Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2023, v. 13: e16962.

LACHOWSKI.Victor Finkler. Fragmentos textuais do trágico em Édipo Rei: Leituras pela dialética hegeliana e apolínea/dionisíaca nietzscheana Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2023, v. 13, e16962.

Fragmentos textuais do trágico em Édipo Rei: Leituras pela dialética hegeliana e apolínea/dionisíaca nietzscheana

Textual fragments of the tragic in OEdipus Rex: Readings through the hegelian dialectics an Nietzschean apollonian/dionysian

Victor Finkler Lachowski

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo realizar leituras sobre o trágico a partir da obra Édipo Rei, escrita por Sófocles. Assim, a jornada investigativa busca encontrar como o objeto se enquadra na definição de tragédia das artes poéticas por meio de um o debate teórico com as interpretações e entendimentos de Hegel e Nietzsche sobre a Poética, Tragédia e Édipo Rei, servindo para todos os efeitos como duas linhas de pensamentos conflitantes e agregadoras. Ao longo do texto, diversas considerações de Aristóteles e outros especialistas sobre o trágico e outras concepções canônicas das artes poéticas são adicionadas, assim como trechos fragmentários de Édipo Rei são acrescentados e contextualizados como congruentes de tais considerações, enquanto as interpretações hegelianas e nietzschianas são levantadas para fins dialógicos.

Palavras-chave: Édipo Rei. Hegel. Nietzsche.

Abstract: This research aims to carry out readings on the Tragic in Oedipus Rex, written by Sophocles. Thus, the investigative journey seeks to find how the object fits into the definition of tragedy on the poetic arts through a theoretical debate using the interpretations and understandings of Hegel and Nietzsche on the subjects of Poetics, Tragedy and Oedipus Rex, serving for all intents and purposes as two lines of conflicting and aggregating perspectives. Throughout the text, several considerations by Aristotle and other specialists on the Tragic and other canonical conceptions of the poetic arts are addressed, as well as fragmentary excerpts from Oedipus Rex are added and contextualized when congruent with such considerations, as Hegelian and Nietzschean interpretations are raised to dialogical purposes.

Keywords: Oedipus Rex. Hegel. Nietzsche.

Introdução

A Poética de Aristóteles, segundo Pedro Süssekind (in SZONDI, 2004), é a obra que marca o início de uma extensa tradição de gêneros poéticos (épico, lírico e dramático), o que a faz se tornar objeto de interesse de diversos filósofos. Hegel (2004), foi um dos pensadores que se debruçou com grande afinco sob a Poética, de maneira que no quarto volume dos seus Cursos de Estética a considera como o ponto mais alto do pensamento histórico e dialético. Para ele, “a poesia, a arte discursiva, é o terceiro, a totalidade que unifica em si mesma os extremos das artes plásticas e da música em um estágio superior” (Ibid, 2004, p. 12). Isso se apoia no contexto do Século XVIII, no qual a teoria de Aristóteles passa por uma transição, e as formas artísticas atemporais também são entendidas como objetos de reflexão no que diz respeito à determinação histórica de seus conteúdos (Ibid, 2004, p. 11).

Essa maneira de se estudar e entender as possibilidades da Poética também influenciaram Peter Szondi (2004, p. 13) em seu Ensaio sobre o Trágico, no qual é ressaltado que a Poética é “a doutrina da poesia ou da arte poética”, onde a doutrina da poesia ilustra a poesia como teoria, uma concepção seguida por sua etimologia, enquanto a doutrinação da arte poética propõe os ensinamentos das técnicas de, para que, e como, fazer poética.

As preocupações do por que existe a arte ou determinada forma de expressão artística são consideradas no primeiro volume dos Cursos de Estética, de Hegel (2001, p. 47-48), no qual declara-se que a obra de arte é produto da atividade humana, feita essencialmente para o homem e retirada do sensível para atingir os sentidos do homem, possuindo uma finalidade em si mesma. Como atividade espiritual, irá trabalhar a si mesma para trazer à “intuição espiritual um Conteúdo bem mais rico e diferente de figurações bem mais abrangentes e individuais” (Ibid, 2001, p. 48). Por conta disso a perspectiva hegeliana da arte é voltada à historicidade, uma vez que essa surge como forma da consciência pensante refletir sobre seu tempo, seu entorno, e se representar, de maneiras que os sentimentos que as obras suscitam sejam específicos, o que justifica as alterações de seus conteúdos e formatos (Ibid, 2001).

Percebe-se assim a elucidação para a distinção histórica que a poesia e seus diferentes formatos possuem, algo essencial para a constituição e compreensão da Poética, na qual a poesia possui a função de festejar e celebrar uma nação em todas as suas épocas. Hegel (2004, p. 28) argumenta que essa é a razão das poesias serem amplamente produzidas em épocas de brilho e florescimento, quando uma nação vive um período de apogeu de seu Espírito humano e toda sua humanidade é particularizada multiplamente. Assim, o Conteúdo, modo de intuição, constituição e modo de exposição da poesia serão intimamente determinados pelo caráter nacional (Ibid, 2004, p. 28). No caso da poesia grega, amplamente admirada e imitada por diversas nações ao longo do curso da história, o puramente humano é alcançado através de um desdobramento que visa o mais belo tanto pelo conteúdo quanto pela forma artística (Ibid, 2004, p. 29).

