Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2023, v. 13: e15309.

SELHORST, Lucas Alves. Sentidos de língua inglesa na Base Nacional Comum Curricular e no currículo base do território catarinense. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2023, v. 13, e15309.

Sentidos de língua inglesa na Base Nacional Comum Curricular e no currículo base do território catarinense

Senses of English Language tn the Common National Curriculum Base and in the base Curriculum of the territory of Santa Catarina

Lucas Alves Selhorst

Resumo: Partindo de reflexões trazidas por Haraway (2009) e Foucault (1996) acerca da educação e tendo como base teórica e metodológica a Análise do Discurso materialista, esse artigo faz uma análise da forma como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Currículo Base do Território Catarinense (CBTC) descrevem a língua inglesa. Deste modo, o objetivo dessa pesquisa é entender os sentidos de língua inglesa para esses documentos. Para isso, se utiliza trechos dos textos introdutórios ao componente curricular Língua Inglesa para a etapa do Ensino Fundamental de ambos os documentos. Pode-se perceber que a BNCC tenta justificar a inclusão da língua inglesa como um componente base dos currículos de todo o país a colocando em um patamar diferente de outras línguas: ela não é uma língua estrangeira; para a BNCC, se trata de uma língua franca, difundida na sociedade brasileira. O CBTC, embora siga em grande parte a BNCC, a contradiz em alguns sentidos e estabelece alguns pontos de divergência com ela.

Palavras-chave: Currículo Base do Território Catarinense. Análise do Discurso. Ensino-aprendizagem de língua inglesa.

Abstract: Based on reflections brought by Haraway (2009) and Foucault (1996) about education and having materialist Discourse Analysis as a theoretical and methodological basis, this article analyzes how the National Common Curricular Base (BNCC) and the Base Curriculum of the Territory of Santa Catarina (CBTC) describe the English language. Thus, the objective of this research is to understand the senses of the English language for these documents. For this, excerpts from the introductory texts to the English Language curricular component for the Elementary School stage of both documents are used. It can be seen that the BNCC tries to justify the inclusion of the English language as a basic component of curricula across the country, placing it on a different level from other languages: it is not a foreign language; for the BNCC, it is a lingua franca, widespread in Brazilian society. The CBTC, although largely following the BNCC, contradicts the BNCC in some ways and establishes some points of disagreement with it.

Keywords: Base Curriculum of the Territory of Santa Catarina. Discourse Analysis. English language teaching and learning.

1 Introdução[1]

Haraway (2009), em uma reflexão acerca do lugar das mulheres no que descreve como um circuito integrado de localizações sociais (Casa, Mercado, Local de Trabalho Assalariado, Estado, Escola, Hospital-Clínica e Igreja), chama a atenção para a escola em seus

[...] vínculos aprofundados entre as necessidades do capital high-tech e a educação pública em todos os níveis, diferenciados por raça, classe e gênero; as classes executivas envolvidas na reforma educacional e no refinanciamento, às custas das remanescentes estruturas educacionais democráticas e progressistas para as crianças e os/as professores/as; educação para a ignorância em massa e a repressão, em uma cultura militarizada e tecnocrática; crescimento dos cultos místicos anticientíficos em movimentos dissidentes e políticos radicais; persistência de um relativo analfabetismo científico entre mulheres brancas e pessoas de cor; crescente orientação industrial da educação (especialmente a educação superior), sob a liderança das 80 multinacionais da produção baseada na ciência (particularmente as companhias que dependem da biotecnologia e da eletrônica); elites altamente educadas e numerosas, em uma sociedade progressivamente bimodal (HARAWAY, 2009, p. 79-80).

Partindo dessas noções de sistema de educação/ensino de Foucault (1996) e das diversas questões que rodeiam a reforma educacional, como explica Haraway (2009), pretende-se aqui olhar para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e para o Currículo Base do Território Catarinense (CBTC), considerando-as como peças relevantes no contexto educacional catarinense.

Como recorte para essa análise, se selecionou apenas os textos que apresentam o componente curricular Língua Inglesa (anterior a parte que descreve as unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades), que está dentro da área de Linguagens, na etapa do Ensino Fundamental de ambos os documentos. Ao olhar especificamente para a língua inglesa na BNCC e no CBTC, nosso objetivo é analisar os sentidos[2] de língua inglesa para os documentos em questão, e a pergunta que norteia esse trabalho é: que língua é essa?[3]

2 Fundamentação teórica e metodológica

A partir da Análise do Discurso materialista, podemos afirmar, conforme Orlandi (1998), que a língua funciona ideologicamente e se inscreve na história para significar. O espaço da interpretação, por sua vez, é, segundo Orlandi (1996), o espaço do possível, da falha, do efeito metafórico, do equívoco, ou seja, do trabalho da história e do significante, isto é, do trabalho do sujeito.

