Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2021, v. 11: e351681.

ALVES, Maria Carolina de Brito. A tradução da oralidade de “O Quinze” para a língua francesa. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2021, v. 11, e351681.

A tradução da oralidade de “O Quinze” para a língua francesa

The translation of the orality of “O Quinze” into French

Maria Carolina de Brito Alves

Resumo: Rachel de Queiroz publicou seu primeiro romance, “O Quinze”, em 1930 e com ele alcançou notoriedade e visibilidade nacional. Sua linguagem simples e coloquial, repleta de marcas de oralidade, foi um ponto muito elogiado justamente por esboçar o falar do nordestino, do sertanejo, de forma natural e espontânea. Em 1986, “O Quinze” teve sua primeira versão publicada para a língua francesa, intitulada L’année de la grande sécheresse (tradução de Didier Voïta e Jane Lessa), e mais tarde, em 2014, uma nova tradução surge com o título La terre de la grande soif (tradução de Paula Anacaona). Sabendo que traduzir é acima de tudo uma tarefa desafiadora, esse artigo faz uma análise de como as marcas de oralidade, moldadas por Queiroz, foram transpostas para a língua francesa. Verificaremos se essas marcas, presentes no texto fonte foram respeitadas e de que forma as traduções mantiveram esse traço na língua de chegada. O embasamento teórico dessa pesquisa é feito através dos estudos de Paulo Henriques Britto (2016) sobre tradução literária, além de outros estudiosos.

Palavras-chave: Oralidade. Literatura. Tradução para o Francês.

Abstract: “O Quinze”, the first novel of Raquel de Queiroz, was published in 1930. The book granted the writer immediate prestige nationwide. The colloquial language and orality highlighted in the narrative reflect the way people use language in the Northeastern Brazilian countryside. These aspects indeed had been praised in her literary work. "L’année de la grande sécheressee" was the first translation to French of “O Quinze” and was published in 1986, translated by Didier Voïta and Jane Lessa. Years later, a new French translation published in 2014 was called "La terre la grande soif" by Paula Anacaona. This article shows how translations to the French language highlighted orality features of “O Quinze”, especially the method used by those translators. Paulo Henriques Britto (2016) and other scholars essays based some results from this analysis of literary translation.

Keywords: Orality. Literature. French Translation.

“O Quinze” e sua oralidade

Queiroz, em seu primeiro romance, fez uso da língua portuguesa de maneira simples, sem muito rebuscamento, de forma descomplicada, como que colocando a linguagem alinhada à vida simples do sertão, e ainda assim, sem cair em marcações de escrita exageradas tocadas pelo tom do regionalismo da segunda fase do Modernismo.

Britto (2016) afirma que o “texto literário é aquele que, quaisquer que sejam as outras funções que possa vir a ter (...), tem em si próprio como principal razão de ser. Em outras palavras, o texto literário é um objeto estético” (BRITTO, 2016, p. 59). No caso de “O Quinze”, o estético aparece, por exemplo, nas implicações em torno da oralidade evidente que há no texto e na harmonia e naturalidade das formas de expressão dadas à maneira de registrar o falar do sertanejo.

A escritora, no prefácio de sua primeira publicação, já se antecipa dizendo ao leitor que fez uso da linguagem popular no romance:

Escrevendo o meu livro, fil-o na linguagem corriqueira, de todo o mundo, deixei que a penna corresse como corre a língua, e fui arrumando os verbos e as locuções, os adjectivos e os pronomes, (Nossa Senhora, os pronomes!) no nosso geito habitual e caseiro, simplesmente, singelamente, como honestos matutos que vestem sua roupa melhor, a de ir á cidade, mas que nunca pensam em competir com a gente da praça, que sabe o que é seda cara, e traja terno de luxo... (QUEIROZ, 2016)

Devido a essa característica, a autora discorre também sobre a possibilidade de um glossário para sua obra, mas o descarta logo de partida:

