Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2022, v. 12: e13732.

CRUZ, Ticiane. Paisagens do medo: uma análise sobre o medo no Romantismo a partir de elementos imagéticos em Frankenstein Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2022, v. 12, e13732.

Paisagens do medo: uma análise sobre o medo no Romantismo a partir de elementos imagéticos em Frankenstein

Landscapes of fear: an analysis on the fear in Romanticism considering imagistic elements in Frankenstein

Ticiane Cruz

Resumo:O presente estudo se propõe a analisar algumas referências imagísticas evocadas por Mary Shelley em Frankenstein e suas possíveis conexões com o medo no período sociocultural do Romantismo e sua representação visual em adaptações cinematográficas. Considera-se que entender as representações imagísticas de uma obra tão importante para a literatura mundial pode ajudar a enriquecer a reflexão sobre o período literário em questão, além de contribuir para instigar as discussões entre texto e imagem, paisagem e literatura, livro e adaptação cinematográfica.

Palavras-chave: Paisagem. Medo. Romantismo.

Abstract: This study aims to analyze some imagistic references evoked by Mary Shelley in Frankenstein and their possible connections with fear in the sociocultural period of Romanticism and its visual representation in movie adaptations. It is considered that understanding the imagistic representations of such an important work for world literature can help enrich the reflection on the literary period in question, as well as contribute to instigate discussions between text and image, landscape and literature, book and movie adaptation.

Keywords:Landscape. Fear. Romanticism.

Introdução

O romance Frankenstein de Mary Shelley foi publicado pela primeira vez em 1818. Com muitas adaptações para o cinema, para os quadrinhos e com diversas edições ilustradas em todo o mundo, a obra tem um forte apelo visual e uma estética particular, fazendo com que sua história esteja presente no imaginário das pessoas que, muitas vezes, se percebem íntimos do romance sem que necessariamente o tenham lido na íntegra. Em The Cambridge Companion to Frankenstein, Hoeveler (2016) afirma que o fascínio exercido pela obra parece residir no sucesso da autora em captar o espírito da época, combinando em seu texto angústia existencial com as aspirações científicas de então.

Frankenstein é considerada uma obra gótica do Romantismo, período literário característico dos séculos XVIII e XIX. Nessa época, a Europa passava por transformações socioculturais marcadas, sobretudo, pelas influências da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. O Romantismo é a expressão de um tempo em que a humanidade sofreu os impactos de grandes mudanças na paisagem com um profundo efeito na percepção subjetiva sobre a vida que reverberou na literatura. Para Carpeaux (2008), a Revolução Francesa repercutiu de forma contundente em toda a Europa e continente americano, trazendo à tona um sentimento transbordante de emoção, muito característico da literatura feita na época que assumia “como única fonte de inspiração o subjetivismo emocional” (p.1366). Esse subjetivismo, segundo o autor, fez surgir diferentes tipos românticos.

Como uma das vertentes do Romantismo, o gótico explorava o medo e as emoções relegadas a segundo plano por sua associação com o sombrio. Nesse sentido, o geógrafo humanista Yu-Fu Tuan, com suas reflexões sobre o medo no livro Paisagens do medo, pode trazer contribuições importantes para a análise das implicações do cenário que se impôs na época e seus reflexos no romance aqui citado.

O objetivo deste estudo, portanto, é fazer uma análise crítica de Frankenstein de Mary Shelley, buscando refletir sobre o medo no período do Romantismo e os elementos imagéticos evocados na obra textual, fazendo referência aos estudos de Tuan (2005) sobre esse sentimento ao longo da história. Para tanto, serão trazidos para a discussão os conceitos de paisagem do autor, abordando como o contexto da época pode ter influenciado a construção do medo na obra. De acordo com Tuan (2005, p.12), o medo é um sentimento presente na mente que “exceto em casos patológicos, tem origem em circunstâncias externas que são realmente ameaçadoras. Paisagem (...) é uma construção da mente, assim como uma entidade física mensurável”. Para o autor, então, o termo “paisagens do medo” abarcaria, assim, aspectos psicológicos e ambientais. Essa relação entre homem e realidade geográfica é discutida por Dardel (2015) ao ressaltar o tom afetivo da paisagem, pois ela “coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra” (p.31). Assim, a paisagem não é “em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base de seu ser social (DARDEL, 2015, p.32).