Pensar a Poética, para Kent Pucker (2016a), principalmente a tragédia grega - objeto principal do que restou da obra de Aristóteles -, pela ótica histórica hegeliana nos remete a Atenas do Século X a.e.c., quando o trágico se desenvolve enquanto código que responde às transições de crença das Cidades-Estado, indo de terrenos fundados pela crença nos misteriosos e assertivos poderes dos deuses para uma crença racionalizada em um código legal. Portanto, se caracteriza por tentar resolver os conflitos históricos entre dois sistemas de valores incomensuráveis, que disputam nos campos da fé e livre-arbítrio, justiça e lei, o “tempo dos deuses” e o “tempo dos homens” (Ibid, 2016b, p. 47).

Brandão (1980) reforça esse posicionamento quando discorre que Sófocles seria o mais alto e último representante da cultura grega, em um período de mediação dos relacionamentos entre homem e divindades, homens com outros homens e com a natureza (em sua forma tanto natural quanto sobrenatural). A civilização, estágio final do desenvolvimento da cultura, seria a decadência desta, na qual duvida-se do sobrenatural, surgem inúmeros conflitos e atritos no plano social, e estabelece-se também um conflito com o meio natural.

Na interpretação de Martin Thibodeau (2015, p. 117), Hegel compreendeu o trágico grego como uma leitura da realidade da polis grega, constituída por essas tensões, ambiguidades e contradições que são insuperáveis. Um trecho de Édipo Rei demonstra essa concepção, quando o Sacerdote clama à Édipo uma solução para a praga que aflige Tebas:

SACERDOTE: Vamos, mortal melhor que todos, exortamos-te: / livra nossa cidade novamente! Vamos! / Preserva tua fama, pois vemos em ti / por teu zelo passado nosso redentor! / Jamais pensemos nós que sob o reino teu / fomos primeiro salvos e depois perdidos! (SÓFOCLES, 2011, p. 19)

A praga, fruto do relacionamento incestuoso do Rei Édipo com a Rainha Jocasta, relação essa cujo laço de sangue é desconhecido por ambos, está no cerne do conflito dialético que abrange a tragédia grega na leitura hegeliana, quando a lei humana está em disparate com a lei divina, e assim a lei da singularidade da família se contrapõe à lei da universalidade e da comunidade (THIBODEAU, 2011, p. 118).

Édipo deverá conter em si a representação de todo um sistema social e de seu conjunto de habitantes enquanto realeza, e sua trajetória apresenta o desacordo com a lei não escrita, a lei dos deuses, por isso condena seu povo ao sofrimento até que esse conflito seja resolvido. Dessa maneira, o particular de Édipo, o incesto, será universalizado pela peste. Como explica Ávila (1985), o incesto será a sujeira que toca a sacralidade, uma como negação da outra nesse conflito dialético.

Friedrich Nietzsche (2014), em seu curso de Introdução à tragédia de Sófocles, aponta que a tragédia surgiu do povo, e que durante sua constituição manteve suas características democráticas e populares. Na sua obra O Nascimento da Tragédia: ou Helenismo e Pessimismo (1992, p. 17-18), o filósofo argumenta que o mito trágico será a imagem de tudo que há de negativo, como o terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico, com a tragédia surgindo como um gênero no qual esses sentimentos se contrabalanceiam com o prazer, saúde, força e plenitude, de maneira que esses princípios elevados conduzem a um instinto secreto de decadência, um começo do fim.

A tragédia grega, para o pensador niilista alemão, se desenvolve pela contraposição dos dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, sendo ambos impulsos diversos, contraditórios e discordantes que caminham lado a lado, sobressaindo-se um sob o outro, sendo a vontade helênica metafísica o emparelhamento dessas duas forças distintas a essência da tragédia (Ibid, 1992, p. 27). A composição da tragédia em Nietzsche deriva da representação do Unoprimordial gerada no momento do sonho, como aparência da aparência, uma busca para satisfazer o apetite pelo elevado através da aparência (Ibid, 1992, p. 39).

Assim, ainda que um grande crítico da metafísica ao longo de sua obra, Nietzsche admite em Ecce Homo que sua ideia de tragédia, a antítese entre dionisíaco e apolíneo, é “expressa em linguagem metafísica” (2016, p. 75), com a história dessa ideia e sua antítese enquanto unidade nunca sendo postas frente a frente. Sendo coerente com seu projeto de negação da dialética, considerada por ele em diversos pontos como um sintoma de decadência da inteligência.

Levantadas essas considerações, esta pesquisa abrigará tanto as ponderações de Aristóteles, do que é e como se faz a tragédia, e como todo esse conjunto de definições e afirmações se enquadra na obra Édipo Rei, de Sófocles. Tendo como acréscimo, comentários de outros autores, principalmente interpretações hegelianas e nietzscheanas.

Por conta disso, o texto será iniciado em um pequeno trecho que debate a Poética Aristotélica e a poética filosófica; Em seguida, uma discussão acerca do que constitui a tragédia e o trágico; Adiante, uma organização dos elementos que compõem obras trágicas para que essas possam ser observadas; O capítulo de análise será o vislumbre dos elementos e considerações anteriores potencializados por trechos da obra Édipo Rei e interpretações que diferentes autores realizaram, com Hegel nos fornecendo a relação dialética que nos faz pensar as relações entre os gêneros poéticos e seus propósitos enquanto manifestações próprias de suas épocas, como a dialética entre Absoluto e individual, divino e manifestações, universal e particular (SÜSSEKIND, 2004, p. 17), e Nietzsche abarcando a dualidade metafísica apolínea e dionisíaca dentro da tragédia grega (BURNETT, 2012, p. 31), formando assim uma linha dupla ampla para análise da Poética.