Correm ahi dentro de O QUINZE, palavras e expressões genuinamente cearenses, desconhecidas fóra de nosso meio. Como, por exemplo, inorar (ignorar) que significa no sertão reparar, notar, commentar... andar por terra no sentido de viajar pela estrada de rodagem, a pé ou a cavallo em logar de andar no trem; “espritado”, “variar”, “nambi” e muito mais. Aconcelharam-me a faer um glossário. Mas glossário, é cousa muito grave. É para livro consagrado, livro em terceira ou quarta edição. Num romaneco anonymo, editado em província, elle dá uma impressão terrível de presumpção e pernosticismo... E resolvi não o fazer... Poderia ainda explicar muita cousa... Mas, respeitável publico, com licença ! é melhor passar á página seguinte, e que cada um vá julgando por si. (QUEIROZ, 2016)

Para Guedes (2017), estudioso de Rachel de Queiroz, “o falar regional, presente principalmente nos diálogos, é ao mesmo tempo espontâneo e fiel à realidade oral do interior nordestino” (GUEDES, 2017, p. 82). Quanto aos personagens da narrativa e o que eles podem implicar na escrita, e por conseguinte, na tradução, Faria (2012) diz que:

a composição dos personagens, além do seu aspecto descritivo, pode lançar mão de outro recurso: os efeitos da língua oral desviante da norma-padrão, com toda a sua riqueza e peculiaridade, que podem caracterizar a informalidade da fala, reflexos momentâneos da emoção, ou mesmo definir o seu perfil, por exemplo, de acordo com a sua etnia, grupo social, nível socioeconômico, gênero e faixa etária. (FARIA, 2012, p. 54)

Nesse quesito, temos Chico Bento, Cordulina, Vicente e outros mais dando o tom da narrativa, entremeando-se com o social, e chamando a atenção para a reprodução da oralidade na obra, e por consequência, na tradução. Trechos do tipo “Boa tarde, compadre. Abanque-se!” (p. 32), “Eu já fazia você na cidade!” (p. 23) e “Inhor sim... A dona mandou soltar o gado...” (p. 32), são exemplos da maneira de falar dos personagens e explicitam relações sociais das mais diferentes formas: subordinação, grau de instrução etc. Ainda segundo Faria (2012), a questão que gira em torno desses fatores é que, para o tradutor, ele pode tanto “tentar reproduzir uma variedade linguística estigmatizada numa outra cultura, mantendo características desse dialeto, ou então, neutralizá-la por meio da norma-padrão da língua” (FARIA, 2012, p. 54).

Na busca pela verificação de como se deu a tradução da oralidade em “O Quinze” para a língua francesa, procurei investigar os resultados no texto de chegada inspirada na ideia de Britto (2016) quando diz que “o escritor/tradutor precisa identificar certas marcas textuais que criem esses aspectos de verossimilhança, essa impressão de que estamos lendo a fala de uma pessoa” (BRITTO, 2016, p. 87). Logo, realizei o estudo baseando-me em questionamentos do tipo: Como ocorreu a reprodução da oralidade na obra? Como ela foi transmitida nas traduções? Elas foram respeitadas ou foram neutralizadas? Há diferenças de uma tradução para outra?

No artigo intitulado “De l’oral à l’écrit”, Bidaud e Megherbi (2005) afirmam que:

A linguagem oral coloca em jogo um número maior de características não linguísticas. Em suas formas clássicas (as conversações), a linguagem oral é geralmente inscrita em um espaço de interação antes de tudo social: o lugar, o tempo, a intenção de comunicar, a posição e a intenção dos interlocutores. (BIDAUD & MERGHEBI, 2005, tradução minha)[1].

Entendo que Queiroz, ao dar voz aos seus personagens, fez uso da linguagem oral e de suas repercussões no momento de passar à forma escrita. Vale ressaltar, de acordo com Britto (2016), que o texto de partida deve ser reproduzido a ponto de serem mantidas, dentre outras características, as referentes ao “registro linguístico (ou seja, grau de formalidade/coloquialidade da linguagem)” (BRITTO, 2016, p. 59). A depender da perspectiva, o tradutor poderia pensar em se utilizar da forma padrão, o que apagaria esse traço da escrita de Queiroz, ou tentar manter ao máximo essa característica, usando recursos de linguagem oral na língua de chegada, observando, é claro, o nível de permissão da língua de recepção.