Em Frankenstein, Mary Shelley explora aspectos emocionais de seus personagens utilizando, muitas vezes, a paisagem como metáfora para o estado psicológico deles, deixando transparecer essa ligação intrínseca proposta por Dardel (2015). Mas, então, quais seriam as imagens evocadas por Mary Shelley que fazem do seu texto tão expressivo para as artes visuais? Quais imagens evocam o medo nessa obra de horror gótico e quais são as suas relações com as transformações socioculturais do período romântico? O medo como matéria-prima para Frankenstein reflete de alguma forma um sentimento coletivo da época? Refletir sobre essas questões é o objetivo principal desta análise.

Com inspiração na pesquisa de Spurgeon (2006) sobre a imagística nas obras de Shakespeare e sob à luz dos estudos de semiótica de Peirce (apud PIGNATARI, 1974), para esta análise serão abordadas metáforas, símiles e imagens que evoquem referências visuais associadas ao medo. Contudo, ressalta-se que o presente estudo não tem a pretensão de analisar todo o arcabouço imagístico da obra de Frankenstein, mas apenas levantar a questão para futuras pesquisas que tenham como intenção o aprofundamento no tema. A edição analisada será Frankenstein ou o Prometeu Moderno, com tradução de Christian Schwartz do selo Penguin Companhia, que se baseia na última edição revista pela autora. Também serão integrados à discussão os documentários da série The Romantics da BBC e as adaptações para o cinema Frankenstein de James Whale, de 1931, e Victor Frankenstein, de 2015, de Paul McGuigan. Essas duas versões foram escolhidas por serem, respectivamente, a primeira e a mais recente adaptação para o cinema da obra, o que pode contribuir para traçar um panorama interessante da perspectiva do medo no Romantismo a partir de sua representação imagética em diferentes contextos históricos.

1. Frankenstein e a Terra

“Já me encontro bem ao norte de Londres; e, enquanto caminho pelas ruas de Petersburgo, sinto no rosto a brisa gelada que me revigora a coragem e me enche de prazer. Entendes essa sensação?” (SHELLEY, 2015, p.105). Na abertura do romance, a carta de um viajante para sua irmã com relatos de suas aventuras pelo mar dá aos leitores o tom da história e que contribuiria para a formação de sua imagística: a relação entre o homem e a paisagem. Muitas vezes associada ao espaço geográfico que circunda o homem, a paisagem, para Dardel (2015), é mais do que um ambiente terrestre. Ela é um “conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma ‘impressão’ que une todos os elementos” (p.30). A paisagem, então, é “um horizonte. Não uma linha fixa, mas um movimento, um impulso” (p.31). Assim, a paisagem é o que está no ambiente externo, mas sua existência para o ser humano só acontece na relação visceral estabelecida com ela, quando o ser se lança na Terra, pois a Terra seria uma “presença atraente ou estranha, e, no entanto, lúcida” e, assim, uma relação vital com seu corpo é estabelecida, uma conexão “que afeta a carne e o sangue” (DARDEL, 2015, p.31). A paisagem também é o lugar do tempo e da história, pois “há, na paisagem, uma fisionomia, um olhar, uma escuta, como uma expectativa, uma lembrança” (DARDEL, 2015, p.33). Essa paisagem, portanto, lugar de memória, recorte de um momento vivido, extensão geográfica do corpo do ser humano e de seus afetos, aparece na obra de Mary Shelley revelando nuances de seus personagens contribuindo para a construção do imaginário de horror gótico associado à Frankenstein.

O romance gótico inspira o medo. O medo é um sentimento comum aos seres humanos e aos animais. Para Tuan (2005), o medo é necessário para a sobrevivência, pois desperta o alerta de perigo diante de uma ameaça. Esse sentimento é expresso por indivíduos de uma mesma espécie frente a situações diferentes. Para o ser humano, a imaginação intensifica os tipos e a força do medo. Tuan (2005) estabelece uma relação entre a paisagem e o medo e afirma que as construções humanas tanto no campo mental quanto no material fazem parte dessa paisagem que se apresenta como “infinitas manifestações das forças do caos, naturais e humanas” (p.12). Essas construções seriam, então, uma possibilidade de reação frente ao inesperado, ao incerto, como uma tentativa de manter a mente tranquila diante do que não se conhece e que pode ser um risco.