Poética Aristotélica

A Poética (registrada entre 335 a.e.c. - 323 a.e.c.) é provavelmente o primeiro grande estudo/tratado sobre gêneros literários no ocidente (BRANDÃO, 2018). Aristóteles, (384 a.e.c. - 322 a.e.c.) ao compor o volume, buscou entender o que as artes poéticas possuem em comum, principalmente a comédia, epopeia e tragédia, com grande enfoque nesta última. Para realizar esse objetivo, na obra é analisada a maneira de se compor/produzir um poema mimétrico. Assim, o filósofo grego declara que toda forma poética mistura ritmo, linguagem e melodia (ou seja, dança, poesia em si e música), podendo esses três elementos dialogarem juntos ou separadamente (PINHEIRO, 2015).

Além dessa mescla, a Poética como método de estudo sobre narrativas remete e surge da produção do mimema, sendo o mimema a imagem poética (a maneira de se apresentar algo, uma situação ou alguém) (Ibid, 2015). Isso caracteriza a Poética como teoria narrativa pelo fato de insistir em uma diferenciação entre ações e a representações dessas ações, onde qualquer representação de eventos sugere diversas possibilidades, configurações que podem ser direcionadas para diferenciar o bem do mal, com a habilidade de representar ações com maior ou menor proporção ou coerência, para assim desempenhar sua função estética e emocional de maneira satisfatória (PUCKER, 2016a, p. 31). No trabalho do poeta de produzir um trabalho de imitação, proporcionar compaixão e temor, a diferença entre ação e representação da ação assume um papel fundamental (Ibid, 2016a).

A arte poética surge da ação mimética, que acompanha o homem desde a infância, natural como o uso do ritmo e da melodia (ARISTÓTELES, 2015, p. 57-58). A Poética é a imagem poética, que descreve caráter e características, como as coisas poderiam ou deveriam ser, e não como elas o são (PINHEIRO, 2015), sendo um pseûdos, uma ficção (BRANDÃO, 2018) ou, na concepção de Nietzsche (1992, p. 39), uma adaptação dos sonhos.

Nesse ponto que a poesia se diferencia da história: a Poética não é a obra em si, mas sua função; Tudo que é representado, dito, atuado, encenado, etc, possui uma finalidade, enquanto a história deve se propor a narrar algo que aconteceu (ARISTÓTELES, 2015, p. 97). Em virtude dessas características que a tragédia grega exemplifica a função do artista como sendo um imitador dos acontecimentos, sentimentos e ações de existência (NIETZSCHE, 1992, p. 31).

A força do formar poético, de se elaborar uma obra poética, é encontrada na capacidade de uma obra configurar para si um conteúdo de maneira interior. Desse modo, a representação poética imaginária, o mimético do poético é presente nos modos de se representar algo, o que é dito e o que não o é. Para isso, se utiliza de metáforas, imagens, similares, alegorias, etc, como formas de representações poéticas, e os conteúdos serão acrescentados ao que é representado (HEGEL, 2004, p. 52).

A Poética, através da mimesis, terá o dever de categorizar os elementos que constituem uma obra poética, hierarquizar as partes, bem como os modos de se produzir cada parte e diferenciar os tipos de produção poética (PINHEIRO, 2015).

Tragédia e/ou o Trágico

Tida como a forma magistral de arte poética-mimétrica (PINHEIRO, 2015), Hegel (2004, p. 200) entende o trágico, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, como o estágio supremo da poesia e da arte em geral. É definida por Aristóteles (2015, p. 71-72) como a “mimese de ações de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada (ritmo, melodia e canto)”, se desenvolvendo “por meio das ações dramáticas, não pela narrativa (narração)”.

Possui sua origem no ditirambo, em cantos de louvor a deidades gregas, principalmente Dionísio (NIETZSCHE, 2014), como forma mais comum de forma poética por ser frequentemente elaborada para representações nos festivais de honra à esse deus (BRANDÃO, 2018), como explica Nietzsche,

festas dionisíacas, cujo tipo, na melhor das hipóteses, se apresenta em relação ao tipo da festa grega como o barbudo sátiro, cujo nome e atributos derivam do bode, em relação ao próprio Dionísio. Quase por toda parte, o centro dessas celebrações consistia numa desenfreada licença sexual, cujas ondas sobrepassavam toda vida familiar e suas venerandas convenções (1992, p. 33).

Na leitura hegeliana, a constituição do Panteão grego realiza uma antropomorfização das deidades, antes representadas como forças da natureza ou animais, e assim os festivais, como os bacanais, vincularão a vida dos deuses, de todos os deuses, a vida de todos os homens (THIBODEAU, 2015, p. 142). Como explica o próprio Hegel (2004, p. 36), “o desenvolvimento da existência humana na religião e no Estado, os acontecimentos e os destinos dos indivíduos e povos mais proeminentes, os quais são nestes âmbitos de atividade viva, executam grandes finalidades ou vêem a sua empreitada arruinar-se”, nesse contexto o é trágico apresentado enquanto produto da vida nacional “já desenvolvida em si mesma” (Ibid, 2004, p. 201).

Assim, o trágico surge em um contexto histórico de embate entre as divindades preconizadas pelos mitos naturalistas, sobretudo Dionísio, e a religião oficial e aristocrática da polis. O desejo de imortalidade e poder dos homens é esmagado pelos deuses, embates discorridos em narrativas nas quais os mortais nunca vencem (BRANDÃO, 1985, p. 11).

O pensamento de Aristóteles sobre a categorização da tragédia e dos outros gêneros na Poética gira em torno da maneira com a qual as ações são apropriadamente representadas no enredo. Na representação trágica isso encontra eco por ser uma representação essencialmente de ações e da vida, não de personas (PUCKER, 2016a, p. 25), pois suas ações serão o fator determinante para a compreensão dos personagens e do enredo.