Nos resultados da análise, já antecipo que vamos observar que os tradutores utilizaram estratégias como o uso do apóstrofo para registrar a fala, o emprego de léxicos mais coloquiais, com o uso de termos ligados a situações de menor formalidade e de suporte mais afetivo, tudo isso para tentar recuperar a oralidade do texto de partida. Notaremos também que nem sempre foi possível manter a mesma forma de linguagem, dadas as barreiras e possibilidades da língua.

As marcas de oralidade

Os indivíduos mantêm valores culturais que lhes são característicos, que os diferenciam uns dos outros nos costumes, no seu modo de ser, e de se expressar, sendo sua língua um canal por onde podemos observar essas diferenças de maneira mais aclarada. Em se tratando de tradução, em geral, as teorias apontam para a impossibilidade de se retratar com total fidelidade as línguas. A ideia central é, portanto, a de encontrar um correlato que se relacione ao máximo com o sentido da ideia transmitida no texto de partida, pois assim como ratifica Theodor (1976) “traduzir não significa substituir palavras de um idioma por palavras do outro, mas transferir o conteúdo de um texto com os meios próprios de outra língua” (THEODOR, 1976, p. 21).

Para Britto (2016), existem três maneiras de observar a oralidade: as marcas fonéticas, lexicais e morfossintáticas. Ele entende como marca fonética aquela relacionada à transcrição, na escrita, da fala de alguém através, por exemplo, da supressão da pronúncia de vogais, como pra ao invés de para, o uso de formas reduzidas de verbos, como tá e tava no lugar de está e estava, etc.

As marcas lexicais, dentre outras possibilidades, são aquelas que apresentam modificações nos sentidos, nas formas e usos das palavras, e as gírias, que na definição de Britto (2016) são “palavras e expressões que são usadas por grupos claramente definidos, e que são pouco utilizadas por pessoas que não pertencem a eles, sendo em muitos casos até desconhecidas por elas” (BRITTO, 2016, p. 93).

Já as marcas morfossintáticas são as que mostram um desvio normativo em relação à língua padrão, como, por exemplo, o uso de pronome do caso reto em posição de objeto, como em xingar ele, o uso de pronome átono em início de oração, como me viu, e o uso de expressões gramaticais restritas à fala, por exemplo, que nem, sendo usado no sentido de tal como ou talvez.

Sabemos que muitas das críticas positivas de “O Quinze” foram justamente em relação à linguagem simples e original da qual Queiroz fez uso para representar a fala de seus personagens sertanejos. Logo, partindo da classificação preconizada por Britto (2016) para as marcas de oralidade, cito alguns exemplos que são encontrados em “O Quinze”, com suas respectivas traduções, identificadas por T1 (tradução de 1986), e T2 (tradução de 2014), organizados em três quadros da seguinte forma: marcas de oralidade quanto à fonética (Quadro 1), marcas de oralidade quanto ao léxico (Quadro 2) e marcas de oralidade quanto à morfossintaxe (Quadro 3).

Marcas de oralidade referentes à fonética

As marcas de oralidade são uma maneira através da qual podemos analisar a maneira de falar de um grupo, e por isso elas fazem mais sentido às pessoas que a utilizam. Se transposta para uma outra realidade, ela terá de se adaptar aos recursos que permitir a nova língua, senão ela não fará sentido e causará estranheza ao público receptor, pois, segundo Schnaiderman (2011) “para traduzir bem, é claro, não basta transpor um texto em uma linguagem gramaticalmente correta. Cada grupo humano tem a sua, específica, a ser captada e transmitida na língua de chegada” (SCHNAIDERMAN, 2019, p. 49).

Para Britto, as “marcas de oralidade devem criar no leitor a ilusão de que o texto em que elas aparecem é a fala de uma pessoa” (BRITTO, 2016, p. 90). Vejamos, então, como se adaptaram, na língua francesa, as marcações de oralidade sob o prisma da fonética, observando ao mesmo tempo se houve diferenças de uma tradução para outra.

