Seção Livre
BABEL, Alagoinhas - BA, 2021, v. 11: e288233.
MATHIAS, Dionei. Superfície e profundidade: Fluxos de sentido na poesia de Conrad Ferdinand Meyer. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, 2021, v. 11, e288233.
Superfície e profundidade: Fluxos de sentido na poesia de Conrad Ferdinand Meyer
Surface and depth: Iconic flows in Conrad Ferdinand Meyer’s poetry
Dionei Mathias
Resumo: Conrad Ferdinand Meyer viveu entre 1825 e 1898, em Zurique na Suíça. Ao lado de Gottfried Keller e Jeremias Gotthelf, é uma das mais importantes vozes da literatura suíça do século XIX. Com uma produção literária ampla, o autor escreveu romances, novelas e poemas. Este artigo se volta para sua obra poética, analisando dois poemas em que imagens se destacam como princípio fundamental na organização de seu fluxo de sentido. Imagens representam uma forma de mediar, mas também de apreender a realidade, construindo com palavras um par indissociável na prática epistemológica. Nessa esteira, o conceito de consciência icônica busca explicar como imagens impactam na formação de outras formas de conhecimento, além da representação linguística. A poesia de Conrad Ferdinand Meyer revela um desejo semelhante em pensar como imagens têm suas dinâmicas próprias no texto poético. Assim, com foco no fluxo entre superfície e profundidade, este artigo deseja discutir os poemas “Im Spätbot” e “Auf dem Canale Grande”, a fim de analisar a relação entre imagens e palavras como fluxos icônicos nesses poemas. A discussão dos dois poemas deseja verificar de que modo representações visuais e verbais confluem, a fim de desvelar dimensões de sentido que permanecem num fluxo entre superfície e profundidade.
Palavras-chave: Conrad Ferdinand Meyer. “Im Spätbot”. “Auf dem Canale Grande”. Imagens.
Abstract: Conrad Ferdinand Meyer lived between 1825 and 1898, in Zurich, Switzerland. Along with Gottfried Keller and Jeremias Gotthelf, he is one of the most important voices in 19th century Swiss literature. With a wide literary production, the author wrote novels, novellas and poems. This article focuses on his poetic work, analyzing two poems in which images stand out as a fundamental principle in the organization of their flow of meaning. Images represent a way of mediating, but also of apprehending reality, building with words an inseparable pair in epistemological practice. In this context, the concept of iconic consciousness seeks to explain how images have an impact on the formation of other forms of knowledge, besides linguistic representation. Conrad Ferdinand Meyer's poetry reveals a similar desire by thinking about how images have their own dynamics in the poetic text. Thus, with a focus on the flows between surface and depth, this article wishes to discuss the poems "Im Spätbot" and "Auf dem Canale Grande", in order to analyze the relationship between images and words as iconic flows, in these poems. The discussion of the two poems aims to verify how visual and verbal representations come together, in order to reveal dimensions of meaning that remain in a flow between surface and depth.
Keywords: Conrad Ferdinand Meyer. “Im Spätbot”. “Auf dem Canale Grande”. Images.
Introdução
Conrad Ferdinand Meyer nasceu em 1825 em Zurique e morreu em 1898 na mesma cidade. Na historiografia literária, seu nome figura ao lado de Gottfried Keller e Jeremias Gotthelf como uma das três grandes vozes da literatura de expressão alemã na Suíça do século XIX. Meyer escreveu romances, novelas e poesia, tendo se destacado especialmente nesse último gênero. Muitos de seus poemas, como “Plenitude”, “Castanheira que ensombra negramente”, “As fontes romanas” ou “Duas velas”, fazem parte do cânone da poesia em língua alemã. Enquanto a obra de Jeremias Gotthelf e Gottfried Keller, de uma ou outra forma, se inserem numa tradição de crítica social, Conrad Ferdinand Meyer volta sua atenção para experiências de cunho mais intimista, criando com isso uma linguagem que já aponta para a literatura moderna. O que se revela, especialmente na poesia, é um modo de olhar para o mundo e tentar captar seus sentidos a partir da experiência pessoal. Assim, muitos de seus poemas mais belos focam numa imagem e criam uma relação com uma experiência íntima ligada a uma dinâmica afetiva complexa. Com isso, surge uma intersecção entre imagem, palavras e afetividade.
