homem consigo mesmo” (2014, p. 101). A conciliação, no entanto, é tida pelo próprio Schiller, como um ideal inalcançável, “uma tarefa infinita” (2014, p. 102), como podemos ver, por exemplo, tanto na terceira espécie de poesia, como afirma Suzuki, em Poesia ingênua e sentimental, quanto na humanidade ideal, na carta 14[2]. Podemos pensar, portanto, que, se a conciliação trágica por excelência ocorre por meio do exercício da livre vontade simultaneamente ao conflito entre o moral e o físico, ela também é uma tarefa infinita. Stuart, que caminha altiva para sua injusta execução, é um perfeito exemplo da infinitude dessa conciliação. Como afirma Barbosa, a admiração que o homem sente por si mesmo é a “admiração pela perfectibilidade infinita de sua natureza enquanto uma natureza mista. Expressão da sublimidade de sua trágica condição, essa admiração é uma disposição afetiva já livre da propensão ao sacrifício dos ‘sentimentos’ em nome dos ‘princípios’” (2014, p. 105). E foi “precisamente essa propensão que Schiller criticou em Kant e Fichte” (2014, p. 105).
Tiago Cabral Vieira de Carvalho - Universidade Federal de Minas Gerais Email: tiagocabralvieira@gmail.com.
Recebido em: 27-abr-2023
Aceito em: 03-jul-2023