Seção Livre

BABEL, Alagoinhas - BA, 2021, v. 11: e333681.

BOTELHO, Gabriela Rodrigues; SANTANA, Juliana dos Santos. Colonialidades e subalternidades: uma análise decolonial de Memórias de minhas putas tristes. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2021, v. 11, e333681.

Colonialidades e subalternidades: uma análise decolonial de Memórias de minhas putas tristes

Colonialities and subalternities: a decolonial analysis of Memórias de minhas putas tristes

Gabriela Rodrigues Botelho
Juliana dos Santos Santana

Resumo: O objetivo deste artigo é compreender como as subalternidades e colonialidades se fazem presentes na obra “Memórias de Minhas Putas Tristes” de Gabriel García Márquez. Partimos do princípio de que a ambientação da obra e a construção dos personagens refletem ideologias coloniais e, portanto, comporta exemplos de subalternidades e colonialidades que constituem os territórios colonizados e as sociedades contemporâneas. Justificamos esse estudo ao propor reflexões críticas sobre escritos clássicos, colaborando para uma leitura ativa e atualizada. Para tanto, pautamo-nos em Hall (2016) ao pensar a literatura enquanto prática cultural e Gomes (2015) por situar o leitor cultural como ativo na compreensão do texto literário. Valemo-nos ainda dos estudos decoloniais (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2014; VERONELLI, 2015) e dos estudos subalternos (SPIVAK, 2010) para evidenciar a influência do processo colonial na obra. A análise aponta que esses atravessamentos resultam em submissão através da supervalorização da cultura eurocentrada, da divisão racial do trabalho, da violência de gênero, da linguagem opressora e de diferentes subalternidades impostas aos sujeitos/as colonizados/as..

Palavras-chave: Subalternidades. Colonialidades. Literatura.

Abstract: The goal of this article is to understand how subaltern and colonial conditions / or expressions are present in the work Memórias de Minhas Putas Tristes, de Gabriel García Márquez. We take off from the understanding that the book's atmosphere and characters development reflect colonial ideologies, thus, implying examples of subalternities and colonialities which constitute colonized territories and contemporary societies. We ground this study by proposing a critical analysis of classical literature, supporting and active and actual reading. To do it so, we base ourselves on Hall (2016) thinking literature as a cultural practice and Gomes (2015) locating the cultural reader as an active part in the literary text understanding. Also, we make use of decolonial (QUIJANO, 2005; LUGONES, 2014; VERONELLI, 2015) and subaltern (SPIVAK, 2010) studies to expose the colonial processes influence in the work. The analysis points out that the relation between story atmosphere and characters ends up in a submissive state through overvaluation of the Eurocentric culture, of a racial division of labor, of oppressive language and of different subalternities condition imposed on colonized subjects.

Keywords: Subaltern condition. Colonial condition. Literature.

Introdução

Neste artigo, partimos do princípio de que na literatura as obras e autores considerados clássicos sempre continuam em voga, porém, a leitura dessas obras pode mudar ao longo dos anos, bem como sua compreensão para novos leitores através da sua recepção. Desse modo, se faz necessário propor reflexões críticas para saber como esses escritos podem contribuir na contemporaneidade. Entendemos que autores como Gabriel García Márquez resguardam uma importância literária pelo impacto causado na sociedade com suas publicações. Embora reflita o pensamento de uma época, essas publicações não são incontestáveis, já que a literatura também é fonte de questionamentos. Nesse sentido, a linguagem ao descrever a realidade, pode fazê-la tanto para afirmar, como para contestar o que está sendo posto, esses posicionamentos são direcionados pelo autor do texto e cabe ao leitor segui-lo ou formular suas próprias concepções diante da obra (GOMES, 2015).

Nesse viés, analisar “Memórias de Minhas Putas Tristes” (MMPT) justifica-se por ser um resumo do universo de García Márquez, um autor consagrado na literatura latino-americana, mas que encerra muitas contradições em suas obras demonstrando que a literatura como uma prática cultural resguarda diferentes sentidos (HALL, 2016). Sendo o último romance publicado pelo autor, MMPT representa um universo literário correspondente a gerações passadas que, já não é bem-aceito para novos leitores, de modo que, pode ser uma fonte para discutir as representações de subalternidades e colonialidades. Assim, nosso objetivo é compreender como essas concepções se fazem presentes na obra e qual sua contribuição para leituras atuais.

Para desvelar essas colonialidade, pautamo-nos, principalmente, em Quijano (2005), Lugones (2014) e Veronelli (2015); além de Spivak (2010) como forma de compreender a subalternidade engendrada na obra. Também consideramos alguns autores/as que estudaram o romance por perspectivas culturais e das relações de poder (LUISELLI, 2006; CORTI, 2008; COSTA, 2011; BOTERO, 2012; PEREIRA, 2017).

Este artigo comporta quatro seções além desta introdução. Na seção seguinte, apresentamos alguns estudos sobre o livro e situamos a discussão no âmbito do processo colonial. Na segunda e terceira seções, expomos o aporte teórico relacionando-o à análise da obra. Na última seção, apresentamos as considerações finais.