“O Quinze” Tradução de 1986 Tradução de 2014
inda por cima en plus comme si
diz que vai pro Ceará e de lá embora pro norte d’après ce qu’il dit, il va à Ceara et ensuite vers le nord d’après ce qu’il dit, il va à Fortaleza et ensuite vers le nord
mode a gente armar a tipoia pour accrocher son hamac pour accrocher notre hamac
diacho sale gosse petit démon
mundiça bonne à rien une plaie
Tô tum fome! Dá tumê! Z’ai faim ! Ze veux manzer! Z’ai faim ! Ze veux manzer!
Mãe, dá tumê Maman, ze veux manzer ! Maman, ze veux manzer !
Titia! Titia! Eu téo você! Tati ! Tati ! Ze te veux ! Tati ! Tati ! Ze te veux !
inhora M’dame M’dame
indagorinha juste maintenant à l’instant
badinha ma’aine ma’aine
óia rega’de rega’de

Quadro 1 - Marcas de oralidade referentes à fonética
Fonte: QUEIROZ, 2016, 1986, 2014

Podemos perceber que os trechos foram manipulados em português para melhor representar a fala dos personagens. A supressão ou substituição de sílabas ou de letras, no caso de “inda” (ainda), “Cente” (Vicente), “diacho” (diabo), “inhor/inhora” (senhor/a), “indagorinha” (ainda agorinha), “badinha” (madrinha), “óia” (olha) são exemplos dessa condição. Ao verificar as traduções, temos ora o apagamento dessa informação, com recuo à norma padrão da língua de chegada, no caso de “inda”, “indagorinha”, ora a manipulação do termo com o uso do apóstrofo para se aproximar ao registro da língua falada em francês. Foi o que aconteceu nos trechos “m’sieur”, “‘cente”, “m’dame”, “ma’aine” e “rega’de” , justamente para expressar a oralidade da fala dos personagens. Para a tradução de “diacho” e “mundiça”, outrora grafada em português imundície, os tradudores as compensaram utilizando-se de um vocabulário mais informal.

Vale ressaltar que o apóstrofo aparece para reforçar a ideia de interação do uso da linguagem oral e serve como acessório para a marcação desta característica na sua transcrição para a escrita, sinalizando ao leitor esta marca. Nesse caso, temos um distanciamento da norma padrão da língua francesa, uma vez que, sabidamente, o apóstrofo não se justifica na ortografia dessas palavras, mas é bastante utilizado, por exemplo, para sinalizar a supressão de letras, evocando a representação da oralidade da língua:

Muitos exemplos mostram que o apóstrofo tem praticamente uma função icônica de representação da língua falada: vários utilizadores acrescentam um apóstrofo (conscientemente ou não) porque para eles, o apóstrofo é o símbolo da língua falada transcrita para a forma escrita. (KALMBACH, 2017)[2].

Ainda quanto à supressão de sílabas ou de letras, temos o vocábulo “pro”, tão frequente na oralidade da língua portuguesa, substituto coloquial do termo para, que, no exemplo, aparece combinado com o artigo definido masculino. Como podemos ver na tabela, ele fora apagado nas traduções: “à Ceara”, “à Fortaleza” e em muitos outros exemplos que aparecem na obra e nos textos em francês.

O mesmo acontece na tradução do termo “mode”. Essa forma de escrita, representa em língua padrão a conjunção subordinativa consecutiva de modo que. Essa marcação fora totalmente apagada nas traduções, aparecendo em outros formatos de cunho mais normativo quanto ao uso da língua padrão.

Esse manejo ao tratar da representação da fala dos personagens aparece também quando Queiroz colocou na escrita a fala de uma criança. Os tradutores usaram o mesmo artifício, pois fora possível fazê-lo na língua de chegada. Para se chegar ao registro de fala, foi utilizada, em francês, a substituição de fonemas consonantais: Je = /ʒə/, manger = /mɑ̃ʒe/, da língua padrão por Ze = /zə/ e manzer /mɑ̃ze/ , representando uma aproximação à maneira de falar da criança. No trecho “Titia! Titia! Eu téo você”, a tradução da oralidade também fora preservada, pois em francês, além do uso do termo infomal “Tati”, também houve modificação do fonema consonatal encontrado na pronúncia do pronome sujeito “je” para imitar a fala da criança: “Ze te veux”.

É importante ressaltar que, para Britto (2016), a:

questão que se coloca para o tradutor contemporâneo, interessado em produzir uma versão que respeite as características do original, é determinar até que ponto é possível reproduzir essas características na língua-meta” (BRITTO, 2016, p. 67).

