Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2022, v. 12: e13586.

SANTOS, Isabela. Ressonâncias (de)coloniais nas concepções de língua de professoras/es de inglês em formação inicial. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2022, v. 12, e13586.

Ressonâncias (de)coloniais nas concepções de língua de professoras/es de inglês em formação inicial

(De)colonial resonance in pre-service English teachers’ conceptions of language

Isabela Santos

Resumo: Neste artigo, pretendo discutir como as concepções de língua de professoras/es de inglês em formação inicial, em uma universidade pública na Bahia, se aproximam ou se distanciam da lógica da modernidade/colonialidade. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa e interpretativista realizado durante as aulas do componente curricular “Introdução à Linguística Aplicada”, do 7º semestre, ministrado em 2019. Com alicerce teórico nos estudos decoloniais (GROSFOGUEL, 2010; BAPTISTA, 2021a, 2021b; MIGNOLO, 2017; SANTOS, 2019), problematizo a universalidade imposta pela racionalidade ocidental, buscando elucidar os conceitos circunscritos no par modernidade/colonialidade e o papel do locus de enunciação. Ademais, discorro sobre a gênese do conceito moderno de língua, seus efeitos na educação linguística, e elenco três estratégias de interrupção da colonialidade, como propõem Souza e Duboc (2021). Ao final do estudo, dentre alguns deslocamentos, está o entendimento da imbricação entre língua, identidade e práticas sociais locais, visto que algumas/uns participantes buscam marcar suas identidades, corporalidades e subjetividades por meio da linguagem, instaurando um certo locus de enunciação.

Palavras-chave: (De)colonialidade. Locus de enunciação. Professoras/es de língua(s) (inglesa).

Abstract: In this article, I aim to to discuss how pre-service English teachers’ conceptions of language, from a public university in Bahia, get closer to or farther from the logic of modernity/coloniality. This qualitative interpretative study was carried out while the “Introduction to Applied Linguistics” subject was delivered in 2019. Based upon decolonial studies (GROSFOGUEL, 2010; BAPTISTA, 2021a, 2021b; MIGNOLO, 2017; SANTOS, 2019), I problematize the universality imposed by the Western reasoning, attempting to clarify the concepts embedded in the modernity/coloniality pair as well as the role of the locus of enunciation. Additionally, I deal with the origin of the modern concept of language, its effects on language education, and I pinpoint three resistance strategies to interrupt coloniality as proposed by Souza and Duboc (2021). At the end of the study, among some shifts, there is the understanding of the close relationship between language, identity and local social practices, since some participants try to mark their identities, corporalities and subjectivities through language, establishing a certain locus of enunciation.

Keywords: (De)coloniality. Locus of enunciation. (English) language teachers.

Reflexões preliminares

Do we see ourselves as implicated with the fictions of coloniality and modernity? [...] Are we able to perceive our role as instruments of coloniality in silencing others and impeding their agency?
(Lynn Mario T. M. de Souza; Ana Paula M. Duboc, 2021, p. 905)

Nos últimos anos, a corrente conservadora e neoliberal das instâncias de poder no Brasil vem afetando sobremaneira o âmbito educacional, desde o movimento Escola sem Partido, perpassando a Base Nacional Comum Curricular, e culminando na ampliação de escolas cívico-militares em todo o território nacional. Nesse cenário que privilegia uma perspectiva técnica da educação com currículos conteudistas e homogeneizantes, nunca foi tão oportuna uma educação linguística crítica e pluriversal em cursos de formação de professores de línguas.

Isso posto, e mobilizada pelos estudos decoloniais que se espraiam para o campo da Linguística Aplicada (LA), muitas têm sido minhas inquietações como pesquisadora e professora de língua inglesa (LI) formadora. Dentre elas, estão as provocações como as da epígrafe acerca da nossa implicação com o projeto moderno/colonial e, consequentemente, da nossa responsabilidade com a perpetuação de relações opressoras entre sujeitos, culturas e línguas. Adensando esta reflexão, compartilho algumas questões que venho problematizando recentemente: será que nós, professoras/es de línguas formadoras/es, estamos preparando nossas/os alunas/os para a pluralidade linguística, cultural e identitária de diferentes espaços sociais e epistêmicos? Será que superamos os construtos do falante nativo, norma padrão e gramática normativa, ditados pela racionalidade ocidental? Quais dimensões epistemológicas, políticas e pedagógicas temos privilegiado em sala de aula e quais suas implicações? Afinal, corroborando os questionamentos apresentados na epígrafe, até que ponto estamos, de fato, adotando uma perspectiva de resistência àquilo que tanto criticamos no atual projeto político educacional de raízes coloniais?