1. Breve contextualização

O romance “Memórias de Minhas Putas Tristes” (MMPT) de Gabriel García Márquez, desde sua publicação, causou mais repercussão pelas temáticas que a obra comporta do que por suas qualidades literárias (CORTI, 2008). Considerado um livro que não foge às características de outras composições do autor, segue entrelaçando a realidade social da América Latina, a criatividade de Márquez e a intertextualidade com seus clássicos como “A triste história de Cândida Erendira e sua avó desalmada” (1983); e clássicos de outros autores como “Lolita” (1955) de Vladimir Nabokov e “A casa das belas adormecidas” (1961) de Yasunari Kawabata (CORTI, 2008). A intertextualidade se deu por abordar o abuso sexual infantil de forma romantizada, transpassando para a literatura os discursos que relativizam essa violência. Tal escrita gerou alguns conflitos entre a ambientação do romance, no início do século XX, e o momento de lançamento da obra, no início do século XXI.

O primeiro conflito surgiu em relação ao entendimento de amor, já que, o protagonista se apaixona por uma adolescente de catorze anos que ele conhece em um prostíbulo, ao solicitar uma noite com uma jovem virgem, para comemorar seu aniversário de noventa anos. A garota passa a história toda dopada e o “relacionamento” se dá pelas percepções e projeções do protagonista. Isto é, não se trata de uma relação amorosa, obviamente, mas de uma relação abusiva, uma violação.

O segundo tema tratado de forma conflituosa pelo romance é o envelhecimento. Apesar da idade avançada, as ambições do protagonista estão muito à frente do seu tempo, ele se sente vivo, potente e não quer se entregar a uma preparação para morte, como a velhice era vista. Assim, o enredo faz com que o “amor”, independentemente da idade, seja um impulso para seguir vivendo.

Pereira (2017) analisou como o livro MMPT retrata o corpo envelhecido e a percepção do envelhecimento. Nesta ocasião, a autora destacou o discurso sobre o corpo biológico, suas falhas ou autonomia diante das emoções que o protagonista não queria demonstrar. Outro discurso identificado pela autora, refere-se ao estranhamento da imagem de si. O corpo envelhecido não é reconhecido pelo personagem que fica buscando momentos que expliquem como ele chegou a essa situação. O discurso sobre a falta de virilidade é um problema central de acordo com Pereira (2017). No contexto da obra ser homem exige ser viril, macho, bruto, forte e belo. É nesse sentido que, para a autora o último discurso sobre o corpo envelhecido se relaciona ao poder. Ao ser impedido de exercer sua sexualidade como estava acostumado e como a sociedade exigia, o protagonista sente sua masculinidade comprometida e busca outras formas de exercer poder (PEREIRA, 2017).

A partir desses quatro discursos fica explícito um conflito entre o envelhecimento como algo ruim, como degeneração e a tentativa de envelhecimento saudável (PEREIRA, 2017). Essa segunda possibilidade é trabalhada na obra como uma transgressão. Por não precisar mais seguir os padrões sociais, já que, devido à velhice, o protagonista se vê fora de lugar, ele aceita o “amor”, pois assim sente-se livre do fardo do sexo, ao qual ele já não corresponde mais. Porém, o que ele chama de “amor” ou “transgressivo” segue a lógica de poder patriarcal, sendo guiado pela dominação do outro, e, não pelo questionamento das suas vontades ou das convenções sociais.

Dentre as repercussões sobre a publicação da obra destacou-se, ainda, a relação entre autor e personagem. Isso se deu por ambos serem idosos, pelo personagem viver situações parecidas com histórias pessoais do autor e pelo fato de Márquez ter escrito suas próprias memórias antes de publicar MMPT, assim como faz o protagonista (CORTI, 2008; COSTA, 2011). Essa repercussão foi negativa devido ao perfil violador do personagem nonagenário. Costa (2011) concentra sua análise da obra no ato de escrever memórias, considerando que como García Márquez estava idoso, seria uma experiência autêntica enquanto artista. Nesse sentido, o grande feito de MMPT seria questionar as possibilidades da literatura atual e a suas formas de escandalizar, já que, atualmente a tendência é a queda dos tabus (COSTA, 2011). Porém, o que se comprova é que a literatura ainda pode chocar muito ao abordar temáticas delicadas de forma ambígua, refletindo valores mal resolvidos da sociedade como: a pornografia, a pedofilia ou a sexualidade de idosos/as.

Longe de ser uma escrita autobiográfica, entendemos que, MMPT cumpre o papel de colocar em discussão problemas reais, demonstrando que comportamentos que deveriam ser do passado continuam sendo legitimados na sociedade, e que, portanto, precisam ser revistos, contestados. Desse modo, concordamos com Luiselli (2006) ao defender que mesmo os clássicos devem ser lidos de maneira crítica, ou seja, não se trata de contestar um legado ou a composição literária em si, mas em refletir e teorizar sobre como esses clássicos e autores consagrados podem agregar em uma leitura atualizada e ativa.

Uma proposta de reflexão ativa sobre a obra parte de Botero (2012). A autora constata que na literatura a relação entre identidade nacional, herói nacional e o anti-herói, exige identificação. Se a sociedade não guarda os valores do herói, ela tende a identificar-se com o anti-herói, por mais vilanesco que ele seja. Para a autora, em MMPT, há diversas distorções, como ocorre com a sociedade colombiana, uma vez que não exigem qualquer virtude ou empatia por parte dos seus considerados heróis. Assim, no romance ao colocar em destaque um protagonista anti-herói/vilão a identificação do público com ele é imediata, já que, é um reflexo da própria concepção de herói nacional (BOTERO, 2012).