Dessa maneira, a linguagem da tragédia para Hegel será a linguagem da própria ação, a linguagem performativa daquele que age e interage (THIBODEAU, 2015, p. 142). A exposição de ações e relações humanas coerentes para a atualidade da sua composição é uma necessidade do trágico, a consciência representadora exteriorizada de modo linguístico nos personagens que expressam a ação (HEGEL, 2004, p. 201-202), o que justifica a necessidade de se apresentar caracteres vivos e situações ricas em conflitos.

Aristóteles (2015, p. 79) declara que toda tragédia deve ser constituída por seis partes: duas mimesis - enredo, caracteres (personagens) -; um modo - espetáculo -; e três objetos - elocução, pensamento, e melopeia (mito). No grau de importância, mesmo as ações dos caracteres (personagens) sendo o principal da tragédia, o enredo é o que inicia, sendo a alma, em seguida vêm os caracteres (personagens que realizam as ações), em terceiro os pensamentos, em quarto a elocução, em quinto a melopeia e em sexto o espetáculo.

Assim, a composição do enredo é parte essencial da tragédia, pois remete diretamente à construção dos personagens, ao pensamento introduzido, à elocução, ao espetáculo visual e à composição do canto (PINHEIRO, 2015); Ademais, a tragédia é dividida em partes: prólogo, episódio, êxodo, canto de coro (dividido em páromo e estásomo) (ARISTÓTELES, 2015, p. 109). O que faz um bom trabalho de representação de uma ação trágica é sua inserção nas partes (começo, meio e fim) que são conectadas de maneira apropriada e coerente no todo (PUCKER, 2016a).

Nessa formatação, a tragédia é um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, sendo um modo dialético. De sua mimesis e etapas percebe-se o trágico como o declínio que parte da unidade de opostos, com a transformação de algo em seu oposto no decorrer dessas ações e etapas. Ao final, esse declínio deixa uma ferida incurável, que não pode ser resolvida ou curada de maneira imanente ou transcendente (SZONDI, 2004, p. 85).

Hegel também nos fornecerá a primeira interpretação materialista da tragédia, pois encontrou no trágico o modelo materialista deste gênero poético, entendido pelo filósofo como um modelo de expressão social, na qual a Poética de Aristóteles é dependente de uma ideia sobre conflito, que forma uma inesperada fundação para o entendimento desta como uma teoria narrativa. A teoria da tragédia de Hegel irá se ater a noção de que história e discurso, tempo do homem e tempo dos deuses, sempre irão surgir como dois aspectos conflituosos presentes em um mesmo cenário (PUCKER, 2016b), como explica Thibodeau,

Para Hegel, a tragédia grega exprimiu, de modo exemplar, a solução ao problema político por excelência, que é aquele das relações entre a universalidade e a particularidade, entre o Estado e os indivíduos, cumprindo a tarefa da filosofia em realizar o absoluto, o processo absoluto como Estado Racional (2015, p. 104).

O trágico, como conflito cujo sacrifício conciliador, aos olhos de Hegel, é solucionado com uma ética absoluta (Ibid, 2015, p. 97). No exemplo que trabalhamos nesta pesquisa enquanto objeto, a obra Édipo Rei, percebemos essa relação admitida quando o protagonista tenta negar a destruição de seu momento particular e familiar, causada pelo incesto e assassinato desconhecidos, assim tentando pertencer ao universal, porém cujos atos tornam-no um criminoso.

O povo de Tebas, que constitui a efetividade da vida ética absoluta, como a totalidade popular que julga, são vítimas da peste por esses crimes, e só se verão livres quando Édipo responder por seus atos. A ideia de Hegel sobre a tragédia é concebida como essa vida ética absoluta, que possibilita ao mundo propor uma solução para a crise profunda que afeta as instituições, oposições e cisões através da reunificação (Ibid, 2015).

Hierarquia dos elementos na Tragédia

Serão brevemente expostos os principais elementos que constituem uma narrativa trágica a partir do que é estipulado na Poética de Aristóteles.

Mito: enredo dotado de finalidade e suscetível a representação cênica, constituído de um começo, meio e fim - nem muito curtos ou extensos - (PINHEIRO, 2015). O enredo é o arranjamento estético das ações, alocando-as em um espaço e em um tempo real ou imaginado e ordenados em uma forma orgânica - começo, meio e fim - que revelam e produzem a relevância das ações trágicas (PUCKET, 2016a, p. 24). A preocupação de Aristóteles com essa divisão das partes serve para que a forma inteira da narrativa seja vista como algo diferente do conteúdo das partes (Ibid, 2016a, p. 31).

Hegel argumenta que uma história dividida em três partes produz uma boa forma narrativa justamente pelo fato de diversas grandes tragédias serem distribuídas nessa estrutura. Em seu pensamento, toda a filosofia gira no eixo da ideia de que, assim como a consciência possui um início, tudo precisa ser entendido nos termos narrativos de começo, meio e fim, como toda história da humanidade (PUCKER, 2016b).

As ações: constituem o ponto central da função e do desenrolar de uma tragédia (ARISTÓTELES, 2015). Peter Szondi (2004, p. 41) ao abordar a ação trágica para Hegel, explica que a ação individual é a maneira com a qual o divino aparece no mundo, sendo esse o tema autêntico da tragédia. Dessa forma, toda ação em geral deve ter uma finalidade determinada que ela executa (HEGEL, 2004, p. 207).

Metabásis: definida como a reviravolta, passagem brusca que transita os momentos do enredo, que leva à comoção emocional, e à catarse final:

modificação que determina a inversão das ações [...] . Por exemplo, o mensageiro no Édipo, que veio para alegrar o rei e livrá-lo da ansiedade a respeito de sua mãe, revelando-lhe seu verdadeiro parentesco, e fez exatamente o contrário (ARISTÓTELES, 2015, p. 106).