Entre os séculos XVIII e XIX a Europa e todo o continente americano sofreram um forte impacto emocional com as transformações reivindicadas pela Revolução Francesa. Para Carpeaux (2008), a onda de revoluções ocorridas na França entre 1789 e 1848 despertou de modo avassalador a emoção dos literatos da época, que reagiram ao utilitarismo limitante da sociedade burguesa e se posicionaram criando uma literatura de cunho ideológico. Assim, o movimento literário conhecido como romantismo servia-se de elementos do pré-romantismo e “reagiu contra a Revolução e o classicismo revivificado por ela; defendeu-se contra o objetivismo racionalista da burguesia, pregando como única fonte de inspiração o subjetivismo emocional” (p.1366). Esse subjetivismo foi responsável pela pluralidade expressiva desse movimento que se ramificou em diversos tipos. E, ainda que o romantismo se proclamasse nacionalista em essência, ultrapassou fronteiras literárias e se internacionalizou de forma significativa.

A série de documentários The Romantics produzida pela BBC revela o cenário que estabeleceu as bases para o desenvolvimento desse período literário. O episódio Liberty mostra como as ideias de Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau a favor da liberdade individual e contra a ordem social estabelecida na época influenciaram o pensamento literário de então. Para Rousseau (2011), o homem nasceu livre, mas sua vida em sociedade o aprisionava. O filósofo se angustiava ao perceber que a liberdade humana era tolhida pela sociedade, que estabelece as prisões que restringe a dimensão humana com suas balizas autoritárias e opressivas sob a forma de convenções sociais. Para o filósofo, a convenção é vazia e contraditória ao “estipular de um lado uma autoridade absoluta e de outro uma obediência sem limites. Não é claro que não se tem nenhum compromisso com aquele de quem se tem o direito de tudo exigir?” (ROUSSEAU, 2011, p.48). O filósofo defendia, portanto, a liberdade individual em detrimento da civilização, o que, como é pontuado no documentário, só se concretizaria pela vontade e pelo sentimento do indivíduo. Após a Revolução Francesa, com a tomada da Bastilha e a queda do regime absolutista na França, a crença nesse ideal de liberdade se intensificou e se espalhou pela Europa. Parece ser essa liberdade que Victor Frankenstein buscava ao se dedicar aos estudos de filosofia natural para, talvez, fugir das prisões sociais. Victor queria descobrir o mistério que separa os impulsos de vida e morte e, assim, conquistar a maior liberdade que um ser humano poderia ter: o domínio de sua existência.

A supremacia diante da existência implicava ter o controle das forças da natureza, ou seja, da criação. A natureza era uma saída para as restrições à liberdade impostas pela sociedade e ainda uma forma de transcender o medo imposto pelo mundo moderno e mecanizado que ameaçava a vida que se conhecia até então. Para Tuan (2005, p.10), o medo é normalmente detonado quando se está “em um ambiente estranho e desorientador”. A mecanização imposta pelas mudanças vivenciadas na época com a Revolução Industrial e os avanços no pensamento científico contribuiu para intensificar um certo sentimento de nostalgia em relação à natureza que se refletia no anseio do ser humano em estar cercado pelo território acolhedor das paisagens naturais e na percepção dessas paisagens como uma extensão do seu corpo e de suas emoções. Mas a natureza não era somente um refúgio para as imposições caóticas da cidade; a natureza também era detentora de uma força incontrolável e, portanto, assustadora. Era preciso, então, dominar a natureza para se ter segurança?

Um episódio acontecido no ano de 1816, que ficou conhecido como o ano sem verão, evidenciou o aspecto indomável da natureza e a fragilidade do ser humano diante de sua força. Uma erupção vulcânica do Monte Tambora no Oceano Índico ocorrida em 1815 envolveu o globo e provocou severas mudanças climáticas com o bloqueio da incidência da luz solar nas regiões da América do Norte e na Europa. Como mostrado no episódio Nature da série da BBC, a paisagem era sombria e o medo das forças naturais violentas fez surgir uma nova geração de escritores românticos que condenavam àqueles que achavam que poderiam controlá-la. Essa nova geração se reuniu na casa de Lord Byron, cenário para a criação de Frankenstein.