Nietzsche (2001, p. 11) diz que “[...] as diferentes línguas, quando comparadas, mostram que as palavras nunca alcançam a verdade, nem a expressão adequada [...]”. Pensando na contenção dos sentidos, Pêcheux (1990) explica que

[...] a particularidade da revolução burguesa foi a de tender a absorver as diferenças rompendo as barreiras: ela universalizou as relações jurídicas no momento em que se universalizava a circulação do dinheiro, das mercadorias... e dos trabalhadores livres. Para tornar-se cidadãos, os sujeitos deviam, portanto, se libertar dos particularismos históricos, cujo imediatismo visível os entravava: seus costumes locais, suas concepções ancestrais, seus “preconceitos”... e sua língua materna: a “questão linguística” chega politicamente à ordem do dia, e desemboca na alfabetização, no aprendizado e na utilização da língua nacional. O resultado do que acabamos de lembrar brevemente consiste em uma mudança estrutural na forma das lutas ideológicas: não mais o choque de dois mundos, separados pela barreira das línguas, mas um confronto estratégico em um só mundo, no terreno de uma só língua, tendencialmente Una e Indivisível, como a República (PÊCHEUX, 1990, p. 10).

Lagazzi (2013) afirma que essa língua da qual Pêcheux (1990) trata, na mudança da sociedade feudal para a sociedade burguesa, para além de ser, de maneira mais geral, a língua de uma nação, é a unidade de sentidos que coage as relações sociais em um imaginário de evidências e verdades e inscreve o sujeito em sua forma capitalista (sujeito-de-direito).

No entanto, atualmente, no chamado mundo globalizado, diferentes línguas se relacionam com mais frequência e com mais facilidade, então, parece surgir a necessidade de, assim como no âmbito nacional, se estabelecer uma única língua como língua global. Esse status de língua global é frequentemente atribuído à língua inglesa e, conforme Grigoletto (2013), isso se deve tanto à extensão do poder colonial britânico, cujo ápice se deu no final do século XIX, quanto à hegemonia dos Estados Unidos como poder econômico no século XX.

Grigoletto (2013) também explica que não há unanimidade acerca da classificação da língua inglesa como uma língua global, mas, pelo contrário, há muitas discussões em torno do lugar da língua inglesa na sociedade brasileira, inclusive quando se trata da abordagem que deve ser dada no processo de ensino-aprendizagem.

Essa indefinição também pode ser percebida nos documentos oficiais: os Parâmetros Curriculares Nacionais, em Brasil (1998), caracterizam o inglês como uma língua estrangeira hegemônica por sua posição no campo dos negócios, na cultura, nas relações acadêmicas internacionais, e a caracterizam como a língua do poder econômico.

Além disso, os PCN’s dizem que é necessário abordar questões como poder e desigualdade para desenvolver nos estudantes uma consciência crítica, pois não adiantaria aprender uma língua estrangeira para serem apenas consumidores passivos de conhecimentos e cultura. Os alunos devem serem capazes de criar, isto é, serem ativos na transformação do mundo (BRASIL, 1998). No entanto, os documentos mais recentes, mais especificamente os que analisamos aqui, BNCC e CBTC, lidam de outra forma com a noção de inglês como língua estrangeira, dando preferência às nomeações língua franca e língua global.

Pensando nas definições que são dadas às línguas, Coracini (2007, p. 48) diz que “não há, pois, língua de partida, como não há origem, para sempre perdida, para sempre adiada. Há apenas línguas de chegada ou por chegar, há apenas a língua do outro, uma frase prometida, um sujeito à deriva...”.

Enquanto os documentos oficiais, como a BNCC e os PCN’s (BRASIL, 2017 e 1998), buscam, normalmente, atribuir um sentido único às línguas, pode-se dizer que uma língua produz diferentes sentidos e para diferentes sujeitos produzirá ainda outros que não necessariamente são excludentes. Neste sentido, Coracini (2007) explica que podemos pensar que toda língua é estrangeira, na medida em que provoca em nós estranhamentos, e toda língua é materna, na medida em que ela se faz ninho, lar, lugar de repouso e de aconchego. Ou seja, conforme a autora, podemos dizer que toda língua é materna e estrangeira ao mesmo tempo.