Após essas consecutivas reviravoltas na trama, chega-se à catarse: a parte mais importante da trama (PINHEIRO, 2015), onde todos os acontecimentos do enredo trágico desembocam, dando uma espécie de desfecho com consolo metafísico para Nietzsche (1992, p. 107), ou uma reconciliação do conflito dialético para Hegel (THIBODEAU, 2015), que coloca a catástrofe final decorrente do movimento de progressão do trágico como consequência das ações conflitivas (HEGEL, 2004, p. 210), nas quais as contradições e modos de pensar opostos irão inevitavelmente levar até a colisão de desfecho (Ibid, 2004, p. 210).

Investigações e leituras sobre Édipo Rei

Esses componentes que formulam a tragédia a partir das ações são observáveis na tragédia Édipo Rei (composta por volta de 427 a.e.c.), de autoria de Sófocles (497 a.e.c. - 406 a.e.c.), na qual os personagens são virtuosos e justos, acabando muitas vezes por caírem em desgraça não por maldade e vilania, mas geralmente por um erro de discernimento (como Édipo não saber que matou seu pai de sangue e que se casou com sua mãe). Esses personagens também ocupam altas posições e desfrutam de prosperidade, em uma obra que representa um refinamento no psicológico dos caracteres na tragédia (NIETZSCHE, 1992, p. 106).

Porém, na teoria hegeliana, esses heróis são as figuras individuais que mostram as lutas e conflitos que constituem o mundo grego (THIBODEAU, 2015, p. 36), o filósofo explica que o terreno universal da ação trágica é o estado do mundo heróico (assim como da epopeia), pois apenas nos tempos heróicos as potências éticas universais surgem em frescor originário, como os deuses (HEGEL, 2004, p. 248). Por isso, Serra (2009) argumenta que o indivíduo trágico é terrivelmente autocentrado, uma vez que o enredo e a comunidade refletem à imagem de seu protagonista.

O Édipo construído por Sófocles é um homem de inegável grandeza no sentido mais trágico imaginável. Tem magníficas qualidades — e defeitos também notáveis, como sua autossuficiência que o levou a precipitações no julgamento, de sua autoritária dureza que fez ignorar as advertências de Jocasta e de seu servo, alguns exemplos que contribuíram para o terrível fim que se desenrola na segunda parte da Trilogia Tebana (Ibid, 2009)

No caso de Édipo, sua moral e índole em caráter elevado são reforçadas constantemente em diversas passagens. Importante ressaltar o papel do Coro em apontar as virtudes, ascensão e queda dos heróis trágicos de alta índole, uma vez que, para Hegel, a essência divina e universal, a substância do povo grego, é personificada pelo coro (THIBODEAU, 2015, p. 146), que atua com um representante objetivo do próprio juízo do público sobre o que se passa (HEGEL, 2004, p. 250), como exemplificado no trecho abaixo:

ÉDIPO: aqui estou, eu mesmo, o renomado Édipo (SÓFOCLES, 2011 p. 17);

CORO: Não te igualamos certamente à divindade, / nem eu nem os / teus filhos que cercamos hoje teu lar, / mas te julgamos o melhor dos homens / tanto nas fases de existência boa e plácida / como nos tempos de incomum dificuldade / em que somente os deuses podem socorrer-nos (p. 18);

ÉDIPO: talvez (Jocasta) tenha vergonha de minha ascendência obscura, / mas eu sinto orgulho de ser filho / da sorte benfazeja e isso não me ofende (p. 74).

Quanto as metabásis (reviravoltas) em Edipo Rei: são bem visíveis, como no momento em que Tirésias dá a primeira indicação de que Édipo matou seu próprio pai:

TIRÉSIAS: Pois ouve bem: és o assassino que procuras! (SÓFOCLES, 2011, p. 33).

O mesmo ocorre em diversas outras passagens:

TIRÉSIAS: Apenas quero declarar que, sem saber, / manténs as relações mais torpes e sacrílegas / com a criatura que devias venerar, / alheio à sordidez de tua própria vida! (SÓFOCLES, 2011, p. 34);

TIRÉSIAS: logo o Citéron inteiro / responderá aos teus gemidos dolorosos / quando afinal compreenderes em que núpcias / vivias dentro desta casa, onde encontraste / após viagem tão feliz um porto horrível (p. 36);

TIRÉSIAS: filho e consorte da mulher / de quem nasceu; e que ele fecundou a esposa / do próprio pai depois de havê-lo assassinado! (p. 38).

Assim como quando tentam desmentir as acusações:

CORIFEU: Não deves acolher jamais / rumores vagos, não provados” (p. 49);

JOCASTA: (mãe e esposa de Édipo) há muito tempo / comunicou a Laio, por meio de oráculos, / que um filho meu e dele o assassinaria (p. 52).

Adiante, Édipo conta como matou Laio sem saber quem era (rei e seu pai de sangue) (Sófocles, 2011, p. 57-58). Depois, recebe a notícia de que seu pai adotivo, Pôlibo, rei de Corinto, morreu, e descobre que é adotado:

MENSAGEIRO: O rei te recebeu, senhor, recém-nascido / — escuta bem —, de minhas mãos como um presente (p. 69)[1].

E a catarse é consumada:

ÉDIPO: Foi ela mesma a portadora da criança? PASTOR: Sim, meu senhor; foi Jocasta, com as próprias mãos. ÉDIPO: Por que teria ela agido desse modo? PASTOR: Mandou-me exterminar a tenra criancinha (SÓFOCLES, p. 79-80).