Não poderia deixar de sublinhar, nesta discussão, o racismo/sexismo epistemológico nas universidades “ocidentalizadas”, que comumente replicam o cânone do pensamento de apenas homens e de cinco países: Itália, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos, como denuncia o acadêmico decolonial porto-riquenho Grosfoguel (2014). Nessa direção, o geógrafo baiano Milton Santos (2007) argumenta que a própria organização da nossa universidade promove uma subordinação epistêmica à lógica euroamericana, atrofiando o processo de pensar. No tocante à educação linguística, foco de nosso interesse, Baptista (2019, p. 127), apoiando-se em Mignolo (2003), afirma que “os modelos teóricos para os estudos das línguas foram construídos ‘em cumplicidade’ com a expansão colonial; e sendo assim, foram amparados pela visão e cosmovisão da modernidade/colonialidade[1]”. Colocando em tela os professores de LI, que trabalham com a língua da globalização hegemônica (SANTOS, 1997), apesar de termos feito algumas rasuras e estarmos buscando caminhos outros de particularizar um ensino de LI condizente com nossas realidades locais, as terminologias, metodologias e os livros didáticos, oriundos dos Estados Unidos e da Inglaterra, ainda encontram terreno bastante fértil no Sul Global.

Assim, pensando sobre qual professor e, portanto, qual sujeito e sociedade contribuímos para formar/educar, e partindo da premissa de que é o modo de concebermos língua que dará contorno às nossas escolhas pedagógicas, apresento um recorte de um estudo preliminar do meu contexto inicial de pesquisa de doutorado acerca de educação linguística crítica. Para fins deste artigo, discutirei como as concepções de língua de professores de (LI) em formação inicial do curso de Letras-Inglês da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus de Salvador, se aproximam ou se distanciam da lógica da modernidade/colonialidade.

Muito já foi historicizado acerca de concepções de língua, mas ao amplificar as vozes discentes e horizontalizar saberes, acionando uma dimensão analítica à luz da decolonialidade, busco contribuir para (re)pensarmos nossa ação pedagógica e quão imbricados nós - docentes em cursos de formação de professores de línguas - estamos ou não com a lógica universalizante e excludente da racionalidade ocidental. Vale frisar que embora os resultados não sejam generalizáveis, podem servir de insumo para reflexão de pesquisadoras/es e professoras/es de línguas em seus espaços situados.

Dito isso, discorro sobre ideias fundantes dos estudos decolonias (CÉSAIRE, 2020; GROSFOGUEL, 2010; DUSSEL, 1993; MIGNOLO, 2003, 2010, 2017; SANTOS, 2019, 2010; BAPTISTA, 2019, 2021a, 2021b; PARRA, 2015), relevantes para este trabalho, bem como sobre a gênese do conceito moderno de língua e alguns de seus efeitos na educação linguística. Muito brevemente, abordo possíveis estratégias de interrupção da colonialidade (SOUZA; DUBOC, 2021) como input a ser ainda elaborado por professoras/es de línguas. Apresento, posteriormente, fotografias do estudo em foco, detalhando o contexto e o percurso metodológico, além de discutir os principais resultados. Antecipo às leitoras e aos leitores que estas incursões na decolonialidade ainda são iniciais e estão em contínuo processo de (des/re)construção.

1. Sobre a lógica da modernidade/colonialidade e o locus de enunciação

Parto da premissa de que a história da colonização e o papel da política e da ideologia a ela subjacente estão entrelaçados com as teorizações sobre linguagem e com a construção de conceitos de língua. É no intuito de revisitar alguns pontos da história que nos foi contada que ora me debruço nesta seção.

Diferentemente da escola de Frankfurt, dos pós-modernos e pós-colonias, que fazem uma crítica ao eurocentrismo de dentro ou sob influência da Europa, a perspectiva decolonial tece uma crítica epistemológica ao projeto civilizatório moderno desde acadêmicos[2] da América Latina, cujos saberes foram subaltenizados e silenciados (MIGNOLO, 2010). Sob essa ótica, portanto, a história da colonização das Américas e seus efeitos ocupam papel central nos debates teóricos.

Como nos explica Souza (2020), a maneira essencialista de vermos e organizarmos o mundo, os sujeitos e suas relações sociais não é natural, apesar de naturalizada. Aprendemos a perceber a realidade a partir do olhar do homem europeu/branco/heterossexual/cristão/capitalista/racista/cartesiano que nos colonizou, e acabamos por reproduzir o que nos foi “ensinado” e inculcado como normas em nossas memórias. Trata-se da racionalidade ocidental ou, dito de outro modo, da lógica universalizante da modernidade/colonialidade, a qual permeia todas as esferas da vida social, inclusive nossas subjetividades.

Uma ideia basilar para compreendermos o ponto de partida dessa lógica opressora é o mito da modernidade criado pelo europeu, que oculta seu lado mais obscuro, a colonialidade (MIGNOLO, 2017). Cabe aqui explicitar que colonialidade alude aos efeitos do colonialismo ou a “situações coloniais” na atualidade, isto é, mesmo após a independência político-administrativa das ex-colônias europeias, as amarras coloniais continuam gerando relações de opressão de diferentes ordens: política, econômica, epistêmica, espiritual, linguística, sexual, patriarcal e racial, sendo raça o princípio organizador de todas elas (GROSFOGUEL, 2010). As dimensões pelas quais a colonialidade opera e se reproduz são a colonialidade do poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser, as quais repercutem, também, na colonialidade da linguagem.