Em relação às personagens femininas o problema se agrava, pois são construídas com base em concepções distorcidas pelo protagonista (BOTERO, 2012). A autora aponta como exemplo o título do livro, já que ao longo da história conhecemos uma cafetina, uma dona de casa, uma trabalhadora doméstica e a garota abusada, ou seja, nenhuma puta. Se elas não podem dizer o que sentem, tampouco podemos saber se são tristes. A segunda distorção é o abuso ser considerado amor, já que não há simetria na relação, o que a classifica como violência sexual infantil (BOTERO, 2012).

É possível exemplificar a incoerência da identidade nacional colombiana, e que podemos estender a outros contextos colonizados, através das dualidades apresentadas no romance. O protagonista explica que mantém uma vida de boa aparência na sociedade, mas tem uma fama oculta de pederasta; finge manter um padrão social que não sustenta há muito tempo, bem como seus pais faziam; cria uma personagem para a garota e nega-se a reconhecê-la na realidade; constrói uma imagem feliz e amável de si enquanto na verdade sabe que é feio e indesejável (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004). Essas dualidades são ativadas dependendo da conveniência do protagonista.

Botero (2012) defende que é possível realizar uma leitura cultural da obra, na qual assim como na construção de sociedades colonizadas e na história em geral, as mulheres e os grupos minoritarizados não têm voz; a aceitação do herói/anti-herói/vilão ocorre sem críticas, apenas como um reflexo das identificações; e as virtudes são escassas tanto no protagonista quanto na sociedade. Estamos de acordo com a autora, pois entendemos que os personagens e o enredo de MMPT trazem uma nostalgia colonial do século XIX e podem ser lidos traçando um paralelo entre a realidade latino-americana e a construção de heróis que acarreta um arquétipo jamais alcançável para o sujeito colonial, levando à construção do anti-herói. Entretanto, devido às distorções mencionadas por Botero (2012) e as colonialidades que operam nas estruturas sociais o anti-herói torna-se um vilão, como veremos nas próximas seções.

2. Colonialidades: ambientação e personagens

Partindo dos estudos apresentados, propomos uma leitura que constrói a ambientação e os personagens no âmbito colonial. Além das distorções sociais mencionadas por Botero (2012), o pudor social, a moral cristã e as hierarquias sociais eurocentradas são elementos que geram contradições nas sociedades colonizadas. Um reflexo disso está nas posições binárias do protagonista ao afirmar que desde criança “tive mais bem formado o sentido do pudor social que o da morte” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 5). Isto é as convenções sociais, para além dos valores que mobilizam, sempre moldaram o protagonista sem que este as contestasse.

Para compreender as influências da ideologia colonial nas convenções sociais presentes em MMPT e como isso resulta na vilania do protagonista recorremos a Quijano (2005) ao explicar que o colonialismo enquanto regime político findou-se com a independência das ex-colônias. Porém, nas Américas, as estruturas hierárquicas e as relações sociais de poder, mantém na atualidade a mesma lógica de dominação e exploração humana, engendradas na colonização. Esses resquícios coloniais remodelados foi o que o autor chamou de colonialidade.

A colonialidade do poder sustenta-se em três eixos: a ideia colonial de raça, a divisão do trabalho e o eurocentrismo (QUIJANO, 2005). Ao analisarmos os personagens principais de MMPT vemos como esses eixos estabelecem a subjetividade e a condição material desses personagens. O protagonista nonagenário, busca relacionar sua família às glórias da colonização. Sua mãe é o principal elo à ideia de raça branca, italiana, linda, educada, conhecedora das artes e das letras. Seu pai, embora seja caribenho é reconhecido na sociedade, tinha um trabalho, posses e boa reputação. Já o protagonista é mestiço, isso fica bem evidente, e mesmo podendo considerar-se branco, sabe que não cumpre os requisitos para ser um homem destacável como foi seu pai:

[...] ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. Devo estar condenado à juventude eterna, pensei então, porque meu perfil equino não se parecerá jamais ao caribenho cru que era meu pai, nem ao romano imperial de minha mãe (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p.5).

Já a garota, provavelmente é mestiça, com traços indígenas fortes, como mostra a descrição: “Era morena e morna. Tinha sido submetida a um regime de higiene e embelezamento que não descuidou nem os pelos incipientes de seu púbis. Haviam cacheado seus cabelos e tinha nas unhas das mãos e dos pés um esmalte natural, mas a pele cor de melaço parecia áspera e maltratada” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 13). Seu corpo é descrito como sensual e seus hábitos como de pobre, o que indica que a garota não corresponde às expectativas sociais: “Minha mãe em seu leito de morte me suplicou que me casasse jovem com mulher branca, que tivéssemos pelo menos três filhos, e entre eles uma menina com seu nome, que tinha sido o de sua mãe e o de sua avó” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 13). Essas descrições relacionam a ideia colonial de raça à demarcação social que atrela à personagem uma posição subalterna enquanto o protagonista encontra-se em posição de superioridade por sua mãe ser uma mulher branca europeia.