Concluo, portanto, que, dos marcadores de oralidade referentes à manipulação fonética apresentados, na grande maioria dos casos, a oralidade foi mantida ou recompensada, dentro daquilo que era possível fazer, respeitando o sistema sociocultural e linguístico da língua francesa. Destaco também que não houve grandes diferenças, se compararmos as duas traduções.

Marcas de oralidade referentes ao léxico

Através do léxico, podemos observar como a sociedade manifesta seus conceitos e sua forma de ver o mundo. No levantamento dessa pesquisa, constatou-se que é nele que podemos verificar um maior número de exemplos em relação às marcas de oralidade presentes no texto de partida.

Segundo Ribeiro e Paim (2016),

O entendimento da relação estreita existente entre o léxico, a sociedade e a cultura exige a consideração, por um lado, de que a língua tem suas características concretas, de uso, no mundo; e, por outro lado, direciona a observação de como seus usuários se situam e se relacionam com a sociedade na qual estão inseridos. (...) Assim, cada indivíduo codifica o universo através de seus sistemas de valores, sua visão de mundo, sua ideologia e suas práticas sociais e culturais. (RIBEIRO E PAIM, 2016, p. 18)

No Quadro 2, veremos como aparecem as marcas de oralidade em relação ao léxico e sua manifestação nas duas traduções para o francês.

“O Quinze” Tradução de 1986 Tradução de 2014
carece
careço
ce qu’il faudrait
ce que je veux
ce qu’il nous faut
Je voudrais
trouxa balluchon barda
mormaço chaleur vent chaud
lanzuda tellement de laine toute laineuse
abanque-se asseyez-vous asseyez-vous
dona patronne
dona
patronne
dona
barraquinha petite maison petite maison
pé de pau arbres
arbre
branches d’arbre
arbre
tipóia [sic] hamac hamac
gancho toit toit
mocinha mocinha mocinha
besteira sottises Qu’est-ce que tu racontes
taquinho petit bout petit bout
vosmecês vous vous
de-comer le manger le manger
rebolem jetez jetez
janta (substantivo) manger manger
espritado diable au corps être habité
soca (verbo) s’enfile s’enfile
bucho estomac bec
abestado dans la lune dans la lune
dizedor la langue bien pendue raconter
tiquinho un peu un peu
variando pas bien du tout divaguant
cara chupada museau allongé museau allongé
compadre compère compadre
comadre commère comadre
arribar partir partir
perguntadeira questionneuse Madame l’Indiscrète
doninha petite dame petite dame

Quadro 2 - Marcas de oralidade referentes ao léxico
Fonte: QUEIROZ, 2016, 1986, 2014

Ao visualizarmos o quadro, podemos reparar que nas traduções houve o uso do léxico padrão e também uma breve exotização do texto, que foi o caso de “dona”, “mocinha”, “compadre” (T2) e “comadre” (T2), que viraram estrangeirismos nos textos em francês, o que, de uma certa forma, descaracterizou o uso da linguagem coloquial em relação ao texto em português.

Em outros casos, a oralidade desaparece nas traduções, como nas palavras “mormaço”, “lanzuda”, “barraquinha”, “taquinho”, “abestado”, “espritado”, “tiquinho”, “variando”, “cara chupada”, “perguntadeira” (T1) e “doninha”, onde temos na verdade a sensação de estar lendo uma explicação, uma definição do que seria tal expressão na língua de chegada. Como diz Arrojo (1986), a “tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que considerarmos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo” (ARROJO, 1986, p. 44). A oralidade também não é transmitida nos casos de “carece” e “careço”, “abanque-se”, “pé de pau”, “tipóia”, “rebolem”, “soca”, “bucho” (T1), “arribar”, quando o que se vê é a utilização dos termos na língua francesa padrão.

Houve ainda outras transformações que, de uma certa maneira, apagaram o traço de oralidade, como o uso de verbos para traduzir os adjetivos “bebinho” e “dizedor”, que viraram “saouler” e “raconter”, como também o uso de verbos para traduzir as expressões informais “janta” e “de-comer”, que passaram a ser “manger”.