A tensão entre imagem e palavra remete a uma longa discussão filosófica, cujo movimento, em grande parte, gravita em torno do esforço de fixar uma concepção dicotômica. Em consequência disso, imagem e palavra são pensadas de forma excludente, dificultando a imaginação de limiares flexíveis entre essas duas categorias de apropriação e representação de realidade:
The intellectual life of western modernity has been unified around a series of binary codings. They were understood as intertwined oppositions: spirit and matter, mind and body, reason and emotion, objective and subjective, universal and particular, collective and individual, etc. As an expression of the anthropocentric understanding of reality, this system of codings was subsumed, with variable success, under the master binary of culture/nature. One of the specific dualisms that belonged to this matrix is the binary of language and vision. Historically, it was differently formulated, for instance as word/ image, text/picture, or discourse/perception, and it profoundly influenced the scientific imagination (BARTMANSKI, 2014, p. 164).
Com a construção dos muros binários, pensamento e percepção são treinados a enxergar, de modo a categorizar e classificar os impulsos do mundo a partir desse crivo de organização da realidade. Desse parâmetro de percepção surgem tessituras discursivas que constroem saberes e hierarquias de suas respectivas contribuições. Dependendo do contexto, os potenciais da imagem como conhecimento se tornam alvo de crítica e ou de acolhimento, no que diz respeito a seus potenciais epistemológicos (JAY, 1994, p. 1).
Como em outras esferas do conhecimento, a construção de muros impede uma confluência de sentidos, que por sua natureza metodológica cria canalizações cognitivas específicas. Desse modo, desconstruir ou flexibilizar barreiras do pensamento tem como potencial novos fluxos que podem gerar combinações inovadoras do saber. Com base nesse movimento que se afasta de dicotomias e privilegia a confluência desses estratos indissociáveis, Bartmanski (2014, p. 167) identifica sua tarefa em descrever e analisar como elementos discursivos e visuais confluem para formar a tessitura da concretização existencial.
Nessa mesma esteira, Boris Groys (2011) também discute essa intersecção. Nisso ele ainda se utiliza de metáforas espaciais ao falar, por exemplo, de muros para sua descrição, o que num primeiro momento sugere a manutenção da dicotomia, mas sua análise revela uma dinâmica mais complexa.
I would like to show that the image as such is not foreign to language at all, but that the image always suggests a mute message, a specific linguistic impulse [Sagenwollen]. Thus language does not reside outside the image, but rather behind its surface, so that it should not particularly surprise us when language emerges on the image’s surface and the image begins to speak (GROYS, 2011, p. 95).
No lugar de pensar imagem e discurso como entidades estritamente separadas, Groys as teoriza como parte de um mesmo fenômeno, cuja dinâmica reside no movimento paulatino entre superfície e profundeza. Nisso, surge um fluxo de sentidos que oscila entre os modos consciente e inconsciente (GROYS, 2011, p. 98), produzindo uma latência que reprime ou afirma um dos elos, de acordo com o condicionamento da percepção. Isto é, a confluência de sentidos produzida entre imagem e língua está em constante ebulição, mas depende do observador treinar seu olhar para enxergar como esses vetores interagem na produção de sentidos. Em outro contexto, mas com um interesse afim, Wenceslao Machado de Oliveira Jr escreve:
Nessa busca, elas [as imagens] também estão produzindo formas não só de imaginar o real, mas também de percebê-lo e concebê-lo. Elas nos educam o olho para ver sob determinada maneira e nessa esteira vão produzindo nossas memórias e as formas da nossa imaginação do real (2009, p. 20).