O romance de Mary Shelley é uma obra que aborda a relação entre criador, criatura e natureza, em que o homem, ao buscar controlar as forças da natureza, se vê sujeito ao seu temperamento incontrolável. Ao contar sua história para o viajante que o encontrou desolado em terras frias, Victor já demonstrava sua ambição de penetrar nos segredos da criação: “O mundo, para mim, era um segredo que eu desejava desvendar. Curiosidade, determinação em descobrir as leis ocultas da natureza, contentamento próximo do êxtase (...)” (SHELLEY, 2015, p.105). Essa ambição fez com que Victor se dedicasse a adquirir conhecimento sobre diferentes teorias e experimentos científicos, sentindo-se preso a ideias que não o tiravam do lugar evocou as paisagens naturais para dizer que se percebia sucumbindo a ela por estar “atolando num verdadeiro pântano de conhecimento diverso” (p.110). Isso revela um pouco do cenário científico da época e das diferentes teorias que surgiram então, como o galvanismo, por exemplo. Para trazer essa referência à obra, Mary Shelley cria um cenário em que ocorre uma calamidade natural, o que para Tuan (2005) é um fator que desperta o medo na humanidade, pois já para os povos primitivos “o principal medo era de que o próprio cosmos poderia ruir momentaneamente” (p.94). Assim, Victor aos quinze anos testemunha com sua família no retiro de Belrive uma tempestade violenta com o ressoar imediato de trovões “estrondosos e ameaçadores, partindo de vários pontos do céu ao mesmo tempo” (SHELLEY, 2015, p.110). E, logo que o clarão no céu desaparece, avista um toco de árvore destroçado, pois uma árvore tinha sido “inteiramente reduzida a lascas finas de madeira” (p.110) pela ação da eletricidade. O episódio impressionou Victor que descobriu, por ocasião desse fato, a teoria da eletricidade e do galvanismo, que associava movimentos de membros do corpo à corrente elétrica.

Essa predileção por aprender “os mistérios do céu e da terra (...), ou, em sentido mais elevado, os mistérios do mundo físico” (p.107) guiava Victor e foi impulsionada pela morte de sua mãe. Segundo Tuan (2005), o ser humano consegue conviver com o ritmo da natureza e suas oscilações previsíveis, como o nascer e o pôr do sol, mas por ser totalmente favorável à vida assume a integridade do corpo como responsável por sua “sensação de ordem e completude” (p.139). Para o autor, “o corpo é nosso cosmos mais íntimo, um sistema cuja harmonia é sentida em vez de percebida simplesmente pela mente. Ameacem o corpo e todo o nosso ser se revolta” (TUAN, 2005, p.140). E foi o que aconteceu com Victor Frankenstein que, ao perder sua mãe para a escarlatina, parece ter encontrado um motivo ainda mais definitivo para empenhar-se em seus estudos à procura do elixir da vida e iniciar suas pesquisas na universidade de Ingolstadt, pois “a doença obriga a pessoa a dirigir sua atenção para a hostilidade do mundo. (...) Os seres humanos têm procurado respostas na natureza, estudando suas propriedades e processos com a esperança de encontrar cura” (TUAN, 2005, p.140).

O romance evoca esse medo da morte também pelas imagens que descreve do corpo humano em decomposição. O estudante de filosofia natural se lançava em seu ideal de descobrir o que alimentava a vida nos seres vivos, ou seja, qual era a origem do princípio vital. Assim, debruçou-se sobre os estudos de anatomia e observou também corpos humanos em decomposição, pois considerava que para descobrir as causas da vida era preciso lidar com a morte. Cemitérios, necrotérios, vermes comendo olhos ou cérebros humanos, câmaras mortuárias, tudo isso fazia parte da rotina de Victor Frankenstein em suas incansáveis buscas pelo entendimento do que diferenciava um corpo vivo de um corpo morto. Até que obteve êxito em suas pesquisas e descoberta foi comparada à presença de uma luz que o retirava da escuridão, metáfora para a morte, ao encontrar “uma passagem de volta à vida auxiliado apenas pelo brilho solitário e de aparência falha de uma luz” (SHELLEY, 2015, p.125). A escuridão é um elemento muito explorado pela autora em todo o romance e, para Tuan (2005), “o medo do escuro é mundial (...) A escuridão produz uma sensação de isolamento e de desorientação (p.26). Ao trazer à tona paisagens que evocam esse medo, a autora acorda esse sentimento que, de acordo com Tuan (2005), todos os seres humanos têm uma predisposição a senti-lo, embora ele fique adormecido na fase adulta. Ao decidir dar vida à sua criatura, o filósofo descreve a paisagem sombria que o circunda: “(...) e a lua observava-me a labutar, na hora da meia-noite, enquanto eu, sem relaxar, mal respirando, sôfrego, perseguia a natureza em seus refúgios ocultos” (SHELLEY, 2015, p.127).