Por outro lado, houve também compensações para se resgatar a oralidade, como, por exemplo, a tradução de “perguntadeira” que resultou em “Madame L’indiscrète” (T2), “dizedor” (T1), que virou “la langue bien pendue”, e “besteira” (T2), que resultou em “Qu’est-ce tu racontes”. A meu ver, essas estratégias supriram o mesmo tom daquele visualizado no texto de partida. Essa compensação também percebo nas traduções de “bucho” e “trouxa”, esses dois últimos recuperados pelo uso de termos mais informais na T2: “bec” e “barda”, respectivamente.

Em suma, considerando as expressões lexicais alinhadas nesse levantamento, percebo que a grande maioria não marcou a oralidade prevista no texto de Queiroz, e que, em se comparando as duas traduções, a T2 tende a ser um pouco mais aproximada ao uso da linguagem informal ou oral. No entanto, mesmo não tendo sido possível a reprodução desse traço de oralidade na grande maioria dos casos, entendo que a recepção dessa oralidade teve de se adequar a uma nova realidade por se tratar de uma cultura diferente, o que, inevitavelmente, provoca alterações.

Marcas de oralidade referentes à morfossintaxe

As marcas de oralidade referentes às características morfossintáticas podem aparecer de diversas ordens, como na ausência de marcações de número (singular/plural), na não observância à correta colocação pronominal, no uso de formas analíticas dos verbos, dentre outras alterações. Nelas, podemos ver a língua sendo alterada para agir em em função da fala, do como se diz algo em determinados ambientes e situações.

Segundo Britto (2016) “as melhores marcas de oralidade são, de longe, as morfossintáticas” (BRITTO, 2016, p. 95). No entanto, adianto que a afirmação de Britto não foi constatada nesse levantamento, pois descobrimos muito mais marcações na parte fonética e lexical do que na morfossintática.

No caso ora em baila, foram selecionados e apresentados no Quadro 3, alguns dos trechos que exemplificam essas alterações gramaticais, típicas da oralidade e da coloquialidade, e suas respectivas traduções.

“O Quinze” Tradução de 1986 Tradução de 2014
Carece é carrapaticida muito Ce qu’il faudrait, c’est une bonne dose d’insecticide Ce qu’il nous faut, c’est de l’anti-tique et pas qu’un peu
Vê se tu arranja uma aguinha pro café Esaie de voir de nous trouver un peu d’eau pour le café Essaie voir de nous trouver un peu d’eau pour le café
Nós já achamos ela doente Elle était déjà malade quand nous l’avons trouvée Elle était déjà malade quand on l’a trouvée
Me ripuna só de olhar Ça me repugne rien que de regarder Ça me répugne rien que de regarder
Tem mais jeito não Il n’y a plus de moyen, non Rien à faire
Quando o compadre estava jantando Pendant que vous étiez en train de dîner Pendant que vous dîniez

Quadro 3 - Marcas de oralidade referentes à morfossintaxe
Fonte: QUEIROZ, 2016, 1986, 2014

Quanto aos advérbios, que são, por sua natureza normativa, modificadores de sentido, percebe-se seu deslocamento em relação a sua posição quanto às normas gramaticais em português, o que, de partida, caracteriza um traço da fala manifestado na língua escrita. É o caso de “Carece é carrapaticida muito” e “Tem mais jeito não”, ambos sendo colocados no final da frase. Em língua francesa, a mesma alteração não se aplica. Os tradutores não poderiam fazer uso do mesmo deslocamento adverbial, o que soaria estranho quanto ao uso.

A estratégia seria a de usar um outro recurso compensador para resguardar essa marca de oralidade. Nesse caso, a meu ver, a T2 foi mais proveitosa quando adicionou ao final da expressão o trecho “et pas qu’un peu” [não só um pouco], para ressaltar o advérbio “muito” colocado no final da frase. Quanto ao uso da partícula negativa “não” e seu recuo ao final da frase, a T1 fora mais respeitosa quanto a esta marca, quando enfatizou a fala do personagem colocando o “non” também ao final, porém, respeitando as normas gramaticais de uso através de pontuação.