Apreender a realidade a partir da dinâmica de imagens produz o que Jeffrey C. Alexander chama de consciência icônica:
Iconic consciousness occurs when an aesthetically shaped materiality signifies social value. Contact with this aesthetic surface, whether by sight, smell, taste, touch provides a sensual experience that transmits meaning. The iconic is about experience, not communication. To be iconically conscious is to understand without knowing, or at least without knowing that one knows. It is to understand by feeling, by contact, by the evidence of the senses' rather than the mind (2008, p. 782).
O elemento central que Alexander destaca nessa discussão reside na identificação de que a produção de conhecimento não se reduz a sua verbalização, ou seja, sua tradução em malhas linguísticas passíveis de inserção nas práticas de representação linguística. A consciência icônica que resulta da interação do sujeito com a realidade imagética, nessa esteira, se transforma numa interface de produção de sentidos que impactam sobre a realidade individual, sendo responsável, portanto, por uma dimensão central no processo de apropriação de realidade.
A partir desse horizonte teórico, este artigo deseja discutir dois poemas de Conrad Ferdinand Meyer: “No último barco” e “No Canal Grande”. Ambos se destacam pela atenção que a voz lírica investe no mundo das imagens que apreende em seus deslocamentos. Nesse sentido, o foco de discussão recai sobre a confluência entre voz lírica e as imagens de que se apropria. Esse encontro produz uma importante relação de continuidade na identificação entre mundo externo e interno, entre paisagem e eu-lírico, suscitando uma experiência marcada pelo fluxo de sentidos. Essa experiência não tem como foco a construção de muros (semânticos, conceituais ou existenciais), preferindo identificar diferentes formas de ser e perceber o mundo num devir caracterizado por incursões recíprocas.
1. Experiências corporais e transição
Uma parte substancial da poesia de Conrad Ferdinand Meyer se dedica a captar imagens e mediá-las por meio da língua. Nesse esforço, há um busca constante por criar analogias entre experiências afetivas, produzindo confluências de sentidos oriundos de realidades diversas da concretização existencial. Essa dinâmica, portanto, produz fluxos e transições entre palavras e imagens na função de veículos do sentido, mas desencadeia igualmente um movimento em que espaços imagéticos confluem para produzir uma nova visão de mundo, cujo conteúdo constrói uma consciência icônica, sem almejar sua tradução linguística.
O poema “O último barco” se inscreve nesse horizonte. Em forma de soneto, com rimas agudas e emparelhadas, o poema encena a última viagem de um barco, descrevendo seu percurso, detalhes de sua aparência e as sensações que a voz lírica experimenta ao se encontrar em seu interior:
IM SPÄTBOOT
Aus der Schiffsbank mach ich meinen Pfühl.
Endlich wird die heisse Stirne kühl!
O wie süss erkaltet mir das Herz!
O wie weich verstummen Lust und Schmerz!
Über mir des Rohres schwarzer Rauch
Wiegt und biegt sich in des Windes Hauch.
Hüben hier und wieder drüben dort
Hält das Boot an manchem flachen Port:
Bei der Schiffslaterne kargem Schein
Steigt ein Schatten aus und niemand ein.
Nur der Steurer noch, der wacht und steht!
Nur der Wind, der mir im Haare weht,
Schmerz und Lust erleiden sanften Tod.
Einen Schlummrer trägt das dunkle Boot.
NO ÚLTIMO BARCO
Do banco do navio faço meu travesseiro.
Finalmente a testa quente esfria!
Oh quão docemente me arrefece meu coração!
Oh quão suavemente se calam prazer e dor!
Acima de mim a fumaça preta do cano
Se embala e se verga no sopro do vento.
Mais para aqui e novamente mais para lá
O barco para em algum porto plano:
No brilho parco da lanterna do navio
Desembarca uma sombra e ninguém embarca.
Só o capitão ainda, ele cuida e está de pé!
Só o vento que me sopra no cabelo,
Dor e prazer sofrem uma morte suave.
Um dorminhoco [1] carrega o barco escuro [2].