Retomando o mito da modernidade, o intelectual martinicano Aimé Césaire (2020), ao discorrer sobre colonização e civilização, pontua incisivamente que devemos focalizar a raiz da mentira de onde emanaram todas as outras. Em sua análise, Césaire salienta que por trás das narrativas salvacionistas da modernidade de evangelizar, fazer o bem, tirar o bárbaro da ignorância, da tirania e da doença, o europeu matou, saqueeou, extorquiu; e, para expandir seu poderio econômico em escala mundial, empreendeu um tipo de civilização que equivaleria ao cristianismo, rebaixando o que entendiam como paganismo à selvageria. Aí reside o mito da modernidade, qual seja, colocar o inocente (o Outro) como vítima e culpado por sua própria vitimização, e conferir inocência ao sujeito moderno e civilizado (DUSSEL, 1993).

Na discussão concernente à crítica epistemológica aos paradigmas eurocêntricos hegemônicos, Grosfoguel (2010) recorda que René Descartes inaugura os tempos modernos, substituindo Deus, fundamento do conhecimento na Idade Média, pelo Homem ocidental, dando origem à máxima das ciências modernas ocidentais, o ego-cogito cartesiano (“Penso, logo existo”). A partir de então, estabelece-se que o Homem ocidental, por meio da sua Razão, tem todos os atributos de Deus, podendo acessar as leis do universo e com a capacidade privilegiada de produzir conhecimento, ciência e a verdade universal. Foi por meio da divisão dualista - entre corpo e mente e entre mente e natureza - que Descartes proclamou um conhecimento sem um corpo, não-situado, universal, visto sob o olhar de Deus (GROSFOGUEL, 2010). No âmbito deste debate, Deus é onipresente e a Razão é imaterial, não tem gênero, cor, sexo e é intocável (MIGNOLO, 2010). Assume-se, dessa maneira, o ponto de vista eurocêntrico como objetivo, neutro, universal e, consequentemente, excludente, já que o Outro não é dotado de humanidade, civilidade e ciência, pois fica do lado de lá da linha abissal[3] (SANTOS, 2019), conforme observa Grosfoguel (2010):

Em termos históricos, isto permitiu ao homem ocidental (esta referência ao sexo é usada intencionalmente) representar o seu conhecimento como o único capaz de alcançar uma consciência universal, bem como dispensar o conhecimento não-ocidental por ser particularístico e, portanto, incapaz de alcançar a universalidade. (GROSFOGUEL, 2010, p.460).

Este é um grande contributo da perspectiva decolonial: perceber a estratégia epistemológica invisível do europeu de ocultar o seu locus de enunciação para dominar o mundo. Obviamente todo conhecimento é produzido por alguém a partir de um determinado espaço e tempo, mas ao ocultar o sujeito que enuncia e o seu lugar epistêmico, clivado por relações de poder de classe, gênero, raciais, linguísticas, geográficas, espirituais do “sistema-mundo[4] patriarcal/capitalista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2010. p. 459), o europeu conseguiu universalizar sua racionalidade como neutra, classificando conhecimentos, povos e línguas como superiores e inferiores. Os teóricos decoloniais Dussel (1977) e Grosfoguel (2010) denominam, respectivamente, a perspectiva de que nossos conhecimentos são sempre situados de “geopolítica do conhecimento” e “corpo-política do conhecimento”, as quais denotam o posicionamento ideológico do enunciador. Desse modo, sob o viés decolonial, marcar o locus de enunciação, isto é, o espaço geopolítico e o corpo-político de quem fala, configura-se como uma estratégia valiosa de interrupção da colonialidade, visto que situa deliberadamente quem é o sujeito que fala, de onde fala, por quais motivos e com quais finalidades (PARRA, 2015; BAPTISTA; LÓPEZ-GOPAR, 2019; BAPTISTA, 2019).

É relevante destacar, todavia, que Grosfoguel (2010) faz uma importante distinção entre “lugar epistêmico” e “lugar social”, sinalizando que o fato de um sujeito ocupar o lugar social do lado do oprimido das relações de poder não implica que ele pense naturalmente como um sujeito de um lugar epistêmico subalterno. O autor complementa que o êxito do sistema-mundo é exatamente este, o de levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido a pensar com epistemes dos sujeitos de posições dominantes. No âmbito dessa discussão, Baptista (2021a; 2021b, p. 1123) defende que o locus de enunciação pode ser um dispositivo de insurgência decolonial para que os sujeitos, historicamente subalternizados, materializem seus saberes e tornem-se “enunciadores, trazendo consigo para tal espaço suas corporalidades, suas narrativas, suas maneiras de ser, pensar, saber e sentir, enfim, suas existências em outras formas possíveis de subjetividade”.

Em última análise, a decolonialidade (ou decolonialidades, no plural), via lutas, movimentos sociais e via academia, traz para a cena epistemologias e ontologias outras, tais como perspectivas afrocêntricas, feministas e indígenas, visando a pluriversalidade que a colonialidade tentou apagar. Assim como Baptista (2021a), endosso o entendimento de Bernadino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2020) de que a decolonialidade, como projeto acadêmico-político, ajuda a desvelar e sistematizar as inúmeras matizes da modernidade/colonialidade, esclarecendo historicamente a colonialidade do poder, do saber e do ser, e auxiliando a pensar em formas de mudar a realidade. Na sequência, trato da gênese do conceito moderno de língua e de como esse conceito repercute até hoje na educação linguística, além de elencar sugestões de possíveis estratégias (SOUZA; DUBOC, 2021) de interrupção da lógica da modernidade/colonialidade.