Em se tratando de regras gramaticais, as colocações pronominais, no português falado no Brasil, de fato, não são muito respeitadas na linguagem informal. Para exemplificar, temos “Nós já achamos ela doente”, ao invés de “Nós já a achamos [encontramos] doente” (caso de próclise) e “Me ripuna só de olhar”, quando deveria ser, quanto às regras da norma padrão, “Repugna-me só de olhar” (caso de ênclise). Em francês, os pronomes complementos, mesmo na linguagem informal, antecedem os verbos, com exceção daqueles conjugados no imperativo afirmativo. Logo, qualquer modificação nesse sentido provocaria um estranhamento. Não devemos nos esquecer que, ao procurar se aproximar do texto de partida num processo de tradução, o efeito de verossimilhança não deve ser muito chamativo, sob o risco de incorrer em estranhezas, que soarão incoerentes.

Logo, percebe-se que em língua francesa não houve nenhuma outra maneira de se fazer repercutir o mesmo traço. O que restou foi o uso da língua padrão: “nous l’avons trouvée” (T1) e “on l’a trouvée” (T2), e “Ça me repugne”, nas duas traduções. Se partíssemos de uma análise na ordem inversa, ou seja, francês-português, a impressão que se transmite não é o da fala de alguém que não faz uso das normas morfossintáticas da língua, o que me leva a pensar que as traduções descaracterizaram o original quanto a essa particularidade.

Um dos traços mais notáveis em relação à expressão da oralidade em língua portuguesa é o não respeito às marcações de número (singular/plural) quanto aos substantivos, adjetivos e às conjugações verbais. No romance de Queiroz, tem-se vários exemplos, dentre eles aquele citado no quadro, “vê se tu arranja uma aguinha pro café”, onde o verbo não foi corretamente conjugado (o correto seria tu arranjas). As traduções novamente apresentaram o uso do francês padrão, no caso “essaie de voir...”, já que, como a frase está no imperativo, não haveria outra solução a não ser a de colocar o verbo no infinitivo neste tipo de construção.

Outra maneira de se detectar a transcrição da oralidade na fala dos personagens é através do uso de formas verbais analíticas, ou seja, aquelas expressadas através de um verbo auxiliar seguido de um verbo principal, como por exemplo “Quando o compadre estava jantando”. De acordo com Britto (2016), em língua portuguesa, as formas analíticas tendem a ser mais utilizadas na fala do que as formas sintéticas. Aliás, elas são recomendadas sem contraindicações (BRITTO, 2016, p. 97). Nas traduções, tivemos as duas opções como resultados: “Pendant que vous étiez en train de dîner” na T1 (forma analítica) e “Pendant que vous dîniez” na T2 (forma sintética).

As marcas de oralidade associadas às questões morfossintáticas, nas traduções para o francês, não conseguiram reproduzir a fala do nordestino sertanejo vista no texto fonte, salvo algumas poucas compensações. Como já discutimos, as línguas se manifestam cada uma a seu jeito, e existem limites de reprodução na passagem de uma realidade linguísitica para a outra. Como já dizia Dolet (1540), o tradutor, além de dever ter grande domínio dos idiomas e conhecimento da matéria a ser traduzida, precisa preservar, com atenção, a propriedade de ambas as línguas.

Considerações finais

Ao fazermos um balanço em relação às três categorias adotadas para a apreciação da tradução da oralidade de “O Quinze” para a língua francesa, constato que ambas as traduções tentaram manifestar a oralidade dentro de suas possibilidades de reescrita.

Ressalto também que foi nas marcações fonéticas onde se conseguiu ver, nas traduções, uma melhor manifestação do registro de oralidade reparado no texto de partida. Em se tratando das marcações lexicais, a oralidade encontrou obstáculos nos referenciais culturais da língua alvo. Já os procedimentos para indicar a oralidade através das marcas morfossintáticas também não foram reproduzidos nas traduções de “O Quinze”, devido aos impedimentos impostos pelas normas do idioma.