Em relação à divisão do trabalho, este caracteriza-se, como descreve Quijano (2005), de acordo com as supostas raças. Assim, o posto de destaque está a cargo do protagonista que mesmo sabendo que sua reputação é uma farsa e suas habilidades são medíocres, desfruta do status ostentado a grandes penas pelos pais. Ele relata que sua mãe pagou suas primeiras publicações e só depois pode caminhar sozinho em seu trabalho, ainda que seu desempenho fosse razoável:

Nunca fiz nada diferente de escrever, mas não tenho vocação nem virtude de narrador, ignoro por completo as leis da composição dramática, e se embarquei nessa missão é porque confio na luz do muito que li pela vida afora. Dito às claras e às secas, sou da raça sem méritos nem brilho, que não teria nada a legar aos seus sobreviventes se não fossem os fatos que me proponho a narrar do jeito que conseguir nesta memória do meu grande amor (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p.5).

Sem demonstrar preocupação com a garota, o nonagenário relata as condições de vida dela: “ficava na penumbra do quarto imaginando Delgadina em sua vida irreal de acordar os irmãos, vesti-los para a escola, servir o café da manhã, se houvesse o que pôr na mesa, e atravessar a cidade de bicicleta para cumprir a pena de pregar botões” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p.28). Vemos que, para ele, a vida da garota é irreal, ou seja, sua rotina de cuidado dos mais velhos e dos mais novos, sua vulnerabilidade e a exploração laboral sofrida enquanto menina pobre é irrelevante.

O eurocentrismo está presente na ambientação da obra, seja na casa colonial, que de tão esplêndida parece não se adaptar aos costumes locais; seja no nome das praças, das ruas dos lugares que o protagonista frequenta; nas referências artísticas, das mais variadas manifestações; nas línguas, autores e livros valorizados pelo personagem; além da menção à religião católica, seus santos, comemorações e igrejas, como vemos na passagem a seguir:

O espaço da casa é amplo e luminoso, com arcos de estuque e pisos axadrezados de mosaicos florentinos, e quatro portas envidraçadas sobre uma sacada corrida onde minha mãe sentava-se nas noites de março para cantar árias de amor com suas primas italianas. Dali se vê o parque de San Nicolás com a catedral e a estátua de Cristóvão Colombo, e mais além os armazéns do cais fluvial e o vasto horizonte do rio grande da Magdalena a vinte léguas de seu estuário. A única coisa ingrata na casa é que o sol vai mudando de janelas no transcurso do dia, e é preciso fechar todas elas para tratar de dormir a sesta na penumbra ardente (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 4).

Na obra o eurocentrismo está bastante relacionado à colonialidade do saber. Castro-Gómez (2007) explica que com a colonização toda forma de conhecimento anterior a este processo foi negado. Dessa maneira, os territórios colonizados foram vistos como sem cultura, história, civilização ou conhecimento, sendo necessário desenvolver esses aspectos sociais a partir do conhecimento europeu (CASTRO-GÓMEZ, 2007). No romance, embora o protagonista não seja brilhante com as palavras, se gaba por dominar a gramática, por ser conhecedor do latim, dos clássicos da arte e da literatura. Enquanto que a garota abusada não teve acesso à escolarização ou à cultura erudita, ela não sabe ler tampouco escrever e, ainda que ela seja capaz de aprender, para o protagonista, não lhe interessa ensinar, pois prefere interagir com a ilusão criada em relação à garota.

Esses aspectos levam a outro eixo de colonialidade bastante expresso na obra que se dá pela linguagem. Segundo Veronelli (2015), a colonialidade da linguagem relaciona língua, civilização, conhecimento e humanidade. Assim, estabelece-se uma linha que separa os humanos, aqueles povos que possuem linguagem, e, portanto, racionalidade, dos não humanos os que supostamente não possuem linguagem. De acordo com Veronelli (2015), nessas condições cria-se um monolenguajeo, uma comunicação de mão única na qual o colonizador, no caso desta obra o nonagenário, permite as expressões que lhe convém e entende o que lhe interessa ouvir, a partir das expressões do colonizado, no caso a garota. É como se a interlocutora não existisse, já que sua humanidade é negada, sendo que neste romance, o protagonista dialoga com a projeção criada por ele. Segundo o protagonista a garota se manifesta por grunhidos, ou será que é isso que ele houve?

Ao descrever os encontros com a adolescente dopada o nonagenário garante que eles mantinham alguma comunicação. Ele afirma ouvir um “gemido lúgubre” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p.11) enquanto a garota, desacordada, desvencilhava-se de suas investidas sexuais. Em um dos encontros, sem que a interlocutora tivesse condições de manifestar-se verbalmente, é relatado alguns movimentos corporais e fisiológicos como o suor. Em outra ocasião, aparecem mensagens escritas, que o nonagenário pensa vir da adolescente, mesmo sabendo posteriormente que ela não sabe escrever. Nesse ambiente ficcional o protagonista cria uma personagem e a nomeia como Delgadina. A rotina de falsa comunicação se mantém nos encontros posteriores, até que algo diferente acontece:

Eu me sentia tão feliz que beijava suas pálpebras, muito suave, e uma noite aconteceu como uma luz no céu: ela sorriu pela primeira vez. Mais tarde, sem nenhum motivo, se revolveu na cama, me deu as costas, e disse com desgosto: Foi Isabel quem fez os caracóis chorar. Exaltado pela ilusão de um diálogo, perguntei no mesmo tom:
- E de quem eram? Não respondeu. Sua voz tinha um rastro plebeu, como se não fosse dela e sim de alguém alheio que levasse dentro. Toda sombra de dúvida desapareceu então da minha alma: eu a preferia adormecida (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 26).