Essa língua que produz sentidos, estranhamentos ou identificações, a depender das condições supracitadas, não pode, portanto, segundo Orlandi (2013), tal qual o objeto da Análise de Discurso, ser considerada apenas como um sistema abstrato, mas como uma língua no mundo, significando, sendo falada por sujeitos, considerada em sua relação com a ideologia, isto é, “compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos” (ORLANDI, 2013, p. 17).

Sabemos que esses sentidos estão sempre atravessados/constituídos pela ideologia. Olhar para a ideologia da/na língua é indispensável, já que, como afirma Volóchinov (2018, p. 181), “a língua no processo de sua realização prática não pode ser separada do seu conteúdo ideológico ou cotidiano [...]”. Para o autor, um dos maiores erros do objetivismo abstrato é justamente a ruptura entre a língua e o seu conteúdo ideológico.

Pêcheux (1995) diz que a língua pode, por exemplo, ser a mesma para o revolucionário e para o reacionário, no entanto, o discurso desses personagens não será o mesmo. Ou seja, “a língua se apresenta como a base comum de processos discursivos diferentes, que estão compreendidos nela na medida em que [...] os processos ideológicos simulam os processos científicos [...]” (PÊCHEUX, 1995, p. 91). Desta forma, para Pêcheux (1995, p. 92), “a língua se traduz pelo fato de que todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes”.

Deve-se dizer que a ideologia, que pode ter diferentes sentidos, quando tomada discursivamente,

[...] não se define como conjunto de representações, nem muito menos como ocultação da realidade. Ela é uma prática significativa. Necessidade da interpretação, a ideologia não é consciente: ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique. O sujeito por sua vez, é lugar, historicamente (interdiscurso) constituído de significação (ORLANDI, 2007, p. 48, grifos nossos).

Henry (1992) corrobora dizendo que a língua não se limita à atividade individual da fala, mas pelo contrário, sempre a ultrapassa, de modo que nenhuma fala, independente do seu conteúdo, é propriamente a fala de um indivíduo, pois todos os enunciados estão sempre atravessados pelo já dito ou pelo já escutado.

2.1 Ensino-aprendizagem de língua inglesa no contexto brasileiro atual

Com as mudanças mais recentes que definem a língua inglesa como a língua adicional obrigatória, conforme análise dos documentos oficiais feita por Pfeiffer e Grigoletto (2018), os

[...] significantes que apontam para a pluralidade, diversidade e abertura às diferenças culturais no contato com línguas estrangeiras têm seus sentidos restringidos à relação com a língua inglesa, reforçando, assim, as equivocidades e contradições dessa política educacional de viés utilitarista dentro de uma formação ideológica neoliberal que se coaduna com aquilo que faz funcionar a Reforma do Ensino Médio (PFEIFFER; GRIGOLETTO, 2018, p. 19).

A formação ideológica neoliberal citada por Pfeiffer e Grigoletto (2018) baliza as atuais reformas educacionais, e, deste modo, pode ser entendida, atualmente, como explica Althusser (1996), como a ideologia dominante. Para Althusser (1996), a escola, como um aparelho ideológico de estado (AIE), quando ensina, faz de modo a assegurar a sujeição à ideologia dominante.

Althusser (1996) explica e exemplifica esse funcionamento da escola como aparelho ideológico de estado a partir do ensino-aprendizagem da língua francesa. Ele diz que se aprende também, além de regras de moral, consciência cívica e profissional a “‘falar um francês apropriado’, a ‘redigir’ direito, isto é, na verdade (para os futuros capitalistas e seus servidores), a ‘comandar’ de forma adequada, ou seja, (idealmente) a ‘dirigir-se aos trabalhadores’ da maneira correta etc.” (ALTHUSSER, 1996, p. 108).

Ao analisar documentos de orientação curricular da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, produzidos de 2015 a 2019, Grigoletto e Fortes (2020, p. 54) perceberam que “[...] o sujeito de direito(s), vinculado ao Estado democrático da nossa formação social capitalista, constitui a base sobre a qual o ensino e as concepções de língua se sustentam [...]”. As autoras concluem que no Brasil a cidadania não está garantida, nem construída historicamente, e, por isso, cria-se uma ausência que faz com que a escola seja colocada nesse lugar de incumbir-se com a tentativa de promover a cidadania, e para além, no caso específico do ensino-aprendizagem de inglês, com a adequação do sujeito aprendiz ao mundo globalizado como promessa da inclusão pela “cidadania global”.