Os versos iniciais encenam o embarque do passageiro, a partir da perspectiva da voz lírica. O advérbio “finalmente” do segundo verso indica uma configuração afetiva que revela a sensação de ansiedade por esse momento, criando um certo grau de conforto em saber-se no último barco. Num primeiro momento, portanto, o poema poderia retraçar uma cena do cotidiano, de alguém que depende do transporte público, neste caso do barco, para chegar em casa, após um dia cansativo. Nesse horizonte, a voz lírica simplesmente está aliviada por não ter perdido sua condução e, após a turbulência do receio, por poder se assentar tranquilamente, com a certeza de que chegará em casa.
Essa tranquilidade se espraia pela voz lírica em forma de imagens corporais. Sem criar nexos causais, nem tentativas de racionalização da experiência, surge somente uma temporalidade absoluta, em forma de sensação do corpo. O barco se transforma em lugar de descanso, atualizando semas de conforto e bem-estar. A partir dessa configuração, corpo e empenho emocional podem desacelerar, criando uma atmosfera suave de desvanecimento do si. O conjunto de conotações positivas sugere, num primeiro momento, que os lexemas “esfria” e “arrefece” podem ser entendidos como um processo de transição afetiva e cognitiva, em que a voz lírica experimenta um abrandamento das atribulações em direção a uma sensação de fluxo suavizado dos movimentos de percepção. Os dois polos da experiência emocional, “prazer e dor”, se calam, produzindo uma equanimidade que se alastra pelo corpo. Ao mesmo tempo e juntamente ao par “prazer e dor”, atualiza-se o par volição-nolição, destacando o sentido de “vontade” (além de prazer) inerente ao lexema Lust. Nesse cenário, a ação e seus resultados, que representam a base da condição do si, dão lugar a um fluxo de sensações não coadunadas a um princípio teleológico, com seus imperativos de resultado. A racionalidade desvanece para dar lugar à presença do corpo como sensação.
Ao mesmo tempo, contudo, os dois lexemas estão atrelados a um campo imagético em torno da morte, corroborado pela ligação com o verbo verstummen (calar-se). Nos versos iniciais, esse estrato conotativo ainda permanece latente, localizado na profundeza da superfície imagética. Ao longo do poema essa latência vai se tornando cada vez mais evidente, de modo a indicar que já sempre esteve presente, precisando somente de um determinado enquadramento da imagem para se tornar visível. Nessa leitura, o “último barco” deixa de ser meio de transporte do cotidiano para se transformar numa condução que simboliza a transição da vida à morte, tecendo com isso um elo com a barca de Caronte. Há duas dinâmicas imagéticas, portanto, que têm início já na primeira parte do poema: por um lado, um movimento da profundidade à superfície, por outro, uma confluência de experiências imagéticas díspares, criando um elo visual entre o caminho para casa e o caminho para o ser após a morte.
Os versos cinco a oito se utilizam da mesma estratégia em sua composição, fazendo confluir semas que remetem a experiências afetivamente positivas e semas dissonantes que chamam a atenção do leitor para um outro traçado imagético. Assim, há uma superfície de imagens que parece remeter à experiência de embalo durante a gestação no útero materno (especialmente nos versos seis e sete), em que o sujeito não carece de localização ou de agência própria, sendo carregado por alguém que conhece o itinerário. Trata-se de uma sensação de segurança plena e de confiança total, em que a voz lírica pode delegar o ato de reflexão ou decisão a uma outra instância. Dissonando dessa superfície acalentadora, os lexemas “fumaça preta” disseminam semas de desconforto e desestabilização, instando a voz lírica a abandonar a passividade do aconchego em direção à atividade discernente da reflexão. Nesse cenário, a “fumaça preta” remonta à combustão de algo, à transformação, portanto, de matérias ou formas de ser no mundo, metamorfoseadas e reinseridas num novo fluxo existencial. Essa nova condição do ser em forma de “fumaça preta” se submete “ao sopro do vento”, uma imagem bíblica para a vida. Ao dirigir seu olhar para essa imagem, a voz lírica ainda não reconhece o princípio de transição entre formas do ser, mas ela pressente sua densidade semântica. Novamente, há um movimento imagético entre profundidade e superfície e, por outro lado, uma confluência de campos, ao reunir gestação para a vida em terra e a gestação transicional para uma outra modalidade de ser no mundo.