2. Conceito de língua na modernidade/colonialidade: gênese, efeitos e estratégias de resistência

A raiz do legado colonial para a educação linguística está no próprio conceito moderno de língua que ancorou as teorias e os estudos da linguagem. De modo enfático, Nascimento (2019, p. 11) denuncia que a “linguagem tem sido um grande fetiche do mundo ocidental há séculos”, tendo sido construída ou, nos termos de Makoni e Pennycook (2007), “inventada” a partir do europeu branco e seu projeto moderno de “comunidade imaginada”[5] (ANDERSON, 1991). Com a formação dos Estados nacionais a partir do século XVIII, o paradigma monolíngue baseado na tríade - “uma língua, um povo, um território” - foi, então, imposto para auxiliar na expansão do projeto europeu colonial cristão. Para organizarem o mundo que “descobriam”, os europeus inventaram, também, regimes metadiscursivos[6] (Makoni; Pennycook, 2007, 2020) para descrever, nomear e categorizar as línguas, resultando, por exemplo, na criação de dicionários e gramáticas como mecanismos de controle e homogeneização.

Esta orientação monolíngue e monocultural descortina o caráter político e ideológico subjacente à construção das línguas, cujos efeitos perduram até hoje nas políticas linguísticas e educacionais, nas práticas pedagógicas em salas de aula e no imaginário das pessoas em geral, que formam ideologias linguísticas ao longo da vida. Com efeito, conforme Bloomaert e Rampton (2011), a ideia tradicional de língua é um artefato ideológico muito poderoso que, como um dispositivo moderno, opera nos mais diferentes domínios (imigração, educação, cultura etc.).

Recorrendo à síntese de Canagarajah (2013) acerca do monolinguismo, podemos identificar alguns de seus efeitos na educação linguística em língua estrangeira/adicional. Comecemos com a tradição de nomear a língua como “estrangeira” nos documentos oficiais, a qual remonta a ideia do movimento romântico e idealista de que uma língua equivale a uma comunidade e, em vista disso, a um território com uma identidade e cultura particulares. Isso suscita o entendimento de que a língua, pertencente a uma comunidade, reflete tão somente o espírito daquela nação, posicionando os outros “usuários” como ilegítimos por não conseguirem expressar os valores daquela comunidade e nem seus próprios valores na língua de outrem (CANAGARAJAH, 2013). Esse raciocínio, além de idealizar o falante nativo e inferiorizar o não-nativo, nos leva ao pressuposto de que as línguas são puras e com separações estanques. Como consequência, cria-se a máxima “English only”, adotada pela visão tradicional de ensino, a qual não valoriza a língua dos aprendizes e outros recursos semióticos (SANTO; SILVA, 2017). Reforçando a visão ora discutida e chamando a atenção para a exclusão de outras línguas e sujeitos, conforme a lógica da modernidade/colonialidade, a BNCC para línguas estrangeiras edifica-se num projeto intitulado Aprender inglês: meu novo mundo. De modo simples, mas não simplista, esse enunciado estampa a inequívoca posição epistemológica do Norte Global, plasmada no documento, com a visão neoliberal de que o inglês abrirá as portas para o mundo, um único mundo possível. Ademais, para ratificar a colonialidade do poder, a BNCC impõe o inglês como única língua estrangeira obrigatória, em detrimento do espanhol e demais línguas.

Ainda pautada nas considerações de Canagarajah (2013) sobre o paradigma monolíngue, língua é vista como um sistema autônomo, cujo enfoque reside na cognição, e não no contexto social. Em virtude disso, a comunicação baseia-se na gramática, em vez de nas práticas sociais nas quais os sujeitos se engajam. Não pretendo aqui, de modo algum, ignorar a enorme contribuição dos estudos de aquisição de segunda língua e das discussões sobre competência estratégica empreendidas nas décadas de 1980 e 1990 que pavimentaram nossos caminhos até aqui, mas vale ressaltar que, conforme discutido por Santo e Silva (2017, p. 71), essa tradição ancorava-se “no entendimento de déficit linguístico, que focava na suposta deficiência comunicativa que falantes não-nativos apresentavam”. Notadamente, isso pode repercutir até hoje no nosso olhar sobre o que constitui-se como erro. Santo e Silva (2017), ao defenderem práticas translíngues[7], dada a inegável natureza plural e híbrida das línguas e os contextos em que se inserem na contemporaneidade, alertam para a relevância de questionarmos a concepção moderna/colonial de erro. Partindo da premissa, advinda dos recentes estudos da LA e da Sociolinguística, de que língua passou a ser considerada como “um produto de ação social”, ou uma prática social localizada (PENNYCOOK, 2010, p. 8), na qual os sujeitos negociam e constroem sentidos com seus repertórios linguísticos, os erros talvez mereçam outra conceptualização. Estas foram ilações de Santo e Silva (2017, p.74), pois uma vez que a língua passa a ser negociada, a avaliação das práticas deve considerar as escolhas linguísticas dos estudantes nos “eventos comunicativos e não as escolhas gramaticais tidas como corretas”.