Nessa passagem, fica evidente a fantasia criada pelo protagonista e a necessidade de desumanização da garota como forma de encaixá-la nessa fantasia. É preciso negar sua expressão, seu nome, seu cotidiano, sua família, sua história e sua condição de plebeia. Dessa maneira, não é possível estabelecer um diálogo, mas, como aponta Veronelli (2015) um monolenguajeo, no qual a voz e a expressão do oprimido, neste caso, a garota dopada, são ignoradas de acordo com a satisfação do opressor. Assim como os povos colonizados, a adolescente é calada por diversas opressões, sendo suas manifestações interpretadas pelo viés do opressor, isto é, de modo eurocentrado e patriarcal.

Aqui também aparece a colonialidade de gênero. Lugones (2014) argumenta que não há mulher ou homem colonizados, pois estas são categorias vazias na colonização. Há macho e fêmea, pois os colonizados não eram considerados humanos, sendo classificados em hierarquias de sub-humanos. Em diversas passagens vemos o protagonista relacionar a garota a animais e faz o mesmo consigo. Sua autodepreciação revela ao mesmo tempo seu desencaixe naquela sociedade idealizada e sua masculinidade tóxica como fator de pertencimento a essa hierarquia. Em relação ao feminino a construção binária de santa ou puta prevalece. A primeira definição, na figura de sua mãe:

Meu pai comprou a casa num leilão público no final do século XIX, alugou o andar de baixo para lojas de luxo de um consórcio de italianos e reservou-se este segundo andar para ser feliz com a filha de um deles, Florina de Dios Cargamantos, intérprete notável de Mozart, poliglota e garibaldina, e a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade: minha mãe (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 4).

E a segunda definição na figura de qualquer outra mulher: “Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 6). Mesmo Ximena Ortiz, com quem o protagonista quase se casou, pois cumpria todos os requisitos da sociedade tradicional, é vista por ele como demoníaca, já que não se envergonhou ao ser vista nua:

Tinha uns olhos de gata fujona, um corpo tão provocador com roupa ou sem, e uma cabeleira frondosa de ouro alvoroçado e cuja emanação de mulher me fazia chorar de raiva no travesseiro. Sabia que nunca chegaria a ser amor, mas a atração satânica que exercia sobre mim era tão ardorosa que tentava me aliviar com tudo que era dama da vida de olhos verdes que encontrava no meu caminho. Nunca consegui sufocar o fogo de sua lembrança na cama de Pradomar, e assim entreguei-lhe minhas armas, com pedido formal de mão, troca de anéis e anúncio de boda antes de Pentecostes (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 14).

Nesse sentido, a colonialidade de gênero dialoga diretamente com a colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2007), na medida em que cria subjetividades hierarquizadas e força sua manutenção na estrutura social como forma de pertencer a algo que na verdade diminui sua existência. Isso é notável na passagem que mostra a iniciação sexual do personagem, ele também foi vítima de uma violação quando criança, todavia, mesmo com pouca idade já tinha a mentalidade de que precisava se impor em relação às mulheres e no dia seguinte volta ao prostíbulo para se livrar de sua vergonha. Vale ressaltar que ele chegou ao prostíbulo levado por seu pai, ainda que tenha sido uma negligência. Contudo, ele sabia que aquela era uma prática aceitável entre homens.

O desprezo do protagonista pelo corpo e figura feminina é notável em diversas partes do romance. Durante sua saga à procura da garota, após ter perdido contato com ela e com a cafetina Rosa Cabarcas, uma passagem, emblemática, demonstra seu comportamento misógino:

Passei dias inteiros observando, dos bancos de um parque poeirento onde as crianças brincavam de trepar na estátua desbotada de Simón Bolívar, as jovens ciclistas. Passavam pedalando como gazelas; belas, disponíveis, prontas para serem agarradas como galinhas cegas (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 28).

Não há empatia do personagem para com as personagens femininas, apenas julgamento. Nessa passagem, Márquez coloca em juízo a figura feminina, em outras ocasiões julga Rosa Cabarcas, assim como faz com a avó de “Candida Erendira” (obra que dialoga com MMPT), mas não questiona as violações praticadas pelos personagens masculinos em ambas histórias.

Todos esses traços de colonialidades e submissão convergem para a construção de um pensamento nacional que conformou as ex-colônias na América Latina. A ideia de raça; o eurocentrismo (na supervalorização da cultura, das letras e das artes europeias); a divisão do trabalho; o desapreço pelo ser e a desigualdade de gênero, além da opressão da linguagem. A conformação dessa estrutura leva a construção de sujeitos como Mustio Collado [1], o homem macho que mesmo sem ereção continua violador. Contudo, a construção desse cenário não estaria completo sem a naturalização da subalternidade feminina, como veremos na próxima seção.

3. A subalternidade feminina em Memórias de minhas putas tristes

“Memórias de minhas putas tristes” nos permite uma reflexão sobre a subalternidade feminina no contexto da obra, ambientada no final do século XX e lançada no início do século XXI, mais precisamente em 2004. A condição de subalternidade da mulher na narrativa está relacionada com o poder da dominação masculina representado pelo protagonista. Esse, paga as mulheres por seus serviços e por isso acredita que pode sujeitá-las a saciar suas vontades e desejos, principalmente os sexuais.