Podemos assim compreender como a leitura de Hegel da tragédia se baseia na contradição entre a individualidade/singularidade familiar em relação à ética do social universal (expressa na lei divina) (THIBODEAU, 2015, p. 121). Os acontecimentos cercam o agir do herói, e suas ações correspondem ao seu entorno. Hegel (2004, p. 253) destaca essa constância na poética de Sófocles, habituado a caracterizar o Estado como a vida ética em sua universalidade espiritual, enquanto a família se desenvolve na finalidade de uma eticidade natural de âmbito particular. Édipo, enquanto rei, é o Estado, e enquanto filho e esposo, é família, personificando em si a universalidade e a particularidade. A legitimidade ética na tragédia grega é inclusive violada por meio de atos que Édipo realiza, mas sem serem vinculados ao fim, desprovidos de uma criminalidade, má vontade, maldade, pois a própria tragédia grega é marcada por poucos crimes (Ibid, 2004, p. 252).

Com a descoberta do incesto, Jocasta suicida-se e Édipo se cega de dor e sofrimento. Ao final, pede para ser exilado e levado para longe de Tebas, onde era rei. A catarse é finalmente consumada com o seguinte trecho:

CRIADO: São ele e ela (Jocasta e Édipo) os causadores desses males, / e os infortúnios do marido e da mulher / estão inseparavelmente entrelaçados (SÓFOCLES, p. 84).

Édipo representa o governo, por isso deve expressar a ética em si, e quando não o faz (por conta de seus erros e crimes), a lei divina (ética absoluta) pune o corpo social (THIBODEAU, 2015, p. 121), e assim o povo é assolado pela praga até a consumação final do sofrimento do rei. A maneira como o protagonista da tragédia representa esses conflitos é perceptível nas próprias falas, como no começo da peça:

ÉDIPO: Sei bem que todos vós sofreis mas vos afirmo / que o sofrimento vosso não supera o meu. / Sofre cada um de vós somente a própria dor; / minha alma todavia chora ao mesmo tempo / pela cidade, por mim mesmo e por vós todos (SÓFOCLES, 2011, p. 19)

Com essas citações e suas inserções nos elementos que compõem uma tragédia pela Poética Aristotélica, Édipo Rei se organiza como uma narrativa no qual o todo é feito por um começo, meio e fim que produzem um efeito atemporal de inevitabilidade. A experiência narrativa dessa tragédia desperta um sentimento de suspense enquanto os eventos se desenrolam. Compaixão e temor são causados por serem essenciais à obra, um efeito procurado pela maneira com a qual as ações trágicas geram novos eventos.

A tensão contínua entre as duas ideias, a de autoridade divina e de poder secular dos homens, conduzem o enredo, com o homem que desvendou o segredo da Esfinge, assim derrotando o divino, também é um rei humano que clama pela ajuda dos deuses, e que se vê em desgraça quando seu destino e a vontade divina são imutáveis (PUCKER, 2016a). O mundo intermédio dos deuses Olímpicos comanda e ordena o mundo, mesmo com as tentativas dos gregos de se sobrepujar as deidades (NIETZSCHE, 1992, p. 37), sendo alegria com o trágico a transposição da sabedoria dionisíaca inconsciente para a linguagem das imagens:

O herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu aniquilamento” (NIETZSCHE, 1992, p. 101).

Desemboca-se o destino do herói trágico para Hegel, no qual o pathos, seu comportamento, leva ao mesmo tempo para a justiça e para a injustiça, e um herói de alta índole se torna culpa pela sua própria eticidade (SZONDI, 2004, p. 42), e o indivíduo trágico colhe os frutos de seus atos (HEGEL, 2004, p. 203). O tema da tragédia é então novamente o divino, como esse se penetra no mundo a partir do agir individual, para cumprir sua necessidade enquanto substância espiritual e fazer se realizar o que é ético (Ibid, 2004, p. 236).

Reforça-se a tensão contínua entre humano e divino no teatro de Sófocles por esse ser antropocêntrico, no sentido de centralizar suas ações em um herói dotado de vontade, no qual sua vontade de agir é livre porém independe tal liberdade em decorrência das consequência; E teosférico, no qual os deuses agem para fazer valer suas vontades, com uma atuação à distância, discursiva por meio de adivinhos e oráculos (BRANDÃO, 1985).

A lógica do trágico é a destruição dos personagens por meio da unilateralidade de seu querer e caráter consistentes, algo que remete a individualidade livre que os gregos tornaram possível para consumação na forma e conteúdo de suas artes clássicas (HEGEL, 2004, p. 239, p. 246).

Isso corresponde a análise de Scheller sobre a tragédia, na qual o conflito que reina nos valores positivos, na qual a realização de uma coisa ou evento de valor altamente positivos também acaba por possibilitar, em seu decorrer, o aniquilamento dessas ações e eventos positivos, assim como do próprio portador do valor positivo - o próprio Édipo - (SZONDI, 2004, p. 73). A tragédia é assim um processo dialético do autoaniquilamento, ou da autoconfirmação por meio desse autoaniquilamento (Ibid, 2004, p. 74).

A dialética da tragédia pode ser observada nas próprias contradições do Ser trágico, na interpretação de Andrade (1985, p. 129), pois essa ambiguidade torna Édipo, a partir dos mesmos atos, “herói e vilão, vítima e carrasco, sábio e ignorante, precavido e insensato”. O movimento dialético histórico também é estrutural na jornada intermediária de Édipo, pois Sófocles incorpora uma série de contradições que seu mito expõe de maneira linear, sendo o protagonista a “consciência que personifica a existência trágica humana e com suas revelações desenrola as soluções particulares que afetam a coletividade” (Ibid, 1985, p. 130).