Sem a pretensão de dar conta das inúmeras colonialidades na educação linguística, trago agora para a nossa reflexão, de modo muito sucinto, três estratégias de resistência, no intuito de irmos além do academicismo e tentarmos interromper a colonialidade, como propõem Souza e Duboc (2021, p. 882) e Souza (2019a): “pensar a comunicação de outro modo” (thinking communication otherwise), “trazer o corpo de volta” (bringing the body back), e “marcar o não marcado” (marking the unmarked). A primeira concerne transcender o enfoque no diálogo (moderno e harmonioso) para o enfoque nos seus interlocutores, problematizando as premissas modernas de que os interlocutores são todos iguais, com a mesma humanidade, e de que a língua do diálogo é uma entidade completa, neutra, transparente e sem conflitos. A segunda, “trazer o corpo de volta”, implica em recusar e transcender a suposta universalidade produzida pela dicotomia entre corpo e mente, razão e emoção, e entre o universal e o local; é preciso recuperar o corpo do sujeito que produz conhecimento. Por fim, a terceira estratégia, “marcar o não marcado”, significa ir além do premissa de uma norma padrão universal não marcada e, portanto, neutra, a fim de desencadear a coexistência de várias possíveis normatividades marcadas que são, sim, conflitantes.

Interpreto que essas estratégias tensionam questões dos ditos centro e periferia e têm implicações importantes para a educação linguística; dentre elas, atentar para a geo-corpo-política do conhecimento e interrogar as nossas próprias colonialidades, como pesquisadoras/es e professoras/es de línguas. Passemos, agora, ao detalhamento do estudo focalizado.

3. Fotografias do estudo

O objetivo deste estudo foi investigar como o entendimento de língua de professores de inglês em formação inicial se aproxima ou se distancia da lógica da modernidade/colonialidade. O estudo de natureza qualitativa, interpretativista e cunho etnográfico foi realizado ao longo de um semestre com um grupo de oito estudantes do 7º semestre do Curso de Letras-Inglês, nas aulas do componente curricular “Introdução à Linguística Aplicada” na UNEB, campus de Salvador, em 2019. Todas/os as/os participantes[8] tinham alguma experiência como professoras/es de LI em diferente âmbitos, tais como educação infantil de escolas bilíngues, instituto de línguas, aulas particulares ou monitoria de ensino.

No que concerne o percurso metodológico, as aulas foram realizadas em inglês e português por meio de debates, discussões de textos, apresentação de seminários individuais e pôsteres em grupos. Os temas debatidos buscaram propiciar um panorama da LA na contemporaneidade e versaram sobre LA crítica e indisciplinar, pedagogia crítica; globalização; problematização da vida contemporânea; formação crítica de professores de línguas; letramentos críticos; novos letramentos; World Englishes; Inglês como Língua Franca; falante nativo; interculturalidade, educação e direitos humanos; teoria queer e práticas translíngues.

Os dados foram gerados a partir de anotações de campo, questionários e diários reflexivos compostos por reflexões suscitadas ao final de cada aula. Os aportes teóricos assentam-se na Linguística Aplicada Crítica, nas teorias dos Novos Estudos do Letramento, nos Letramentos Críticos e nos Estudos Decoloniais. Cabe ressaltar, no entanto, que o pensamento decolonial, mobilizado na interpretação dos dados, não integrou a bibliografia do curso ministrado. Foram levantadas palavras ou ideias-chave recorrentes nos discursos das/os participantes e os excertos mais representativos foram, subsequentemente, selecionados para interpretação e discussão. Identificadas as concepções de língua e estabelecidas suas conexões com os estudos da linguagem e dos letramentos, acionei duas dimensões analíticas à luz da decolonialidade, a saber: corporalidade/pluriversalidade e neutralidade/universalidade. Como discutido anteriormente, a primeira dimensão, alusiva à decolonialidade, põe em foco o afastamento da lógica da modernidade/colonialidade, e a segunda implica na aproximação.

4. Concepções de língua pelas lentes discentes

Iniciemos com a fala de Cláudia, que expressa mudança no seu entendimento de língua ao longo da graduação:

Antigamente, eu tinha uma visão de língua como estática, sem variação ou influência do background de quem está aprendendo, e a partir do 6º semestre, eu percebi que temos influências de todos os lugares. A língua não é algo separado do que somos, na verdade, pra mim, língua é quem somos e representa também como somos vistos. (Cláudia, questionário; grifos meus)

Nota-se que a partir do terceiro ano da graduação, Cláudia começou a se afastar da perspectiva formalista e universalizante, que concebe língua como um sistema abstrato e estável, e passou a compreender a estreita relação entre sociedade, língua e identidade. Apreende-se de sua fala que os sujeitos são constituídos pela língua, isto é, pelos discursos circulantes nos mais diferentes espaços, seja na mídia, em suas comunidades, na escola ou em outras instituições. Como advoga Gee (1996), expoente dos Novos Estudos dos Letramentos, somos forjados inicialmente por Discursos[9] primários (apreendidos com a família) e, posteriormente, por Discursos secundários (apreendidos em instituições sociais, como igreja, escola etc.), que constituem nossas identidades e representações por meio de crenças, valores e comportamentos, tal qual Cláudia parece compreender. Com base na assertiva “língua é quem somos e representa como somos vistos”, interpreto que a discente afasta-se da visão moderna positivista de neutralidade que esconde o enunciador, trazendo visibilidade ao seu corpo, à sua identidade e história pessoal, e reforçando, assim, o caráter ontológico da linguagem. Nesse sentido, o entendimento de Cláudia alinha-se com o pensamento decolonial de Mignolo (2004, p. 633) de que “as línguas não são algo que os seres humanos têm, mas algo que os seres humanos são [...]”. Assim, em alguma medida, interpreto que o entendimento de língua da discente incide sobre a dimensão corporalidade, o que implica em “trazer o corpo de volta” ao reconhecer a confluência entre o ser/sujeito/identidade e língua.