Para Leffa (2012) e Uphoff (2008), o ensino-aprendizagem de inglês no Brasil ainda reproduz práticas advindas do ensino de línguas mortas, inclusive a utilização de métodos ultrapassados, como o método da tradução e gramática, que são incapazes de dar conta das novas demandas sociais e educacionais.

Diversos autores, como Furlanetto (2019), Kumaravadivelu (2001), Leffa (2013) e Sanches (2013), defendem que o ensino-aprendizagem de inglês se inscreva no pós-método, isto é, que não seja definido um método específico, mas que se considere as necessidades dos estudantes, bem como o contexto que estão inseridos, sem se limitar a um único jeito de ensinar, mas que sensível aos alunos, sempre se pense e se atualize as práticas.

Finardi e Porcino (2014) destacam que, atualmente, o processo de ensino-aprendizagem de inglês não pode ser desassociado das tecnologias, e que “mais do que nunca, devemos estar preparados para lidar com estas duas linguagens (tecnologia e inglês), tão indispensáveis para exercitarmos nossa cidadania no mundo globalizado, que também é digital” (FINARDI; PORCINO, 2014, p. 271).

3 O que a BNCC diz da língua inglesa e o que a Língua Inglesa[4] diz da BNCC

Para contextualizar a discussão é importante pontuar que a BNCC se descreve como “um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 7).

Também deve-se dizer que a BNCC descreve seus fundamentos pedagógicos como baseados no desenvolvimento de competências, e diz que

[...] É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (LLECE, na sigla em espanhol). (BRASIL, 2017, p. 13).

É importante perceber, como pode ser lido na citação subsequente, que a BNCC estabelece uma relação com organizações internacionais, e consequentemente com as avaliações que essas organizações coordenam, ao ponto de se fundamentar em torno de parâmetros dados por elas, como também destaca Silva (2018).

Dito isso, voltando-se para o texto introdutório da Língua Inglesa, antes de dizer o que a língua inglesa é, a BNCC diz, segundo suas[5] conclusões, o que ela não é: uma língua estrangeira. Para a BNCC, esse conceito é criticado por ter um viés eurocêntrico e não atender mais as perspectivas de compreensão de uma língua que se miscigenou e viralizou (BRASIL, 2017).

Essa imagem de língua viralizada/miscigenada é o argumento para que a língua inglesa tenha sido incluída na BNCC, se estabelecendo como a língua adicional obrigatória a ser aprendida em todas as escolas do Brasil. Entretanto, pode-se questionar o quanto essa língua está dada deste modo no país, e o quanto é ou não estrangeira nas diferentes realidades, já que a Base estabelece o “essencial” para os currículos dessas diferentes realidades, dos grandes centros aos rincões.

Em seguida, a BNCC apresenta maneiras que considera mais adequadas para chamar a língua inglesa:

Outras terminologias, mais recentemente propostas, também provocam um intenso debate no campo, tais como inglês como língua internacional, como língua global, como língua adicional, como língua franca, dentre outras. Em que pese as diferenças entre uma terminologia e outra, suas ênfases, pontos de contato e eventuais sobreposições, o tratamento dado ao componente na BNCC prioriza o foco da função social e política do inglês e, nesse sentido, passa a tratá-la em seu status de língua franca [...] (BRASIL, 2017, p. 241).

A BNCC persegue uma ideia de globalização na qual a língua inglesa é colocada como uma língua franca/global, enquanto a noção de língua estrangeira é posta como inadequada por ser ultrapassada e eurocêntrica. Porém, deve-se pensar: um documento normativo pode definir os sentidos de uma língua para todos os estudantes de um país (do tamanho e da diversidade do Brasil)?

A BNCC segue dizendo que “nessa proposta, a língua inglesa não é mais aquela do “estrangeiro”, oriundo de países hegemônicos, cujos falantes servem de modelo a ser seguido, nem tampouco trata-se de uma variante da língua inglesa” (BRASIL, 2017, p. 241). Deste modo, reforça a oposição à terminologia “língua estrangeira”.