Os versos nove a doze dão continuidade à imagem do trajeto da vida à morte. Trata-se de um trajeto em que a luz decresce e os demais passageiros paulatinamente vão aportando em suas moradias. A lanterna e a quantidade reduzida de luz criam um ambiente aconchegante, permitindo à voz lírica uma igual redução de suas atividades cognitivas. Em oposição à atmosfera de aconchego, os lexemas “parco”, “sombra”, “ninguém” e “vento” tendem a atualizar elementos menos afins a essa configuração harmoniosa, indicando um momento de transição entre abundância e escassez, entre luz e escuridão, entre comunhão e isolamento, entre calmaria e a presença da força da natureza, trazendo para a superfície elementos de dissonância, ou melhor, imagens de transformação. Nessa configuração, o condutor é ao mesmo tempo condutor da embarcação e guia que acompanha a transição entre vida e morte.
O dístico final, por fim, traz o lexema “morte”, que permanece latente nas imagens precedentes. Contudo, o que morre não é o indivíduo, mas sim “dor e prazer”, produzindo um apagamento de sua acuidade. Essa acuidade que se extingue remonta ao prazer como sensação corporal, à volição como movimento cognitivo, mas também à negação do prazer e da volição inerente à experiência de dor. Trata-se de “uma morte suave”, atualizando conotações positivas, distantes de associações com sofrimento corporal ou atribulação afetiva diante do término iminente. A latência volta a ser reforçada com o atributo “escuro” do barco, sempre com o intuito de deixar esse estrato da imagem na profundeza. No lugar de indicar o decesso do corpo, a morte conflui com a imagem de alguém que dorme, embalado numa atmosfera de descanso.
Os últimos dois versos retomam a tensão entre superfície e profundidade, ao revelar um novo enquadramento imagético para a “morte”. Com efeito, o barco carrega “um dorminhoco”, alguém que em dado momento volta a acordar. Visto deste ângulo, o lexema verstummen (calar-se) já continha um movimento semelhante, pois calar-se não implica o silêncio eterno. Nessa esteira, a morte deixa de ser um fim definitivo para se transformar numa transição a uma nova modalidade de ser no mundo, como a fumaça que retorna ao fluxo da existência, subordinando-se ao “sopro” da vida. Com isso, o barco não conduz ao decesso do corpo, mas a um novo estágio existencial, com novas sensações e temporalidades, produzindo uma continuidade entre os conceitos de vida e morte.
2. O espetáculo da vida
O segundo poema “No Canal Grande” também parte da imagem da embarcação para encenar dinâmicas de sentidos. Como no primeiro poema, as imagens linguisticamente mediadas interagem entre si, produzindo uma estruturação que desbrava nova formas de percepção. As palavras produzem impulsos visuais, desencadeando formas de conhecimento sensorial. O material linguístico serve como veículo que ativa a produção de conteúdo visual. Composto por quatro estrofes de quatro versos respectivamente, o poema tem como referência o Canal Grande, em Veneza (SORG, 2012, p. 87):
AUF DEM CANALE GRANDE
Auf dem Canal grande betten
Tief sich ein die Abendschatten,
Hundert dunkle Gondeln gleiten
Als ein flüsterndes Geheimnis.
Aber zwischen zwei Palästen
Glüht herein die Abendsonne,
Flammend wirft sie einen grellen
Breiten Streifen auf die Gondeln.
In dem purpurroten Lichte
Laute Stimmen, hell Gelächter,
Überredende Gebärden
Und das frevle Spiel der Augen.
Eine kleine, kurze Strecke
Treibt das Leben leidenschaftlich
Und erlischt im Schatten drüben
Als ein unverständlich Murmeln.