Ainda a respeito de identidade, a participante Luisa demonstra ter se apropriado do inglês e rompido com a ideologia linguística e a fetichização do ideal do falante nativo, em contraposição à assertiva de Kumaravadivelu (2012) de que o construto do falante nativo ainda não foi superado:

Discordo do termo língua estrangeira, pois dá a impressão de que o inglês pertence apenas aos falantes nativos, ignorando todos os diferentes tipos de inglês ao redor do mundo. Antes quando me perguntavam se eu falava inglês americano ou britânico, eu sempre dizia que era americano, porque eu achava muito mais bonito e adorava as cantoras e filmes americanos. Mas depois das nossas discussões sobre a globalização e os efeitos da americanização na vida das pessoas, hoje eu diria “Eu falo inglês, é o meu inglês, com minhas marcas, do meu jeito”. (Luisa, diário reflexivo; grifos meus)

Ao afirmar que passou a ser dona do seu inglês, a falar com suas idiossincrasias e não mais com sotaque dos estadunidenses, Luisa parece compreender os efeitos perversos da globalização hegemônica, desprendendo-se da ideia colonizadora de língua como nação e de purismos linguísticos. Sugere, também, que mobiliza todo e qualquer repertório linguístico para engajar-se em práticas comunicativas, não se submetendo à pretensa homogeneização e universalidade da língua inglesa. Assim, ao deixar de pensar epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes, Luisa faz insurgir uma perspectiva epistêmica subalterna e, como tal, configura-se como uma crítica ao conhecimento hegemônico (GROSFOGUEL, 2010). Pelo exposto, interpreto que a discente faz uma fissura na colonialidade da linguagem, o que parece ir na direção das línguas glocais. Segundo Souza (2019a), essas línguas, que já foram produto da globalização hegemônica, são aquelas que se transformam e se ajustam às necessidades das novas localidades. Por fim, quando Luisa exalta suas marcas, depreendo que a sua história, sua cultura e o seu corpo passam a ser evidenciados e que, desse modo, seu locus de enunciação situado no Sul Global, notadamente da cidade de Salvador, Bahia, passa a ser marcado.

O participante Pedro ressalta que o componente curricular “Introdução à Linguística Aplicada”, no 7º semestre, foi um divisor de águas, levando-o a uma revisão crítica da sua concepção de língua e a um processo de desconstrução, como observamos no seguinte excerto:

Creio que traçando uma visão cronológica, minha visão de língua mudou completamente. No começo eu era uma pessoa muito “gramática”, sabe? Após essa matéria, minha visão de língua é muito mais como prática social, do que meramente um conjunto de palavras dentro de um certo tempo verbal. Ainda tenho alguns paradigmas, mas como a desconstrução é algo que se dá com o tempo, estou no processo. [...] Língua é interação que afeta as relações entre as pessoas e a sociedade, e está sempre vinculada a um contexto sócio-histórico e cultural. (Pedro, questionário; grifos meus)

O entendimento de Pedro de língua como prática social situada reflete os estudos mais recentes da linguagem e dos letramentos. No fim da década de 1990 e início dos anos 2000, o truísmo da sociolinguística de que línguas são sistemas de comunicação usados pelas pessoas, em contextos particulares, é posto em xeque pela visão de língua como prática local (PENNYCOOK, 2010). Os estudiosos passaram a se interessar pelas práticas de letramento e de linguagem nas quais os sujeitos se engajavam na sociedade. Ao afirmar que língua afeta as relações entre os sujeitos e a sociedade, Pedro corrobora a asserção de Pennycook (2010) de que práticas de linguagem são absolutamente centrais para todas as outras práticas cotidianas - bancárias, escolares, religiosas, recreativas etc. - da organização social. Para o referido autor, ao concebermos língua como prática e, por conseguinte, como uma atividade situada socioculturalmente, nos afastamos da visão colonial/moderna de língua como uma estrutura a ser adquirida e assimilada, conforme acontece com Pedro. Nessa mesma esteira, Baptista (2017, p.32) defende que a “língua, enquanto prática social, não é dominada e nem domesticável, apesar de assim tentarmos defini-la e torná-la apreensível”. Dito de outro modo, “práticas são ações com uma história” (BOURDIEU 1977 apud PENNYCOOK, 2010, p. 2) e, sob o prisma decolonial, a história tem um sujeito que enuncia em um determinado tempo e em um determinado locus de enunciação. Grosso modo, Pedro parece ter feito um deslocamento ao reforçar a localidade das práticas e, dessa maneira, parece ter se distanciado da dimensão neutralidade/universalidade atinente à lógica ocidental.