Acredito que a leitura de “O Quinze” em francês não surte o efeito de se estar lendo a maneira de falar do sertanejo, pois os referenciais sociais e as condições linguísticas são diferentes. Aliás, Britto (2016) reforça que:

Toda tradução é, por definição, uma operação de reescrita, em que todas as palavras de um texto são substituídas por outras, de um idioma diferente, seguindo normas sintáticas diferentes, por vezes utilizando até mesmo outro alfabeto. (BRITTO, 2016, p. 67)

Refletindo sobre o limite do possível nas traduções de “O Quinze” para a língua francesa para que sejam preservadas suas características de oralidade, percebo que o limite é justamente aquele associado às realidades cultural e linguística de cada grupo. E quando falo em realidade cultural, incluo as limitações entre as línguas em relação ao seu uso, aquilo que elas permitem ser manipulado, de acordo com o seu entendimento. Evidentemente, por ser um ato de reescrita, sempre existirão perdas, o que não implica dizer que não tenha sido bem-sucedido o repasse de informações entre essas duas línguas.

Maria Carolina de Brito Alves - Professora efetiva da Casa de Cultura Francesa, da Universidade Federal do Ceará - UFC. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre e Especialista em Estudos da Tradução, pela Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: carolinaalves@ufc.br

Notas

  1. Le langage oral met en jeu un nombre plus important de caractéristiques non linguistiques. Dans ses formes classiques (les conversations), le langage oral est généralement inscrit dans un espace d’interaction avant tout social : le lieu, le temps, l’intention de communiquer, la place et les intentions des interlocuteurs. (BIDAUD & MERGHEBI, 2005)
  2. De nombreux exemples montrent que l’apostrophe a pratiquement une fonction iconique de représentation de la langue parlée : de nombreux usagers ajoutent une apostrophe (consciemment ou non) parce que pour eux elle est le symbole même de la langue parlée transcrite par écrit. (KALMBACH, 2017)
  3. Voltar

Referências

  1. ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Editora Ática, 1986.
  2. BIDAUD e MERGHERBI. De l’oral à l’écrit. Revue de l’enfance et de l’adolescence. 2005. Disponível em https://www.cairn.info/revue-lettre-de-l-enfance-et-de-l-adolescence-2005-3-page-19.htm Acesso em: 31 jul. 2021.
  3. BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
  4. DOLET, Étienne. A maneira de bem traduzir de uma língua para a outra (1540). In: FAVERI, Cláudia e TORRES, Marie-Hélene Catherine (orgs). Clássicos da teoria da tradução I: Antologia bilíngue Português-Francês. Florianópolis: UFSC, 2004. p. 17-25.
  5. FARIA, Johnwill Costa e HATJE-FAGGION, Válmi. O problema da oralidade em três traduções de Of Mice and Men, de John Steinbeck. Cadernos de Tradução. 2012/1. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2012v1n29p53. Acesso em: 31 jul.2021.
  6. GUEDES, Taffarel Bandeira. Rachel de Queiroz no Romance de 30: um estudo da obra e da fortuna crítica. 2017. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/29674. Acesso em: 31 jul. 2021
  7. KALMBACH, Jean-Michel. La grammaire du français langue étrangère pour étudiants finnophones. Finlândia: 2020. Disponível em: http://research.jyu.fi/grfle/index.html Acesso em: 31 jul. 2021.
  8. QUEIROZ, Rachel. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
  9. QUEIROZ, Raquel. L’année de la grande sécheresse. Tradução para o francês de Didier Voïta e Jane Lessa. Paris: Stock, 1986.
  10. QUEIROZ, Raquel. La terre de la grande soif. Tradução para o francês de Paula Anacaona. Paris: Editions Anacaona, 2014.
  11. RIBEIRO, Silvana e PAIM, Marcela. “Pipa” e “amarelinha” na área do “falar baiano” numa perspectiva diageracional . In LOPES, Norma, ARAÚJO, Silvana, FREITAG, Raquel. A fala nordestina: Entre a sociolinguística e a dialetologia. São Paulo: Blucher, 2016. 17-37. Disponível em: https://openaccess.blucher.com.br/article-details/pipa-e-amarelinha-na-area-do-falar-baiano-20307. Acesso em: 31 jul. 2021.
  12. SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, Ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
  13. THEODOR, Erwin. Tradução: Ofício e arte. São Paulo: Cultrix, 1976.

Recebido em: 31-jul-2021
Aceito em: 14-nov-2021

Creative Commons License
Todo o conteúdo deste trabalho é publicado sob a licença Creative Commons Attribution 4.0 International License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.