A criatura trazida à vida por Victor Frankenstein também impõe o terror à mente humana por sua aparência cadavérica e seu instinto selvagem. Para Tuan (2005), o ser humano carrega um medo de fantasmas, ou seja, de criaturas que “podem ter forma e expressão humana reconhecíveis, mas carecem da materialidade total de um ser humano vivo” (p.179). Esse medo de mortos-vivos parte do medo frente ao desconhecido e ao que é estranho. A descrição do ser criado pelo estudante de filosofia natural deixa claro este aspecto de um ser que habita um lugar que está entre o mundo dos vivos e o dos mortos. A falta de brilho nos olhos e a pele opaca ajudam a reforçar o horror do criador diante de sua criatura:

Sua pele amarelada mal dava conta de encobrir o mecanismo de músculos e artérias debaixo dela; seu cabelo escorrido era de um preto lustroso; os dentes, de um branco perolado. Tais características luxuriantes, porém, apenas tornavam mais horrendo o contraste com o rosto enrugado, os lábios negros e retos e os olhos aquosos, os quais pareciam quase da mesma cor branco-acinzentada das órbitas em que se encaixavam (SHELLEY, 2015, p. 131).

A criatura se assemelhava a uma fera selvagem por sua força e instinto indomável. Segundo Tuan (2005, p.179-180), “onde as forças da natureza são benevolentes e previsíveis, as pessoas as reconhecem como divindades. Onde são ferozes e erráticas, as pessoas as chamam de demônios”. A comparação de sua criação a um demônio já aparece assim que o criador dá vida à sua criatura e vaga pelas ruas aterrorizado pela imagem que tinha visto:

Como quem, numa estrada abandonada
Caminha cheio de medo e pavor,
E, ao voltar-se uma vez, segue adiante,
em nunca mais olhar para trás;
Porque sabe que um demônio medonho
Anda ali, em seu encalço (SHELLEY, 2015, p.133-134).

Ao contemplar o horror personificado na figura de sua criação, Victor Frankenstein se vê aterrorizado por sua imagem por meses, mantendo-se recluso em sua casa acometido por uma febre nervosa. Sua mente parece ter entrado em choque ao lidar com uma ameaça sobrenatural trazida à existência por suas mãos e relembrava-o constantemente do perigo que o cercava, o que é revelado em sua afirmação: “A forma do monstro ao qual eu dera origem permanecia o tempo todo diante de meus olhos, e eu não cessava de falar dele” (SHELLEY, 2015, P.137).

A imagem consagrada da criatura é a que aparece no filme Frankenstein de 1931 apresentado pela Universal Studios. A figura interpretada por Boris Karloff de testa quadrada, cicatrizes no rosto, parafusos no pescoço e olhos vazios ressaltados por olheiras profundas ficava ainda mais assustadora por sua altura e pelo jogo de luz e sombra característico do filme em preto e branco, que intensificava o aspecto sombrio da criatura. Essa representação é a que permanece sendo associada à criatura e que, segundo o pensamento de Peirce (apud PIGNATARI, 1974), assume a característica de ícone da criatura, ou seja, é um quase-objeto “e que pode, inclusive, na sua manifestação mais genuína, ser uma representação analógica que cria ou suscita o objeto representado” (p.59).