Já para o discente Ivan, língua é associada a um recurso discursivo de poder, ou seja, por meio da língua é possível (des/re)construir sentidos, questionar criticamente as relações opressoras e se (re)posicionar na sociedade, conforme vemos a seguir:

[...] língua pode ser uma arma discursiva para nos posicionarmos criticamente e questionarmos tudo a nossa volta. Língua é poder. É uma forma de inserção na sociedade. Quanto mais conhecimento de língua temos, mais podemos intervir na sociedade e afetar mais pessoas. (Ivan, questionário; grifos meus)

Além de estar atrelada às tendências sociointeracionistas e discursivas dos estudos da linguagem, essa assertiva de natureza política, remete aos letramentos críticos, os quais encorajam a problematização do status quo, das relações de poder assimétricas, das ideologias, e das presenças e ausências nos variados discursos. Nesse sentido, Ivan se afasta da visão moderna/colonial padronizadora e universalizante do letramento autônomo, que serviu para homogeneizar as línguas via escolarização. Ao defender que quanto maior o conhecimento de língua, maior o poder para intervir na sociedade, o discente parece coadunar com a ideia de Lankshear e Knobel (2003) de que quanto mais poderoso o letramento, mais influência o sujeito tem na sociedade. Isso me leva a refletir que nem todos têm acesso a este letramento considerado potente, o que reforça a ideia de hierarquias e de que algumas formas de letramento não são validadas.

Vale mencionar que os discentes Pedro e Rosa destacam que ao mesmo tempo que a língua inglesa empodera o sujeito, pode também segregar, visto que línguas locais estão deixando de existir. A esse respeito, bell hooks (2017, p. 224) denuncia que “O inglês padrão, [...] nos Estados Unidos, é a máscara que oculta a perda de muitos idiomas, de todos os sons das diversas comunidades nativas que jamais ouviremos [...]”. Desse modo, esses dois participantes parecem atentar para um dos efeitos perversos da globalização hegemônica via proliferação do inglês como língua franca: o localismo globalizado (SANTOS, 1997) e, por conseguinte, o silenciamento de línguas e povos.

Ao final do estudo, nota-se que mesmo com concepções de língua mais sintonizadas com as mudanças no campo da LA, afastando-se assim, em alguma medida, da lógica da modernidade/colonialidade, quatro participantes não descartam tampouco a acepção de língua como instrumento de comunicação. As implicações desse entendimento remetem ao ensino utilitarista e pragmático, muito valorizado pela onipresente abordagem comunicativa de base funcionalista e alicerçada na racionalidade ocidental. Contudo, o participante Ivan destaca que “o sujeito que se ‘comunica’ em inglês na contemporaneidade não é mais acrítico e apolítico; ele pode agir por meio da língua para transformar a sociedade”.

Por fim, Luisa e outra discente afirmam ter suas certezas abaladas e estar confusas sobre suas noções de língua(gem), enfatizando que as discussões acerca da LA deveriam ter sido empreendidas mais paulatina e previamente na graduação, como observa-se no excerto a seguir:

[...] a disciplina nos ajuda a pensar criticamente, mas estudar uma matéria como essa apenas no 7º semestre é como jogar uma caixa de informações e nos jogar no mundo com muitas dúvidas e questionamentos. Acho que deveríamos ter essa disciplina no começo do curso e talvez em mais de um semestre. A gente devia falar de Linguística Aplicada desde o começo do curso (Luisa, anotações de campo)

A despeito do desconforto dessas discentes, considero suas ilações legítimas e salutares, pois é a partir do espaço de crítica, conflito e angústia que abrem-se outras possibilidades de significação. Apesar de outros discentes alegarem que apenas no final do curso estão mais maduros para empreender tais debates e inflexões, concordo que essas discussões devem ser feitas de modo mais rizomático ao longo da graduação. Finalizo esta seção, com o dizer de Walsh (2017, p. 31), o qual parece refletir um pouco o deslocamento e o olhar crítico das/os discentes e, também, desta pesquisadora-professora: precisamos “aprender a desaprender para reaprender”.

Palavras finais

Neste artigo, procurei amplificar as vozes de um grupo de estudantes de graduação em Letras-Inglês e investigar como suas concepções de língua se aproximam ou se distanciam da lógica da modernidade/colonialidade. Para tanto, apresentei algumas noções fundantes da decolonialidade, cujo objetivo é responder às promessas da modernidade e à violência colonial, visibilizando onto-epistemologias historicamente marginalizadas. Este é um ponto nevrálgico, pois não se trata de trocar o paradigma eurocêntrico por outro e de, paradoxalmente, universalizar a decolonialidade, e sim de vislumbrar uma pluriversalidade.

Destaquei ainda a importância de reconhecermos o locus de enunciação, pois foi ocultando esse locus que a racionalidade europeia se impôs como neutra, universalizante e excludente. Após discorrer sobre a gênese do conceito moderno de língua e elencar alguns de seus efeitos na educação linguística na contemporaneidade, dentre os quais está a orientação monolíngue, abordei possíveis estratégias para tentarmos interromper a colonialidade, a saber: “pensar a comunicação de outro modo”, “trazer o corpo de volta” e “marcar o não marcado”, como sugerem Souza e Duboc (2021).