De acordo com Vásquez (2014), o discurso literário a respeito da sexualidade nas obras de García Márquez adota a perspectiva masculina e patriarcal, exaltando e venerando as personagens masculinas e menospreza as personagens femininas. Desse modo, um ponto frequente na escrita de García Márquez é o foco no sexo transgressor. Obras como “Ninguém escreve ao coronel” (1961), “Cem anos de solidão” (1967), “O outono do patriarca” (1975), “O amor nos tempos de cólera” (2004) e “Memórias de minhas putas tristes” (2004) carregam esse tema de sexualidades transgressoras “a partir de um ‘código masculino’ que tolera, defende e até glorifica a violência sexual masculina” (VÁSQUEZ, 2014, p.3, tradução nossa) [2]

Em MMPT a contestação da velhice é uma ressignificação cabível no século XXI, entretanto a forma como ela é feita no romance, a partir de uma relação abusiva entre um senhor de noventa anos e uma adolescente de catorze, dopada, não é algo transgressor, mas que reafirma os padrões patriarcais da sociedade. Desse modo, esse romance nos apresenta um conjunto de práticas lastimáveis desses padrões, dentre eles “a erotização da garota, o silenciamento da voz feminina e a concepção do amor, para aceitar, permitir e promover o abuso sexual infantil” (VÁSQUEZ, 2014, p.4, tradução nossa)[3].

O narrador-personagem da obra, o nonagenário Mustio Collado, jornalista que escreve em uma coluna semanal de um jornal colombiano, nos conta toda a história a partir da sua perspectiva. Esse personagem, que se descreve como um homem feio, tímido e anacrônico que nunca se deitou com nenhuma mulher sem pagar, no seu aniversário de noventa anos decide presentear-se com “uma noite de amor louco com uma adolescente virgem” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 4). É a partir desse desejo que o personagem nonagenário vai narrando para nós a sua história. Assim, toda a narrativa é constituída por uma única perspectiva: a do próprio personagem, um homem arrogante e egoísta que enxerga as mulheres como um objeto, usado principalmente para sua satisfação sexual. Tal pensamento machista centrado no exercício da virilidade e demonstração da masculinidade resulta no abuso e controle do corpo feminino para satisfazer-se sexualmente:

Era quase uma menina, mais para forte e xucra, de palavras breves e terminantes, que se movia descalça para não me estorvar enquanto eu escrevia. Recordo que eu estava lendo La lozana andaluza na rede do corredor, e a vi por acaso inclinada no tanque com uma saia tão curta que deixava descoberto suas coxas suculentas. Presa de uma febre irresistível levantei-a por trás, baixei suas prendas até os joelhos e avancei pelos fundos. Ai, senhor, disse ela, com um queixume lúgubre, isso não foi feito para entrar, mas para sair. Um tremor profundo percorreu seu corpo, mas se manteve firme (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 6).

A personagem Damiana, fiel funcionária que trabalha desde jovem na casa do jornalista, é vítima de estupro por parte deste que ainda destaca o tamanho da saia usada por Damiana como um atrativo ou um convite a prática por deixar suas coxas a mostra, e não é apenas uma vez que esse ato repugnante acontece: “Humilhado por tê-la humilhado quis pagar a ela o dobro do que custavam as mais caras daquele tempo, mas não aceitou nem um tostão, e tive que aumentar seu salário com o cálculo de uma montada por mês, sempre enquanto lavava roupa e sempre pela retaguarda” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 6).

Na narrativa aparecem seis personagens femininas ligadas ao nonagenário: Rosa Cabarcas, cafetina que arranja as mulheres para ele desde muitos anos; Ximena, a noiva abandonada e desprezada por ele; Delgadina, a jovem de catorze anos, obrigada a se prostituir para ajudar financeiramente a mãe, arranjada por Rosa Cabarcas para satisfazer o pedido do nonagenário; Castorina que o iniciou no sexo quando este tinha doze anos; Casilda, que foi prostituta e prestou muitos serviços ao protagonista, porém essa se resolveu com um amor, ainda que chinês (segundo ela), como forma de satisfação e felicidade e Florina de Dios Cargamentos, mãe dele. Os sentimentos dessas mulheres são ignorados na narrativa e refeitos pela ótica do protagonista, as mulheres não têm fala, não têm memória, não têm voz, tudo vem da experiência e percepção do protagonista (BOTERO, 2012). Há, portanto, uma normatividade que concebe as mulheres como submissas aos homens, tratando-as como subalternas, silenciando-as e condenando-as a uma obediência masculina.

Segundo Spivak (2010), na subalternidade do sujeito entram em jogo as relações de poder, posição de classe e, consequentemente, dos interesses econômicos, que incidem diretamente na compreensão do sujeito subalterno colonizado. O termo subalterno retrata, assim, “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p. 12).

No entanto, a subalternidade feminina, conforme nos aclara a mesma autora, parece ser a mais problemática, pois em relação ao sujeito colonizado as mulheres estão inseridas numa cultura patriarcal e machista que as silenciam duplamente. Spivak (2010) sabiamente destaca que:

No contexto do itinerário obliterado do sujeito subalterno, o caminho da diferença sexual é duplamente obliterado. A questão não é da participação feminina na insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois em ambos os casos, há “evidência”. É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se no contexto de produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade (p. 66-67).