NO CANAL GRANDE
No Canal Grande se acamam
Profundamente as sombras da noite,
Mil escuras gôndolas deslizam
Como um segredo sussurrante.
Mas entre dois palácios
Arde adentro o sol do anoitecer,
Flamejando ele expele um ofuscante
Largo raio sobre as gôndolas.
Na luz púrpura-vermelha
Vozes altas, risos ressoantes,
Gesticulações persuasivas
E o jogo sacrílego dos olhos.
Um pequeno, curto trajeto
Impele a vida apaixonadamente
E se apaga na sombra lá atrás
Como um sussurrar [3] incompreensível [4].
Entre o sussurro da primeira e o murmúrio da última estrofe, o poema apresenta o espetáculo da vida. Essas duas estrofes também funcionam como uma espécie de superfície imagética, de cuja profundeza irrompem lampejos da vida, encenados nas estrofes centrais. Surge, portanto, um ambiente de rumorejos e burburinhos de cujas profundezas a balbúrdia da vida se torna audível por alguns instantes, antes de voltar para os ruídos indistintos do murmúrio. Com a imagem do rumorejar, o poema também retoma a estratégia da confluência de experiências, neste caso, o sussurro seria o momento anterior ao nascimento e o murmúrio aquele posterior à morte, adumbrando uma espécie de “canal” sonoro que une as duas escuridões por entre as quais lateja a vida. Nisso o mussitar se revela como um contínuo, com diferentes gradações de intensidade e distinção. Dessa conjunção imagética, surge um fluxo em que existência não é entendida em termos de início, meio e fim, mas sim como uma dinâmica do corpo e sua natureza como continuidade sonora. O tetrâmetro trocaico contribui para intensificar essa imagem sonora, criando uma consonância com a imagem de fluxo que caracteriza o “canal grande”.
A atmosfera da primeira estrofe dá início a uma dinâmica de luzes, onde, neste momento, impera o reino da escuridão. As “sombras da noite” e as “escuras gôndolas” atualizam semas de um mistério magnetizante, neutralizando conotações negativas que a ausência de luz pudesse indicar. Os lexemas “acamar”, “profundamente”, “deslizam” e “sussurrante” produzem uma atmosfera de harmonia e enlevo, o que é intensificado pela aliteração das palavras “Gondeln gleiten”. Trata-se de uma configuração espacial, na qual a acuidade da consciência reflexiva cede lugar a uma sensação de embriaguez, inserindo a voz lírica num fluxo afetivo, muito mais voltado para a experiência corporal que para absorção cognitiva. Como no primeiro poema discutido, a atmosfera parece remeter à experiência do útero, um espaço onde impera um fluxo de experiências corporais e afetivas, escuro por natureza, em que os sussurros podem remontar à voz materna como início da vida. Esse complexo imagético permanece na profundeza do conjunto, sem revelar traços concretos. Compreender as “gôndolas deslizantes” e os “segredos sussurrantes”, portanto, não se inscreve na lógica da língua, mas sim das imagens e suas interações, a partir da experiência do corpo.
Em oposição à primeira e à última estrofes, os quartetos centrais se voltam para a luz, como imagem da vida. Ela surge repentinamente por entre dois espaços de escuridão, aqui no intervalo, não entre nascimento e morte, mas sim de dois palácios venezianos. Os lexemas “arde” e “adentro” intensificam a energia vital inerente à imagem, ao atualizarem semas de pujança e movimento, não sem emanarem conotações de erotismo na profundidade da imagem. Ao contrário da atmosfera tranquila e serena do deslizar das gôndolas pelo Canal Grande, na proteção da escuridão, a segunda estrofe contém imagens adumbradas com verbos de vigor e impetuosidade. Assim, o lexema “expele” – literalmente arremessa, o qual já contém semas de força e energia – é intensificado pelo advérbio “flamejando”, dobrando a carga semântica de veemência. O mesmo movimento de intensificação acontece na imagem conjurada do feixe de luz com os atributos de “ofuscante” e “largo”. Trata-se, portanto, de características imagéticas que atualizam a conotação de vitalidade por meio de uma presença física portentosa. Esse feixe de luz se lança à escuridão, afirmando sua presença.