No âmbito de uma interpretação teosférica, tais contradições refletem o sujeito trágico de Édipo como movido por uma justiça cósmica que busca preservar o equilíbrio das tensões que estruturam seus elementos, enquanto o antropocentrismo remete ao homem em seu estranhamento, não inserido na totalidade, e em razão disso tentar desviar dessa (Ibid, 1985).

Nas interpretações hegelianas, observamos nessa conclusão de Édipo Rei o Conflito Absoluto, estritamente vinculado à totalidade ética mencionada anteriormente: o processo em virtude do qual essa totalidade ética se sacrifica ou se nega ou no seu outro renasce, em seguida, nele mesmo, reprimindo sua própria diferença, lutando contra a sua própria natureza inorgânica e recolhendo-a novamente em seu seio (THIBODEAU, 2015, p. 97). De maneira que o discursos dos deuses, ambíguo e enigmático, diz respeito às leis humanas e divinas mas sempre de maneira não escrita, subterrânea (Ibid, 2015, p. 148), como observamos nesses dois trechos:

ÉDIPO: fui ao oráculo de Delfos mas Apolo / não se dignou de desfazer as minhas dúvidas; / anunciou-me claramente, todavia, / maiores infortúnios, trágicos, terríveis; / eu me uniria um dia à minha própria mãe / e mostraria aos homens descendência impura / depois de assassinar o pai que me deu vida (SÓFOCLES, 2015, p. 57);

Foi Apolo! Foi sim, meu amigo! / Foi Apolo o autor de meus males, / de meus males terríveis; foi ele! / Mas fui eu quem vazou os meus olhos. / Mais ninguém. Fui eu mesmo, o infeliz! / Para que serviriam meus olhos / quando nada me resta de bom / para ver? Para que serviriam? (SÓFOCLES, 2015, p. 87).

As colisões conflitivas geradas ao longo de Édipo Rei são determinadas por uma inconsciência do homem, a vontade do homem está completamente destituída ante a vontade dos deuses. O querer humano e o saber humano do caracter do enredo são irrelevantes, assim como nossos reconhecimentos de que os atos de Édipo são ou não criminosos, pois são efetivados “segundo a determinação dos deuses” (HEGEL, 2004, p. 253). Os conflitos trágicos, bem como seus desdobramentos e encerramentos, serão assim para além das falsas representações de culpa ou inocência, pois Édipo, no objeto aqui destrinchado, será um exemplo de personagem tão culpado quanto inocente. Hegel estipula esse não-lugar de direito quando declara

Se vale a representação de que o homem é culpado apenas quando há para ele uma possibilidade de escolha e ele se decidiu com arbítrio pelo que ele realizou, então as antigas figuras plásticas são inocentes; elas agem a partir deste caráter, deste pathos porque justamente são este caráter, este pathos; isso não é indecisão e escolha. É esta justamente a força dos grandes caracteres, o fato de que não escolhe, e sim são do começo ao fim aquilo que querem e realizam, Eles são o que são, e eternamente isso, e isso é sua grandeza (2004, p. 254).

Édipo Rei se desenvolve e é estruturado como uma obra rendida à uma determinação que justifica o amplo debruçar da filosofia, sobretudo dos estudos estéticos, sob sua influência. Tida como um dos exemplos máximos do trágico, Nietzsche a compreendeu como cabível de ser produzida pelo etéreo metafísico que exacerba o peso da obra (BURNETT, 2012, p. 33), assim como Hegel utilizou a derrocada do personagem grego e sua relação incestuosa para conduzir uma ampla análise referente aos conflitos humanos, a dialética universal-particular e a necessidade histórica do devir da arte (HEGEL, 2004).

Considerações finais sobre o Trágico

Com o uso dessa categorização de partes, elementos e hierarquização delas, a Tragédia, na abordagem Poética de Aristóteles, mostra que Édipo Rei, enquanto obra pertencente a categorização da forma suprema de arte-poética, produz no espectador o que se deseja dela: o assombro, com o medo e a piedade sendo suscitados em quem presencia a peça sendo representada, como mostram alguns trechos de Édipo Rei:

ÉDIPO: já derramei sentidas, copiosas lágrimas. Meu pensamento errou por rumos tortuosos (SÓFOCLES, 2011, p. 19);

ÉDIPO: (sobre o assassino que buscam) bem poderá querer com suas próprias mãos matar-me a mim também (p. 24);

CORO: O povo todo foi contagiado / e já não pode a mente imaginar recurso algum capaz de nos valer! / Não crescem mais os frutos bons da terra; mulheres grávidas não dão à luz, / aliviando-se de suas dores; / sem pausa, como pássaros velozes, / mais rápidas que o fogo impetuoso / as vítimas se precipitam céleres rumo à mansão do deus crepuscular. / Tebas perece com seus habitantes e / sem cuidados, sem serem chorados, / ficam no chão, aos montes, os cadáveres, / expostos, provocando novas mortes (p. 25);

CORO: Todos viram que Édipo era sábio / e houve razões para que fosse amado / por nosso povo. Diante desses fatos / jamais o acusarei de qualquer crime (p. 40);

CORO: Com teu destino por paradigma, / desventurado, mísero Édipo, / julgo impossível que nesta vida / qualquer dos homens seja feliz! (p. 81).

Ao final do enredo, sua estrutura é armada de maneira que, mesmo sem ver, apenas ouvindo o desenrolar dos acontecimentos, aquele que contempla a poesia possa ficar tocado pelo temor, compaixão e piedade para com os personagens. Sendo esse o efeito que Édipo Rei produz em todos nós que ouvimos sua história (ARISTÓTELES, 2015).