Desse modo, a subalternidade da mulher é constituída por uma ideologia de gênero dominante masculina em uma sociedade patriarcal na qual a mulher é dita como submissa aos homens. Assim, para satisfazer o desejo do nonagenário, de passar uma noite com uma adolescente virgem no seu aniversário, Rosa Cabarcas, que “fazia sua colheita entre as menores de idade que se exibiam em seu armazém, e que ela iniciava e espremia até passarem a vida pior, a de putas diplomadas no bordel histórico da Negra Eufemia” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 8), atende ao seu pedido e lhe arranja uma jovem de catorze anos, pobre, morena com “a pele cor de melaço” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 13) que precisa trabalhar para ajudar financeiramente a mãe. A garota exerce uma função explorada pelo capitalismo industrial que se consolidava no século XX. Sem instruções e educação formal, trabalha em uma fábrica costurando botões. Inevitavelmente acaba sendo preza fácil da prostituição, como descreve a cafetina Rosa Cabarcas:

Pobrezinha, além de tudo tem de trabalhar o dia inteiro pregando botões numa fábrica. Não me pareceu que fosse um ofício tão duro. Isso é o que os homens acham, replicou ela, mas é pior que picar pedras (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 10).

Tanto o abuso de Damiana quanto o de Delgadina reflete uma “realidade hispano-americana: a violação de meninas e mulheres de procedência indígena que, por necessidade e falta de recursos econômicos para providenciar uma educação, não tem mais opção para sobreviver que optar pelas pesadas e nada gratificantes tarefas do trabalho doméstico” (LUISELLE, 2006, s/n, tradução nossa) [4].

No primeiro encontro com o seu algoz, a garota estava tão nervosa e amedrontada pelo que teria que ser submetida que foi dopada por Rosa: “a menina estava em tão mau estado naquela sexta-feira por ter pregado duzentos botões com agulha e dedal. Que era de verdade seu medo das violações sangrentas, mas que já estava instruída para o sacrifício” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p.17). No encontro, o nonagenário começa a descrevê-la destacando os seios recém-nascidos da jovem e afirma que ao assediá-la esta: “[...] escapou de minhas coxas, me deu as costas e enroscou-se como um caracol em sua concha” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 11). No segundo encontro, a garota segue dopada e ocorre a seguinte descrição:

Assim, comecei a secá-la com a toalha enquanto cantava para ela em sussurros a canção de Delgadina, a filha mais nova do rei, requerida de amores pelo pai. À medida que a secava ela ia me mostrando os flancos suados ao compasso de meu canto: Delgadina, Delgadina, tu serás minha prenda amada. [...] Então, essa era ela: Delgadina (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 20).

Nessa passagem é inserido o elemento do incesto na obra pela canção de Delgadina, filha mais nova de um rei que a deseja como amante, e o poder é exercido no ato de nomear a garota. Quando Rosa tenta lhe dizer o verdadeiro nome da menina abusada o protagonista se recusa a saber: “[...] Ela não se chama assim, disse, ela se chama. Não me conte, interrompi, para mim é Delgadina. Ela sacudiu os ombros: Bem, afinal de contas é sua [...]” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 24). Ele exerce o seu poder de controle até ao nomeá-la como melhor convém aos seus desejos. Na passagem a seguir o protagonista demonstra como sua projeção é mais interessante do que a própria pessoa com quem interage:

Era a mesma que andava pela minha casa: as mesmas mãos que me reconheciam às apalpadelas na escuridão, os mesmos pés de passos tênues que se confundiam com os do gato, o mesmo cheiro do suor de meus lençóis, o dedo do dedal. Incrível: vendo-a e tocando-a em carne e osso, me parecia menos real que em minhas lembranças (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 22).

Nesse jogo de imaginação e realidade a desumanização da adolescente se consolida, de modo que a própria expressão é negada. A comunicação, conforme destacamos anteriormente, ocorre de acordo com a imaginação do opressor: “Ela me respondeu com vibrações novas em cada polegada de sua pele, e em cada uma encontrei um calor diferente, um sabor próprio, um gemido novo, e ela inteira ressoou por dentro com um arpejo, e seus mamilos se abriram em flor sem ser tocados” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2004, p. 25). A jovem abusada não tem falas ou reações. Tudo que sabemos sobre a relação e o suposto “amor” entre ambos é narrada pelo protagonista, não há o ponto de vista dela assim como não há o da personagem Damiana. A mulher subalterna, então, é posta à margem da sociedade na qual o sujeito masculino é dominante, tendo sua história ignorada e sua voz duplamente silenciada. As categorias de sexualidade, raça, gênero e classe formam hierarquias de poder instituídas e naturalizadas na sociedade que favorecem a desigualdade e criam uma estrutura que silencia a mulher. Portanto, segundo Spivak (2010):

Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro Mundo”, encurralada entre a tradição e a modernização (p. 119).

É isso que acontece com as mulheres em MMPT, mulheres do Terceiro Mundo, aprisionadas entre a tradição patriarcal e a modernização. Jovens indígenas ou mestiças pobres, como a personagem Delgadina, obrigada a trabalhar em uma fábrica com carga horária exaustiva e a prostituir-se para ajudar financeiramente a família. Todo o horrendo abuso que a jovem sofre por parte do nonagenário é narrado por ele como uma “história de amor”, não sabemos a versão da jovem, pois ela não tem voz. É necessário, portanto, questionar e romper com a história única, debatendo sobre como o poder instituído oprime e silencia as outras identidades, reservando-lhes um lugar silenciado.