Ao contrário da atmosfera silenciosa dos segredos da escuridão que dominam a primeira estrofe, a terceira traz a lume o ímpeto da vida, revelado pelo feixe de luz que irrompe por entre os palácios de Veneza. Nesse movimento, ela não desloca somente o rebuliço vital da profundidade à superfície, ela também intensifica os semas de erotismo que na segunda estrofe ainda permaneciam latentes. Os lexemas “púrpura-vermelha”, “risos ressoantes”, “gesticulações persuasivas” e, sobretudo, “jogo sacrílego dos olhos” remetem, primeiramente, a um conjunto de semas que concretizam a corporeidade, num segundo momento, também a sensualidade. Desse conjunto de imagens aflora a semiótica do galanteio e do desejo, revelando modalidades de interação que afirmam a vida em toda sua potência e ludicidade. Nessa dinâmica, todo um estrato de sentidos se torna visível na superfície, chamando a atenção para uma consciência do corpo como fenômeno existencial. A latência permanece, mas seu ímpeto imagético parece irromper para a superfície, permitindo captar algo, sem necessariamente ter de traduzir para a semiótica da causalidade. Junta-se a isso uma confluência imagética entre a vitalidade do sol e do corpo na transição entre segunda e terceira estrofe, criando um elo entre raio e ímpeto afirmativo da vida.
A última estrofe reconduz a imagem à escuridão, não sem antes criar uma confluência com a totalidade do poema. Nessa visão panorâmica, o Canal Grande se transforma em imagem para o percurso existencial, indicando um entendimento da existência como um fluxo de continuidade antes do nascimento, da vida e depois da morte. Por entre as duas grandes escuridões, surge a vida como intensificação da paixão. Após o ocaso da luz, retorna o murmúrio, criando uma confluência similar àquela proposta anteriormente. Aqui, eles parecem remeter às memórias como impactos no percurso da vida. Se na primeira estrofe eram secretos, aqui eles se tornam incompreensíveis. Em ambos os casos, eles seguem a mesma lógica da imagem, isto é, revelam formas de conhecer o mundo por meio de sensações. Nessa leitura, o Canal Grande representa um fluxo sonoro como metáfora da existência.
Considerações finais
Os dois poemas discutidos têm em comum o impulso de pensar a existência como embarcação que se desloca num fluxo ininterrupto entre luz e escuridão. Em ambos, o excerto existencial delimitado pela experiência da consciência entre nascimento e morte se caracteriza, sobretudo, pela experiência do corpo. Essa experiência, contudo, não chega a ser objeto de reflexão analítica ou de tentativa de tradução racional. Pelo contrário, em oposição a essa concepção marcada por racionalidade, os poemas sublinham essa experiência como fenômenos sensoriais que formam a base de uma outra consciência, uma consciência que se destaca pela sensibilidade icônica que constitui um estrato mais profundo de concepção do si.
Nesse horizonte, os dois poemas seguem uma lógica própria na administração do fluxo de imagens, utilizando-se de dois movimentos estruturantes: por um lado, a dinâmica entre superfície e profundidade revelando elementos latentes da imagem, por outro, a criação de confluências imagéticas concretizando uma intersecção de semas que não anulam as imagens individuais, mas as enriquecem por meio da consonância de sentidos. A partir desses dois movimentos, surge uma modalidade de percepção e, com isso, também de consciência que cria um fluxo entre verbo e imagem, no processo de apropriação de mundo.
Dionei Mathias - Doutor em Letras pela Universität Hamburg e pela UFPR. Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Desenvolve pesquisas sobre narrativas identitárias e dinâmicas afetivas. E-mail: dioneimathias@gmail.com
Recebido em: 18-dez-2020
Aceito em: 12-abr-2021