Por fim, não é o declínio do herói que consolida e cumpre a tragicidade, mas sim a contradição pelo fato do herói sucumbir no caminho que rumou para fugir de sua ruína. A inevitabilidade configura a experiência fundamental do herói (SZONDI, 2004, p. 89):

ÉDIPO: ninguém detém poder bastante para constranger / os deuses a mudar os seus altos desígnios (SÓFOCLES, 2015, p. 28)

Sendo para Nietzsche (2014, p. 68) a figura mais dolorosa do palco grego, Édipo é destinado ao erro e a miséria, mesmo sendo nobre e sábio, contemplando assim a visão de mundo trágica de Sófocles: “o caráter imerecido do destino, o enigma da vida do homem, o verdadeiramente terrível”. Porém, em seu fim, ainda exerce uma benção mágica e atua beneficamente mesmo após sua morte. O caractere nobre não peca, mesmo que erre, e depois de seu sofrimento e aniquilação, seu caminho de alguma maneira auxilia na construção de um mundo novo melhor (Ibid, 1992, p. 64).

Hegel irá lidar com o término de uma tragédia como a reconciliação do Estado e do indivíduo, na qual ocorre a negação do finito e do particular. Mais do que o indivíduo enquanto protagonista na luta pela liberdade contra o destino e a necessidade absoluta, mas o povo também desempenha papel central, por ser a totalidade popular, a vida ética absoluta, uma divisão entre dois, oposição eterna, que resultará em uma superação suprema. O sacrifício reconciliador de Édipo será a manifestação trágica da vida ética absoluta (THIBODEAU, 2015, p. 104-106). Como ele redige,

O conteúdo verídico do agir trágico é fornecido aos fins, assumidos pelos indivíduos trágicos, pelo círculo das potências por si mesmas legítimas, substanciais no querer humano: o amor familiar aos cônjuges, dos pais, dos filhos, dos irmãos, igualmente a vida do Estado, o patriotismo dos cidadãos, a vontade do dominador; além disso, a existência da igreja, [...] como intervenção ativa e exigência de interesses e relações efetivos (HEGEL, 2004, p. 235-236).

De maneira que,

Édipo Matou o pai, casou com a mãe, gerou filhos no leito conjugal incestuoso e, contudo, ele foi, sem saber e sem querer, enredado neste sacrilégio abominável. O direito da nossa consciência atual, profunda, iria consistir no fato de também não reconhecer estes crimes como os atos do si-mesmo próprio, já que não residiram nem no próprio saber nem no próprio querer (Ibid, 2004, p. 253)

Como abordado anteriormente, o que está em voga no debate trágico em Édipo Rei não é a culpabilidade ou a inocência de Édipo, mas sim como o conflito entre seu caráter elevado e atitudes vis, mesmo que desprovidas de consciência e escolha, movem o direito e a ética universal e particular. O atentado contra os deuses, e ao mesmo tempo promovido por esses, não é evitável, inclusive sua inevitabilidade não é desejada, justamente para destacar que o que não se escolhe ainda faz parte do que o personagem (caracter) é, e ele o será do começo ao fim de sua trajetória, com suas realizações sendo tão grandiosas quanto seus erros não-preveníveis (Ibid, 2004, p. 254).

E o que é aniquilado e abolido ao final da ação trágica é a particularidade que rompeu a universalidade, ao ofender e negar a potência divina, as leis dos deuses (THIBODEAU, 2015, p. 186), algo premeditado desde o início de Édipo Rei, nas palavras de Creonte:

Teremos de banir daqui um ser impuro / ou expiar morte com morte, pois há sangue / causando enormes males à nossa cidade (SÓFOCLES, 2015, p. 21).

Estudar a Poética de Aristóteles mostra a projeção e o impacto de tal obra na história das artes, bem como diversos filósofos, acadêmicos e pensadores buscaram compreender e expandir o que foi iniciado na Grécia Clássica. Hegel e Nietzsche foram os dois filósofos selecionados para esta pesquisa, e ambos mostraram repetições e concordâncias sobre o como e modos de se fazer uma obra poética, aderindo ao discurso Aristotélico como base canônica. Nesta jornada pelo trágico, a peça Édipo Rei se encaixou como um perfeito exemplo de tragédia, com sua estrutura narrativa sendo analisada com esse arcabouço teórico para ilustrar como a obra de Sófocles se enquadra em todos os quesitos para ser classificado enquanto tragédia grega.

Contudo, as interpretações sobre a peça em si diferem. A riqueza de debates proporcionados pelas abordagens de Hegel e Nietzsche mostram como, independente de Édipo Rei ser um perfeito exemplo de tragédia, diversos elementos, recursos narrativos, representações e discursos podem gerar discussões divergentes, muitas vezes contraditórias, mas principalmente dialógicas.

Victor Finkler Lachowski - PPGCOM / Universidade Federal do Paraná. Email: victorlachowski@hotmail.com.

  1. O mensageiro encontrou Édipo criança abandonado e vai chamar o pastor que o entregou a criança e sabe quem era a mãe de Édipo.
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Referências

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  8. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética - volume I. 2ª ed. São Paulo - SP: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
  9. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética - volume IV. 1ª ed. São Paulo - SP: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
  10. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia: ou Helenismo e Pessimismo. tradução, notas e posfácio de J.Guinsburg. 2ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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  13. PINHEIRO, Paulo. Introdução. In: ARISTÓTELES. Poética. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 7-33.
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  19. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
  20. THIBODEAU, Martin. Hegel e a tragédia grega. 1ª ed. São Paulo-SP: É Realizações, 2015.

Recebido em: 26-mar-2023
Aceito em: 22-ago-2023

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