Considerações finais

Ao longo deste artigo apresentamos alguns estudos que direcionaram nossa compreensão sobre a repercussão e críticas dirigidas ao romance. Como construção cultural do universo literário de García Márquez e de MMPT focamos no processo colonial como constitutivo das identidades latino-americanas, para então apontar as colonialidades e subalternidades que acreditamos formatar os personagens e ambientar a obra.

Constatamos, no segundo tópico, que a ambientação da obra é atravessada pela colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) através da divisão racial e do trabalho, bem como da forte presença do eurocentrismo. Também está presente na ambientação do romance a colonialidade do saber (CASTRO-GÓMEZ), a colonialidade de gênero (LUGONES, 2014) e a colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES) refletidos na hierarquização dos personagens e suas posições sociais. Por fim, identificamos a presença da colonialidade da linguagem (VERONELLI, 2015) que limita a comunicação entre o protagonista opressor e a garota abusada, ou seja, até mesmo a linguagem estabelecida no romance é opressora.

No terceiro tópico, foi possível identificar que as subalternidades das personagens femininas, principalmente em Damiana e Delgadina, estão presentes na narrativa. As categorias de sexualidade, raça, gênero e classe constituem hierarquias de poder que contribuem com a desigualdade e criam na sociedade uma estrutura que silencia a mulher (SPIVAK, 2010). Toda a perspectiva da história é relatada pelo narrador personagem, um homem que toda a sua vida teve orgulho de sua virilidade e masculinidade e, com exceção da mãe a única mulher que ele enaltece e admira, percebe as mulheres como objetos sexuais. Na narrativa as mulheres não têm voz, são silenciadas e subordinadas às vontades do nonagenário.

Buscamos com esta análise apresentar uma leitura que respeita o momento de produção da obra, bem como as características do autor sem naturalizar as opressões descritas no romance. Destarte, reiteramos que autores como García Márquez precisam ser lidos como representações literárias de seu tempo, isto é, não há como esperar que apresentem a visão de mundo que temos hoje, mas podem ser necessários para encontrar caminhos que expliquem porque ainda sustentamos padrões sociais tão questionáveis.

Aqui estabelecemos uma relação entre o processo colonial e a concepção de mundo pautada na dominação de corpos e subjetividades, que conformam a obra e as sociedades colonizadas. Entendemos que identificar esses padrões pode ser uma forma de repensar a interpretação do romance, não como uma história de amor, mas como um exemplo de relações abusivas, colaborando para a desnaturalização dessas relações.

Gabriela Rodrigues Botelho - Doutoranda em Linguagem: Identidades e Práticas Sociais no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: gabibottelho@hotmail.com

Juliana dos Santos Santana - Mestranda em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: julianasantan24@gmail.com

Notas

  1. Apelido do narrador-personagem, dado por seus alunos, no tempo em que o mesmo dava aulas de gramática castelhana e latim, traduzido como Professor Desolado Outeiro.
  2. “a partir de un ‘código masculino’ que condona, defiende y hasta glorifica la violencia sexual masculina”.
  3. “la erotización de la niña, el silenciamento de la voz femenina y la concepción del amor, para aceptar, permitir e promover el abuso sexual infantil”.
  4. “realidad Hispanoamericana: la violación de niñas y mujeres de procedencia indígena que, por necesidad y falta de recursos económicos para proveerse una educación, no tienen más opción para sobrevivir que optar por las pesadas y nada gratificantes labores del trabajo doméstico”.
  5. Voltar

Referências

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  2. CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Decolonizar la universidad. La Hibrys del punto cero y el diálogo de saberes. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 9-24. (Encuentro).
  3. CORTI, Erminio. La recepción de Memoria de mis putas tristes: una panorámica y algunas observaciones. In: Fabio Rodríguez Amaya (Org.). Plumas y Pinceles II: El grupo de Barranquilla: Gabriel García Márquez, un maestro, Marvel Moreno, un epígono. Bergamo University Press: Sestante edizioni, 2008, p.52-87. ISBN 978-88-95184-89-0.
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  5. GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Memórias de minhas putas tristes. Tradução: Eric Nepomuceno. Ed. Record, 2004.
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  7. HALL, Stuart. Cultura e representação. Tradução: Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.
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  9. LUISELLI, Alessandra. Los demonios en torno a la cama del rey: pederastia e incesto en Memorias de mis putas tristes de Gabriel García Márquez. Espéculo. Revista de Estudios Literarios. Universidad Complutence de Madrid, 2006. Disponível em: https://www.ucm.es/info/especulo/numero32/camarey.html. Acesso em: 15 de mar. 2021.
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  13. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
  14. VÁSQUEZ, Vanessa Rendón. Memorias tristes de mis putas niñas: La glorificación del abuso sexual infantil. [S.l.: s.n.]. 2014. p.1-14. Disponível em:https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=Vanessa%09Rendon-Vasquez%092014&btnG=. Acesso em: 28 set. 2021.
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Recebido em: 01-jun-2021
Aceito em: 07-set-2021

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