No tocante aos resultados, alguns construtos da modernidade/colonialidade, como o ideal do falante nativo, a ideia de língua como nação ou como sistema fixo, abstrato e autônomo vêm sendo desestabilizados. Subjacente à concepção de língua como instrumento de comunicação de quatro estudantes, está a noção de língua como objeto para ser usado com propósitos específicos. Nesse sentido, essa compreensão aproxima-se da lógica da modernidade/colonialidade, pois denota um caráter reprodutivista, sem considerar o locus de enunciação e seus atores. Ainda assim, um discente frisou que, na contemporaneidade, este sujeito que se comunica é crítico, atento às relações de poder e tem agência. Além disso, o entendimento de língua como prática social situada ou localizada implica um afastamento da lógica ocidental, pois como prática, a língua não pode ser dominada ou controlada, digamos assim. Por fim, cabe salientar a compreensão de algumas/uns participantes acerca da imbricação entre língua, identidade e práticas sociais locais. Ao buscarem marcar suas identidades e histórias por meio da linguagem, instaurando um certo locus de enunciação, essas/es discentes, em certa medida, se afastam da lógica da modernidade/colonialidade.

Em última análise, defendo que uma perspectiva onto-epistemológica desde o Sul Global pode contribuir para uma educação linguística mais democrática e plural. Como todo conhecimento, entendo a opção decolonial como inacabada, em processo de construção e passível de críticas. Não obstante, em consonância com Baptista (2019), acredito ser fundamental reconhecermos o nosso locus de enunciação e reconhecermos qual a nossa posição epistêmica nesse locus: será que validamos uma educação linguística pluriversal, ou privilegiamos uma perspectiva única de conhecimento? Eis uma inquietação que não deve ser ignorada por formadoras/es e professoras/es de língua(s) (inglesa).

Isabela Santos - Mestra em Ensino de Inglês como Língua Estrangeira pela University of Reading, Inglaterra. Doutoranda em Língua e Cultura (PPGLinC/UFBA), Salvador. Professora Assistente do Curso de Letras-Inglês (DCHI/UNEB), Salvador. Membro do grupo de pesquisa DECOLIDE (Decolonialidade, Linguagem, Identidade e Educação), coordenado por sua orientadora, Profa. Dra. Lívia M. T. R. Baptista. E-mail: isalimasantos2015@gmail.com

Notas

  1. A modernidade/colonialidade, a ser detalhada na próxima seção, alude à racionalidade ocidental/eurocêntrica que se impôs como universal para alicerçar o projeto civilizatório europeu.
  2. O pensamento decolonial emergiu na década de 1990 com o sociólogo peruano Aníbal Quijano e, na virada do século, se fortaleceu com a formação do coletivo de investigação “Modernidade/Colonialidade”, composto por intelectuais como Walter Mignolo, Catherine Walsh, Nelson Maldonado-Torres, Ramón Grosfoguel, entre outros. A decolonialidade, entretanto, não acontece apenas no âmbito da academia; ela vem insurgindo há mais de quinhentos anos por meio dos diferentes movimentos e lutas sociais, configurando-se como uma prática de resistência e oposição à violência da modernidade/colonialidade desde a invasão das Américas.
  3. Santos (2019), sociólogo português que coaduna com o pensamento decolonial, propõe a existência de uma linha abissal epistêmica e invisível que divide o Norte e o Sul Global desde os tempos coloniais e que persiste, na atualidade, por meio dos processos de globalização. Do lado de cá da linha (o hegemônico, metropolitano), está tudo que é legítimo, natural e ético; do lado de lá da linha (o colonial), está o reino dos ignorantes, onde os sujeitos nem ao menos são considerados inferiores, são absolutamente invisíveis e inexistentes.
  4. O conceito de “sistema-mundo” é utilizado, nas Ciências Sociais, para romper com o conceito moderno de “sociedade”, equivalente ao do “Estado-nação”. “Sociedade”, como unidade de análise, ignora toda a temporalidade e espacialidade existentes antes dos Estados-nações, criados há apenas duzentos anos, ou menos de cem anos em alguns casos (GROSFOGUEL, 2020).
  5. A noção de comunidade imaginada, criada por Anderson (1991), sublinha o papel crucial da língua em produzir identidades nacionais, ou um “espírito nacional”, com a emergência dos Estados-nação a partir da 2ª Guerra Mundial. Esse espírito nacional era necessário para a dominação que a Europa viria a exercer sobre o mundo.
  6. Regimes metadiscursivos incluem metalinguagens (para descrever as línguas) e “instâncias sócio-institucionais que produzem conhecimento sobre língua e a controlam” (SOUZA, 2019a, p. 17).
  7. De acordo com Canagarajah (2013), a comunicação nas práticas translíngues transcende as línguas individuais e envolve diversos recursos semióticos, para além da palavra, que os sujeitos lançam mão para construir sentidos.
  8. Todas/os estudantes aqui citados (com nomes fictícios) assinaram termos de autorização para a publicação dos dados gerados.
  9. Gee (1996) distingue discurso com “d” e Discurso com “D”. O primeiro alude a unidades linguísticas ou usos de linguagem, enquanto que o segundo refere-se a visões de mundo. Mais recentemente, Discurso com “D” busca apreender o modo pelo qual as pessoas acionam e reconhecem determinadas identidades ou tipos de pessoas (GEE, 2015).
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Referências

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Recebido em: 02-fev-2022
Aceito em: 29-set-2022

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