Em seguida, o documento afirma que “o tratamento do inglês como língua franca o desvincula da noção de pertencimento a um determinado território e, consequentemente, a culturas típicas de comunidades específicas, legitimando os usos da língua inglesa em seus contextos locais” (BRASIL, 2017, p. 242). Assim, cria-se uma ideia de que para que o contexto local seja legitimado, deve-se desconsiderar a noção de pertencimento da língua inglesa a determinados locais, e que isso se daria pela concepção de língua franca.

No entanto, podemos pensar em como conciliar esse não pertencimento e em uma ideia de língua que pertence a todos os lugares com o fato de que a língua não é usada em todos os locais da mesma forma e que nem mesmo está difundida em determinados lugares; bem como com as ligações da língua com diversas culturas, forjadas ao longo de processos de colonização e domínios de territórios, que não se comparam com as ligações da língua com o Brasil.

Ao reconhecer, na BNCC, manobras para assumir e para negar determinadas posições, pode-se voltar a Foucault quando explica que

[...] em escala muito mais ampla, é preciso reconhecer grandes planos no que poderíamos denominar a apropriação social dos discursos. Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distancia, pelas oposições e lutas sociais (FOUCAULT, 1996, p. 43 e 44).

Com isso, destacamos o seguinte trecho, de quando a Base diz tratar da língua inglesa enquanto língua franca: “uma língua que se materializa em usos híbridos, marcada pela fluidez e que se abre para a invenção de novas formas de dizer, impulsionada por falantes pluri/multilíngues e suas características multiculturais –, a língua inglesa torna-se um bem simbólico para falantes do mundo todo (BRASIL, 2017, p. 242)”.

Percebe-se que há uma certa romantização da língua. Mais uma vez a BNCC produz um sentido de que precisa justificar o fato dessa língua e não outra ser a segunda língua obrigatória a ser ensinada em todas as escolas do Brasil, e por isso apresenta características que não são exclusivas à língua inglesa, mas o documento em questão faz parecer em seu jogo argumentativo. Quer dizer, dentre outras questões, podemos destacar: a língua inglesa é um bem simbólico para falantes do mundo todo? Alguma língua é um bem simbólico para falantes do mundo todo? Alguma língua não é um bem simbólico? Alguma língua não se materializa em usos híbridos? Alguma língua não é marcada pela fluidez? Alguma língua não se abre para novas formas de dizer? Essas características realmente distinguem a língua inglesa de outras?

4 A língua inglesa no CBTC

No CBTC, o título do texto introdutório ao componente curricular da língua inglesa é: “Língua inglesa como raciocínio, reflexão e potencialização do senso crítico”. Neste texto, o documento afirma que:

Em se tratando de mundo contemporâneo, em que as tecnologias aproximam povos e culturas, o domínio da língua inglesa, na qualidade de língua franca [...], com características plurais e multiculturais e, portanto, dissociada de território específico, instiga a inclusão social a partir de uma educação linguística orientada para a interculturalidade [...]” (SANTA CATARINA, 2019, p. 305, grifo meu).

O CBTC usa a palavra domínio para descrever a língua inglesa no mundo contemporâneo. Domínio dá um sentido de lugar de destaque, mas de um lugar ocupado por dominação, por colonização. Deve-se perceber que o CBTC é orientado pela BNCC, e que tal qual a BNCC, apresenta uma perspectiva de inglês como língua franca e desvinculada de territórios específicos. No entanto, no CBTC surgem sentidos diferentes, ao apresentar uma língua que exerce um domínio, por exemplo, já que a BNCC em seu texto introdutório se limita a dizer que se trata de uma língua que viralizou.

No fim do texto introdutório, o CBTC diz que:

Ao focalizar os conceitos e competências específicas do componente curricular que, ao nosso ver, devem articular o processo formativo do estudante quanto ao uso da língua inglesa, cabe a ressalva de que, em nossa compreensão, o conteúdo aqui elaborado contempla a educação em linguagens de modo geral, o que implica a importância de línguas estrangeiras/adicionais de modo geral, e não somente do inglês, em respeito às diferentes articulações que cada município tem decorrente de seu processo histórico, cultural e social (SANTA CATARINA, 2019, p. 307).

Destacamos nesse trecho final que o CBTC parece colocar um contraponto em relação à BNCC. Isto é, o documento destaca a importância de línguas estrangeiras/adicionais de modo geral, e não somente do inglês. Esse sentido de oposição fica muito explícito pelas expressões cabe a ressalva, ao nosso ver e em nossa compreensão. Ou seja, é como se o CBTC precisasse por seguidas vezes afirmar que essa é uma posição própria, diferente da BNCC.