A existência do demônio parece ter se tornado ainda mais ameaçadora pelos cenários delineados por Mary Shelley. Ao longo do romance, paisagens montanhosas são recorrentes e, para Tuan (2005), “as montanhas são lugares de clima turbulento” (p.127) e, por isso, sempre foram consideradas como o habitat de seres aterrorizantes, como bruxas e demônios. O medo do que as montanhas podem esconder, associado à escuridão, intensificou a fragilidade de Victor Frankenstein diante da magnitude da montanha anuviada pela paisagem sombria que aparece também como uma metáfora para sua sensação de impotência diante do desconhecido, como a autora deixa transparecer na fala do filósofo ao retornar para sua cidade natal depois de descobrir que seu irmão William, ainda uma criança, tinha sido assassinado: “a noite fechou-se à minha volta e, quando já mal podia enxergar as montanhas escuras, a sensação foi mais lúgubre. O quadro parecia o de um vasto e sombrio cenário do mal” (p.153).

No caminho para sua cidade natal, o medo diante do que estaria por vir se intensifica e a natureza reflete a turbulência na vida de Victor. A paisagem é tomada por relâmpagos ao redor do pico de Mont Blanc, com nuvens cobrindo o céu e anunciando uma forte tempestade que logo começa de forma violenta. A escuridão e a tempestade se intensificam e o som de um trovão ecoa no ambiente. Mary Shelley traz, então, a imagem do fogo para transparecer o medo que Victor tinha diante daquela paisagem ameaçadora: “flashes vívidos dos relâmpagos ofuscaram-me os olhos, iluminando o lago e fazendo-o parecer um vasto lenço de fogo” (SHELLEY, 2015, p.154). Segundo Tuan (2005, p.245), o fogo é o “aspecto do meio ambiente físico que provocava o maior medo na cidade”, pois o fogo era a “imagem vívida do inferno”.

Na cidade de Londres no século XVIII, o crime era recorrente e amedrontava seus moradores. A insegurança ganhava as ruas da cidade natal de Mary Shelley e as pessoas temiam sair à noite e se expor aos perigos da violência. Essa violência aparece em Frankenstein com o assassinato cruel de uma criança pelas mãos da criatura. Sua morte marca a perda da inocência, simbolismo da criança no romantismo, para a ambição do homem ao tentar controlar a natureza e gerar uma criatura perversa e assustadora. O melhor amigo de Victor, Cherval, também é assassinado pela criatura. O interessante é que Mary Shelley compara o temperamento de Cherval a uma natureza calma e bela, nas palavras de Victor ao definir o amigo: “Cherval era uma criatura formada na ‘própria poesia da natureza’. Sua imaginação impetuosa e entusiástica era temperada pela sensibilidade de seu coração” (p.254). Cherval amava o cenário natural e, com um temperamento sólido, amoroso e leal conseguia apreciar a natureza com entusiasmo. Era, então, dotado de uma alma sensível e, tal qual os poetas românticos que buscavam na natureza a paz para as imposições mecanicistas de uma sociedade impactada pelas mudanças advindas da Revolução Industrial, deixava-se arrebatar pelas paisagens naturais:

A catarata sonora
Atormentava-o como a uma paixão: a rocha alta,
A montanha e o abismo sombrio da mata
Suas cores e suas formas, eram para ele, então,
Um desejo; um sentimento e um amor
Que não pediam algum outro encanto,
Fruto de reflexão, ou outro objeto de interesse
Para além do que pudesse o olho captar (SHELLEY, 2015, p.255).

Outra imagem que aparece no texto de Mary Shelley é a do cadafalso. Para Tuan (2005), a execução em público foi um modo utilizado para o controle dos cidadãos por seus governantes pela imposição do que ele chamou de “paisagens de castigo”, que o autor reconhece como marcante na Europa desde a Idade Média até o final do século XVIII. A imagem na obra surge quando Justine, que cuidava da casa da família de Victor, é condenada à execução injustamente pelo assassinato de William. Um fato que marcou o período do romantismo e intensificou essa paisagem do medo na época foi o Período do Terror após a Revolução Francesa que aplicou práticas de repressão extremamente cruéis contra opositores dos jacobinos. A angústia de Elizabeth diante da certeza da condenação de Justine traz a imagem de uma perturbação na natureza, intensificando ainda mais essa paisagem do medo: “Elizabeth também chorava e estava triste; mas também a dela era a miséria dos inocentes, a qual, como uma nuvem que passa à frente da lua cheia, por um momento pode até encobri-la, mas não mancha seu brilho” (SHELLEY, 2015, p.169). O contraste com a tormenta de Victor também contribui para a construção desse imaginário sombrio: “Angústia e desespero haviam penetrado o âmago de meu coração; eu carregava o inferno dentro de mim e nada era capaz de extingui-lo” (p.169). A angústia de Victor diante do horror vivido é amplificada com a descrição de uma paisagem delineada pelos medos do exílio, de animais selvagens e da morte: “Era como o cervo ferido que, arrastando as patas já fracas, chega a algum refúgio isolado para ali examinar a flecha que o alvejou, e depois morrer” (p.177).