Com isso, acaba havendo uma contradição entre a língua franca que aparece no início do texto e possui domínio independente do território e a língua do fim do texto, que é mais uma estrangeira/adicional entre outras e que precisa ser considerada nessa relação entre diferentes línguas.

Da mesma forma, dizer que a questão das línguas estrangeiras/adicionais deve ser pensada em cada município individualmente, por cada um possuir processos históricos, culturais e sociais próprios, também aparece no texto como uma crítica ao apagamento das demais línguas da BNCC e da determinação do inglês como língua obrigatória em todos os municípios do Brasil, independente desses processos citados.

Quer dizer, embora o CBTC siga a BNCC e reafirme diversas posições, também há uma contradição e uma crítica que “escapa” no último parágrafo do texto introdutório. Essas contradições falam sobre a dificuldade de se definir os sentidos de uma língua para todo um país. Certamente esses documentos ganhariam muito se assumissem essas contradições, ou nas palavras de Pêcheux (1994), considerassem a plurivocidade dos sentidos, e se desprendessem da busca pela apreensão de um sentido único.

5 Conclusão

A partir das questões postas por Foucault (1996), podemos refletir sobre a ligação entre um dos primeiros aspectos tratados aqui, a presença de organizações internacionais, como a OCDE, na BNCC e os grandes planos para a educação, em sua relação, como trazido por Haraway (2009), com a reforma e com o refinanciamento da educação. Por fim, reforça-se que a forma como a BNCC trata a língua inglesa e reduz o ensino-aprendizagem de uma segunda língua a ela deve ser objeto de atenção, já que conforme Pfeiffer, Silva e Petri (2019, p. 141) “se trata de políticas de ensino que afetam políticas linguísticas no que toca as relações entre línguas”.

Entendemos que o CBTC precise seguir orientações da BNCC, no entanto, é positivo que haja contradições e “furos” na busca de um sentido único para a língua inglesa. Perceber esse movimento de uma orientação nacional para uma orientação estadual nos faz refletir acerca do papel desses documentos normativos, bem como nos perguntar como essas orientações são recebidas por cada município, por cada escola, por cada professor e por cada aluno.

Aqui nos limitamos a analisar os textos introdutórios dos dois documentos, e com esse recorte percebemos alguns sentidos sobre a língua inglesa. No entanto, podemos compreender melhor esses sentidos a partir de pesquisas que demandem de um percurso maior, analisando e comparando os textos completo desses documentos (e de outros, como currículos de outros estados ou municípios), bem como as práticas docentes e discentes.

Lucas Alves Selhorst - Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul. Email: lucasselh@hotmail.com

Notas

  1. Este trabalho faz parte de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul.
  2. Como explica Orlandi (2013), a Análise do Discurso - AD visa compreender como um objeto simbólico produz sentidos, isto é, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Como para a AD a linguagem não é transparente, isto é, os significantes não estão colados aos significados, quer dizer, não possuem sentidos próprios ou literais, pensamos, a partir dessa inscrição teórica, na produção de sentidos conjugando a língua com a história. Por isso, quando falamos de “sentidos” podemos sempre entender como “efeitos de sentidos”.
  3. Essa pergunta tem sido feita por diferentes pesquisadores acerca de diferentes línguas, como por Gesser (2009) em Libras, que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda e por Pfeiffer, Silva e Petri (2019) em Língua escolar: Afinal, que língua é essa?
  4. As letras maiúsculas fazem menção ao texto “Língua Inglesa” da BNCC, isto é, ao componente curricular, e não à língua em si.
  5. Por suas pode-se perguntar de quem, pois embora tenham sido feitas discussões com os atores do processo educativo, a BNCC passou por diferentes versões, nas quais apagamentos foram sendo feitos. Além da presença, já mencionada aqui, de organizações internacionais, outras forças pesaram sobre a elaboração da Base, que em sua versão final, no governo de Michel Temer, o qual atendia/servia a demandas conservadoras, não continha mais, por exemplo, as questões de gênero e sexualidade provenientes das discussões e presentes nas versões anteriores, como explica Souza Junior (2018).
  6. Voltar

Referências

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Recebido em: 28-set-2022
Aceito em: 21-jul-2023

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