O desespero às vezes obscurecia a alma de Victor e ele procurava no deslocamento pelas paisagens um pouco de alívio para sua existência. Mas o refúgio escolhido revelava as temidas paisagens montanhosas, segundo Tuan (2005), cercadas de gelo e fortes estrondos de uma natureza selvagem diante de um homem solitário, imagem que aparece em uma descrição de sua caminhada pelo vale de Chamonix:

Tinha à frente os penhascos abruptos das vastas montanhas; a parede congelada do glaciar projetava-se sobre mim; alguns pinheiros derrubados salpicavam o entorno; e o silêncio solene daquele glorioso salão de recepções da Natureza imperial era quebrado apenas pelo alvoroço das ondas ou pela queda de algum fragmento grande, pelo estrondo a avalanche distante ou pelo estalo que, montanha afora, reverberava o acúmulo de gelo, sempre e continuamente rachado e aberto em fendas, como se não passasse de um joguete à mercê das leis imutáveis e de seu mecanismo silencioso (SHELLEY, 2015,p.181).

Sempre que a criatura de Frankenstein aparece na obra de Shelley (2015), há uma composição de paisagens do medo, trazendo à tona o medo do estrangeiro, de seres monstruosos, da morte, da reclusão, da escuridão. As feições da criatura eram abomináveis, sua estrutura corporal foi recolhida de corpos em decomposição. Ele era forte, com instinto de fera selvagem. Era único. Não havia outro igual a ele, era o estrangeiro, o ser surgido de algum lugar que ninguém sabia onde era. Quando se separou de seu criador, achou um esconderijo junto de uma simples família de camponeses e vivia recluso, escondido na escuridão noturna. Ao deixar seu esconderijo por ser descoberto e rejeitado pela família aterrorizada por sua imagem, seguia vagando por ambientes inóspitos, sempre à noite para não ser visto, às vezes com rios congelados, com chuva e neve tomando a paisagem.

Muitas das paisagens do medo que aparecem no livro ainda hoje fazem parte do imaginário associado à obra, o que pode ser percebido no filme Victor Frankenstein lançado em 2015 com direção de Paul McGuigan. Raios, tempestade, o diferente representado pelo corcunda chamado de aberração pelas pessoas, o medo da morte intensificado por imagens de estruturas do corpo humano, o fogo, uma fera selvagem criada por Victor, a nevasca que matou o irmão do cientista na adaptação. Embora a relação com a paisagem natural seja menor nesse filme, o que talvez possa ser explicado pelo distanciamento do ser humano da natureza que na atualidade não tem o mesmo impacto que tinha para os românticos, pois a humanidade já se habituou a paisagem urbana, a fúria da natureza ainda se revela diante dos experimentos de Victor que culminam na criação de um outro ser humano. Ser humano que, nesta adaptação, é a própria encarnação do demônio, como enfatizado pelo policial que tenta em vão interromper os experimentos do cientista. A criatura surge das faíscas de raios potentes que abalam as estruturas do local onde ocorre a experiência e ameaça a vida de todos. Ainda que a aparência da criatura de Frankenstein nessa adaptação se assemelhe às feições assustadoras descritas por Mary Shelley, nessa adaptação a natureza humana talvez seja o que mais provoca medo. A obsessão em revelar o mistério que separa vida e morte desumaniza o homem e torna-o um estrangeiro para os demais, talvez um verdadeiro monstro, como é reforçado pelo filme logo em seu início.

Um fato interessante que cabe ressaltar dos escritos de Shelley (2015) é que, ao expor à criatura ao convívio de uma família de simples, ainda que vivendo escondido, a criatura de Frankenstein se encanta com os hábitos, a bondade e a afetividade dos membros da família e, por um instante, acha que será acolhido ao se revelar, pois, ao acompanhar a rotina da família, se afeiçoa a eles. Foi observando essas pessoas que a criatura aprende a se comunicar e sente paz em sua alma ao se ver integrado a uma natureza harmônica e afetuosa: “Minha disposição melhorou com a natureza que surgia encantadora; o passado foi obscurecido em minha memória, o presente era tranquilo e o futuro, dourado por luminosos raios de esperança e pela expectativa de alegrias” (SHELLEY, 2015, p.204). A criatura é introduzida, então, à sociedade. Começa a ler livros que o enchem de imagens e desperta nele sentimentos variados, passa a simpatizar com a virtude e a repugnar a maldade. Passa também a questionar sua existência, a reconhecer em si sentimentos de raiva e amargura por sua condição. Como ocorre, por exemplo, quando lê o diário de Victor Frankenstein que o descreve como um ser hediondo e ainda mais desprezível e solitário do que Satã. Mas a convivência com a família ainda o enchia de esperança e, então, um dia ele se arrisca e se põe diante de De Lacey, membro mais velho da família que era cego e não seria aterrorizado por sua aparência e poderia interceder por ele junto aos demais. Porém, acaba sendo visto pelos outros membros da família antes que isso pudesse acontecer e foge diante dos ataques do filho de De Lacey. A criatura passa, assim, a alimentar sentimentos de raiva e vingança. Com isso, Mary Shelley traz à tona a discussão levantada por Jean-Jacques Rousseau, filósofo que influenciou o romantismo, de que a sociedade é o mal que corrompe a natureza humana. A partir daí, diante da recusa de Victor Frankenstein ao pedido de sua criatura de dar vida a uma companheira que pudesse ser um alento diante do seu sentimento de total não pertencimento ao mundo dos humanos, a criatura lança toda a sua fúria contra seu criador, que aos poucos se percebe sozinho e obcecado em destruir o terrível ser que havia gerado ao desafiar as leis da natureza. Victor morre depois de um longo período aterrorizado por sua criatura e após procurá-la incansavelmente por desertos, regiões selvagens, geleiras. Em suas últimas palavras, a morte, realidade que o ameaçava quando ainda vivia somente a contemplar as belezas da natureza, já não o assustava mais, pois agora as sombras lançadas pelo demônio em sua vida construíram uma paisagem do medo ainda mais terrível. E o criador sucumbe, assim, diante da impossibilidade de conter a fúria da natureza. A criatura revela ser mais forte que seu criador. Para a maioria das pessoas, a criatura é o verdadeiro Frankenstein de Mary Shelley.

Ticiane Cruz - CEFET. E-mail: martins.ticiane@gmail.com

Referências

  1. CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. 3a ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. Disponível em: < https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/528992/000826279_Historia_Literatura_Ocidental_vol.I.pdf?sequence=1>. Acesso em 20 de agosto de 2021.
  2. DARDEL, Eric, 1899-1967. O homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Tradução de Werther Holzer. São Paulo: Perspectiva, 2015.
  3. FRANKENSTEIN. Direção: James Whale. Produção: Carl Laemmle. Estados Unidos da América: Universal Studios, 1931.
  4. PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. São Paulo, Perspectiva, 1974.
  5. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo. Penguin Companhia das Letras, 2011.
  6. SHELLEY, Mary, 1797-1851. Frankenstein ou o Prometeu moderno. Tradução de Christian Schwartz. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.
  7. SMITH, Andrew (Ed.). The Cambridge Companion to Frankenstein. New York: Cambridge University Press, New York, 2016.
  8. SPURGEON, Caroline. A Imagística de Shakespeare. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  9. THE ROMANTICS. Direção: Sam Hobkinson. Produção: Sam Hobkinson e Chris Granlund. Londres: BBC, 2011. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=R6mefXs5h9o&list=PLkyLQM5bDxoWOOr1Ol0zs_4iXcWI2779W>. Acesso em 27 de junho de 2021.
  10. TUAN, Yi-fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: EdUNESP, 2005.
  11. VICTOR FRANKENSTEIN. Direção: Paul McGuigan. Produção: Derek Dauchy e Ira Schuman. Estados Unidos da América: Twentieth Century Fox Studios
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Recebido em: 25-fev-2022
Aceito em: 29-set-2022

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